Rotas e Embarcações

OS POEMAS DE WU YUSHAN (SIMÃO XAVIER DA CUNHA) SOBRE O CRISTIANISMO

Zhang Wenqin*

INTRODUÇÃO

A "Doutrina do Céu" era uma designação dada ao Cristianismo nos finais da dinastia Ming e princípios da dinastia Qing. Esta designação foi inicialmente formulada por Wu Yushan, aliás Simão Xavier da Cunha, que nasceu nos finais da dinastia Ming e ficou famoso como pintor, poeta e jesuíta nos princípios da dinastia Qing. No 35.o ano do reinado de Kangxi (1696), quando se dedicava à divulgação do Cristianismo nas proximidades de Xangai, disse a um correligionário seu chamado Zhao Lun:

"A dificuldade na criação dos poemas sobre a Doutrina do Céu é muito maior do que na composição de outros poemas." 1

São Francisco Xavier. Trabalho português de influência namban, século XVII. Madeira policromada e lacada, 100 cm. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Museu de São Roque. Macau: As Ruínas de S. Paulo: Um Monumento para o Futuro, Macau, Instituto Cultural, [ 1994], p. 20.

Os poemas a que ele se referia tinham como conteúdo fundamental a descrição dos ensinamentos da religião católica, ou seja, a "Doutrina do Céu" no seu sentido restrito. Todavia, no vasto esquema deste tipo de poemas, o presente trabalho engloba todas as obras redigidas por convertidos católicos que ao longo da história se dedicaram à criação literária sob a forma de poesia clássica chinesa, reflectindo a influência da religião ocidental.

Na realidade, a criação dos poemas sobre a "Doutrina do Céu" não começou com Wu Yushan. Segundo o professor Fang Hao, existe na Biblioteca Nacional de Paris uma cópia dos Poemas Oferecidos por Vários Homens de Letras de Fuquiém (também conhecido por Antologia Original de Xi Chaochong) onde se podem encontrar obras de dezenas de funcionários feudais de Fuquiém, na China, escritas nos finais da dinastia Ming em honra dos missionários ocidentais. De entre estes autores, os crentes Pan Shikong, Su Fuying, Lin Yixie, e outros, chegaram a recorrer a alusões religiosas para divulgar a religião. Durante o reinado de Chongzhen, um funcionário de nome Shen Guangyu ofereceu a João Adão Schall von Bell poemas em que foram utilizadas directamente alusões à religião católica. Assim escreveu:

    "Foi Vossa Mercê quem me indicou o caminho para o Céu, 
    Caminho esse que se destina ao Oriente. 
    Com a oferta dessa graça, 
    Será a minha fé apenas ilusão?"

No 1.o ano do reinado de Longwu (1645), Zheng Zhilong, que fora baptizado em Macau, enviou a Francisco Sambiasi um poema com os seguintes versos:

    "É você Aldebarã que desce à terra, 
    E que atravessa o vasto mar, acompanhado das estrelas
                                              [ e da Lua. 
    Descreve a paisagem do Céu com as palavas santas junto com 
                                                  [ Mateus Ricci. 
    E o seu corpo, transformado numa ponte, pela qual conduz os 
                                    [ seres até ao paraíso."

A "paisagem do Céu" simboliza o Cristianismo e as "palavras santas" são entendidas como as palavras da Bíblia e as inspirações de Deus. Como o nome de Francisco Sambiasi, em chinês (Bi Fangji, aliás Bi Jinliang), continha os caracteres "Bi" e "Liang", era considerado por Zhilong uma Aldebarã (Bi Su Xing) vinda do Céu para tornar-se numa ponte (qíao liang) a fim de conduzir os seres humanos ao Céu. Torna-se então patente o nível do conhecimento, assim como do entendimento, que o autor tinha acerca dos missionários ocidentais.2 Eis assim uma obra que também pode ser integrada nos "poemas sobre o Cristianismo".

Todavia, em termos de quantidade e de riqueza de conteúdo, bem como do conhecimento sobre a religião católica, é indubitável que Wu Yushan ocupa um lugar privilegiado e inultrapassável. Dedicado à criação consciente de poemas sobre a "Doutrina do Céu", tentava descrever de tal modo o mundo católico e a sua compreensão própria quanto aos ensinamentos da religião católica.3 Num trabalho anterior, intitulado O Cristianismo nas Poesias de Macau durante a Dinastia Qing, tive como objectivo analisar obras escritas por poetas não católicos. Este trabalho visa analisar obras compostas por crentes católicos, ou seja, fazer um estudo preliminar dos poemas sobre o Cristianismo (a "Doutrina do Céu") de Wu Yushan.

BIOGRAFIA E ÉPOCA DE ESCRITA

Wu Yushan (1632-1718), aliás Wu Li, natural de Changshou, na província de Jiangsu, viveu, desde o seu nascimento, num beco onde morava também um literato de fama chamado Yanzi. Yanzi, aliás, Yan Yan ou Yan Ziyou, era um discípulo do confucionismo e uma figura bem conhecida nos círculos literários. Yushan, como tinha como vizinho Yanzi, uma pessoa culta, ganhou o cognome de "Literato de Mojing" (Mojing é um poço de tinta-da-china). Como era conterrâneo de Shi Lu, famoso mandarim leal ao soberano da dinastia Ming do Sul, testemunhou com os seus próprios olhos os actos de violência dos conquistadores da dinastia Qing contra o povo de Jiangnan (a sul do rio Iansequião), o que o inspirou a redigir poemas. Escreve assim nos Cantos Ilimitados:

    "Depois destes dez anos de vida vagabunda, 
    Já não secam as minhas lágrimas de tristeza derramadas
                                        [ no Terraço do Oeste. 
    Nestas novas habitações levantadas no deserto, 
    Quem se sente ainda melancólico ao recordar a dinastia
                                            [ acabada?" 4

Como se considerava cidadão da dinastia Ming, manteve durante toda a sua vida lealdade a esta dinastia.

Naquela altura, era comum encontrar pessoas que se tinham retirado para o budismo com o objectivo de esquecer a mudança de dinastia. No entanto, diferenciando-se destas pessoas, Yushan optou pelo Cristianismo como seu apoio espiritual. Foi baptizado durante a infância e, posteriormente, mais crescido, começou a intensificar os contactos com pessoas não pertencentes ao budismo. Aos 44 anos de idade, aderiu ao Cristianismo de todo o coração. Entre o 19.o e o 22.o anos do reinado de Kangxi (1680-1683), partiu para Macau, onde se dedicou ao estudo da doutrina religiosa no Colégio de São Paulo, e ingressou na Companhia de Jesus, tornando-se frade, no 21.o ano do mesmo reinado (1682). Após o seu regresso a Jiangnan, foi promovido, no 27.oano (1688), ao cargo de Sacerdote, iniciando assim a sua longa missão, concretamente de 30 anos, de encarregado dos assuntos religiosos de Xangai.

Yushan dominava a caligrafia, a pintura, a poesia, e tinha jeito para tocar alaúde. As suas pinturas eram consideradas obras singulares, tendo sido louvadas por Wang Shimin nos seguintes termos:

"Ele tem técnicas de Deus, mãos hábeis e pensamentos originais. Qualquer obra é um milagre inacreditável."

Por outro lado, Qian Qianyi avaliou assim os seus poemas:

"Têm ideias lúcidas e estilo arcaico, escrita cuidada e minuciosa, transformando as palavras em imagens pitorescas." 5

Foram três as suas obras iniciais: Arroio de Pessegueiros, Preocupações e Viagens, posteriormente integradas em Cópias de Poesias de Mojing, em dois volumes, publicadas por um discípulo seu de nome Lu Daozhun no ano seguinte ao do seu falecimento (58.o ano do reinado de Kangxi, ou seja, 1719). Entre estes poemas encontram-se alguns feitos nos tempos da sua velhice, sendo a maior parte dos poemas não relacionada com a religião católica. Entretanto, uma obra intitulada Poemas de S. Paulo reúne a maior parte dos poemas que escreveu no Colégio de S. Paulo, entre os quais 30 compilados num volume com o título de Cantos de Macau e outros 82 compilados noutro volume com o título de Poemas sobre o Cristianismo. Além destas obras, deixou ainda 89 poemas que foram escritos depois da sua promoção ao cargo de Sacerdote e integrados na Antologia das Obras Restantes.

Em Poemas de S. Paulo e na maior parte do volume Poemas sobre o Cristianismo, os poemas estão relacionados com a religião católica, enquanto que o volume Cantos de Macau descreve fundamentalmente paisagens de Macau, contando apenas com uma parte que diz respeito à religião católica. É óbvio que os Poemas de S. Paulo constituem o suporte dos poemas sobre o Cristianismo de Wu Yushan, podendo-se, contudo, encontrar poemas congéneres na Antologia das Obras Restantes.

Ao publicar os Poemas de S. Paulo, após a morte de Wu Yushan, Lu Daohuai escolheu apenas o volume Cantos de Macau, excluindo os Poemas sobre o Cristianismo, pois foi nessa altura que teve início a proibição da religião católica por parte da corte da China. No reinado de Daoguang, uma outra edição do mesmo livro, que fazia parte da Antologia da Casa de Pedra na Colina, também omitiu os poemas sobre o Cristianismo. No primeiro ano do reinado de Xuantong (1909), o Sacerdote Li Wenyu compilou e publicou a Antologia de Mojing, tendo integrado nos Poemas de S. Paulo 80 poemas sobre o Cristianismo, retirados duma cópia arquivada na Biblioteca de Xuhui, de Xangai. Nesta edição, foram omitidos dois poemas sobre as saudades que o poeta sentia da esposa falecida. Posteriormente, graças a Chen Yuan, que conseguiu encontrar os dois poemas omitidos por Li Wenyu, os Poemas de S. Paulo passaram a corresponder ao seu original.6 A Antologia das Obras Restantes era também uma cópia originalmente arquivada na Biblioteca de Xuhui. Entretanto, o Sacerdote Xu Zongze publicou-a na "Revista Católica" (26 (8) 1937). Em 1967, o professor Fang Hao descobriu em Hong-Kong o manuscrito dos Poemas do Monge de Mojing, redigido pelo próprio Yushan, onde constam os 89 poemas da Antologia das Obras Restantes e os 30 poemas de Cantos de Macau, inseridos nos Poemas de S. Paulo. O professor Fang Hao procedeu a uma revisão das edições anteriormente publicadas, tendo posteriormente redigido a Revisão Anotada da Antologia das Obras Restantes de Wu Yushan e a Revisão Anotada dos Poemas de S. Paulo de Wu Yushan, 7 com o objectivo de corrigir as falhas que apareciam nas obras anteriormente publicadas.

A maioria dos poemas sobre o Cristianismo da autoria de Wu Yushan foi escrita no Colégio de S. Paulo aquando da sua aprendizagem da doutrina religiosa. Acerca do ano em que Wu Yushan terá chegado a Macau, Chen Yuan, Fang Hao, Rong Geng, e outros, opinaram que se trataria do 20.o ano do reinado de Kangxi (1681), enquanto que Wang Zongxian optava pelo 19.o ano do mesmo reinado. O fundamento principal desta última conclusão consiste na afirmação de um missionário chinês, Lu Xiyan, indivíduo que chegou com Yushan a Macau, ambos acompanhados de um missionário ocidental chamado Filipe Couplet:

"Em meados do Inverno do ano de Gengshen do reinado de Kangxi, cheguei a esta terra acompanhado de Filipe Couplet." 8

A indicação "meados do Inverno do ano Gengshen" significa o 12.o mês do 19.o ano do reinado de Kangxi, isto é, entre 12 de Dezembro de 1680 e 19 de Janeiro de 1681.9 Concordo neste aspecto com a posição de Wang Zongxian. Quanto à data da última saída de Yushan de Macau, Wang Zongxian, Fang Hao e Chen Yuan opinaram, respectivamente, a favor dos 21.o22.o e 27.oanos do reinado de Kangxi.10 Neste caso, favoreço o ponto de vista de Fang Hao.

Considerando as diferentes opiniões de que a chegada de Yushan a Macau se deu no 19.o ou 22.o ano do reinado de Kangxi, e analisando as obras de Yushan, desde os Poemas de S. Paulo até a Antologia das Obras Restantes, bem como toda a documentação que reflecte as actividades de Yushan nas proximidades de Macau e Jiangnan, será possível chegar à conclusão mais correcta. Yushan despediu-se dos seus dois filhos no Terraço de Pesca de Yan Ziling, em Tonglu, na província de Zhejiang, no Outono do 19.o ano do reinado de Kangxi, e escreveu no Outono seguinte o seu poema "O Vento de Outono Faz-me Recordar a Despedida no Terraço de Pesca", inserido em Cantos de Macau, para expressar a saudade que tinha dos filhos. Chegou a Macau em meados do Inverno do mesmo ano, concretamente em Novembro. Pouco depois, passou a sua primeira quadra natalícia em Macau, compondo o 27.o poema de Cantos de Macau, "Inúmeras Lanternas a Cintilar no Precipício da Floresta", e, posteriormente, na Primavera do 20.o ano, passou a Páscoa em Macau, o que é comprovado pela palavra "jejum", constante no original do seu terceiro poema deste volume. Nesse mesmo ano, em Macau, dedicou-se à pintura. Em Abril, produziu uma pintura imitando o estilo de Ke Danxiu e, em Maio, uma pequena colecção de pinturas. Em Julho, fez pinturas com tinta-da-china sob o título de "Rio Pen", e, em Outubro, "Rio Pen na Perspectiva Completa".11 No mesmo mês, Filipe Couplet, seu professor de Teologia, deixou Macau com destino ao Ocidente. No princípio, Yushan desejava acompanhá-lo. No entanto, não conseguiu e teve de continuar a sua aprendizagem do Cristianismo em Macau. Finalmente, partiu para Jiangnan no início do Verão do 21.o ano. Escreveu no seu 29.o poema:

    "Fracassado o meu desejo de viajar ao Ocidente, 
    Que remédio tinha senão passar duas primaveras e dois 
                                         [ invernos em Macau?"

