Rotas e Embarcações

O COLÉGIO UNIVERSITÁRIO DE SÃO PAULO: ACADEMIA DE RELIGIÃO E CULTURA

Edward J. Malatesta *

Estávamos na véspera de Natal de 1582. Uma procissão solene de Jesuítas de Macau dirigia-se lentamente para a colina de São paulo. Trinta padres vestiam alvas e faixas, trinta escolásticos e irmãos leigos usavam sobrepelizes. A cidade inteira parou para ver passar a procissão ou para participar nela. Cinco navios portugueses, atracados no porto, fizeram soar a sua artilharia. À noite haveria fogo de artifício chinês. A pessoa mais alta da procissão carregava o Santo Sacramento. Tinha celebrado a última missa na velha igreja jesuíta e iria celebrar a primeira na nova igreja que ficava no local onde os Jesuítas se tinham recentemente realojado. Essa figura alta era Alexandre Valignano que, aos 34 anos, em 1573, tinha sido nomeado Visitador das missões jesuítas desde o cabo da Boa Esperança até ao Japão, exceptuando as Filipinas.

A altura física de Valignano poderá ser vista como um símbolo da sua visão espiritual e da sua força de vontade. Em 1573, quando se preparava para a sua viagem à Ásia, manifestou o desejo de partir de Lisboa com quarenta Jesuítas. Todavia, Valignano foi informado de que o seu desejo não poderia ser realizado. Até então, nunca numa mesma frota haviam navegado tantos membros da Ordem. Nunca o Rei de Portugal havia financiado a saída de tantos missionários ao mesmo tempo. No dia 1 de Janeiro de 1574, Valignano foi recebido pelo Rei D. Sebastião. No espaço de quase três meses, no dia 21 de Março, Valignano deixava Lisboa com 40 Jesuítas.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou São Paulo. Xie Ronghan: fotografia,1991.
Santo Inácio de Loiola. Trabalho português de influência namban, século XVII. Madeira policromada e lacada, 100 cm. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Museu de São Roque. Macau: As Ruínas de S. Paulo: Um Monumento para o Futuro, Macau, Instituto Cultural, [1994], p. 20.

Valignano visitou os Jesuítas na Índia, Macau e Japão, organizou a Embaixada dos quatro príncipes japoneses à Europa, visitou Macau pela segunda vez, serviu como Provincial na índia, voltou a Macau, visitou o Japão, e decidiu, após ter consultado os seus irmãos no Japão, elevar a um grau universitário o estabelecimento de ensino jesuíta em Macau, que tinha funcionado, até à data, como escola primária e secundária. Os Jesuítas de Goa enviaram ao Padre Geral em Roma quinze argumentos contra o projecto em Macau. Alguns confrades de Valignano em Macau puseram também certas reservas a este projecto. Contudo, no espantoso espaço de um ano, o edifício estava pronto e o Colégio Universitário de São Paulo começou a funcionar no dia 1 de Dezembro de 1594.

Estamos aqui reunidos em Macau, quatrocentos anos mais tarde, para comemorar a fundação desta excepcional instituição e os seus 168 anos de actividade sem paralelo, desde esse dia 1 de Dezembro de 1594 até 1762, altura em que os Jesuítas foram expulsos de Macau e que São Paulo deixou de existir como instituição jesuíta. Durante o seu curto período de existência, São Paulo foi o local onde muitos macaenses, japoneses e chineses entraram para a Ordem. Depois do noviciado, prosseguiam os seus estudos de filosofia, teologia, ciências e artes em conjunto com os seus irmãos europeus, em maior número, que não tinham completado ainda o seu estágio para o exercício do sacerdócio antes de partirem de Lisboa para a Ásia. Era em São Paulo que chineses e japoneses estudavam Latim e Português e que europeus se debruçavam sobre o estudo das línguas e culturas da China e do Japão. Não podemos esquecer que Valignano pretendia que São Paulo fosse um local de estudo tanto para Jesuítas asiáticos como europeus. Duarte de Sande, que viria a ser o primeiro Reitor do Colégio Universitário, apesar de se ter oposto à sua fundação, escreveu ao Padre Superior, a 15 de Novembro de 1593, para falar sobre "os novos edifícios que o Padre Visitador, com o seu grande ânimo (con su grande animo), tinha começado a erigir para o novo colégio a que chamava o Colégio do Japão".

Somente passados sete anos, dado o rápido desenvolvimento da China, Valignano, numa carta ao Padre Geral escrita em Nagasáqui no dia 21 de Outubro de 1600, pediu a Deus que perdoasse a todos aqueles que se tinham oposto à criação do Colégio o qual se mostrava tão necessário para o importante trabalho na China e no Japão.

