Rotas e Embarcações

O CONCEITO DA CHINA NA EUROPA QUINHENTISTA E A SUA TRANSFORMAÇÃO: COMPARAÇÃO TEXTUAL DAS OBRAS DE GASPAR DA CRUZ E GONZÁLEZ DE MENDOZA

Hiroshi Hino*

O Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Coisas da China (Évora, 1570) de Fr. Gaspar da Cruz, O. P., pode ser considerado como a primeira obra exclusivamente dedicada à China impressa na Europa. O seu valor literário-cultural tem sido injustamente subestimado devido à afirmação errada e corrente de que nenhum livro sobre a China saiu na Europa entre Il Milione de Marco Polo e a História de Fr. Juan González de Mendoza, O. E. S. A. O Tratado é, no entanto, a fonte da maioria dos livros então conhecidos sobre a China, sobretudo da Historia de las Cosas Mas Notables, Ritos, y Costumbres del Gran Reyno de la China (Roma, 1585). Embora Mendoza reconheça justamente a sua dívida para com Cruz,1 não especifica, infelizmente, os passos da sua História em que segue o Tratado.

Nas páginas do Tratado delineia-se uma imagem da China relativamente cativante, fascinante e favorável. Apesar de a sua missionação em Cantão não ter alcançado bom sucesso, o Grande Império deixou-lhe a impressão de ser o reino melhor do mundo em matéria de ordem, justiça, riqueza, política e predisposição para o cristianismo.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: estátua em bronze a representar Nossa Senhora da Assunção (nicho central inferior,3.a fileira). Xie Ronghan: fotografia,1991.

É importante notar que, ao contrário de Marco Polo, Cruz não omite uma fina descrição dos usos e costumes, e da vida social do povo cantonense nos meados do século XVI. Trata-se, claro, de um dos frutos da sua visita a Guangzhou Fu (廣州府, cidade de Cantão) no Inverno de 1556.

Mendoza, que pretendia viajar à China, mas que não conseguiu, aproveitou, para a compilação da sua História, quase todos os livros e manuscritos sobre a China então conhecidos dos europeus. A leitura comparativa da História e do Tratado leva-nos a crer que Mendoza intentava transmitir aos leitores uma imagem idealizada da China, terra onde, segundo ele, se conjugavam a riqueza material e o justo governo nacional. O Império do Meio de Mendoza, como a China de Fernão Mendes Pinto, é, segundo me parece, uma entidade construída de acordo com um plano inicial e intencionalmente definido, com base em princípios estritamente idealísticos e até utópicos.

A imagem da China de Cruz, como já foi dito, é bastante favorável e reflecte uma grande admiração pelas coisas chinesas. Cruz, por outro lado, aponta e critica vigorosamente a corrupção e a decadência da sociedade chinesa no período final da dinastia Ming. A História, apesar de se basear profundamente no Tratado, elimina (talvez intencionalmente) quase todas essas descrições e até as deteriora, às vezes, a fim de as harmonizar com a sua intencionalidade. É neste contexto que considero importante analisar o valor do Tratado e ponderar como foi formada a imagem da China na Europa sob a enorme influência da obra de Mendoza.

Neste ensaio, após referir exemplos da visão favorável da China incluídos no Tratado, gostaria de apontar algumas descrições discrepantes dos nossos dois frades e reconfirmar a autenticidade do Tratado de Fr. Gaspar da Cruz.

A POLÍTICA DE SEPARAÇÃO DOS PRÍNCIPES

Cruz, após a descrição do magnífico palácio do príncipe imperial existente na Guilin Fu (桂林府, cidade de Guilin), diz o seguinte (Note-se que a expressão "Vã folim" equivale à expressão chinesa "Wang Fu", mas Cruz confunde o termo genérico "Wang Fu" com os seus habitantes.):