Quanto a este último verso, Wang Zong xian esclareceu que "se subentende que 'passar duas primaveras e dois invernos em Macau' implicava naturalmente passar os verões e os outonos no mesmo sítio, ou seja, com início no Inverno do 19.o ano e termo na Primavera do 21.o ano".12

Este ponto de vista é convincente. No Inverno do 21.o ano, Yushan voltou a Macau, e no 22.o ano regressou a Jiangnan. Pode ler-se, na segunda parte do seu 30.o poema, a descrição das imagens que visualizava do rio Gang, na província de Jiangxi:

    "Estas pessoas aprovadas no Exame Imperial ainda 
                 [ reconhecem o visitante no Inverno, 
    Quão eterna é a vida da Primavera, tanta água reúne este rio 
                                                        [ que atravesso."

Após o regresso de Yushan a Jiangnan, datado de Novembro do 23.o ano (1684), o imperador Kangxi realizou a sua primeira visita de inspecção ao Sul, onde recebeu poemas de agradecimento apresentados por Yushan, que era o representante dos missionários ocidentais de Nanquim. No 24.o ano (1685), viveu em Taoxi, onde se dedicou à pintura, e foi posteriormente promovido a Sacerdote em Nanquim, em Julho do 27.oano.13

Considera-se que o lapso de tempo entre o Inverno do 19.o ano e a Primavera do 22.o ano constituiu o período da sua aprendizagem da doutrina religiosa em Macau, o que tem correspondência num verso inserido no volume Poemas sobre o Cristianismo:

"Pousei nesta casa de sossego três ou quatro anos."

Foi, efectivamente, neste período de tempo que ele se dedicou à composição dos seus 30 Cantos de Macau, integrados nos Poemas de S. Paulo. No que diz respeito ao poema "Restauração Religiosa", que figura na antologia de 82 poemas sobre o Cristianismo, a sua composição data do 28.o ano do reinado de Kangxi (1689), segundo o rodapé do original. Quanto aos quatro poemas que tinham por tema a celebração do seu 70.o aniversário, foram feitos durante a sua permanência em Xangai.

Yushan nasceu no 5.o ano do reinado de Chongzhen (1632). Assim, segundo a "contagem fictícia" das idades na China, o seu 70.o aniversário teve lugar no 40.o ano do reinado de Kangxi (1701).14 Quanto aos outros 77 poemas, o seu período de criação coincide mais ou menos com os Cantos de Macau.

Após este estudo sobre a localização temporal dos poemas sobre o Cristianismo, de Wu Yushan, tenciono aprofundar a seguir o conteúdo dos mesmos poemas.

Calvário. Trabalho sino-português dos séculos XVi-XVII. Placa de marfim esculpida, 14,4 x 7 cm. Colecção Francisco Hipólito Raposo, Lisboa. Macau: As Ruínas de S. Paulo: Um Monumento para o Futuro, Macau, Instituto Cultural, [1994], p. 142.

APRENDIZAGEM DO CRISTIANISMO

    "Atravessada a fronteira que delimita Macau, 
    Chego a esta terra, geograficamente parecida com a flor de
                                                   [ lótus. 
    Os habitantes daqui não se afligem da minha chegada; 
    Porque de longe vim para aprender a doutrina religiosa 
                               [ no Colégio de S. Paulo."

Neste primeiro poema dos Cantos de Macau, o poeta descreve a sua chegada a Macau. Atravessando as Portas do Cerco, segue o caminho ladeado por lótus, ultrapassa a colina de Lianfeng e finalmente chega ao famoso Templo de S. Paulo, onde começa a sua aprendizagem da doutrina religiosa. O Templo de S. Paulo, também conhecido por Colégio de S. Paulo ou Igreja de S. Paulo, foi construído em 1572 e reconstruído no período compreendido entre 1602 e 1640. Era na altura a igreja católica mais grandiosa do Extremo Oriente, igreja que a Companhia de Jesus tomava como base para a difusão da fé cristã no Oriente. San Ba é a sua transliteração fonética para o chinês. Contudo, é designada também por Sheng Bao Lu ou Sheng Bao Luo. S. Paulo é uma personagem do Novo Testamento, segundo o qual Jesus Cristo lhe ordenara:

"Designo-te para seres a Luz dos homens das terras estranhas, a quem deverás salvar, até o fim do Mundo." 15

Após a morte de Jesus Cristo, S. Paulo chegou a efectuar várias e longas viagens com o objectivo de divulgar a fé cristã. Foi de facto extremamente significativo conceder à principal igreja católica do Extremo Oriente o nome de S. Paulo.

A Igreja de S. Paulo estabeleceu, em 1594, uma faculdade de Teologia para a formação de missionários, denominada de Colégio de S. Paulo. Nestas circunstâncias, Wu Yushan e Lu Xiyan acompanharam Filipe Couplet na sua vinda a Macau na altura em que os missionários do Colégio "entravam e saíam da Igreja usando trajes largos e murmurando orações sem parar. Estudavam e trocavam ideias sobre a doutrina religiosa, as ciências naturais, a filosofia e a teologia".16 Os jesuítas leccionavam no Colégio cursos básicos de Latim e de Chinês. Assim se escreve no 17.o poema dos Cantos de Macau:

    "Ouço por todos os lados o recitar das lições vindo do segundo 
                                                                     [ piso, 
    Como se ouvisse trovoadas no mar tranquilo, sem vento 
                                             [ nem ondas."

Aqui se indica o lugar onde Yushan estudava. Yushan também descreveu como é que estudava:

    "Comecei a estudar a doutrina religiosa no Colégio de S. Paulo 
                                              [ aos 50 anos de idade. 
    Durmo e como no segundo piso, passando a vida a apreciar o 
                                              [ mar." 17

A partir destes versos, pode-se concluir que Yushan tinha 49 anos quando começou a estudar no Colégio de São Paulo. Escreveu assim, no 25.o poema do mesmo volume:

    "Difícil é encontrar um mestre estrangeiro que me ensine a 
                                             [ doutrina religiosa. 
    São na maioria crianças aqueles que de longe vêm a estudar."

Sabe-se que a Companhia de Jesus costumava admitir jovens de idades compreendidas entre os 16 e os 17 anos, que, após terem recebido formação, eram destacados para diversas partes com o objectivo de espalhar a religião. Em comparação com estes estudantes jovens, Yushan sentia dificuldades notórias no estudo. Chegou a afirmar:

    "Estes 20 a 30 anos de aprendizagem da pintura foram, para 
                            [ mim, como remar contra a maré. 
    Empenhei todos os meus esforços e nunca abandonei 
                              [ a vontade de aprender... 
    Se manejar o pincel e a tinta é já tão difícil, nem imagino 
              [ como será a aprendizagem da doutrina religiosa." 18

Para obter êxito na aprendizagem da doutrina religiosa, Yushan empenhou muitos esforços, mais do que na área da pintura.

Todas as manhãs o toque do sino da Igreja de S. Paulo trazia o Monge de Mojing da terra dos sonhos à vida intensa de aprendizagem:

    "O toque do sino vindo da traseira da colina, desperta os sonhos
                                                      [ dos monges."
                                               (20.o poema). 

Das 6 às 7 horas da manhã e das 6 às 7 horas da tarde, ouviam-se os sons das salas de estudo e dos sinos, dentro do Colégio:

    "As aulas são divididas em duas partes, das seis às sete da
                           [ manhã e das seis às sete da tarde, 
    Depois das quais se pode ouvir o toque dos sinos."
                              (25.o poema).

Na altura, a Bíblia existia apenas em versão latina, e a maior parte do material pedagógico era escrito em latim, bem assim como costumava-se utilizar o latim nas cerimónias da Igreja. Foi aos 50 anos de idade que Yushan começou a aprender o latim, a teologia cristã e os conhecimentos clássicos do Ocidente, que eram totalmente diferentes da cultura chinesa. Efectivamente, não tinha outro remédio senão aplicar-se aos estudos. De facto, à noite, depois das aulas, Yushan continuava a dialogar em latim com os missionários ocidentais, sob a luz do candeeiro:

    "Sob as luzes conversamos em própria língua, 
    E, por quanto difícil fosse, há compreensão, recorrendo
                                                   [ à escrita. 
    Enquanto eu escrevo uma cabeça de mosca, ele desenha 
                                      [ umas garras de ave, 
    Uns lidos na vertical, outros na horizontal, que difícil é 
                                          [ essa comunicação!" 
                                           (26.o poema). 

Assim, Yushan conversava com os missionários ocidentais, falando cada um a sua própria língua, recorrendo à escrita em casos de difícil compreensão. Para Yushan, a escrita horizontal do latim era muito mais difícil do que o chinês, escrito verticalmente.19

Ao anoitecer, Yushan continuava os seus estudos à luz de velas:

    "Tão rapidamente avisto a Lua a oeste, 
    Subindo as árvores avermelhadas de lichias, 
    Os meus olhos ficam mais exaustos quando o vento encobre
                                        [ os ramos de geada. 
    Não é este um lugar próprio para o estudo, 
    Pois só se ouve o toque do sino e não o cantar do galo."
                                          (19.o poema).

Durante o Verão, ao concentrar-se nos estudos, já não sentia o passar do tempo e acabava por ficar tão cansado que não conseguia ver bem a sombra das árvores de lichias, já envolvidas pela geada matinal. Yushan encontrava-se no retiro para os missionários ocidentais, onde ouvia apenas os sons dos sinos que rompiam o silêncio do alto das noites. Se ele se encontrasse numa escola chinesa, podia ouvir o cantar dos galos.

O poeta receava que, apesar de "empenhar todos os seus esforços e nunca desistir de estudar...", a sua aprendizagem da doutrina religiosa não alcançasse um nível elevado, tal como acontecia com o resultado da sua pintura, que o deixava insatisfeito e lhe fazia pensar em desistir:

    "Ao passo que a velhice se aproxima, não sei como recuperar
                                            [ a minha juventude! 
    Tanto por fazer, mas não me resta muito tempo. 
    Tenciono livrar-me dos gostos, nunca mais escrever poemas, 
                               [ e nunca mais fazer pinturas." 
                                          (28.o poema). 

Contudo, seria assim tão fácil esquecer por completo tudo isso? O professor Fang Hao chegou a frisar:

"Segundo estou ciente, Yushan ainda fazia pinturas de vez em quando em Macau; compunha também poemas, poemas estes denominados 'insignificantes', o que era de facto ridículo." 20

Nesta difícil vida de aprendizagem, Yushan assimilava constantemente e com prazer a essência da doutrina católica. No poema com o título "Afirmação", do volume Poemas sobre o Cristianismo, escreveu o seguinte:

    "Concentro o meu espírito enquanto rezo, 
    E rezo em vez de recitar poesias. 
    Dão-se três toques do sino, 
    Seguem-se sete koutous. **
    Obedeço as indicações de Deus, 
    Eis como encontro a paz no espírito."

Os Registos sobre Macau, de Lu Xiyan, acerca da Igreja de S. Paulo, podem ser utilizados para explicar este poema:

"Distingue-se ela das outras igrejas nas cerimónias. exceptuando-se o jejum, a missa das sete e o repouso após o toque do sino." 21

Dentro dum ambiente tão devoto, a aprendizagem da doutrina religiosa permite a Yushan levar uma vida agradável e cheia:

    "Todo o mundo canta ao avistar o auspicioso ramo, 
    Atravessam eles o mar agitado de cabeça erguida. 
    Levam no peito esta pequena terra, 
    Com vista a abraçar a vastidão do continente. 
    Ao ouvir os sons, as montanhas dançam; 
    Ao sentir os sopros, as águas agitam-se. 
    E com prazer que me alimento dos conhecimentos sagrados, 
    E o meu prazer é buscar a verdade nesta casa, longe da vida
                                                     [ mundana." 
                          (9.o poema da Verdade da Religião). 