Os Jesuítas asiáticos, diz ele, podiam ir para Macau e, naquela atmosfera, aprender a conhecer-nos, aprender a nossa língua e costumes, e ainda progredir na aprendizagem e na virtude. Previu também, sabiamente, que São Paulo viria a ser de grande utilidade em épocas de perseguição. Depois de o Japão ter fechado as portas aos missionários, refugiou-se em Macau um grande número de Jesuítas e de cristãos japoneses. Em 1614, chegaram a Macau cerca de 62 Jesuítas e 53 catequistas do Japão dando uma notável dimensão nova à comunidade cristã. Os artesãos japoneses contribuíram para a ornamentação da fachada da Igreja da Madre de Deus; outros ensinaram a língua e a cultura japonesas, e alguns japoneses foram sepultados na própria igreja.

Antes de morrer, a 20 de Janeiro de 1606, sem ter tido a possibilidade de viajar para a China tal como tinha planeado, Valignano viu de facto realizado o seu sonho sobre o Colégio de São Paulo.

A 12 de Novembro de 1603 anunciou ao Padre Geral que tinham chegado treze Jesuítas da Índia, aumentando o número da comunidade para sessenta. Valignano reclama o facto de ter sido através de São Paulo que se abriram as portas para a evangelização da China, onde passaram a existir quatro casas jesuítas em quatro cidades. Depois de ter voltado do Japão para Macau, falou com dezoito Jesuítas que na sua maior parte tinham terminado já os estudos de teologia. Doze iriam mais tarde para o Japão e seis para a China.

Apesar destas boas notícias, havia também más notícias para relatar. O Colégio passava por dificuldades económicas. Nesse ano de 1603 os holandeses tinham capturado, tal como noutros anos, alguns navios portugueses. Tais perdas no mar tinham repercussões desastrosas na economia de Macau e consequentemente no Colégio, o qual dependia da prosperidade que o comércio trazia a Macau. De facto, sempre que Valignano mencionava o Colégio nas suas cartas ao Padre Geral, a outras entidades oficiais ou a pessoas influentes, suplicava ajuda financeira com grande insistência e maior urgência. Enquanto planeava a criação do Colégio, o seu entusiasmo cegou-o relativamente às dificuldades que iriam surgir, certamente, no assegurar do funcionamento do Colégio ao longo dos anos.

Os membros da comunidade jesuíta de São Paulo oscilavam normalmente entre os quarenta e os cem. Não nos deveríamos surpreender pelo facto de a comunidade não ser maior. A primeira fase da missão jesuíta na China, que se iniciou com Mateus Ricci e com Miguel Ruggieri em 1583, e que durou até 1775, não tinha mais do que cerca de 100 pessoas no pico do seu desenvolvimento em 1700.

Durante a segunda fase da Missão, que começou em 1842, o número de Jesuítas na China ultrapassou os 800. Poder-se-ia inclusivamente afirmar que o número reduzido de homens da primeira fase da evangelização não ficou aquém no desempenho desta tarefa relativamente aos seus confrades (em maior número) numa época posterior, isto tanto no campo da evangelização como no campo do intercâmbio cultural.

O nosso Simpósio tem dois objectivos. Em primeiro lugar, através do próprio Simpósio e também através do volume que será publicado com os resultados da investigação concretizada pelas distintas comunicações e comentários, os organizadores pretendem chamar a atenção para o Colégio de São Paulo, o qual tem sido largamente ignorado até à data, excepto em dois ensaios. Um melhor conhecimento de São Paulo significa um melhor conhecimento de uma das fontes de inspiração da actividade cultural e missionária levada a cabo pelos seus bacharéis na China, no Japão e noutros lugares.

O programa que nos foi permitido organizar irá examinar a passagem do Colégio de São Paulo ao nível universitário, as objecções que surgiram ao seu desenvolvimento, as respostas de Valignano às mesmas objecções e as razões para se ter prosseguido com o projecto ─ vindo tudo de fontes que, preciosamente, não foram pesquisadas inteiramente. Iremos ouvir falar da actividade editorial do Colégio que sé situa no mais geral contexto das edições jesuítas no Sul da China.

Será analisada a autoria da importante obra De Missione Legatorum, que relata, em diálogo, a viagem de quatro embaixadores japoneses à Europa. Outro trabalho muito original ir-nos-á falar dos serviços prestados à cidade de Macau pela comunidade jesuíta do Colégio no âmbito da ajuda aos esfomeados e moribundos. Será dada especial atenção a Wu Yushan (Wu Li), o famoso jesuíta chinês, pintor e poeta, que estudou em São Paulo. Ouviremos falar da relação de São Paulo com a Igreja do Japão e da Coreia. Outras comunicações tratarão dos temas seguintes: O Colégio de São Paulo como sendo a primeira universidade ocidental na Ásia e ainda do pensamento europeu relativamente à China tal como foi evidenciado em duas influentes obras portuguesas de Gaspar da Cruz e González de Mendoza.

