Rotas e Embarcações

O PADRE DUARTE DE SANDE, S. J., VERDADEIRO AUTOR DO DE MISSIONE LEGATORUM IAPONENSIUM AD ROMANAM CURIAM... DIALOGUS

Américo da Costa Ramalho*

A Torre Sineira do Colégio de São Paulo em Ruínas após o Incêndio de 1835. George Chinnery. Desenho a lápis sobre papel, 26,6 x 19,1cm. Leal Senado, Museu Luís de Camões, Macau. Macau: As Ruíunas de S. Paulo: Um Monumento para o Futuro , Macau, Instituto Cultural, [1994], p.151.

Desde Daniel Bartoli (1608-1685), autor da Storia della Compagnia de Gesú, que se vem afirmando que o livro De Missione Legatorum laponensium ad Romanam Curiam, Rebusque in Europa, ac Toto Itinere Animadversis Dialogus, publicado em Macau em 1590, é da autoria do P.e Alexandre Valignano, Visitador da Companhia de Jesus no Oriente.

Ainda no século passado, num livro publicado em Nápoles em 1851, e intitulado Ambasceria dei Re Giapponesi al Sommo Pontifice Estratta dal Libro I delle Opere sul Giappone del Padre Daniello Bartoli D. C. D. G., Napoli, Stabilimento Tipografico di Andrea Festa (...), 1851, p. 128, se escreve: "Compiutolo, il (o P.e Valignano) commise a trasportare in idioma latino a un dei Patri; e quivi in Macao della Cina il diè alle stampe quest'anno del 1590."

Alexandre Valignano foi uma grande figura da Companhia de Jesus no Oriente, a quem no De Missione Legatorum laponensium ad Romanam Curiam (...) Dialogus se presta repetida e afectuosa homenagem. Não precisa, por isso, de ser beneficiado com a autoria duma obra que não compôs, como tentarei demonstrar.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: estátua em bronze a representar o beato Francisco de Bórgia (nicho da extremidade esquerda, 2. a fileira). Xie Ronghan: fotografia, 1991.

Principiarei pela portada do De Missione Legatorum de que citei acima apenas uma parte. A portada tem um texto longo, como era corrente nos fins do século XVI. O resto é: Ex Ephemeride Ipsorum Legatorum Collectus et in Sermonem Latinum Uersus ab Eduardo de Sande Sacerdote Societatis Iesu, ou seja, "coligido do diário dos próprios legados e passado para a língua latina por Duarte de Sande, sacerdote da Companhia de Jesus".

Neste título ficamos pelo menos a saber quem foi o anónimo padre jesuíta que verteu o livro para latim. No texto italiano atrás citado, ele é apenas "un dei Patri", como se a tarefa de redigir em latim um livro de 436 páginas, pleno de factos históricos e culturais, cuja exactidão era necessário verificar, fosse coisa fácil.

E uma primeira objecção tem aqui lugar. Se o P.e Valignano é o autor, porque não figura o seu nome no título do livro onde se menciona apenas o P.e Duarte de Sande? Note-se que o ablativo de agente da passiva "ab Eduardo de Sande" serve para os dois particípios "collectus" e "uersus" e, portanto, sem forçar a sintaxe latina, o livro foi "coligido" e "traduzido" por Duarte de Sande.

Mas há ainda outras provas, talvez mais convincentes. Na carta que abre o livro, dirigida por Alexandre Valignano "aos alunos dos seminários japoneses", escreve o jesuíta italiano: "Hic ergo feliciter in lucem prodit, cuius res omnes a uestrae patriae legatis ad Romanam curiam missis diligenter sunt notatae, et Eduardo de Sande nostrae Societatis sacerdoti in Sinico regno nunc degenti, olim studiis humanitatis dedito, semper uestrarum rerum studioso summopere a me commendatae: ut eas ex ipsorum legatorum scriptis collectas et dispositas Latinis litteris traderet, et causa perspicuitatis dialogum inter legatos, socios et consanguineos habitum ad uestram utilitatem componeret."1

Este texto merece alguns comentários. Em primeiro lugar, "agora vive no reino da China": isto quer dizer simplesmente que o P.e Sande vivia em Macau. Na portada do livro o nome da Cidade do Santo Nome de Deus é dado em latim como "in Macaensi portu Sinici regni" ("no porto de Macau do reino da China").