O poeta inspirou-se no Antigo Testamento ao redigir os primeiros dois versos, concretamente na história da pomba que, levando um ramo de oliveira verde no bico, voou até à Arca de Noé para informar que as inundações já haviam terminado, para metaforizar a chegada dos missionários que navegavam de muito longe em direcção ao Oriente para espalhar a fé cristã. Com efeito, na Igreja de S. Paulo existe uma escultura de uma pomba em voo, simbolizando que "o sagrado poder de Jesus Cristo controla o Mundo inteiro"22 Assim, torna-se óbvio que a religião católica considera a pomba e a oliveira como objectos sagrados. Nos dois versos seguintes, Yushan indica qual o objectivo da vinda desses missionários à China, isto é, a grande missão de divulgar o Cristianismo em todos os cantos do mundo. Os dois versos que se seguem descrevem, por seu turno, a vivacidade e o dinamismo que o Cristianismo atingira, na China. Finalmente, os últimos dois versos relatam a opção do poeta, que encontrou acolhimento ao colo do Senhor, resolvendo ficar no Colégio de S. Paulo onde podia apreciar o delicioso alimento espiritual de Deus.23

Yushan tinha como companhia um grupo de correligionários de ideologias e posições idênticas. Costumavam incentivar-se uns aos outros e trocar opiniões durante a vida estudantil. Eis um poema de Yushan oferecido a um amigo na altura do seu baptismo:

    "Abre-se hoje a porta da felicidade eterna, 
    Brilham as luzes do Céu para festejar esta data. 
    Livre dos velhos males e azares, passa a gozar o eterno
                                  [ fruto do filho de Deus. 
    O teu respeitável nome será registado na nobre lista, 
    E a tua honra ascenderá ao altar. 
    Sei que ficarás consolado com a missão de servir o povo, 
    És tu o alicerce sólido de uma grande edificação."
    ("Congratulação ao Guo", in Poemas sobre o Cristianismo). 

Como um dos seus amigos foi promovido com menção honrosa para um cargo superior, existem, nos Poemas sobre o Cristianismo, dois poemas designados "Congratulações a um Amigo". Diz assim o primeiro:

    "As nuvens desaparecem por entre as montanhas de Lingnan. 
                                    [ estendidas por mil lis, 
    Durante dois anos, o monte solitário tem como companhia as 
                                             [ estrelas e geadas; 
    (...)
    A ave traz-nos uma boa notícia, 
    De que irás subir à quinta categoria; 
    Serás o remo do barco, 
    Ou o alicerce do País."

O poeta encontrava-se, na altura em que escreveu este poema, a mil lis de Lingnan. Ao ter recebido uma carta enviada desde Gushan (o "monte solitário") por um amigo seu, com quem não se encontrava há dois anos, ficou a saber que este fora promovido a um cargo superior, ao 5.o nível, e decidiu compor o poema acima transcrito para o congratular. As alusões literárias "remo de barco" têm como origem as Cantigas da Dinastia Shang:

    "Para atravessar um grande rio, 
    Necessita de um barco e de um remo." 24

O remo significa uma pessoa de grande valor para a administração do País. Assim, e a partir deste poema, torna-se evidente que o amigo de Yushan ocupava um cargo bastante importante na Igreja. Analisemos a seguir o segundo poema:

    "A passos firmes, és promovido, beneficiando de uma
                                    [ simpatia ilimitada, 
    Como uma pessoa de qualidade, vais ser o alicerce de uma
                                             [ grande causa. 
    A mensagem de Deus em público proferirás, 
    Em brilhantes cerimónias em honra do espírito
                                          [ sagrado. 
    Os feitos dos sete antepassados honestos não se 
                              [ comparam com os teus, 
    Espero que a tua ascensão ao sexto nível seja uma 
                                            [ nova partida. 
    Segurando o sino de Sacerdote iluminas as pessoas, 
    Ficarão eternos a tua ilustre fama e os teus grandiosos actos."

A anotação que constava no original dizia: "Congratulação a um amigo promovido para o sexto nível da ordem da Igreja". Com efeito, um frade da Companhia de Jesus iniciava a sua carreira recebendo um sino preliminar, e depois começava a vestir os trajes da Igreja, a prestar juramento e, gradualmente, a ser promovido, para o 4.o nível, de início, seguindo-se o 5.o e o 6.o níveis, até ascender ao cargo de Sacerdote, motivo pelo qual Yushan escreve o poema "Segurando o Sino de Sacerdote".

O poema "Oferta a um Correligionário Antecessor", incluído nos Poemas sobre o Cristianismo, diz assim:

    "De coração vasto e com um talento incomparável, 
    És tu o meu professor, apesar de teres sido adepto do 
                                            [ confucionismo; 
    Célebre é a tua fama na arte poética em Xangai, 
    E conhecido o teu êxito na religião católica em Pequim; 
    Baptizado, pois sabes o que é mais importante na vida, 
    Agora percebes melhor o sentido da voz de Cristo; 
    Quando posso receber uma íntima advertência tua? 
    Que me possa tornar mais forte e firme."

Este correligionário mais velho do que Yushan tinha um charme bem distinto. Assim como Yushan, seguira a doutrina confucionista durante a juventude, chegando a ser famoso em Xangai. No entanto, depois de chegar a Pequim, converteu-se ao Cristianismo e, na altura em que foi promovido para o cargo superior da Igreja, tinha obtido profundos conhecimentos sobre esta religião. Por estas razões, Yushan considerava-o um amigo e ao mesmo tempo um mestre.

Dalmática. Trabalho chinês do século XVII. Taqueté lavrado a sedas polícromas e fio laminado de papel dourado, 116 x 134 cm. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Museu de São Roque. Macau: As Ruínas de S. Paulo: Um Monumento para o Futuro, Macau, Instituto Cultural, [1994], p. 137.

IGREJA E MISSIONÁRIOS

De acordo com a doutrina da religião cristã, a Igreja é um "lugar de encontro" que Jesus Cristo salvou com o Seu sangue, sendo Ele o seu único fundamento. Os crentes, por terem fé em Jesus Cristo, passam a ter uma vida pertencente ao Espírito Santo. Daí que, com a responsabilidade de divulgar a fé cristã, devem oferecer-se à Igreja e nunca ostentar a doação concedida pelo Espírito Santo. No poema "Agradecimento à Doação da Igreja", inserido nos Poemas sobre o Cristianismo, lemos os seguintes versos:

    "Jesus Cristo lamenta pela decadência da terra, 
    E desce do Céu negligenciando tantos sofrimentos; 
    Com o seu corpo crucificado, 
    Sacrifica-se por todos nós; 
    A sua generosidade visa criar homens novos; 
    Manda os seus discípulos a percorrer qualquer canto do 
                                                     [mundo, 
    Para divulgar a mensagem de Deus; 
    A sua morte simboliza a chegada de uma nova Primavera, 
    Os seus feitos e o seu nome eternos ficarão."

O poema relata os feitos de Jesus Cristo no sentido de salvar os Homens e a iniciativa dos crentes de divulgar a fé cristã.

De acordo com o Cristianismo, são denominados apóstolos doze discípulos escolhidos por Jesus Cristo ─ Pedro, Jacob, João e outros. Segundo esta ideia, o poder da Igreja vem dos doze apóstolos, pelo que estes são considerados fundadores da Igreja. Num dos poemas de Yushan, "Louvor ao Discípulo Simão", inserido nos Poemas sobre o Cristianismo, há referência a este facto:

    "Quem será o fundador desta grande causa? 
    Tudo indica ser um homem vindo do exterior; 
    Parecem ilustres os trabalhos deste Grande Discípulo, 
    Que nos convence a venerar a Santa Maria; 
    A meio do caminho encontrou o seu filho, 
    E esmagou todos os males e as heterodoxias; 
    Lembrou-se do dia grandioso, 
    E passo a passo encaminhou em direcção do Céu, cheio da 
                                           [ felicidade infinita."

Simão foi o décimo ou o décimo primeiro listado, entre os doze apóstolos. Segundo a lenda, chegou a passar pelo Egipto, Pérsia e outras terras, para divulgar a fé religiosa, mas acabou por ser morto. Em "um homem vindo do exterior" ─ este "exterior" refere-se ao Egipto ou à Pérsia, e o "dia grandioso", à véspera de Sexta-Feira Santa. Por outro lado, as expressões "Grande Discípulo", "Santa Maria" e "seu filho" parecem querer afirmar que Simão era irmão de Jesus Cristo. Contudo, as provas para apurar esta referência não são suficientes.

Os principais conhecimentos de Yushan quanto à Igreja provinham fundamentalmente da Companhia de Jesus. No 2.o poema, dirigido à Companhia de Jesus, em Agradecimentos à Doação da Igreja, diz:

    "As luzes da confiança iluminam, 
    Enquanto estou a cogitar a luz da verdade. 
    Neste mundo ainda existem instigação e vingança, 
    Agradeço que Deus elimine os males humanos. 
    Como homens de virtude e de grandes princípios, 
    Os jesuítas espalham as doutrinas religiosas. 
    Para cima, apoiam Deus, 
    Para baixo, o Imperador. 
    Tornam-se eles o esteio firme, 
    Não receando desafiar obstáculos. 
    As suas grandes palavras, 
    Nunca irei esquecer para toda a vida."

Lembre-se que no século XVI se dá, na Europa, o movimento de Reforma e o surgimento de novas doutrinas religiosas que constituíam uma ameaça para a religião católica, que dominava então a Europa Ocidental. Perante esta crise, a Igreja romana teve de concentrar as suas forças para resistir às reformas religiosas. Nestas circunstâncias, e tendo por objectivo atacar a reforma religiosa, foi criada a Companhia de Jesus, em 1534, por Inácio de Loiola, um nobre natural de Espanha. Em 1540, a Companhia de Jesus foi autorizada pelo Papa Paulo III. Os jesuítas, antes de serem destacados para a missionação, tinham que receber uma formação rigorosa de longo prazo, designadamente no âmbito da teologia, da filosofia, das ciências naturais e de como combater o paganismo. Foi por esta razão que os missionários que tinham partido para o Oriente eram considerados "inteligentes" pelos literatos chineses. É óbvio que Yushan também dirigia este tipo de louvor a estes missionários. A Companhia de Jesus prestava excepcional atenção à conversão de homens de elevada posição social, chegando a penetrar em cortes de diversos países através do ensino das ciências e tecnologia. Naquela altura, Ferdinando Verbiest encontrava-se em Pequim como missionário, conseguindo fazer com que a corte da dinastia Qing optasse por uma posição tolerante quanto à divulgação do Cristianismo. Foi por isso que a dimensão da difusão da religião católica na China conheceu um maior incremento.

No 21.o ano do reinado de Kangxi, Yushan aderiu à Companhia de Jesus em Macau. Os 4.o e 5.o poemas de Agradecimento à Verdadeira Religião descrevem a sua vida na Companhia de Jesus. Eis o 4.o poema:

    "(...)
    Tenho uma refeição com cereais e carne, 
    E bebi o vinho até me embriagar. 
    Vejo a Lua reluzente, 
    E os vestidos coloridos e irradiantes. 
    Em frente do altar está o padre de grande virtude, 
    E eu sempre pude conviver com ele."

Descreve neste poema os jesuítas a comungar conjuntamente (hóstia e vinho). O poeta achava o padre de missa muito virtuoso, e sentia muito prazer em ouvir frequentemente as palavras deste. No 5.o poema lêem-se estes versos:

    "Todos nós apreciamos a música do Céu, 
    Que nos agrada ao coração. 
    Os instrumentos musicais ecoam entoações harmoniosas, 
    Acompanhando a pregação da doutrina religiosa. 
    A iluminação é infinita no interior da Igreja, 
    E as flores exalam um aroma fresco. 
    Parece-me que foi apenas um dia nesta realidade, 
    Mas significa mil anos na minha vida."

Desta vez, o poeta descreve o clima em que os jesuítas recitavam a doutrina religiosa dentro da Igreja com a animação da música. Existia na Igreja de S. Paulo um órgão que servia para animar os sacramentos e as rezas. A melodia emocionante do órgão encantava as pessoas, mesmo aquelas não convertidas. Aproximadamente no 21.o ano do reinado de Kangxi, chegou a Macau o Governador de Guangdong e de Guangxi, Wu Xingzuo, o qual apreciava muito o som do órgão e escreveu um poema que merece referência:

    "Estou sentado aqui há tanto tempo que esqueço a hora de
                                                     [ retornar,  
    A melodia executada lembra o instrumentista Bo Ya." 25

Yushan era especialista em música e, por conseguinte, deixa-se encantar com a música magnífica do órgão, que considerava ser de um fascínio sublime.

Com as suas limitações históricas, Yushan não era capaz de compreender o verdadeiro objectivo da Companhia de Jesus (que representava a Igreja romana), bem assim como o contexto histórico que levou os jesuítas a deslocarem-se ao Oriente, tal como diz um poema muito conhecido de Su Shi:

    "Não vejo bem a face real das montanhas Lu, 
    Porque nelas estou sem ter uma visão completa."