Fachada da Igreja da Madtre de Deus ou de São Paulo, pormenor: porta central. Xie Ronghan: fotografia, 1991.

E na última sessão do Simpósio, destinada às conclusões, ir-se-á falar das reflexões do Provincial jesuíta da Província Chinesa relativamente ao significado de São Paulo para nós, hoje em dia. Serão feitas duas apresentações especiais só sobre a Igreja da Madre de Deus e sobre as ruínas que restam desse monumento arquitectónico único. Essas apresentações serão seguidas, no mesmo dia, por uma visita guiada às ruínas e por uma visita a uma exposição de arte sacra chinesa. Os participantes terão também a oportunidade de, enquadrada no Simpósio, fazerem uma visita a notáveis exposições sobre Macau e São Paulo, sobre os Descobrimentos Portugueses e Cartografia e ainda sobre os Jesuítas na Ásia e o Observatório de Pequim. E como se isto não bastasse, foi-nos oferecida uma viagem à ilha de Sanchoão, o lugar sagrado (Shengdi, tal como os habitantes locais pronunciam hoje em dia), onde a morte de São Francisco Xavier é relembrada como o símbolo do desejo de ver realizado, um dia, apesar de todos os obstáculos, desilusões e falhas, o encontro entre a cultura chinesa e a fé cristã.

Em segundo lugar gostaríamos que o Simpósio fosse uma ocasião para estimular e organizar investigação posterior sobre a história de São Paulo e sobre Macau enquanto centro de intercâmbio cultural e base para a evangelização no Sueste Asiático. Assente no trabalho pioneiro de Monsenhor Manuel Teixeira e Padre Benjamin Videira Pires, José Maria Braga e Charles Ralph Boxer, a comunidade internacional de estudiosos e investigadores poderia explorar, de uma forma mais aprofundada, as actividades de São Paulo e a sua influência a longo prazo. Existem ainda muitas fontes ocidentais que não foram examinadas, especialmente nos arquivos de Lisboa, Coimbra, Madrid e Roma. É necessário, também, descobrir as fontes chinesas e examiná-las para se conhecer a atitude e as acções das autoridades chinesas em Macau, Cantão e outros lugares relativamente a São Paulo. Deveriam ainda ser estudadas as actividades das várias ordens religiosas além dos Jesuítas, como por exemplo as dos Ermitas de Santo Agostinho que chegaram a Macau em 1586 e dos Dominicanos que chegaram em 1588.

Aquilo que aprendi através da leitura das comunicações e dos comentários que irão ouvir, levou-me, e, eventualmente, levar-vos-á também, a pôr outras questões, tais como por exemplo: como é que se ensinavam as línguas, tanto europeias como asiáticas, no Colégio de São Paulo? Quais eram as fontes e quais os conteúdos dos cursos em estudos culturais, em ciências, em filosofia e em teologia? Quais os volumes que existiam na biblioteca de 4200 livros mencionada pelo irmão João Álvares?

Vemos mencionadas nos arquivos apresentações teatrais, elaboradas procissões, celebrações litúrgicas, catecismos e orações. O que é que poderemos saber sobre isto em pormenor? Que tipo de música é que eles estudavam, ensinavam e usavam nas cerimónias? O que é que poderemos mais saber das actividades artísticas do Colégio de São Paulo, especialmente no âmbito da arquitectura e da pintura?

Existe uma vasta colecção de catálogos com o registo dos Jesuítas que residiram em São Paulo em determinados anos, catálogos esses que também reportam as actividades em que eles se ocupavam. Um estudo cuidado destes catálogos permitir-nos-ia conhecer a composição da comunidade em vários momentos. Quem eram os professores e os estudantes, os administradores e o pessoal? Quem terá vindo para Macau como exilado em tempos de perseguição? Quem eram os missionários aposentados que passavam os seus últimos anos em Macau, depois de tantas experiências na China, Japão e outros lugares? Como é que os seminários de Santo Inácio, fundado para os japoneses em 1623 como oferta de Francisco Pacheco, e o de São José, fundado em 1732 para os chineses, treinavam os seus estudantes para o futuro exercício do sacerdócio?