"(...) de maneira que das portas adentro tem todos os passatepos, porque nunca pode sair fora de casa, assi pola grandeza de seu estado, como por ser assi lei do reino, que quer el Rey ter seu reino seguro e quer tirar aos de sangue real ocasiam de alevãtametos. Sam obrigados todos os regedores da cidade a irlho visitar e revereciar todas as festas do anno. Os outros parentes del Rey saem as vezes pela cidade, mas de nenhũa calidade podem sair dos muros afora, porque se cometerem saida pera fora, sem nenhũa remissam sam logo presos e castigados cõ a ultima pena que he capital. Ha tãbe ho apousento destes em Cãsi (廣西, província de Guangxi), porque he no estremo do reino, que he lugar onde inda que queirã nam se pode fazer possantes, porque provee el Rey o reino de maneira que nã possa aver nelle nhũs alevãtamentos: (...) patrimonios, ou nam nos tem porque ficam aos hirmãos, ou sam pequenos que os nam pode fazer possantes: ao que se ajũta serem comumete gastadores, dados a boa vida, a muito comer e beber, polo que comunmente nam fazem provisam de seus ordenados. Assi que por todas estas vias se governa ha terra de maneira que nam pode aver alevantametos nella." 2

Aqueles que Cruz descreve são os príncipes que viviam do ordenado cedido pelo governo central sem nenhum poder político nem responsabilidade social. Cruz sente uma imensa admiração pela técnica administrativa do imperador chinês destinada a evitar levantamentos e rebeliões, ou seja, a prática de encerrar os príncipes em áreas isoladas e bem afastadas da capital.3

POR QUE É A CHINA OPULENTA E RICA?

Cruz discorre sobre a opulência da China e aponta as seguintes razões fundamentais:

1. a sua tendência para levar uma vida diária luxuosa;

2. o respeito pela diligência e o ódio à preguiça;

3. o bom aproveitamento agrícola;

4. os impostos pouco pesados;

5. a boa utilização de todas as coisas.

Mendoza procura ampliar estas razões e refere a grande variedade de produtos e o baixo preço das coisas, chegando a concluir que esta terra é "a mas fértil del mundo".4

Tanto Cruz como Mendoza, como outros escritores ibéricos, se mostram grandemente impressionados com a riqueza material dos cantonenses de então, mas, segundo creio, tal posição resulta de impressões subjectivas, concebidas do ponto de vista da sua própria cultura, sobre cuja objectividade se deve fazer uma isenta avaliação. Recordo que um historiador japonês aponta que, na época, as refeições do povo comum se restringiam à satisfação das necessidades mínimas nutritivas, não lhes permitindo preferências particulares.5

Em Portugal a situação não seria diferente. A maioria dos emigrantes portugueses na época dos descobrimentos pertencia à camada jovem masculina, forçada a deixar a pátria por motivos de sobrevivência, o que representou uma grave falta de trabalhadores, em especial, no sector agrário. As zonas urbanas, enriquecidas graças ao comércio luso-indiano, em especial Lisboa, gozaram de brilhante prosperidade, mas as zonas agrárias, originariamente não muito férteis, ficaram cada vez mais baldias devido à falta de lavradores jovens.6 A ambição da riqueza fácil no Oriente levava ao abandono dos campos, descurando a agricultura e enfraquecendo as energias da Nação.7 As carências alimentares que se faziam sentir e o parasitismo de largos estratos da população faziam com que o poeta Sá de Miranda criticasse vigorosamente a realidade da Lisboa quinhentista: "Que, ao cheiro desta canela,/O reino nos despovoa."8 A sociedade portuguesa, no seu apogeu, concebeu, de certo modo, elementos internos que suscitariam a lenta decadência e o enfraquecimento nacional.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: a Lua, que ladeia, no tímpano, a representação do Espírito Santo. Xie Ronghan: fotografia, 1991.

Para compreender bem o seguinte trecho de Cruz, penso ser necessário conhecer a realidade da sociedade agrária do Portugal quinhentista em decadência, tanto espiritual como material.