Entretanto, o poeta não estava completamente alheado dos defeitos da Companhia de Jesus. O seu 8.o poema, "Sem Título", inserido nos Poemas sobre o Cristianismo, destinado a S. Francisco Xavier, consta destes versos:

    "As luzes da Igreja encobrem este centro de interesses, 
    O fundador Santo da Igreja torna-se miserável. 
    Do seu túmulo, que ainda existe na ilha de Sanchoão, 
    Apenas resta o vento da meia-noite suspirando."
                       (Rodapé do original: "O túmulo de 
      S. Francisco Xavier localiza-se na ilha de Sanchoão, 
                a leste da província de Guangdong.").26

O "centro de interesses" referido por Yushan alude a dois aspectos. O primeiro aspecto concentrava-se nos conflitos que envolviam a corte de Lisboa e a Igreja romana sobre a questão da missionação no Império do Meio. Em 1493, a fronteira das colónias ocupadas por Espanha e Portugal foi delimitada pelo Papa Alexandre VI, ficando a Ásia e a África submetidas ao domínio de Portugal. Nestas circunstâncias, Portugal declarou ser responsável pela missionação no Oriente, exigindo aos missionários europeus que quisessem ir missionar no Oriente que pedissem autorização prévia à corte de Lisboa. Além disso, os candidatos aos bispados de Goa e de Macau deviam ser recomendados pela corte de Lisboa e deviam ser obrigatoriamente portugueses. A corte de Lisboa também exigia que o Bispo de Macau fosse o único representante da Igreja romana na China, que presidiria assim a todas as actividades religiosas neste império.

No entanto, com vista a intensificar o controlo da missionação na China, a Igreja romana decidiu, em 1658, nomear, para além do Bispo de Macau, mais dois bispos, respectivamente no Sul e no Norte da China. Daí se originarem diversos confrontos entre a Igreja romana e a corte de Lisboa, situação esta que se prolongou até ao ano de 1690, ano em que as duas partes chegaram ao acordo de que os bispos de Macau, Nanquim e Pequim continuariam a ser nomeados por Lisboa.27

O segundo aspecto que Yushan referiu estava relacionado com as divergências originadas no seio dos missionários de diversos grupos no que diz respeito à Questão dos Ritos. Nos finais da dinastia Ming e nos princípios da dinastia Qing, a maioria dos jesuítas vindos para o Oriente seguia o exemplo de Mateus Ricci e procedia à missionação através da conciliação dos usos e costumes do rito popular chinês com a apresentação dos conhecimentos científicos e tecnológicos. Sobretudo, adoptou uma atitude tolerante para com os ritos de culto a Tian (Céu), a Confúcio e aos antepassados, a fim de reduzir as resistências à difusão do Cristianismo na China e acelerar o ritmo da missão. Graças a esta atitude, as actividades de missionação na China vinham a conhecer progressos significativos. Todavia, a atitude tolerante de Mateus Ricci contrariava as regras do Cristianismo ortodoxo e foi atacada por Nicolau Longobardi, e pelos missionários dominicanos e franciscanos. Este confronto interno no seio dos missonários durou mais de cem anos, chegando a alastrar à Igreja romana.28 Quanto a isso, um escritor francês chegou a escrever:

"Os confrontos já se tornaram um obstáculo a longo prazo ao desenvolvimento da missionação católica. Estas sociedades religiosas tencionam conquistar poderes no seio dos crentes recém-convertidos, perdendo o tempo na discussão da Questão dos Ritos, designadamente sobre a nacionalidade, os cargos religiosos e outros (...) em vez da divulgação eficaz da fé cristã. Não conseguiram vencer os pontos fracos humanos. Trouxeram, portanto, os interesses ordinários até à missão santa, fazendo com que se tornassem cada vez mais intensas a inveja e a disputa entre os missionários, o que lhes fez perder a credibilidade e o respeito junto das pessoas ainda não cristianizadas." 29

Yushan pensava que a iniciativa de missionar no Oriente era uma missão nobre. S. Francisco Xavier, motor desta iniciativa, chegou a oferecer a sua própria vida. No entanto, os confrontos acesos no seio dos missionários com a disputa de poderes iriam destruir os resultados anteriormente obtidos pela geração que os precedeu. Yushan foi à ilha de Sanchoão30 visitar o túmulo de S. Francisco Xavier. Ele tinha tido muita pena da morte prematura de Xavier, cujo cadáver já tinha sido transportado para Goa, através de Malaca, tendo sido deixado na ilha apenas o seu túmulo vazio. Yushan sentia-se desolado e desesperado nesta ilha deserta, visitada apenas pelo vento do mar.

Entre os antecessores da Companhia de Jesus, o mais respeitado por Yushan era S. Francisco Xavier. No poema intitulado "S. Francisco Xavier", inserido nos Poemas sobre o Cristianismo, escreve o seguinte:

    "Em vez de gozar da alegria da vida, enfrenta os sofrimentos 
                                            [ e as dificuldades, 
    Opta pela vida pobre e menospreza a riqueza. 
    Com o seu espírito indobrável persiste em espalhar a fé na 
                                                             [ China, 
    E despertou a Índia com o sino de Sacerdote. 
    Deixou muitos contributos na China, 
    E o seu nome santo perpetua na história. 
    É mesmo um elemento bem escolhido, 
    E constitui um alicerce essencial da Igreja. 
    Segue o Salvador do Mundo, 
    E assume todas as tragédias. 
    (...)
    Sendo a luz que orienta o caminho correcto, 
    Desperta o nosso povo a pensar na paz. 
    Não é apenas um elemento fulcral desta Companhia de Jesus, 
    Como também o pai de caridade de toda a Ásia."

Xavier nasceu numa família nobre de Espanha, e quando se encontrava em Paris a frequentar um curso universitário, em 1534, converteu-se no primeiro discípulo de Inácio de Loiola. Em 1540 foi destacado pelo Rei de Portugal, D. João III, para o Oriente, como mensageiro do Papa Paulo III, tendo viajado pela Índia, Malaca e Japão com o objectivo de executar a propagação da Fé. De 1551 a 1552 passou por duas vezes pela ilha de Sanchoão, tentando entrar no continente chinês. Contudo, não conseguiu entrar por qualquer meio que fosse, e acabou por falecer nesta ilha. Yushan nutria muito respeito por S. Francisco Xavier e tomou-o como seu exemplo. No 35.o ano do reinado de Kangxi, Yushan estabeleceu em Xangai e Jiading organizações franciscanas, exortando assim os seus membros:

"Devem aprender as condutas dos ilustres durante as actividades religiosas, não os podendo menosprezar por quaisquer motivos que sejam. Francisco Xavier veio de nove mil milhas de distância até ao Oriente, e foi o pioneiro dos missionários, tendo enfrentado perigos e obstáculos com uma visão optimista. Possuía uma alta virtude, que conduz as pessoas a ultrapassar as vicissitudes, virtude obtida a partir de uma capacidade invulgar concedida por Deus. Alcançou muitos êxitos brilhantes que melhor têm provado a doutrina por ele pregada." 31

Chegou a obrigar também os crentes a seguir o comportamento exemplar de S. Francisco Xavier.

Inácio de Loiola, o fundador da Companhia de Jesus, era um outro antecessor que merecia o respeito de Yushan. Assim, lemos no seu longo poema intitulado "Para S. Inácio de Loiola", também incluído nos Poemas sobre o Cristianismo, os seguintes versos:

    "Tal como um militar corajoso, 
    Sempre combateu na primeira linha. 
    Menospreza a riqueza e a honra, 
    E segue rigorosamente os conselhos de
                           [ Santa Maria. 
    Cria uma grande causa, 
    Junto com os seus camaradas. 
    Acalma as preocupações dos outros, 
    E não poupa esforços em formar as pessoas. 
    É talentoso e diligente, 
    Conhece bem as coisas do mundo, 
    E sabe tomar uma atitude flexível na
        [ divulgação da fé cristã. 
    Louvai: é um exemplo para todos nós, 
    Um farol que ilumina a incerteza. 
    Reúne todas as virtudes humanas, 
    Sendo um pilar da Igreja."
Nossa Senhora com o Menino. Trabalho sino-português do século XVII. Placa de marfim esculpida, 17 x 12,5 cm. Colecção Francisco Hipólito Raposo, Lisboa. Macau: As Ruínas de S. Paulo: Um Monumento para o Futuro, Macau, Instituto Cultural, [1994], p. 142.

Inácio de Loiola chegou a entrar na corte de Espanha, onde foi bem aceite. Mas, muito ambicioso, deixou a corte e tornou-se militar. Aos 28 anos de idade feriu-se numa perna durante uma guerra, ficando deste modo deficiente para toda a vida. Depois de ser reformado, decidiu ir viver para uma aldeia onde se dedicava de todo o coração a reflectir e a escrever. Em 1534 chegou a Paris, onde conheceu algumas personalidades de diversas partes do mundo, dos quais admitiu nove discípulos. Posteriormente, Inácio e os seus nove discípulos juraram esquecer a riqueza, o sexo, as intenções mundanas, e fundaram a Companhia de Jesus. Em 1540 levou os discípulos a um encontro com o Papa, a quem proclamou eterna lealdade. Daí passou a ser um elemento fundamental na luta contra a Reforma.32 É óbvio que Yushan soube da história de Inácio de Loiola através de outros missionários ocidentais. Nos últimos anos da sua vida, Yushan livrou-se duma vida agitada, passando-a de uma maneira simples e modesta, o que traduz a influência que Inácio de Loiola exercia sobre ele. Escreve assim:

    "Sinos sossegados, solitário tapete verde, 
    Lá fora há chuva morosa e vento ruidoso, 
    E eu guardo o meu rebanho."33

Além disso, nos seus poemas dedicados respectivamente a S. Francisco de Borja e a S. Luís Gonzaga, também elogiou os seus méritos.34

Embora Yushan tivesse sido baptizado nos anos da sua juventude, os contactos com os missionários ocidentais começaram a ser frequentes a partir dos seus 44 anos, altura em que tinha consolidado conhecimentos sobre a religião católica. Entre os missionários com quem tinha intensa convivênvia figuravam Francisco Rougement e um sacerdote de apelido Zhou (cujo nome ocidental não foi identificado), sendo o último o que mais influência exerceu sobre Yushan. No poema "Elogio ao Mestre Sacerdote Zhou", inserido nos Poemas sobre o Cristianismo, pode-se ler o seguinte:

    "Alimentei um grande respeito por esta pessoa invulgar, 
    Que costumava divulgar a doutrina de modo renovado. 
    (...)
    Trabalhava no Oriente há cinquenta anos
    Onde obteve ilustres resultados. 
    Com a bondade, desenvolvemos uma cumplicidade durante
                                            [ sete anos. 
    Quando nos encontrarmos no Reino Celestial, 
    Vamos conversar com a mesma intimidade."

Trata-se de um poema feito em memória do Sacerdote Zhou. Chen Yuan anota que o verso "Trabalhava no Oriente há cinquenta anos " quer dizer que o Sacerdote Zhou se dedicou à missionação na China durante 50 anos e faleceu com 70 anos de idade, ou seja, chegou à China entre os reinados de Chongzhen e de Shunzhi. O verso "Com a bondade, desenvolvemos uma cumplicidade durante sete anos" quer dizer que o mesmo foi amigo íntimo de Yushan durante 7 anos. Yushan deslocou-se a Macau no 20.o ano do reinado de Kangxi, tendo conhecido o Sacerdote Zhou no 14.o ano do reinado de Kangxi. A expressão "Reino Celestial" significa o paraíso.35

Outra pessoa que influenciou Yushan foi Filipe Couplet que chegou ao Oriente no 13.o ano do reinado de Shunzhi (1656) e começou a missionar em Jiangnan. A 26 de Dezembro do 20.o ano do reinado de Kangxi (5 de Dezembro de 1681) embarcou em Macau num navio holandês e daí partiu para Roma. No 10.o poema dos Cantos de Macau, diz o poeta:

    "A embarcação partiu para uma viagem longa. 
    Quem poderá sonhar tranquilo no regresso à sua terra? 
    Calculo a distância para o Ocidente, 
    E o navio deverá presentemente passar pelo equador." 
                                     (Rodapé do original: 
                   "Couplet deveria passar pelo Equador."). 

Eis um poema que manifesta as saudades de Couplet que partiu para o Ocidente no 21.o ano do reinado de Kangxi. O poema 29.o diz o seguinte:

    "Não consegui deslocar-me até ao Ocidente, 
    Acabei por permanecer em Macau durante duas primaveras 
                                        [ e dois invernos. 
    Futuramente irei ficar em Xiangshan, 
    Ao pé das ameixeiras a apreciar a corrente da água."

Depois da partida do seu mestre, Yushan permaneceu em Macau durante dois anos (duas primaveras e dois invernos), tendo posteriormente voltado a Jiangnan nos princípios do Verão do 21.o ano do mesmo reinado.