Finalmente, coloco algumas questões que se me afiguraram particularmente importantes após ter visitado as impressionantes escavações das ruínas da Igreja da Madre de Deus: se destas escavações se obtiveram resultados tão valorosos, o que não se poderia obter de escavações no local do Colégio Universitário cuja abertura estamos a comemorar, partes do qual são ainda claramente visíveis para quem quer que examine o local com alguma atenção? O que não seria poder ter o novo museu da cidade de Macau em conjunto com elementos obtidos das escavações da igreja, escavações da Universidade, assim como um forte totalmente restaurado e preservado? Poderá existir melhor símbolo da harmoniosa e frutífera associação da religião, cultura e governo, a qual tem constituído uma especificidade de Macau e do legado permanente da presença portuguesa aqui? E quais seriam os bons efeitos na compreensão e cooperação mútuas entre povos se, a par de tal museu e de tal local, existisse um centro de investigação de história e arqueologia? Será que isto garantiria, de uma forma única, a permanência de Macau como um centro especial de intercâmbio cultural?

No que se refere à pedagogia jesuíta, seria interessante comparar São Paulo em Macau com São Paulo em Goa, com o Colégio Romano e com a Universidade de Coimbra onde muitos, se não a maioria dos estudantes de São Paulo, estudaram durante algum tempo antes de partirem da Europa para Macau. Precisamos de perceber melhor os esforços e as realizações dos bacharéis de São Paulo no seu trabalho missionário, que continuou, em muitos casos, por mais dez, vinte, trinta ou mais anos.

É necessário proceder a uma maior pesquisa sobre as obras que eles escreveram e realizaram na China, não apenas no que diz respeito a assuntos seculares, mas também no campo da doutrina e devoção cristãs. Poderá ser afirmado que o conteúdo e o estilo da devoção cristã tinha grande influência na forma como os católicos chineses entenderam e praticaram a sua fé ao longo de várias gerações até aos nossos dias.

Nos últimos anos, têm-se realizado Simpósios e tem saído um número relativamente significativo de publicações sobre Mateus Ricci, Martinho Martini, Filipe Couplet, Adão Schall e Ferdinando Verbiest. E, no mês de Setembro passado, realizou-se um Simpósio em Bréscia, a terra natal do Jesuíta italiano Júlio Aleni, sobre este mesmo missionário estudioso a quem chamaram o segundo Ricci.

Igreja de São Paulo, Macau. William Heine. Litogravura, 22,5 x 15 cm, c, 1857. Os Cursos da Memória, Macau, Leal Senado, Serviços Recreativos e Culturais, 1995, p. [35]

Poderíamos, inclusivamente, organizar Simpósios sobre figuras como Alexandre Valignano e Tomás Pereira, sobre os Jesuítas matemáticos e astrónomos portugueses que foram presidentes do Tribunal de Astronomia, tal como Félix da Rocha, José de Espinha (1781-1788?), André Rodrigues (?-1796?), José Bernardo de Almeida (1779?-1805) e aqueles que lhes sucederam, desde o Bispo franciscano português Alexandre de Gouveia até ao último português vicentino a dirigir o Tribunal, o Bispo Caetano Pires Pereira.

Poderiam ainda ser conduzidas outras pesquisas e organizadas outras conferências sobre os Jesuítas portugueses que foram Superiores e/ou Vice-Provinciais e Provinciais das missões da China e do Japão.

Deveria haver uma conferência internacional que abordasse os êxitos e limitações do século cristão no Japão. Depois de muitos missionários e catequistas terem sido forçados a abandonar o Japão, foram conduzidas novas missões a partir de Macau: em 1615 na Cochinchina e, quase ao mesmo tempo, no Camboja; na Tailândia em 1626; em Tonquim em 1627; na ilha de Ainão em 1633; no Laus em 1642; em Macáçar em 1646; em Cantão em 1659 e na província de Gansu em 1701.

Pelo facto do Vietname, Camboja, Laus e Tailândia desempenharem um papel mais proeminente a nível internacional, a par de Singapura, Malásia, Formosa, Indonésia e Filipinas, há muito para saber sobre a evangelização e sobre o intercâmbio cultural em todos estes países.

O estabelecimento dos Jesuítas em Macau, assim como a sua presença aqui, desde os humildes princípios até aos gloriosos, apesar de difíceis, anos do Colégio Universitário de São Paulo, levam-nos a admirar e a estar gratos a esse distinto espírito de empreendimento que caracterizou a expansão portuguesa nos séculos XV e XVI. Não é difícil observar esse mesmo espírito empreendedor, aqui em Macau, neste particular momento histórico de virar de página. É, para nós que vimos de outras partes do mundo, um privilégio podermos mergulhar neste círculo de colaboradores nas áreas da investigação, publicação, e de outras formas de comunicar valores culturais e de intercâmbio cultural. Fica aqui a esperança de que o espírito de colaboração cresça e nos guie a outras felizes realizações.