"He ha China terra quase toda mui be aproveitada; porque como ha terra seja muito povoada, a gete muita em demasia, e os homes gastadores, e tractando se muito be no comer e beber e vestir e no demais serviço de suas casas, principalmete que sam muito comedores, cada hũ trabalha de buscar vida e todos buscam diversos modos e maneira de ganhar de comer e como sustetare seus grandes gastos. Faz ajuda muito a isto ser ha gente ociosa nesta terra muito aborrecida e mui odiosa aos demais, e que ho nam trabalhar nã no comera, porque comumete nam ha que dee esmola a pobre, polo que se acertava algũ pobre de pedir esmola a algũ portugues e ho portugues lha dava, riã se os Chinas delle, e zõbãdo diziam: pera que das esmolas a este que he velhaco vao ganhar, (...). Do dito cõsta ha gete ociosa nesta terra ser aborrecida e que ho nam ganha nã no comera, polo que a cada hũ cõve catar modo e maneira de vida com que se sustente: e trabalha cada hũ de buscar ha vida, porque ho que ganha livremente ho goza e gasta aa sua vontade, e ho que lhe fica per morte he dos filhos e netos, pagando soomete direitos reais, assi dos frutos que colhe como das fazendas em que tratam, que nã sam pesados: ho maior tributo que tem, he cada pessoa casada, ou que tem casa sobre si, cada hũ anno paga de cada cabeça de sua casa dous mazes, que sam sessenta reis: nhũa tirania lhe faze mais que soo pagare seus direitos: ficã suas fazedas e tudo o que pode aver livre pera ho podere gozar a sua võtade: polo que todos trabalhã de ganhar e de lavrar as terras e aproveitarlas."9

A visão de riqueza e abundância de Cruz, no fim da dinastia Ming, encontra-se muito mais ampliada e desenvolvida na História de Mendoza, o qual deixa os leitores imaginarem a visão do paraíso terrestre na China quinhentista. No que diz respeito à observação de Cruz, a sua descrição acerca do povo Dan Min (蜑民), isto é, o povo cantonense que vive e trabalha nos barcos é bem mais interessante. Na óptica de Cruz, o povo Dan Jia (蜑家), tradicionalmente discriminado pela gente de terra, não tem uma existência tão miserável na China antiga. Cruz, após a descrição da modéstia das suas habitações e do seu modo de viver que observou no delta do Rio das Pérolas (珠江, Zhu Jiang), escreve o seguinte:

"Estes pobres toda via nã vivem ta pobres e ta maltratados no trajo como os que vivem pobremente em Portugal." 10

UMA MARAVILHOSA TÉCNICA ADMINISTRATIVA

O primeiro imperador da dinastia Ming, Taizu Hongwu Di (太祖洪武市, imperador Hongwu) estabeleceu, em 1380, o sistema administrativo denominado Nanbeigengtiao (南北更調), isto é, a restrição de locais de nomeação dos mandarins letrados (文官, Wenguan), não mandarins militares (武官, Wuguan). Assim, todos os mandarins letrados foram impedidos de assumir qualquer cargo no seu local de domicílio ou na sua terra natal. Tal medida destinava-se a evitar a formação local de fortes laços de parentesco, o que poderia provocar abusos de privilégios e perturbaria a administração regional. Trata-se de um sistema político destinado a evitar essa probabilidade.11 O seu sucesso é explicado sucintamente por Cruz e é grandemente louvado por Galeote Pereira, cujo importante texto constitui a fonte mencionada do Tratado. Cruz escreve o seguinte:

"Os oficios todos se dam de tres em tres años e nhũ se da por mais tepo, e todos sam providos a homes que nam sam naturaes da terra, e dam lhos assi porque nam se movam por afeiçam nas cousas da justiça que pertece a seus ofícios, e tãbem porque se nam façam poderosos arreigando se na terra pera que assi se evite alevantamentos." 12

Pereira escreve o seguinte acerca do mesmo sistema:

"Agora direi a maneira e estilo que os Chins tem em o fazer de sua justiça, pera que se saiba a vamtagem que nos estes tem semdo gemtios e nos christãos tanto mais obrigados a fazer a verdade e direito.