Na Antologia das Obras Restantes encontra-se inserido um poema intitulado "Chorar pelo Bispo Luo", destinado ao Bispo Luo Wenzao. Luo Wenzuo, aliás Luo Wocun, natural da província de Fuquiém, foi baptizado na sua juventude como dominicano, tendo ingressado posteriormente na Companhia de Jesus. No 20.o ano do reinado de Kangxi (1674), chegou a ser nomeado Bispo de Nanquim, sendo o primeiro chinês a assumir um cargo tão elevado. No ano seguinte, presidiu à cerimónia de promoção de Yushan, Liu Yunde e Wan Qiyuan, ao sacerdócio. Era também mestre de Wu Yushan, o qual lhe escreveu o seguinte poema:

    "As nuvens penetram em sonho de madrugada, 
    Como os seus conselhos que me orientam a vida quotidiana. 
    Cada vez há menos pessoas a estudar a religião. 
    Resta quem saiba explicar a essência desta?"

O poema mostra suficientemente a amizade profunda e pura existente entre Yushan e o seu mestre.

Através dos contactos com os missionários ocidentais, Yushan obteve uma visão bastante correcta sobre o modo de vida dos ocidentais. No 6.o poema dos Cantos de Macau, ele escreveu o seguinte:

    "Ouço os meus conterrâneos falarem sobre a exploração 
                                                     [ das minas, 
    Tiro a conclusão que não é fácil produzir o ouro."

A exploração das minas ocidentais é entendida aqui como a tecnologia empregue na aquisição de ouro ou prata. Nos últimos anos do reinado de Chongzhen, Francisco Sambiasi enviou uma carta ao Imperador Chongzhen, sugerindo a adopção do calendário ocidental e o recrutamento de especialistas nas áreas da exploração mineira e da produção de armas de fogo.36 Nos finais da dinastia Ming e nos princípios da dinastia Qing, os chineses ficaram muito curiosos ao ver que os missionários ocidentais, apesar de não produzirem nada, levavam uma vida bem abastada, de alta qualidade, chegando mesmo a pensar que eles dominavam a tecnologia da produção de ouro. Foi apenas por este motivo que, na altura em que Mateus Ricci divulgava a fé cristã na China, a tecnologia denominada "fundir o ouro" provocou mais interesse no povo do que a própria doutrina religiosa.37 No 44.o ano do reinado de Wanli (1616), o famoso letrado Xu Guangqi esclareceu esse facto nos seguintes termos:

"É absurdo acharem que eles sabem fundir o ouro ou a prata. (...) Sendo pessoas relacionadas com a Igreja, afastadas da produção, logicamente que as suas despesas são cobertas pelas doações. Entretanto, as suas despesas quotidianas são pagas através de doações vindas do Ocidente." 38

Depois de chegar a Macau, Yushan apercebeu-se da fonte dos rendimentos dos missionários, bem assim como do processo de produzir o ouro, escrevendo, assim, o verso "(...) não é fácil produzir o ouro".

ACTIVIDADES RELIGIOSAS

Nos finais da dinastia Ming e nos princípios da dinastia Qing, Macau era um centro de divulgação da fé cristã no Extremo Oriente. Os portugueses fixados em Macau mantiveram efectivamente a sua tradição religiosa católica, e, por isso, as actividades religiosas em Macau eram, ao longo dos anos, muito animadas. Constam dos Poemas de S. Paulo muitas descrições deste facto.

A actividade mais importante da religião católica era a missa, durante a qual os padres pregavam a doutrina religiosa. No 8.o poema da série A Verdade Sagrada, o poeta diz nos seus versos:

    "Pregam-se os ensinamentos do Evangelho católico, 
    Alegrando os corações dos ouvintes. 
    As aves pousam no seu ninho na auspiciosa árvore, 
    E o cavaleiro exausto encontra uma vinha para matar a sede. 
    Por todos os lados desabrocham as rosas, 
    E o vento enrola as nuvens no céu alto. 
    Estou tão concentrado com a música do órgão, 
    Que a minha imaginação vagueia pelo mundo sagrado."

O poema descreve uma cena de missa em que a pregação do Evangelho por parte dos missionários purificava os ouvintes e levava-os a entrar num horizonte magnífico.

Yushan descreve tambem os ritos religiosos; por exemplo, a cerimónia de promoção de missionários. No 8.o poema da série "A Fonte da Igreja Sagrada", inserida nos Poemas sobre o Cristianismo, descreve uma cerimónia desse tipo com os seguintes versos:

    "O seu vestido de ouro e de jade deslumbra a vista, 
    O que é um reconhecimento dos seus méritos. 
    As cores combinam-se com o fumo e a fragrância das flores. 
    Bebemos o vinho e cantamos ao som da melodia suave do 
                                             [ órgão."

A igreja maravilhosa encontrava-se cheia de fumos e de cores. O padre que presidia à cerimónia atribuiu o traje enfeitado de pedras preciosas ao membro promovido como um sinal do seu mérito, da sua virtude e do seu talento. E todos beberam o vinho que simboliza o sangue de Jesus Cristo, sacrificado para salvar os seres humanos. Segundo o Bispo de Macau, D. Domingos Lam, a partir de 1633 (6.oano do reinado de Chongzhen), e durante 74 anos, o cargo de Bispo de Macau ficou desocupado.39 Contudo, havia sempre alguém com um cargo superior na Igreja que tratasse dos assuntos religiosos neste trecho de tempo. No 23.o ano do reinado de Kangxi (1684), um enviado do Imperador, chamado Du Qin, ao fazer uma visita de inspecção a Macau, frisou o seguinte:

"O monge (o padre ocidental) que lidera em Macau tem o apelido Fan e não tem família." 40

Quem seria este padre de apelido Fan? Faltam documentos para o sabermos.

No poema com o título "Restauração Religiosa", Yushan descreve a cerimónia realizada em Macau, para assinalar a restauração do Papa Alexandre VIII no Outono de 1689:

    "Luzes espalhadas por toda a montanha e a igreja totalmente
                                                     [ aberta. 
    Os canhões na beira do mar ecoam como as trovoadas
                                           [ do Outono. 
    A restauração do Papa traz a paz ao mundo, 
    E do Céu chegam-nos as boas notícias."

Será que Yushan teve acesso a esta informação em Jiangnan ou em Macau? Não há referências precisas.

A descrição da procissão da imagem de S. Francisco Xavier encontra-se inserida no 4.o poema dos Cantos de Macau:

    "As pessoas levantam as velas para receber a vinda do Santo, 
    As bandeiras flutuam com o vento e os panchões ensurdecem. 
    As quatro avenidas estão cobertas de erva verde, 
    E são interditas ao pisar dos visitantes."

Eis uma descrição duma das procissões que na altura se costumavam realizar em Macau.

No tocante às festas religiosas, Yushan descreve, no 27.o poema dos Cantos de Macau, a festa de Natal:

    "Milhares de luzes brilham na gruta da floresta, 
    As nuvens e as velas evocam a seda e as flores. 
    O Inverno deserto está bem enfeitado, 
    E os pretos dançam à música do alaúde."

Fang Hao sublinha que o presente poema nos mostra que "na época de Natal, as igrejas de Macau, diferentes das igrejas no continente chinês, eram enfeitadas como grutas. Atendendo a este facto, Yushan escreveu este poema".41 Os portugueses, como pioneiros do colonialismo, dedicavam-se ao comércio de escravos africanos e trouxeram alguns escravos para Macau. Durante o Natal, perante o clima animado da festa, os escravos que trabalhavam em casas de famílias portuguesas ou de missionários ocidentais tinham ocasião de se divertirem um bocado, dançando descalços ao ritmo harmonioso da música. Trata-se do poema em chinês mais antigo que retrata a celebração do Natal por partes dos portugueses.42

O 3.o poema dos Cantos de Macau descreve a Sexta-Feira Santa:

    "Os pretos moram em casas brancas construídas nas areias
                                                  [ amarelas. 
    Salgueiros plantados às portas não murcham no Outono. 
    As embarcações dos tancareiros encontram-se ancoradas
                                             [ neste sítio. 
    Faz-se abstinência no almoço, mas come-se peixe fresco." 
    (Rodapé do original: "(...) existiam dois tipos de peixes,
            cozidos com azeite, como pratos da Quaresma.").43

Segundo os hábitos católicos, os 40 dias que antecedem a Sexta-Feira Santa constituem a época da Quaresma, durante a qual não é permitido comer animais de "sangue quente", excepto frutos do mar. O poeta não descreve directamente a Sexta-Feira Santa, mas sim a cena em que os escravos pretos que viviam nas barracas à beira-mar compravam aos tancareiros peixes frescos, que serviam para a preparação dos pratos para a Quaresma.

Pote de porcelana azul e branca com o monograma da Companhia de Jesus. Dinastia Ming, c. 1625.

Casa Museu Anastácio Gonçalves, Lisboa. Arquivo Nacional de Fotografia.

"Oceanos", Lisboa, (12) Nov. 1992, p. 81.

PAIXÃO RELIGIOSA

A paixão religiosa constitui um símbolo importante para classificar a fidelidade de um crente, ao passo que as práticas religiosas assumem grande relevância como meio de aquisição da paixão religiosa. Yushan alimentou a sua paixão religiosa e fidelidade ao Cristianismo essencialmente na sua vida religiosa na Igreja de S. Paulo em Macau. Não se encontram manuscritos seus anteriores que descrevam a paixão religiosa, mesmo que se verifiquem sinais de que tinha contactos com missionários ocidentais. No entanto, nos Poemas de S. Paulo, avultam os versos que cantam a paixão religiosa. Vejamos alguns exemplos mais representativos. No momento do sacramento, Yushan cantava a sua paixão por Jesus Cristo:

    "O corpo do Cristo prodigioso existe originalmente em todos
                                         [ os lados e momentos. 
    Encarna-se para salvar os seres humanos. 
    Parece apenas um bolo pequenino 
    O dominador supremo de todo o mundo. 
    O sacrifício de Cristo beneficia todos os povos, 
    Sendo-lhes o alimento sagrado do espírito. 
    Cristo perdoa os erros e faltas humanos, 
    Mesmo a uma pessoa de pecados como eu. 
    Estou tão sensibilizado que não consigo conter as lágrimas."

De acordo com a Bíblia, antes de receber o corpo sagrado, os crentes devem ter confiança, criticando-se e arrependendo-se caso tenham pecados.44

No início do novo ano, Yushan pensava nos esforços necessários para merecer a bênção de Deus:

    "O novo ano renova a natureza. 
    Quem é que determina neste mundo? 
    Devemos recorrer às diligências, 
    Para desfrutar da salvação de Deus."

O tempo passava e Yushan planeava não vaguear jamais pelo jardim deserto de frutas amargas:

    "Espero que Deus não se preocupe demais comigo. 
    Apesar de ser um ramo sem folhas, tento ser digno da sua
                                                 [ graça. 
    Juro não irrigar mais o deserto com as lágrimas, 
    A fim de não subestimar a alta bondade de Deus."

Lamentava a negligência das pessoas pela bondade de Deus:

    "É lamentável o coração humano, 
    Que é cego, perdendo a essência da vida. 
    Embora tenha beneficiado de tantos favores, 
    Não sabe a quem retribuir."

Com vista a agradecer a salvação de Deus, Yushan e alguns crentes amigos exortavam-se mutuamente, prometendo a sua dedicação ao Cristianismo:

    "Cultivamos o culto há uns quatro anos neste pátio sossegado, 
    E continuamo-nos a afligir da nossa inferioridade e indecência. 
    Graças à persuação e exortação de Deus, 
    Seguimos com determinação este caminho traçado, 
    Já que o futuro é vasto."

O poeta julgava que quatro anos de vida no Colégio de S. Paulo serviriam para desenvolver a habilidade necessária no sentido de cumprir a sua missão no futuro, pelo que se devia consciencializar sempre da responsibilidade que era difundir a bondade de Deus.

Yushan decidiu passar o resto do seu tempo a evangelizar e seguir Deus com devoção. Nas práticas, durante mais de trinta anos, Yushan deu constantemente provas da sua firme convicção religiosa com uma devota paixão religiosa e um espírito firme de dedicação à religião.

COMPREENSÃO DO CRISTIANISMO

Os três anos de vida no Colégio de S. Paulo fortaleceram a inabalável convicção católica de Yushan. O seu entendimento da doutrina católica registou um razoável aprofundamento, o que o distinguiu tanto dos não convertidos como dos sacerdotes chineses da mesma época.

A Trindade é um dos dogmas cristãos. Segundo a interpretação de Yushan, Pai, Filho e Espírito Santo constituem a origem do Universo e dominam-no por completo desde o seu início. Yushan achava que a doutrina confucionista chamada Taiji, apresentada na dinastia Song, ficara sem fundamentos ao ignorar esta origem. Anteriormente tinha adquirido apenas uma visão parcial sobre os dogmas, mas finalmente chegou a perceber o essencial de que o Pai e o Filho são o único Deus deste mundo. A Igreja propaga o monoteísmo segundo o qual existe um só Deus, que reúne Pai, Filho e Espírito Santo numa única substância. A compreensão deste mistério só pode ser feita através da crença e não pela razão. E, exactamente com a sua firme crença, o poeta conseguiu compreender este mistério:

    "A Trindade é enfim três pessoas numa só família, 
    Que domina tanto o céu como a terra."
    (8.opoema da série A Origem de Deus). 