No curso das nossas reflexões sobre São Paulo, não estará desenquadrado colocar a seguinte questão: qual terá sido a motivação que animou e sustentou os Jesuítas a levar a cabo aquilo que Joseph Needham chamou "um empreendimento sem paralelo na história do contacto entre civilizações"? É difícil responder a questões sobre as motivações de outras pessoas quando já é suficientemente difícil percebermos as nossas próprias motivações. Mas os historiadores têm o direito e o dever de colocar a questão, apesar de raramente o fazerem: porque é que os Jesuítas se embrenharam neste empreendimento? Ou pondo ainda o problema de uma forma mais dramática: porque é que embarcaram numa viagem que sabiam perigosa e insegura, uma viagem durante a qual morria, por vezes, um terço ou mais dos tripulantes? E se não pereciam por naufrágio, doença ou ataques hostis e sobreviviam à viagem, porque é que se embrenhavam tão seriamente e de uma forma tão competente no estudo das línguas, culturas e costumes da Ásia, onde frequentemente permaneciam durante o resto das suas vidas que poderia ser vinte, trinta, quarenta ou mesmo mais anos?

Não é difícil encontrar uma resposta precisa e objectiva para estas questões se estivermos familiarizados com o espírito da Companhia de Jesus e com os documentos que dão expressão privilegiada a este espírito, nomeadamente, os documentos básicos da Companhia, isto é, a Fórmula do Instituto, Constituições e os Exercícios Espirituais, cuja autoria é de Inácio de Loiola, o fundador dos Jesuítas. A Fórmula do Instituto, que foi o primeiro documento aprovado pelo Papa na fundação da Ordem, estabelece claramente que a Companhia foi "essencialmente fundada com este objectivo: lutar especialmente pela defesa e propagação da fé e pelo progresso das almas na vida e na doutrina cristãs, através das orações públicas, leituras e outras iniciativas em nome da Palavra de Deus, e, posteriormente, através dos Exercícios Espirituais, da educação das crianças e de pessoas não iniciadas no cristianismo e ainda através da consolação espiritual e da lealdade a Deus pela confissão e pela administração de outros sacramentos. Além disso, esta Companhia deveria ainda ser útil na reconciliação dos alienados e na assistência sagrada a todos os que se encontram nas prisões e hospitais, e ainda em outras acções de caridade, de acordo com aquilo que se relacionasse com a glória de Deuse com o bem comum." (Fórmula do Instituto, p. 3).

Através deste texto é fácil perceber que o objectivo primeiro da Companhia de Jesus, em todas as suas acções, é o desenvolvimento espiritual do ser humano. Do ponto de vista dos Jesuítas, não existe nada mais importante, nada é mais exaltado do que a relação directa de uma pessoa com Deus e com o seu próximo. O que quer que ajude a este fim é tido como um exercício. A educação figura na lista dos exemplos dados sem qualquer prioridade óbvia. No entanto, com o decorrer do tempo, a experiência veio a demonstrar que a educação é um dos principais meios para o desenvolvimento espiritual e total do indivíduo e da sociedade.

No âmbito do nosso Simpósio, deveria ser dada especial atenção às palavras iniciais do texto: "A defesa e a propagação da fé". Enquanto os Jesuítas na Europa trabalhavam para preservar e defender a fé no contexto da Contra-Reforma, outros, em terras de missão, procuravam introduzir e propagar o cristianismo onde ainda não era conhecido.

Mais à frente, lê-se no mesmo texto: "Em conjunto com a vulgar ligação dos três votos, somos obrigados por um voto especial a obedecer a tudo o que os presentes e futuros Pontífices Romanos nos ordenarem relativamente ao progresso das almas e à propagação da fé; e a irmos sem quaisquer subterfúgios ou desculpas para qualquer uma das províncias escolhidas por eles ─ seja para o seio dos turcos ou de outros infiéis, inclusivamente para junto daqueles que vivem numa região chamada Índia, ou entre os heréticos, os cismáticos ou outros." (id., p. 4).

Através destas palavras poder-se-á concluir que os Jesuítas deveriam estar preparados para servir em qualquer lugar. Nenhum Jesuíta poderia deixar de ter em mente, na época dos Descobrimentos, que este "qualquer lugar" incluía o Japão, a China e todos os outros locais para onde os Jesuítas eram mandados a partir de Macau.