Como este Rei da China esta sempre na gramde cidade de Pachim (北京, Beijing, Pequim), e o reino seja tamanho, esta todo repartido em privimcias, como fiqua dito, as quais são governadas por governadores e regedores a maneira de comçolles. E são postos huns e tirados outros tamtas vezes, que não tem nunqua tepo pera criarem malicia; a aimda, pera terem seus reinos mais seguros, os louteas que amde governar em hũa provintia amde ser doutras muito longe na qual deixam molheres e filhos e quamto tem, não levamdo comsigo pera omde vão governar mais que suas pessoas; mas em chegando achão tudo o que lhe he necessario, assi casas e aparato dellas e a gemte para ceu cerviço, em tamta perfeição e abastança, que não tem necessidade de nada. E assi, alem del Rei ser bem servido, esta seguro de nhũ alevantamento." 13

SUPERIORIDADE DOS MANDARINS LETRADOS SOBRE OS MANDARINS MILITARES

A partir de agora, centrar-me-ei na análise de algumas discrepâncias descritivas entre Cruz e Mendoza. Cruz nota bem agudamente a superioridade dos mandarins letrados sobre os mandarins militares, conceito esse que era bem universal e tradicional nas sucessivas dinastias chinesas.

Cruz escreve o seguinte:

"As capitanias dã se segundo ha cavalaria e feitos de cada hum na guerra: nhũ faz na guerra cousa assinalada, que mais ou menos nam seja acrecetado em dignidade. (...) Os da guerra sam feitos por cavallarias e obras assinaladas que fizeram na guerra. De maneira que nesta terra os homes sam muito hõrados pollas letras ou por cavallaria, e mais ainda pollas letras, porque dos letrados comunmente sae os cinco principais louthias ** e assistentes." 14

Por outro lado, a descrição de Mendoza é a seguinte:

"Otros hay tambien de mucha estima que son puestos en el segundo grado: Estos son los q son hechos por la milicia, y a estos eligen los Generales por autoridad del Rey: despues de aver provado sus hechos en armas, con testigos muy fidedignos: A los quales demas de darles este titulo, les dan entretenimientos honrrados y provechosos, porque ningun hecho valeroso, o animoso dexan de estimar en mucho, y galardonar con gran liberalidad; lo qual es causa que los menores soldados se anime a seguir, y a imitar a los mas principales y valientes." 15

Estamos perante, segundo creio, uma das provas da aludida alteração ao texto elaborada por Mendoza. Havia na tradição chinesa um famoso dito comum que simboliza a baixa posição social dos homens de armas: "O bom ferro não se transforma num prego e o bom homem não se torna num soldado" (好鐵不當釘,好人不當兵, Hao tie bu dang ding, hao ren bu dang bing), o que melhor fundamenta a referida intenção de transmitir ao público europeu uma visão, o mais idealística possível, da civilização chinesa.

INFLUÊNCIA DOS EUNUCOS

A intriga e a perversão grassavam na corte da dinastia Ming no século XVI devido à excessiva influência dos eunucos (宦官, Huanguan), na sua maioria arbitrários e corruptos,16 o que Cruz observa de forma correcta.

"Sam destribuidos os oficios por el Rei cõ cõselho dos capados, segundo os merecimentos e suficiecia de cada hũ(...). E porque os capados sam aquelles cõ cujo conselho sam os ofícios destribuidos, sam aas vezes grossamente peitados dos louthias, pera que os acrecentem, (...)."17

Mendoza, por outro lado, não se refere, de modo nenhum, ao relacionamento entre os eunucos e a sua habitual aceitação de peitas, omitindo-os pura e simplesmente. Mendoza, com o objectivo de transmitir aos leitores europeus uma visão da Justa e Saudável China, não hesita em eliminar todas as informações sobre os eunucos, isto é, o ser humano completamente deformado não só corporal mas também espiritualmente, existência essa que lhe parecia, segundo creio, menosprezável e que não lhe era digna de menção.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: instrumentos da Paixão que ladeiam o nicho central superior (4afileira). Xie Ronghan: fotografia, 1991.