O Novo Testamento diz que Jesus Cristo encarnou com o intuito de salvar os seres humanos. Sofreu, ressuscitou e subiu ao Céu onde previu a chegada do fim do mundo. No 4.o poema da série A Origem de Deus, Yushan escreveu:

    "Ao nascer, os seres humanos têm pecado original. 
    Jesus, filho de Deus, encarnou para os libertar dos pecados. 
    Que boa sorte a dos seres humanos com a vinda de Jesus, 
    Que é uma estrela eterna que os norteia, 
    E é curioso a virgem Santa Maria dar à luz a Jesus. 
    Os doze apóstolos não poupam esforços para ajudar Jesus, 
    E todos estão felizes com a data da ressurreição."

Um outro poema diz o seguinte:

    "Com a encarnação de Jesus, 
    O povo alimenta esperanças de ser conduzido ao Céu. 
    Não gostaria de ser apenas um literato, 
    Prefiro ser um seguidor de Deus para o acompanhar no Céu." 45

Nos finais da dinastia Ming e nos princípios da dinastia Qing, a doutrina do Cristianismo difundida pelos missionários ocidentais era totalmente diferente do conceito do Céu constante na cultura chinesa e, por isso, era de muito difícil aceitação por parte dos letrados chineses. Os antigos filósofos chineses, que insistiam num simples materialismo, consideravam o Céu como o símbolo das regras naturais do Universo, enquanto os de pensamento mais idealista consideravam o Céu como um Ser Supremo, a que competia o poder absoluto de decidir das felicidades e das tragédias dos seres humanos. De maneira que ambas as partes não aceitaram o Cristianismo, não deixando, pelo contrário, de atacá-lo com veemência. No decorrer do julgamento dum missionário em Nanquim, no 44.o ano do reinado de Wanli (entre 1616 e 1617), o boletim oficial dizia:

"Os missionários ocidentais fazem circular 'O Resumo dos Ensinamentos do Senhor do Céu', o qual declara que na dinastia Han nasceu Cristo, cujo nome é Jesus, filho de Maria, o que é um disparate ocidental. Diz ainda que Jesus foi crucificado por oficiais malvados. Foi devido a crime que foi condenado à morte. Será que o criminoso pode ser o Senhor do Céu." 46

No 3.o ano do reinado de Kangxi (1664), Yang Guangxian, um letrado que preconizava a censura, disse:

"Se Jesus fosse Deus, porque é que nasceu da concepção imaculada? É absurdo neste mundo um filho ter nascido com mãe mas sem um pai! No mundo são apenas os animais que só conhecem a mãe e não conhecem o pai. Será que nenhum dos apóstolos católicos conhece o pai? Foi endeusado um fulano sem pai, o que não passa de um louvor à conduta ilícita de uma mulher solteira."

Disse ainda:

"Jesus Cristo foi condenado à morte porque tinha ignorado a diferença entre um civil e o monarca. Maria, mãe de Jesus, tinha um marido que se chamava José. Dizem que Jesus nasceu sem pai, (...) é que ele não queria reconhecer o pai." 47

A lealdade ao monarca, o respeito filial em relação aos pais, são os pilares da doutrina confucionista. Na opinião dos defensores do confucionismo, as lições que os missionários ocidentais insistiam em espalhar junto dos chineses eram viciosas e imorais, podendo levar a sociedade a degenerar-se. Se Yushan não tivesse sido capaz de abandonar as influências da cultura chinesa, seria impossível que tivesse aceite a doutrina da religião católica.

Não poucas religiões têm propagado, ao longo da história, que a divindade é responsável pela vigilância e pelo julgamento das pessoas a nível moral, para que elas sejam mais obedientes e mais devotas à divindade. Por exemplo, o Cristianismo prevê um julgamento no fim do mundo. Diz que Jesus Cristo vai descer de novo à terra no fim do mundo, e que os seres humanos serão sujeitos ao julgamento de Cristo. Os benévolos gozarão da felicidade perpétua e os malévolos padecerão misérias intermináveis. Yushan disse nos seus versos:

    "Os malévolos serão julgados no fim do mundo, 
    E condenados ao inferno perpétuo. 
    Que estes se arrependam dos seus pecados, 
    E voltem a ser homens honestos."

Além da propaganda sobre o julgamento no fim do mundo, há o ensinamento sobre o paraíso e o inferno. Yushan explicou num poema seu:

    "Recito concentrando os versos, 
    Pelos quais me apercebo da verdade sagrada. 
    As pessoas não acreditam na existência do paraíso enquanto
                                                            [ vivem? 
    Só que receiam ser condenadas à chama do inferno depois 
                                                     [ da morte. 
    
    A honra e a riqueza neste mundo são passageiras como as 
                                                      [nuvens. 
    Trabalhar durante a vida inteira não evita que o corpo se 
                                                 [ torne poeira. 
    O tempo que corre como as águas apressa-me a valorizar 
                                                    [ a vida, 
    Procuro chegar até ao Céu através dum caminho bem traçado."
                    (6.o poema da série A Origem de Deus). 

Com vista a ter acesso à eternidade, o poeta estava convencido de que, apenas com a dedicação a Deus, conseguiria ascender ao paraíso depois da morte:

    "A felicidade eterna encontra-se no Céu, 
    E a vida é efémera. 
    Com a minha determinação 
    Quem é que me pode impedir de buscar a eternidade?"

Noutro poema continua a dizer:

    "Aceito com firmeza a bênção de Deus, 
    Que desejo retribuir com sinceridade. 
    Habito agora esta terra feliz, 
    E chegarei ao paraíso depois da morte."

Os crentes purificam as suas almas e os seus actos pela reflexão e pelo estudo atento, com o intuito de agradar Deus. O ensinamento do Cristianismo tem por objectivo servir a Deus e exortar as gentes a amar o próximo como se amam a si próprios. Diego de Pantoja, missionário ocidental que viveu nos finais da dinastia Ming, deixou uma obra intitulada Sete Contras, na qual considerava que, devido aos desejos egoístas de procurar a riqueza, o poder e o hedonismo, as pessoas cometem sete pecados: arrogância, inveja, avareza, irritação, gula, obscenidade e preguiça. Uma vez que aqueles que não conseguem ultrapassar os sete pecados se vêm impossibilitados de amar os outros, muito menos podem servir Deus. Assim as armas que podem vencer os sete pecados são a cortesia, a benevolência, a doação, a tolerância, a moderação, a lealdade e a diligência.48

Depois de ter lido esta obra, Yushan exprimiu a sua compreensão desta doutrina, tendo escrito sete poemas: "Contra a Arrogância", "Contra a Avareza", "Contra a Inveja", "Contra a Indignação", "Contra a Gula", "Contra a Obscenidade" e "Contra a Preguiça". No poema "Contra a Arrogância", escreveu:

    "Os arrogantes, como os leões, 
    Não são fáceis de domar. 
    Consideram-se distintos no mundo, 
    Um dia hão-de se transformar em nada. 
    É melhor controlar-se a si próprio e abster-se da arrogância, 
    Já que a humildade está acima de todas as virtudes."

O poema "Contra a Obscenidade " diz assim:

    "O que é a obscenidade indulgente? 
    É a inundação que rompe o dique; 
    Na primeira vez, ainda se sente envergonhada, 
    E depois irá perder completamente a cabeça. 
    Para se prevenir do castigo de Deus, 
    É melhor controlar-se a qualquer momento."

E "Contra a Preguiça":

    "Com a preguiça, 
    Esquece-se facilmente a graça de Deus. 
    O corpo conforta-se na vida ordinária, 
    E o coração fica privado da ambição de voar alto. 
    O tempo passa sem esperar por ninguém, 
    Só a diligência é que lança a base à causa sagrada."

O ensinamento confucionista aconselha as pessoas a controlar o seu ego e a cumprir os ritos. Confúcio disse a um dos discípulos:"Controlar-se a si próprio e respeitar os outros constitui uma virtude de bondade. A bondade consiste em compreender os sentimentos dos outros, em amar os outros activamente como a si mesmo. Deve-se exigir esta bondade a si próprio antes de esperar isso dos outros. "Disse também: "Não ver, ouvir, falar e fazer aquilo que não corresponde à cortesia."49 Preconizava ao mesmo tempo: "O respeito e a bondade estão interligados, já que o primeiro é a aparência, a última é a essência."50 Deste modo, Yushan só poderia aceitar a doutrina católica depois de ter ultrapassado as divergências entre a cultura tradicional chinesa e a cultura católica ocidental.

O Cristianismo venera Maria como Mãe de Jesus Cristo. Chama-lhe Mãe Virgem porque gerou Jesus Cristo por via de uma concepção imaculada. E crê que depois da sua morte, a alma e o corpo físico irão reencontrar-se e ascender ao paraíso. Conforme explicado no Novo Testamento, Santa Maria recebeu uma mensagem de Deus, transmitida por um anjo, anunciando que iria dar à luz Jesus depois de uma concepção imaculada. Os versos de Yushan dizem:

    "O salvador nasceu de uma concepção santa, 
    Eis uma notícia feliz que alegra todo o Universo. 
    Os povos vão gozar da graça de Deus, 
    E o caminho rumo ao Céu acaba por ter-se aberto."
    (Poemas sobre o Cristianismo).

E outro poema diz assim:

    "A porta da eterna felicidade abre-se hoje, 
    Visto que Deus anuncia o nascimento de Jesus. 
    É a Jerusalém que ele vai chegar, 
    O verdadeiro salvador dos seres humanos."

Yushan escreveu ainda outros poemas que descreve Maria e a freiras que seguem Santa Maria com devoção.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: anjo em posição de oração que ladeia, à direita e ao alto, 3.a fileira, o nicho onde se encontra a estátua de Nossa Senhora da Assunção.

Xie Ronghan: fotografia, 1991.

INFLUÊNCIA DA CULTURA CHINESA

A cultura tradicional da China alicerça-se firme e milenarmente, tendo por centro a doutrina do confucionismo e por auxiliares o budismo e o tauismo. Em virtude disso, os poetas da dinastia Qing costumavam encarar o Cristianismo, representativo da cultura ocidental, do ponto de vista da cultura tradicional chinesa. Ao apresentar o Cristianismo, faziam sempre analogias com o budismo e outras noções da sua própria cultura, revelando deste modo o seu conhecimento parcial ou superficial sobre o Cristianismo. No entanto, Yushan constituía uma excepção, tendo alcançado um nível muito elevado no conhecimento da doutrina católica e na paixão por esta religião. A fim de aceitar os princípios fundamentais católicos, Yushan esforçara-se por ultrapassar alguns conceitos formulados pela influência da cultura tradicional chinesa. Nos seus poemas, tentou abandonar as expressões do budismo comummente usados pelos não convertidos ao abordar o Cristianismo. Apesar disso, os seus poemas sobre o Cristianismo evidenciam indícios da influência da cultura tradicional chinesa.

Na sua juventude, Yushan interessara-se pelo confucionismo, tendo aprofundado muito o seu conhecimento da cultura tradicional chinesa. Li Wenyu referiu que "o que Yushan recebeu foi a educação confucionista que representa a cultura tradicional chinesa e estudou as habilidades dos literatos confucionistas". 51 Os literatos confucionistas costumavam seguir o seguinte princípio: se conseguissem atingir uma carreira de êxito, iriam servir a sociedade; caso contrário, iriam aperfeiçoar a sua própria vida moral. Sendo um sobrevivente da dinastia Ming, Yushan sofreu a angústia do fim desta dinastia em relação à qual tinha um sentimento de pertença, e sentia-se muito frustrado para seguir uma carreira política que lhe permitisse servir o estado. Por isso, optou por aperfeiçoar a sua própria vida moral. Embora religiosamente se tivesse convertido num católico, predominava no seu pensamento a filosofia de satisfazer-se com uma situação de pobreza, sem buscar caprichos egoístas. No entanto, a substância que serve de base a esta filosofia já não é o confucionismo, mas sim o Cristianismo, que representava a cultura ocidental. O poeta descreve assim a sua situação de vida:

    "Passaram-se mais dez anos na minha vida, 
    Continuo a morar nesta casa modesta. 
    Os bichos do Outono cantam com pausas na parede, 
    A chuva goteja humedecendo os três quartos. 
    Não me apetece saudar a chegada de ilustres visitantes. 
    De vez em quando encontro-me em sonhos com antigos
                         [ homens de carácter nobre. 
    Satisfaço-me com a minha vida modesta, 
    Não peço uma casa confortável nem por terras cultivadas."
                                 ("70.o Aniversário").

A vida que Yushan levava coincidia com aquela que Confúcio apreciava. Uma vez o mestre elogiava Yuan Hui, um de seus discípulos: "A simples comida quotidiana e uma casa modesta num beco não o preocupam nem o privam do prazer."52 Yushan e Yuan Hui viviam na mesma situação. E Yushan sonhava encontrar-se com os antigos "homens de carácter nobre", uma alusão de origem confucionista.53 Contudo, os homens de carácter nobre mencionados pelo poeta não eram os sábios confucionistas, mas sim os jesuítas. O verso "Não peço uma casa confortável nem por terras cultivadas" tem origem na crónica História dos Três Reinos, da autoria de Chen Shou, em que são criticados aqueles que apenas pensam em procurar os seus próprios interesses imediatos sem se importarem com as coisas do estado.54 Um outro poeta, Xin Qiji, da dinastia Song, também desprezava esse tipo de pessoas, dizendo que era uma vergonha satisfazerem-se facilmente com uma boa casa e terras.55 Yushan recorreu a estas alusões para expressar a sua preferência por uma vida modesta.