Ao pronunciarem os votos, e muitos Jesuítas pronunciavam-nos em Macau, os membros da Ordem prometiam viver os votos de acordo com as Constituições da Companhia. A IV parte das Constituições é dedicada ao treino daqueles que eram aceites na Companhia. Esta parte fala extensivamente dos Colégios e Universidades como centros tanto para o treino de Jesuítas como de leigos. São também dadas linhas de orientação para os programas de estudo normais: em primeiro lugar a área das letras / humanísticas das diferentes línguas ou culturas, depois a lógica, a filosofia moral e natural, a metafísica e finalmente a teologia positiva e a escolástica e ainda a Sagrada Escritura. São ainda dadas directrizes para a repetição da matéria estudada e para exercícios, debates e estudo em privado (Constituições, parte IV, cap. 6, n.os 378-385).

As Constituições também salientam a importância primordial da teologia: "Partindo do princípio que o principal objectivo da Companhia e dos seus estudos é ajudar os homens a conhecer e a amar a Deus assim como a alcançar a salvação das sua almas; e considerando que o ramo da teologia é o meio mais adequado para o alcance deste objectivo, assim deverá ser dada especial ênfase à teologia nas universidades da Companhia." (id., cap. 12, n.o446).

Inácio dedicou especial atenção à escolha das matérias que deveriam ser estudadas por todos os membros da Ordem, assim como às matérias que seriam alvo da atenção de apenas alguns ou somente de um membro da comunidade: "O objectivo último da aprendizagem adquirida nesta Companhia é, ao serviço de Deus, ajudar as almas dos seus membros e dos seus próximos e é de acordo com este princípio que serão tomadas as decisões, tanto em geral como nos casos individuais, assim como no que respeita aos ramos que devem ser estudados e à extensão dessa aprendizagem." (id., cap. 5, n.o 351).

Daí situar-se completamente na linha de pensamento dos Jesuítas a preocupação com o estabelecimento, na Ásia, de centros adequados à aprendizagem, onde leigos pudessem ser educados para serem bons membros cristãos da sociedade e onde os Jesuítas pudessem ser treinados com o mesmo objectivo mas também para tarefas específicas tais como a evangelização e o intercâmbio cultural.

A fundação do Colégio de São Paulo foi, por isso, uma aplicação criativa destes princípios nas novas circunstâncias do encontro do cristianismo e da cultura ocidental com as religiões e as culturas da Ásia Oriental. Os propósitos intelectuais aplicados pelos Jesuítas dentro do Japão, China e outros países durante o serviço prestado coadunavam-se com as directrizes a ter em conta nos diferentes ramos da aprendizagem, os quais deveriam servir os homens em geral.

As Constituições da Companhia de Jesus podem ser consideradas como uma incorporação de princípios contidos nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Este livro contém linhas de orientação para a pessoa que está a dirigir outra que pretende submeter-se, durante um determinado período de tempo, a exercícios espirituais, isto é, à prática de diferentes formas de oração com o objectivo de pôr em ordem a própria vida ou de tomar decisões correctas. No início do livro existe um exercício, que se chama "O Primeiro Princípio e Fundação" (Exercícios Espirituais, n.o 23), que se destina a preparar a pessoa para tomar atitudes correctas em todas as situações. Numa linguagem simples, Inácio propõe algumas verdades de vida cristã. Existimos para orar, respeitar e servir a Deus e para partilhar a sua vida eterna. Todas as outras coisas à superfície da Terra foram criadas para nos ajudar a alcançar este objectivo. Por isso devemos tornar-nos livres para nos relacionarmos com as coisas de forma a abraçarmos apenas o que é útil e para evitarmos tudo o que seja prejudicial ao nosso objectivo último. Além disso, deveríamos escolher as coisas que são mais úteis para alcançarmos o nosso fim. Aquele que interiorizou estes princípios terá uma atitude positiva relativamente a tudo o que existe, verá o Bem em todas as coisas, como vindas de Deus com o propósito de nos ajudar a chegar a Ele. Tal atitude, no contexto do encontro de culturas, predispõe-nos a procurar o Bem, a recebê-lo agradecidamente e a usá-lo para o objectivo a que nos propusemos.

O empreendimento jesuíta de intercâmbio entre culturas inspirou-se, certamente, neste "Princípio e Fundação".

O último exercício proposto nos Exercícios Espirituais, e que corresponde ao primeiro, mas de carácter muito mais profundo devido a tudo o que foi entretanto experienciado, intitula-se "Contemplação para a Obtenção do Amor de Deus" (id., n.os 230-237). Aqui, aquele que executa o exercício é convidado a rezar com um sentido de gratidão profunda por todas as graças vindas de Deus durante a sua vida.