DAR-E-TOMAR DAS PEITAS

Ainda que a justiça, a ordem e o bom governo da China sejam resultado de uma apertada acção de policiamento, exercido mesmo de uma forma muito forte sobre todos os oficiais e cidadãos, que vivem num ambiente de desconfiança e vigilância mútua, Cruz não pode deixar de reconhecer que os chineses conseguiram realizar uma sociedade quase perfeita. Trata-se do exemplo mais sintomático da sua visão favorável da China. Cruz, apesar disso, não se esquece de apontar as corrupções dos louthias, isto é, os oficiais.

Cito aqui dois parágrafos acerca disso:

"(...) e porque cada hũ tenha cuidado de fazer ho que deve em seu oficio, e nam aja descõcertos no governo, todolos años sam visitados pelo chae (察院, Cha Yuan), e se acha que faze be seus oficios, os faz acrecentar em hõra e oficios mais hõrados, e achãdo os negligetes em seus oficios, ou que não guardã as leis do reino, ou que tomam peitas, achando que suas culpas sam graves e que merece despostos os despoe do oficio, e mandaos aa corte e poe outros em seu lugar. (...) Mas como ho chae traga esta alçada sobre os louthias e aja de devassar delles antes que entrem na terra trabalhã os louthias de saber se tomã peitas, e sabendo que as tomã desagastam se e descansam, cõfiando que peitando, seu feito lhe saira a sua vontade: e se sabem que nam tomam peitas, amigam se cõ todos os ministros de suas casas e da justiça e peitam nos e aparelham seus papeis de maneira que os nam possam cõprender em nhũa falta, e peitã os escrivães e ministros de suas casas porque elles hão de ser os principais que ham de testimunhar na devassa, como aquelles com que ho oficial faz tudo, ou diãte de que faz tudo." 18

"Todos os porteiros, meirinhos, escrivães, algozes, e todos os outros ministros que ha em cada casa dos louthias tem seus ordenados mui bastantes que lhe pagã cada mes mui bem pagos. Diante destes ministros fazem os officiais todas as cousas de seus officios e de justiça, porque estam presentes a tudo, e por estes nas residencias sam condenados ou absolutos, pello que diante delles de nhũa qualidade ousam fazer nhũa desordem em seus officios, nem de nhũa qualidade diante delles ousam tomar peitas. Se tomam peita, ou faze algũa cousa fora das leis e de suas obrigações, he tam escõdidamente e cõ tanto resguardo que de nhũa qualidade estes ministros lho avente." 19

Como se se tratasse de um pressuposto natural, Mendoza não faz nenhuma menção ao dar-e-tomar das peitas dos oficiais, mas menciona só o seu princípio fundamental, escrevendo que "paga a todos ellos (ministros del rey) el rey bastantes salarios, porles es prohibido a todos ellos so gravíssimas penas, el llevar derechos, o cohechos a los pleiteantes, (...)".20

Ao contrário da afirmação de Mendoza, o ordenado dos mandarins da dinastia Ming foi o mais baixo de todas as dinastias chinesas.21 Apesar disso, a maioria esmagadora conseguiu acumular riquezas abundantes durante o desempenho dos seus cargos por meio de desfalques do erário público, efectuados sem nenhum peso de consciência como se de actos habituais se tratasse,22 como é de presumir facilmente pelo dito comum chinês: "O oficial incorrupto não obtém êxito na sua carreira profissional" (清官不到頭, Qing guan bu dao tou).

Aquilo que Mendoza considerou importante foi tentar chamar os leitores europeus à realidade da sua própria civilização e ao que eles deviam ser, confrontando-a com a elevadíssima civilização da China. Pode-se dizer com verdade que a apresentação fiel da verdade das coisas chinesas não é o interesse nem o assunto principal de Mendoza.

JUSTIÇA EM AUDIÊNCIA PÚBLICA

Apresento aqui a descrição de Cruz acerca da justiça em audiência pública e cito, a seguir, as duas descrições de Cruz e Mendoza acerca dos seus resultados.