Alguns poemas inseridos nos Poemas de S. Paulo reflectiam que o poeta manifestava o seu sentimento em relação ao Cristianismo do ponto de vista da cultura tradicional chinesa. Um poema antigo chinês, inserido no Cânon das Odes, diz:

    "O viajante prestava serviço numa terra longínqua, 
    E subiu ao topo de uma colina. 
    
    Desejando avistar o pai, 
    Imaginou ouvir a recomendação dele: 
    'Oh filho, o trabalho é tão duro
    Que deves cuidar da saúde. 
    Volta depressa, não permaneças na terra estranha'." 56

Yushan inspirou-se neste poema para escrever o seu, a fim de expressar o sentimento de que Deus, como um pai preocupado com o seu filho que trabalha numa terra longínqua, esperava que todos os trabalhadores se convertessem em cristãos para seguirem um caminho que prometia a vida eterna.

No 15.o poema dos Cantos de Macau, Yushan escreve os seguintes versos:

    "O sol-poente vai cair na Porta da Cruz, 
    E o crespúsculo deixa o monte Jiuzhou envolto em névoa. 
    Do nascimento até à morte a vida é irreversível. 
    Retrospectivada a vida mundana, as lágrimas esgotam-se 
                                               [ facilmente."

O poeta ligou a Porta da Cruz situada no sul de Macau, com a Cruz de Jesus. E a colina Juizhou fez-lhe lembrar um poema da dinastia Tang:

    "Ouvi falar do outro monte Jiuzhou, 
    Mas eu sou incapaz de prever a segunda vida antes da minha 
    [ morte."  57

Dizem que na dinastia Tang morreu Yang Guife, a concubina favorita do então imperador, e este mandou um feiticeiro procurar o local onde habitava o seu fantasma, no monte Jiuzhou. O poeta recorreu a esta alusão literária para lamentar a fugacidade e a dificuldade da vida.

Bai Juiyi, o conhecido poeta da dinastia Tang, escreveu um poema em que descreve a busca de ervas da imortalidade:

    "O mar é vasto e profundo. 
    Na ilha rodeada de nuvens e fumo existem três montes
                                            [ celestiais. 
    Aí crescem ervas da imortalidade, 
    Que podem tornar as pessoas imortais. 
    Os imperadores crêem nesta lenda, 
    E mandam todos os anos recolhê-las."  58

Yushan introduziu esta história no seu poema criticando desta maneira os imperadores que pensavam supersticiosamente na existência da imortalidade:

    "Banhada pelas ondas, a ilha celestial exala o cheiro agradável
                                                         [ das ervas, 
    Que enganou não sei quantos imperadores. 
    Hoje em dia as ervas continuam verdes, mas os imperadores 
                                             [ já morreram."

O poeta inspirou-se na ilha de Sanchoão e ligou-a com o facto histórico de que os imperadores tinham mandado procurar as ervas da imortalidade numa ilha imaginada.

O confucionismo dá muita atenção à piedade filial, que é consideraa mais importante das virtudes. Em contrapartida, o Cristianismo tem Deus como o pai de todo o mundo e privilegia o serviço a Deus acima da obediência aos pais. Yushan perdeu o pai na infância. Tomava atentamente conta da mãe, e empenhava-se na pintura e na caligrafia para a alimentar. Depois da morte da mãe e da mulher, decidiu dedicar-se ao Cristianismo. Mas não deixava de recordar a caridade da mãe mesmo na aprendizagem do Cristianismo:

    "Ouvindo no sonho a chamada de Deus, 
    Apressei-me a partir contra o vento arrefecido. 
    O frio da geada e da Lua ataca-me o corpo, 
    Caminho pelo trilho sinuoso que serpenteia pelas montanhas. 
    Como um velho cavalo, sei qual o caminho a seguir, 
    Porque a mãe sempre me pergunta se eu tenho seguido Deus. 
    Não me vou queixar dos obstáculos que enfrento, 
    Acredito que, por entre as nuvens brancas, há montanhas 
                                                    [ verdes."

Yushan foi baptizado quando era pequeno, por isso a sua mãe teria sido crente. A descrição do encontro com a mãe no sonho exprime não apenas a paixão religiosa, mas também um sentimento íntimo de afecto manifestado pelo filho em relação à mãe falecida.59

Yushan tinha casado duas vezes antes de se converter ao Cristianismo. Alguns de seus poemas expressam a saudade da mulher defunta:

    "Durante os trinta anos em que tu trabalhavas arduamente, 
    A vida familiar passava feliz apesar da pobreza. 
    Uma mulher tão perfeita era digna da glória celestial, 
    Mas ninguém escapa à regra da morte. 
    Sinto-me feliz ao recordá-la no coração, 
    E não sei como expressar o meu amor e gratidão. 
    No curso da história há muitas figuras distintas, 
    Acredito que a minha mulher é a melhor de todas."
    
    "Estava deitado quando ouvi o bebé a chorar, 
    Não precisava de me levantar já que chegou a mulher. 
    Agora sinto-me sozinho neste mundo tão vasto, 
    As lágrimas marejam dos olhos ao lembrar-me dela."

A mulher defunta era a mulher chinesa que reunia muitas virtudes: laboriosa, respeitadora dos idosos, oferecia-se de todo o coração aos filhos, mostrava-se satisfeita com a vida modesta e ajudava o marido. A mãe também gostava dela, o que reforçou a sua paixão pela mulher. Conforme a ética confucionista, é um sentimento natural ter saudades da mulher defunta.60 Mas os jesuítas devem afastar essas paixões particulares depois de entrarem na Ordem, caso contrário são considerados como infiéis à crença. Por isso, os dois poemas não têm sido usualmente integrados nas antologias de Yushan.

Além de ter saudades da mãe e da mulher defuntas, Yushan nunca esquecia os outros familiares vivos:

    "Despedi-me dos dois filhos no Terraço de Pesca em Zhejiang, 
    Mas os dois filhos também se separaram um do outro como
                                           [ duas andorinhas. 
    Nesta altura aumenta mais a nossa saudade, 
    Penso que os peixes dos dois sítios em que vivem os dois 
                              [ filhos hão-de ser gordinhos."

Através da referência aos peixes, o poeta exprime as saudades dos miúdos de forma insinuadora, deixando aos leitores uma larga margem de imaginação.

O poeta também não conseguia esquecer a amizade pelos amigos:

    "Ao passar pela Cordilheira do Sul não vejo nenhuma 
                                        [ flor de ameixa, 
    Pinto-a então à meia-noite para depositar a saudade dos 
                                                      [ amigos. 
    Mando hoje o quadro para os amigos de longe, 
    Espero que tenham muito prazer em apreciá-lo."
    
    "Não posso encontrar-me com os velhos amigos, 
    Mesmo que estejam à Porta de Jade. 
    As saudades afligem-me como a fome e a sede, 
    A noite parece-me interminável com o cair das badaladas."
    
    "Passaram-se muitos anos desde a minha separação dos
                                        [ amigos fraternos, 
    Formulei um plano de longo prazo para eles que nunca
                                    [ foi concretizado. 
    Tenho escrito cartas mas não recebi respostas, 
    Escrevo então um poema novo para matar as saudades 
                                           [ acumuladas."

A ética confucionista adverte que "entre pais e filhos deve haver afecto. Entre marido e mulher, deve dar-se atenção às funções específicas de cada um. Entre irmãos, uma diferenciação entre os mais velhos e os mais novos. Entre os amigos, uma confiança mútua."61 Na vida religiosa, Yushan não conseguiu esquecer-se dos familiares e amigos, o que indica que, apesar de religiosamente se ter convertido ao Cristianismo, mantinha ainda no seu pensamento influências confucionistas.

PAPEL DESEMPENHADO NO INTERCÂMBIO SINO-OCIDENTAL

Nos finais da dinastia Ming foi introduzido o Cristianismo na China, tendo entrado em contacto com a cultura tradicional chinesa. Os jesuítas, liderados por Mateus Ricci, integraram os usos e costumes do rito chinês na apresentação dos conhecimentos científicos e tecnológicos ocidentais, a fim de cumprirem a sua missão de cristianização e reduzir a resistência da cultura chinesa em relação à expansão do Cristianismo. Escreveram livros visando desta maneira convencer os chineses a acreditar que o Cristianismo não entrava em contradição com a doutrina confucionista, mas poderia contribuir para complementá-la. Convencidos por estes livros, literatos conhecidos, tais como Li Zhizao, Yang Dingyun, Xu Guangji, tornaram-se cristãos.62

Na altura em que Yushan entrou para o Colégio de S. Paulo, o Cristianismo já se tinha implantado em Macau há cerca de cem anos. A razão pela qual Yushan se converteu ao Cristianismo deve-se a dois factores. Por um lado, recebera a influência de Xu Guangji pretendendo depositar a sua crença de vida em doutrinas não confucionistas. Por outro, a sua opção pelo Cristianismo funcionava como um sinal de protesto contra a dominação da dinastia Qing. Graças aos três anos de estudo no Colégio de S. Paulo, Yushan consolidou a afirmação da sua crença católica.

À medida que o contacto entre o Cristianismo e a cultura chinesa se tornava mais intenso, o confronto entre eles começou a tornar-se visível. Nos tempos em que Yushan viveu, os intelectuais chineses enfrentavam um dilema: ser católico ou confucionista, sendo já impossível uma conciliação entre as duas coisas. Quanto a isso, Yushan escreveu num poema inserido na Antologia das Obras Restantes:

    "Que efémera é a vida humana, 
    Mas os seres humanos preocupam-se mais com a pobreza e a 
                          [ humildade do que com a crença. 
    A vida e a morte são dois extremos que não se conciliam. 
    Quem não se dedicar à reflexão será condenado à chama 
                                                        [ infernal. 
    Tantas pessoas se perdem em caminhos mal escolhidos, 
    Deixando o tempo branquear o cabelo sem merecer a vida. 
    São os confucionistas que costumam perder os fundamentos 
                                             [da sua doutrina, 
    Mas eles preferem passar a vida amesquinhando os outros. 
    Hoje em dia o sino da aldeia toca por quem? 
    Durante dez anos persisto na minha aspiração sem me sentir
                                                        [cansado. 
    Oxalá que mil aldeias e vales tenham sido cristianizados, 
    E que todo o povo se torne em firmes crentes católicos."

Xu Guangji julgava que a doutrina da religião católica acerca da vida e da morte era mais fundamentada e clara do que a confucionista, podendo ser complementar desta última. Yushan foi mais longe ao criticar impetuosamente o confucionismo que, segundo ele, conduzia as pessoas a aspirar à fama, à fortuna e ao mandarinato, negligenciando a eternidade da vida que o Cristianismo pretendia alcançar. Ele próprio, além de aderir à fé cristã, integrou a Companhia de Jesus, dedicando toda a sua vida à missionação do Cristianismo que considerava o "Verdadeiro Caminho".

Através do estudo dos poemas sobre o Cristianismo de Yushan, podemos concluir que tinha um grande entusiasmo pela religião católica, tendo conseguido atingir um nível muito elevado no âmbito do conhecimento e da compreensão da doutrina desta religião. Apesar de estes poemas ainda não estarem livres por completo da influência da cultura chinesa, já deixam o Cristianismo, que representa a cultura ocidental, ocupar um lugar predominante. Daí se poder dizer que Yushan, um intelectual inicialmente educado e influenciado pela cultura tradicional da China, acabou por se converter num crente devoto do Cristianismo. Tou Shu falava dessa conversão num poema seu:

    "Como invulgar descendente de Yan Lin, 
    É conhecido pela missionação do Cristianismo. 
    Prefere viajar por fora desde pequenino, 
    Sem lhe interessar o êxito do funcionalismo. 
    Como a luz, ilumina o mundo de poeira escura, 
    E a sua fama é tão sonora que se pode ouvir desde o Céu." 63

Entre os amigos de Yushan, figuravam pessoas com a mesma experiência. Um amigo, seu chamado Zhao Juan, dizia acerca de si próprio:

"Eu era confucionista, tendo aprendido desde pequenino a composição de poemas e, a seguir, os Quatro Livros e os Cinco Clássicos da escola de Confúcio. Também estudava e analisava outros livros clássicos. Na juventude, consegui passar em vários exames do funcionalismo e por isso sentia-me orgulhoso, julgando ter encontrado um caminho correcto. Comecei depois a indagar a essência das diversas doutrinas e acabei por saber que Confúcio tinha abordado pouco a questão da vida e da morte. Em virtude disso, converti-me ao Cristianismo. Desde então, uma luz iluminou-me a consciência e encontrei o essencial da verdade. Daí tornei-me outra pessoa."