Além de ter em conta estas graças ─ que incluem obviamente a Criação do Universo ─ o indivíduo é convidado a reflectir sobre o facto de Deus estar presente em todas estas dádivas, de uma forma activa, criando-as e mantendo-as, guiando-as até ao Bem Eterno de toda a humanidade. A pessoa é ainda convidada a contemplar todas as coisas como um reflexo da perfeição divina.

Mais uma vez, não é difícil perceber que estando imbuído deste hábito mental, com esta forma de olhar o mundo e tendo em conta todas as pessoas e realidades que dele fazem parte, qualquer um poderá ser receptivo ao Bem que pode ser encontrado em todo o lado e desejará, certamente, cooperar com esse Bem e com o Deus omnipresente e omnipotente. Se, na perspectiva de Joseph Needham, o modo jesuíta de relacionamento com as culturas asiáticas não tem paralelo na história do contacto entre civilizações, poderá encontrar-se a justificação para tal nas raízes dos princípios jesuítas que tentei sumariamente descrever.

Mas voltemos a uma das nossas questões iniciais: porque é que os europeus embarcavam nos navios que os traziam à Ásia? Acabámos de demonstrar o porquê das suas atitudes quando aqui chegavam. Contudo, ainda não justificámos totalmente a razão da sua vinda para a Ásia.

A resposta para esta questão fundamental ─ muito raramente colocada ─ poderá mais uma vez ser encontrada no livro dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio. Num dos exercícios-chave propostos por Inácio, o indivíduo contempla Cristo chamando todos a ser seus discípulos. Inácio sugere que se podem considerar duas respostas afirmativas a este chamamento. A primeira é a oferta total de um indivíduo a Cristo na tarefa de trazer a salvação ao mundo. Esta é de facto uma resposta generosa; no entanto, Inácio propõe um ideal superior. Aqueles que desejem ser especialmente generosos na resposta ao chamamento de Cristo para o seguirem, não se oferecerão apenas a si próprios totalmente como também o farão de uma forma particular. Nomeadamente, pedirão a Cristo, o senhor eterno de todas as coisas, o rei eterno (e, por isso, de longe superior a todos os reis terrenos que eles possam servir ou com os quais possam colaborar), se for para o servir e para o amar, que os escolha para o imitarem "a suportar todos os males, todos os abusos e toda a pobreza, tanto factuais como espirituais". Dito por outras palavras, Inácio propõe que a resposta de amor supremo ao chamamento de Cristo seja desejar viver como Cristo viveu tanto quanto possível em todas as circunstâncias da vida de cada um, e por nenhuma outra razão que não seja por amor a Cristo.

Nos arquivos dos Jesuítas em Roma, existem literalmente milhares de cartas de Jesuítas de toda a Europa, dos séculos XVl, XVII e XVIII, pedindo para serem enviados para missões estrangeiras. A estas cartas dá-se o nome de Indepetae porque eram escritas por aqueles que queriam ser enviados para as Índias, isto é, para a Ásia ou para as Américas, e estão guardadas juntas numa secção altamente preciosa dos arquivos.

O motivo principal alegado pelos autores destas cartas, independentemente da idade, talento, nacionalidade, língua ou cultura, era sempre o mesmo: para melhor imitar Cristo que, na pobreza e na humildade, propagou as Boas Novas e o Reino de Deus. Para eles esta era a melhor forma de ser um Jesuíta, um companheiro de Jesus. De facto, isto significava que aqueles que se tinham oferecido e que tinham sido aceites, viveriam e provavelmente morreriam longe da sua terra natal, abandonados talvez como São Francisco Xavier na ilha de Sanchoão. Poderia ainda significar morrer no mar, "in undis mortuus", como se pode ler em algumas das antigas listas daqueles que naufragaram. Significaria, certamente, o sacrifício diário de se adaptar, à medida das possibilidades de cada um, a outra língua, cultura, costumes e forma de vida, à luta diária de trazer ao quotidiano presente o conteúdo da mensagem de Cristo, assim como a todos aqueles que nunca tinham ouvido falar dela e que não viviam na cultura cristã.

Estas considerações poderão trazer alguma luz à relação entre cultura e religião, o tema do nosso Simpósio. A experiência humana mostra-nos que no pensamento de algumas pessoas a religião e a cultura podem existir separadas. Para estas existem pessoas que podem ser consideradas cultas mas que, aparentemente, não são aquilo que normalmente se pode considerar pessoas religiosas. Ao mesmo tempo, afirmam que existem pessoas religiosas que, em determinados aspectos, não podem ser consideradas cultas.

FRANCISCO XAVIER, São, Traslado da Carta que Ofereceu Mestre Francisco

[Xavier] da Índia ao Padre lnácio [de Loiola]..., 20 Jan. 1548.

Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Manuscrito.

O Japão Visto pelos Portugueses, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, il. 15.

Consideraremos, neste Simpósio, que a religião e a cultura são inseparáveis nas vidas dos Jesuítas. Para eles a religião e a cultura, agora e antes, interpenetram-se e influenciam-se mutuamente. Para eles a cultura é um conjunto de qualidades da mente e do espírito, dons de um ser humano bem desenvolvido, cultura essa que inclui a religião ou conduz a ela. Hoje em dia, algumas escolas do pensamento cristão, como, por exemplo, a escola de Teilhard de Chardin e Karl Rahner, diriam que a cultura implica necessariamente a religião num sentido cuidadosamente definido. Isto porque por cultura entendemos a apreciação e a assimilação da Verdade, do Bem e do Belo. E por religião entendemos a relação do ser humano com o transcendental. Mas qualquer livre afirmação da ─ ou receptividade em participar em ─ Verdade, do Bem e do Belo é, em termos existenciais, participação na Verdade Transcendente, no Bem e no Belo, a que a tradição judaico-cristã e islâmica chamaram Deus.

Os Jesuítas, comprometidos no caminho das artes e ciências num diálogo intercultural, procuravam e encontravam Deus presente nos referidos campos do saber e em tudo o que é Verdade, Bom e Belo em cada cultura. Através do intercâmbio amigável e sincero com pessoas de outras culturas, descobriam Cristo, a cuja imagem todos os seres humanos se devem moldar. E, se ao tomarem parte em actividades culturais estavam a aprofundar as suas vidas enquanto crentes religiosos, através de actos religiosos específicos, especialmente através da fé, da esperança e do amor ao Criador, Redentor e Santificador da raça humana, eram então levados a mergulhar mais profundamente no mistério do ser humano para aí encontrar o mistério do divino.

Poderemos considerar que a Igreja da Madre de Deus simbolizava a religião e que o Colégio Universitário de São Paulo simbolizava a cultura. Enquanto viveram em Macau, os Jesuítas partilhavam os dois lugares numa série de actividades de tal forma harmonizadas e combinadas nas suas pessoas que, quando estavam longe de Macau, levavam no coração a Igreja, o Colégio e tudo aquilo que estes dois lugares significavam.

Isto é o que me ocorre dizer relativamente à religião e à cultura e à sua relação com a história do Colégio Universitário de Macau.

No início do nosso Simpósio, gostaria de expressar um agradecimento especial a todas as pessoas de nome individual e associações que tornaram possível a realização deste Simpósio e que providenciaram paralelamente a montagem de várias exposições para esta ocasião. Nunca me foi dado testemunhar, em qualquer outra cidade ou país, tal manifestação de sensibilidade cultural, criatividade artística e dedicação organizadora para produzir o que nos foi facultado em generosa abundância. É, de facto, uma experiência agradável e enriquecedora colaborar com estudiosos, organizadores, técnicos e outros funcionários das diferentes instituições culturais que têm vindo a florescer em Macau.

Poderemos apenas desejar que possam continuar, futuramente, o seu frutífero trabalho e que envolvam ainda mais a colaboração de colegas de diferentes nações. A atmosfera que estamos a viver no nosso Simpósio dá-nos o sabor do que deve ter sido viver, em Macau, a experiência intercultural e a criatividade do Colégio de São Paulo.

Dispendeu-se muito tempo, energia e recursos na preparação deste Simpósio e noutros acontecimentos que nos ajudarão a comemorar o quarto centenário de São Paulo.

É meu sincero desejo, assim como da Comissão Organizadora e da Comissão Executiva, e de todos os nossos amáveis anfitriões em Macau que, depois de tanto esforço, aqui e no estrangeiro, possamos usufruir de um intercâmbio intelectual vivo e produtivo, da companhia uns dos outros e da hospitalidade que tão generosamente nos foi oferecida.

Comunicação apresentada no Simpósio Internacional "Religião e Cultura", comemorativo do IV Centenário da Fundação do Colégio Universitário de São Paulo, realizado pelo Instituto Cultural de Macau, Divisão de Estudos, Investigação e Publicações, entre 28 de Novembro e 1 de Dezembro de 1994, em Macau.

Tradução do original inglês por Ana Paula Cleto; revisão de Pedro Catalão; revisão final de Júlio Nogueira.

* Doutorado pelo Instituto Bíblico Pontifício, Roma, exerce as funções de director no Instituto Ricci, Universidade de São Francisco. Para além de artigos sobre Boym, Couplet, Schall, Valignano, Verbiest e a "Questão dos Ritos", publicou Tianzhu Shiyi, 1985, em edição bilingue chinês-inglês.

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