Cruz inicia o capítulo XX com o seguinte:

"Quando quer que por via de inquiriçam ou de devassa se perguntam algũas testemunhas, fazem no os louthias em publico diante dos oficiais ministros de seu oficio, e diante de todos os de mais que por qualquer maneira alli se acertam de achar presentes, e isto pera que se nam possa usar de nhũa falsidade, nem manha no modo de inquirir: e pollo conseguinte no que se escreve. E primeiro perguntã as testimunhas apartadas, e se se encõtrarã ajuntã nas e perguntã a hũa diãte da outra ate os deixare vir a altercações e peleja de palavra, pera que pollas palavras que hũ diz a outro venha a cair qual he a verdade. E se por aqui nã acabã de cõpreder ha verdade, lhe dã muito açoute e tormetos pera que por hũa via ou outra acabe de saber ha verdade do negocio de que inquire ou devassam: nã usam de jurameto porque nhũ de seus deoses estimã. Te toda via respeito no testemunhar nas pessoas de qualidade e de que se presume que nam seram leves em mintir. Quãdo devassam sobre cousa de muito peso, ou sobre pessoas graves, cõ terem muitos escrivãos por que possam escrever nam fiam ha cousa doutre se nam de si, pollo qual escrevem elles ho processo da devassa." 23

Até este passo o conteúdo da descrição de Mendoza é quase igual e é evidente que Mendoza se baseia no Tratado de Cruz. Mas, a partir daqui, inicia-se a discrepância entre ambos.

"Acõtece aas vezes algũs louthias por peita grossa, ou por muita amizade soltarem algũ preso, e põer outro em seu lugar, que nã falta hũ roin que se queira põer a perigo d'açoutes, ou morte por interesse, ou meteno cõ engano enganandoo cõ palavras, e fazedo lhe ha cousa leve, e dando lhe algũ interesse lhe poe ho nome do preso que querem soltar, pera que as culpas e castigos do culpado caiam sobre ho innocete. E quãdo aas vezes desta maneira nam pode soltar ho culpado, trabalhã de peitar todos os oficiais que ho dem por morto antre os mortos que morrem nos troncos. Mas estas envenções nam se usam se nam onde os enteresses sam muito grossos, ou as aderencias muito grades e valerosas. E pera evitar estas inconvenietes que algũ ora ha: quãdo algũs sam presos por graves negocios, ou os presos tem grandes adversarios escrevem todolos sinais dos presos, e faze nos assinar ao pee da escritura, pera que assi nam possam usar dalgũa das malicias sobreditas." 24

A seguir vem a descrição de Mendoza:

"(...) y con hazer esto pocas veces ay quien se queje de haver recebido agravio por sentencia de juez; que es una grande virtud y q abia de ser ymitada de todos los juezes, para evitar los danos que ay en el mudo por no hacerse con el cuidado que estos gentiles en ello ponen; (...)."25

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: exemplar dos leões ao modo de gárgulas das extremidades da 3.a e 4.a fileiras.

Xie Ronghan: fotografia, 1991.

Para julgar qual é a descrição mais aproximada à verdade da sociedade e do sentimento humano em decadência no reinado de Shizong Jiajing Di (世宗嘉靖帝, imperador Jiajing), bastaria, segundo penso, lembrar vários comportamentos perversos e escandalosos dos protagonistas da realística novela Jinpingmei(金瓶梅). Os especialistas japoneses da história da dinastia Ming são quase unânimes em afirmar que a justiça dessa dinastia era bastante deformada e perversa e o povo comum tinha de suportar as grandes despesas inerentes às extraordinárias (mas quase habituais) peitas a serem entregues aos oficiais.26 A sua desigualdade e injustiça era insuportável para o povo sem poder.27

TEORIA DA TRANSMIGRAÇÃO DAS ALMAS E DA REENCARNAÇÃO

No que diz respeito à alteração textual efectuada por Mendoza, poderíamos apresentar mais um exemplo acerca da teoria chinesa da transmigração das almas e da reencarnação.