Eis outro exemplo de alguém que passou de intelectual chinês a crente em Deus. Esta transformação dos intelectuais chineses aconteceu no período em que os confrontos e as divergências entre a cultura chinesa e a religião ocidental se vinham tornando mais nítidos, o que é uma questão interessante que merece uma investigação profunda.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: candelabro (friso sob a "fonte da vida", 3.a fileira).

Xie Ronghan: fotografia, 1991.

Nos tempos de Yushan, muitos homens de letras, embora não fossem católicos, compunham poemas tendo o Cristianismo por tema. No 20.o ano do reinado de Kangxi, Yuo Tou redigiu cem poemas sob o título de Poemas sobre os Países Estrangeiros, entre os quais constam dois que descrevem a Europa. Um poema diz assim:

    "Abriu-se no silêncio a Igreja do Senhor do Céu, 
    Os sons do sino misturam-se com os do órgão. 
    Fora da cidade florescem as rosas. 
    Ergo a taça de vinho para saudar Mateus Ricci."

O poema refere o Senhor do Céu (Deus) e Mateus Ricci. Outro poema do mesmo autor, intitulado "Folanji"***, tem os seguintes versos:

    "Remam barcos que, como centopeias, deslizam sobre o mar, 
    Quando entram no templo, já de longe seguram o báculo 
                                                  [ encarnado. 
    Por que se retiram depois de entregarem o selo em frente 
                                                   [ ao Buda, 
    E, quando fixam o seu casamento, por que vão pedir ao 
                                             [ bonzo." 64

O poema descreve, de forma analógica e em tom um pouco irónico, uma cerimónia nupcial realizada na igreja, sendo considerado por Chen Yuan como um "poema de brincadeira".65 Yuo Tou, embora muito conhecido pela sua obra literária, não tinha experiência da vida cristã nem fez estudos sobre o Cristianismo; por isso descreveu os acontecimentos da religião católica duma forma superficial. Deste modo, quando leu os poemas de Yushan sobre o Cristianismo, sentiu-se envergonhado das suas próprias obras que não se podiam comparar com as de Yushan. No Prefácio que fez para um livro de Yushan, diz:

"Quando compilava a história estrangeira, tive conhecimento de usos e costumes exóticos que me surpreenderam. Fiz alguns poemas para registar essas coisas. Mas os poemas que Yushan escreveu sobre Macau, onde vivem os estrangeiros, são diferentes." 66

Os Cantos de Macau, tal como os Poemas sobre os Países Estrangeiros, pode ser considerada uma obra de grande dimensão, que traduz o conhecimento profundo do poeta sobre a cultura ocidental, representada pelo Cristianismo. O poeta conseguiu, com a perspicácia do pintor, desenhar uma galeria de paisagens ao sabor ocidental, coisa que os poetas não convertidos daquele período não eram capazes de o fazer. Os poemas referentes à festa de Natal e à procissão da imagem santa são poemas singulares que podem servir de referência preciosa para o estudo da história católica da China, bem como para o estudo do intercâmbio cultural sino-ocidental.

De acordo com a minha indicação estatística, o número dos poemas de Yushan sobre o Cristianismo ultrapassa os cem. Antes e depois dele nenhum outro cristão chinês compôs poemas como os seus, tanto na quantidade como na qualidade.67 Yushan foi um poeta diligente, que nunca deixou de compor poemas, quer na altura em que estudava no Colégio de S. Paulo, quer quando se dedicava à pregação do Cristianismo em Xangai. Mesmo nos últimos tempos da sua vida, atacado pela doença, mantinha a poesia como companhia. Essa grande paixão pela poesia estava nitidamente relacionada como a sua missão religiosa. Observando o princípio da cultura chinesa de que a poesia era um veículo de aspiração, tomou a poesia como um instrumento de exprimir as emoções, de pregar os ensinamentos religiosos ou de estimular os amigos, legando para as gerações posteriores uma obra poética de valor singular.

Entretanto, Yushan julgava difícil compor poemas sobre o Cristianismo, uma vez que tinha que resolver a questão de como combinar a forma da poesia clássica da China com os temas que a religião ocidental lhe apresentava, ou, por outras palavras, conciliar as diferenças entre as duas culturas. No entanto, Yushan dispunha de uma boa formação de cultura chinesa e do profundo conhecimento do Cristianismo, graças ao estudo no Colégio de S. Paulo, tendo conseguido conciliar duma forma relativamente satisfatória as diferenças entre as duas culturas.68

Convém afirmar que Yushan não pretendia criar uma literatura sobre o Cristianismo com os seus poemas. Mas se a criação nesta área tivesse tido possibilidade de prosseguir, poderia ter lançado as raízes de uma literatura sobre o Cristianismo na China, tal como acontecera com o budismo que, depois de se espalhar pela China, se integrou na cultura chinesa, levando à criação da literatura budista. No entanto, o Cristianismo ia-se introduzindo na China com o objectivo de a conquistar a nível moral e aparecia estreitamente ligado às actividades da expansão ocidental, de maneira que não podia integrar-se com a cultural tradicional chinesa. As contradições e os confrontos entre o Cristianismo e a cultura chinesa iam-se tornando cada vez mais graves, até que se deu finalmente a Questão dos Ritos. Posteriormente, apesar de não se proibir mais a difusão da religião católica na China, sucediam-se os movimentos populares contra a expansão do Cristianismo. Nestas circunstâncias, não havia hipóteses de criação de uma literatura sobre o Cristianismo na China e os poemas de Yushan não tiveram continuidade.

Os poemas sobre o Cristianismo de Yushan reflectem o processo de transformação no qual os intelectuais chineses abandonaram o confucionismo para se tornarem crentes devotos de Jesus Cristo, o que constitui um fenómeno muito específico na história do intercâmbio cultural sino-ocidental. Os poemas de Yushan interpretam os ensinamentos do Cristianismo usando as formas da poesia clássica da China, constituindo estes poemas não só um fruto deste intercâmbio, como também um material precioso para o estudo da história deste mesmo intercâmbio. Os quatro anos de estudo do Cristianismo no Colégio de S. Paulo permitiram concretizar a transformação de Yushan a partir dum confucionista num católico de crença firme, o que testemunha o importante papel assumido por Macau no processo do intercâmbio sino-ocidental.

Comunicação apresentada no Simpósio Internacional "Religião e Cultura", comemorativo do IV Centenário da Fundação do Colégio Universitário de S. Paulo, realizado pelo Instituto Cultural de Macau, Divisão de Estudos, Investigação e Publicações, entre 28 de Novembro e 1 de Dezembro de 1994, em Macau.

Tradução do original chinês por Yao Jinming; revisão de Pedro Catalão; revisão final de Júlio Nogueira.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: representação do demónio (voluta esquerda, 3.a fileira), acompanhada da inscrição em caracteres chineses que, segundo Gonçalo Couceiro, se traduz por "O demónio tenta o homem para praticar o mal".

Xie Ronghan: fotografia. 1991.

NOTAS

1 WU Yushan, Antologia de Mojing, compilado por Li Wenyu, Xangai, Editora do Povo, 1981, p. 89.

2 FANG Hao, Biografia de Personalidades Católicas da China, Editora da China, 1988, vol. l, pp. 202-3,268-70.

3 Tou Shu, poeta que viveu na mesma época de Yushan, deixou 30 poemas que foram posteriormente integrados numa antologia poética de Yushan.

4 WU Yushan, ob. cit., vol. l, p. l.

5 Id., p. 2.

6 Id., vol. 3, pp. 50-63.

7 ZHOU Kangxin, Estudos sobre Yushan, Hong-Kong, ChuWen, 1971, pp. 85-116.

8 LU Xiyan, Registos sobre Macau.

9 WANG Zunyan, "A Data da Chegada de Yushan a Macau", in ZHOU Kangxin, ob. cit., pp. 147-9.

10 ZHOU Kangxin, ob. cit., pp. 120, 149.

11 Id., ob. cit., p. 148.

12 Id., ob. cit., pp. 148-9.

13 Id., ob. cit., pp. 120, 136.

14 CHEN Yuan, Poemas de S. Paulo, pp. 397-8, 417-8.

15 O Novo Testamento, versão em chinês, 1919, p. 137.

16 LU Xiyan, ob. cit.

17 WU Yushan, ob. cit., p. 10.

18 Id., ob. cit., p. 17.

19 De idade avançada, Yushan tinha muita dificuldade em aprender o latim, como ficou expresso nos seus poemas inseridos na Antologia das Obras Restantes. Ver ZHOU Kangxin, ob. cit., pp. 88-90,138-9; FANG Hao, ob. cit., p. 229.

20 ZHOU Kangxin, ob. cit., p. 138.

21 YIN Pan, Kai Tian Bao Shen.

22 A Igreja de São Paulo, Macau, Instituto Cultural, 1992.

23 Segunto Alberto Chan, o verso "Com vista a abraçar a vastidão do continente" significa ter o mapa na mão.

24 GENG Xin, Obras Completas, vol. 6, p. 49.

25 WU Xingzuo, Poemas Escritos na Aldeia, p. 37.

26 WU Yushan, ob. cit.

27 XU Zungze, Estudo sobre a Missionação Católica na China, Tu Shan Wei, 1990, pp. 226-8.

28 MU Qingmeng, História do Cristianismo na China, Formosa, Guang Qi, 1987, pp. 86-9.

29 WEI Qingxin, A Política de Missionação Francesa Aplicada na China, Ciências Sociais, 1991, p. 90.

30 A ilha de Sanchoão é também conhecida por Sanzhou ou Sanshan.

31 WU Yushan, ob. cit., p. 82.

32 ZHU Qianzhi, A Influência do Pensamento Chinês na Cultura Ocidental, Comércio, 1940, pp. 69-70.

33 CHEN Yuan, ob. cit., p. 412.

34 A imagem de S. Francisco de Borja, como as de S. Inácio de Loiola, S. Francisco Xavier e S. Luís Gonzaga, pode ser vista na fachada da Igreja de S. Paulo, em Macau.

35 CHEN Yuan, ob. cit., p. 409.

36 História Completa da Dinastia Qing, Editora da China, 1915, p.163.

37 Mateus Ricci na China, Editora da China, 1983, vol. 2, p. 340; Correspondência de Mateus Ricci, Formosa, Guang Qi, 1986, pp. 210-1, 229.

38 XU Guangqi, Obras Completas, Xangai, Obras Clássicas, pp. 434-5.

39 LAM, Domingos, Materiais Históricos sobre a Diocese de Macau.

40 DU Qin, Sumário sobre a Visita de Inspecção a Cantão e Fuquiém, vol. 2, pp. 19-20.

41 ZHOU Kangxin, ob. cit., p. 114.

42 FANG Hao, ob. cit. pp.254-5.

43 WU Yushan, ob. cit.

44 O Novo Testamento, p. 177.

45 FANG Hao, ob. cit.; WU Yushan, ob. cit.

46 XIE Henai, A China e a Religião Cristã, Xangai, Obras Clássicas, 1991, p. 85.

47 YANG Guangxian, Sem Solução, cópia conservada actualmente na Biblioteca da Universidade de Zhongshan.

48 XU Zongze, Sumário das Traduções Feitas por Jesuítas nas Dinastias Ming e Qing, Editora da China, 1989, pp. 52-4; FANG Hao, ob. cit., vol. 1, pp. 139-40.

49 CONFÚCIO, Analectos, Editora da China, p. 123.

50 HUANG Wentao, "Contra a Heterodoxia", in XIE Henai, ob. cit., p. 238.

51 WU Yushan, ob. cit., p. 1.

52 CONFÚCIO, ob. cit., p. 59.

53 Id., p. 67.

54 CHEN Shou, História dos Três Reinos, p. 28.

55 XIN Qiji, Notas sobre as Datas dos Poemas de Jian Xuan, Xangai, Obras Clássicas, 1987, vol. l, p. 31.

56 Notas sobre o Cânon das Odes, Xangai, Obras Clássicas, 1987, p. 189.

57 Poesia Completa da Dinastia Tang, Xangai, Obras Clássicas, p. 1367.

58 Id., ob. cit., p. 1045.

59 Segunto Alberto Chan, este poema inspirou-se no Novo Testamento.

60 Shao Luoyang diz que aos 30 anos Yushan perdeu a mãe e a mulher.

61 Comentários sobre Mêncio, Editora da China, 1976, pp. 187-8.

62 FANG Hao, ob. cit., vol. 2, p. 254.

63 WU Yushan, ob. cit., p. 80.

64 YUO Tou, Obras Completas de Xi Tang, vol. 11, p. 17.

65 CHEN Yuan, ob. cit., p. 191.

66 WU Yushan, ob. cit., vol. 3, p. 3.

67 Sheng Wenhui diz que Chang tinha estudado o Cristianismo em Macau durante cinco anos. Cf. FANG Hao, ob. cit., p. 242-3.

68 CHEN Yuan, ob. cit., p. 418.

* Professor associado no Departamento de História da Universidade de Zhongshan.

** Nota do Editor: koutou (叩頭). o mesmo que prosternar-se.

*** Nota do Editor: Folangji (佛朗机), Português.

desde a p. 69
até a p.