Cruz escreve o seguinte:

"Quam polida he esta gente, no regimeto e governo da terra e no comũ trato, tam bestial he em suas gentilidades, no tratamento de seus deoses e idolatrias. Porque alem do que esta dito tem muitas desistorias e mintiras gentilicas de homes que se tornaram em cães, e depois se tornaram em homes, e de cobras que se tomaram em homes, e outras muitas ignorancias." 28

A seguinte descrição de Mendoza seria quase ridícula para a maioria esmagadora dos chineses, porque o povo está somente interessado pelas coisas seculares neste mundo, as quais se resumem em ter muitos filhos e netos (福, Fu), acumular riquezas materiais (禄, Lu) e gozar da longevidade feliz (壽, Shou).

"Dizen y afirmã por muy cierto, que el (sic) anima tuvo principio del cielo, y que no tendra fin, por averle el cielo dado ser eterno; y que la que el tiempo que estuviere en el cuerpo en q dios la infundio, viviere segun leyes que ellos tienen, y no haziere mal, ni engaño a su proximo, sera llevada al cielo, donde vivira eternamente con grandes regalos, hecha angel. Y por consiguiente, que la que viviere mal, yra en compania de los demonios, a unas carceles muy oscuras, donde padeceran con ellos, tormentos que nunca se acabaran." 29

Na descrição de Mendoza desaparece inteiramente a noção da transmigração das almas e da reencarnação e o ideal chinês da imortalidade perpétua torna-se em "a fairly conventional Christian belief".30 Do ponto de vista missionário-católico, que salienta a separação rigorosa entre o homem e o animal, Mendoza, segundo creio, tocaria e mexeria individualmente nas suas fontes, nas quais se inclui o Tratado, assim tentando transmitir aos leitores europeus como era requintada a China quinhentista no que diz respeito também à sua religião.

Um dos méritos de Cruz, ao contrário de Mendoza, é ter-nos deixado uma correcta e fiel descrição das coisas religiosas, baseada na minuciosa observação.

CONCLUSÃO

Cruz, assim como Mendoza, mediante a observação da civilizadíssima sociedade chinesa, procura frequentemente, a partir dela, criticar, implícita e indirectamente, a sociedade ibérica, as suas instituições administrativas, a respectiva organização estatal e, especialmente, a sua justiça. Mesmo que esteja ainda longe do espírito requintadamente satírico e ainda que não consiga entender bem a contradição existente entre a polícia da maravilhosa sociedade chinesa e a sua barbaridade religiosa, é interessante notar que, já nos meados do século XVI, a observação do magnífico Outro começa a suscitar vários juízos críticos sobre a terra de origem dos escritores.31 Aí poderíamos observar, segundo creio, o embrião do relativismo cultural, atitude essa que reflecte, embora parcialmente, a mentalidade do Portugal renascentista.

Mendoza, através da utilização e recomposição dos documentos sobre a China, procura projectar o seu ideal através do exemplo da sociedade do Império do Meio, que infelizmente desconhece. Mesmo que se compreendam as suas intenções, pode-se com verdade afirmar, no que diz respeito ao seu valor como fonte literário-histórica, que o Tratado de Cruz excede evidentemente a História de Mendoza.

Para finalizar este ensaio, gostaria de citar as palavras de Cruz, palavras essas que, não sendo humildes, são ajusta expressão do seu orgulho. Ele inicia o "Aviso aos Leitores", escrevendo:

"Ho lector nam esperara de m¡ a abundãcia de eloquecia, e ornamento em coposiçã de palavras, somete se cõtete cõ eu ser fiel e verdadeiro na singella narraçam, (...)."32

Comunicação apresentada no Simpósio Internacional "Religião e Cultura", comemorativo do IV Centenário da Fundação do Colégio Universitário de S. Paulo, realizado pelo Instituto Cultural de Macau, Divisão de Estudos, Investigação e Publicações, entre 28 de Novembro e 1 de Dezembro de 1994, em Macau.

Revisão de texto por Fernando Lima; revisão final de Júlio Nogueira.

NOTAS

1 GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, Historia de las Cosas Mas Notables, Ritos y Costumbres del Gran Reyno de la China, Sabida Assi por los Libros de los Mesmos Chinas, Como por Relacion de Religiosos y Otras Personas que An Estado en el Dicho Reyno, Roma, 1585, p. 28.

2 CRUZ, Gaspar da, Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Coisas da China, com suas Particularidades, assim do Reino de Ormuz, Composto pelo R. Padre Frei Gaspar da Cruz da Ordem de São Domingos: Dirigido ao Muito Poderoso Rei Dom Sebastiam Nosso Senhor, Évora, 1570, pp. 49-50 (de acordo com a numeração escrita à mão do exemplar da Biblioteca Nacional de Lisboa); D'INTINO, Raffaella, ed., Enformação das Cousas da China: Textos do Século XVI, Lisboa, 1989, pp. 184-5. Neste ensaio utilizamos quase inteiramente a leitura dela.

3 ICHIMURA, Sanjiro, Tôyôshitô, Tóquio, 1943, vol. 3, pp.309-11, 556-9.

4 GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, ob. cit., p. 7.

5 YAMANE, Yukio, Min-teikoku to Nippon, Tóquio, 1977, p.111.

6 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Lisboa, 1980, vol. 3, p. 186.

7 Id., ibid.

8 MIRANDA, Francisco Sá de, Poesias Escolhidas de Sá de Miranda, ed. de José Vitorino de Pina Martins, Lisboa, 1970, p. 93.

9 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 58-60; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., pp. 190-1.

10 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 55-6; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 188.

11 TAMURA, Jitsuzo, ed., Saigo no Tôyô-teki Shakai, Tóquio, 1975, pp. 20-1.

12 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 93-4; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 211.

13 BIBLIOTECA DA AJUDA, Jesuítas na Ásia, Cód. 49-IV-50, f. 390; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 111.

14 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 94, 96; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., pp. 211, 213.

15 GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, ob. cit., p. 109.

16 MITAMURA, Taisuke, Kangan: Sokkin-seiji no Kôzô, Tóquio, 1963, pp. 169-208.

17 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., p. 94; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., pp. 211-2.

18 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 94-5; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 212.

19 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 100-1; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 216.

20 GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, ob. cit., p. 91.

21 TAMURA, Jitsuzo, ed., ob. cit., pp. 273-5.

22 Id., ibid.

23 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., pp. 109-10; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 221.

24 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., p. 110; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., pp. 221-2.

25 GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, ob. cit., p. 94.

26 Por exemplo, veja-se YAMANE, Yukio, ob. cit., p. 107.

27 Id., ibid.

28 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., p. 150; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 248.

29 GONZÁLEZ DE MENDOZA, Juan, ob. cit., p. 42.

30 LACH, Donald F., "The Century of Discovery", in Asia in the Making of Europe, Chicago, 1965, vol. 1, p. 785.

31 D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. xxxv, nota 108.

32 CRUZ, Gaspar da, ob. cit., p. 7; D'INTINO, Raffaella, ed., ob. cit., p. 155.

* Professor de Filologia Portuguesa na Universidade de Ryûtyû Keizai, Ibaraqui, Japão. Entre os trabalhos publicados, são de destacar: Alguns Aspectos da Língua Portuguesa na Segunda Metade do Século XV: Um Estudo Filológico da Carta de Pero Vaz de Caminha, "Cósmica", Quioto, (12-3) 1983-4; Tratado da China, de Frei Gaspar da Cruz, tradução japonesa e comentários, Tóquio, 1987; e Arte Breve da Lingoa Japoa, do Padre João Rodrigues Tçuzzu, edição fac-similada, tradução japonesa, Tóquio, 1993.

** Segundo Cruz explica no capítulo XVI do Tratado, os cinco principais louthias são: Dutang (都堂), Buzhengshi (布政使), Anchashi 按察使), Haidaofushi (海道副使) e Beiwoduzhihui (備倭都指挥).

Nota do Editor: Louthia -- em chinês, 老爹 (laodie) ou 老爺 (laoye), registos coloquial e formal, respectivamente.

desde a p. 167
até a p.