Por outro lado, o P.e Valignano está-se dirigindo aos alunos japoneses e os próprios Colóquios, que formam o Dialogus, passam-se imaginariamente em casa de Miguel, em Omura, no Japão. Mas devem ter sido compostos em Macau, em 1588-1589.

Todavia, a observação mais importante a este texto é a que se refere às palavras de Valignano sobre a elaboração do livro. Foi ele quem teve a iniciativa do livro, mas confiou a sua redacção e execução ao P.e Sande, encarregado de "coligir", "ordenar" e "passar para latim", sob a forma de diálogo, as informações dos embaixadores japoneses. E sugere-se que a composição em diálogo foi também uma ideia do P.e Valignano.

Em seguida a esta primeira carta, vem outra, agora do P.e Sande ao P.e Cláudio Acquaviva, Geral da Companhia de Jesus, portanto, superior tanto do P.e Valignano como do P.e Sande.

O espírito da carta do P.e Sande é claramente o do autor que fala do seu livro, embora proceda em tom modesto e nada oculte da intervenção de Valignano.

Começa por explicar as razões da Embaixada e do livro que são as mesmas: informar mutuamente os japoneses das coisas da Europa, e os europeus: acerca das coisas japonesas. Pede, entretanto, desculpa aos leitores europeus se a primeira intenção é mais patente no livro do que a segunda, e se os europeus são forçados a ler muita coisa sobre o seu próprio continente, que já conhecem. Desculpa-se, todavia, com o objectivo mais importante: o de informar os japoneses e de esclarecer dúvidas e reservas entre eles existentes sobre a Europa.

Menciona a recomendação feita expressamente aos embaixadores, de anotarem miudamente quanto se lhes antolhasse de interessante: "(Nostri patres)... eosque diligenter admonuerint ut nihil in hac longa peregrinatione non animaduersum, notatum, litterisque traditum praetermitterent. Illi (quae est eorum egregia natura et erga Patres oboedientia) quaecunque illustria et memoria digna uisa sunt, strenue in aduersaria sua retulerunt, nullamque admirationis speciem, iuxta Iaponensium morem, prae se ferentes, illa tamen omnia tamquam admiratione dignissima sensibus atque animis penitus infixerunt."2

Diga-se de passagem que Miguel, que é o principal expositor e que transmite, sem dúvida, as opiniões do P.e Sande, a ponto de quase se identificar com ele, contrariamente a esta observação da carta ao P.e Acquaviva, exprime com frequência entusiasticamente a sua admiração pela Europa e pelos europeus.

Continuando a comentar a epístola de Sande a Acquaviva, escreve o jesuíta português: "Ne tamen facile hic eorum labor deperiret, et post paucos annos, tum huius itineris, tum etiam tam multarum rerum animaduersionis memoria deleretur, sed potius rebus his cum tota Iaponensi natione communicatis, puerisque ab ineunte aetate earum notitia quasi primo colore tinctis et imbutis, utilis haec recordatio conseruaretur, statuit reuerendus Pater Alexander Valignanus, totius Orientalis regionis Visitator, ut haec omnia a nobilibus his adolescentibus cursim mandata litteris, maturius disposita latino sermone conscriberentur, ut Iaponenses latinae linguae studiosi librum de hac legatione compositum assidue uolutarent; qui postea in Iaponicum idioma uersus a Latinae linguae imperitis studiose legeretur: et uterque tam Latinus quam Iaponicus typis excusus rerum tam necessariarum atque utilium esset ueluti quidam perpetuus thesaurus, iucundumque promptuarium."3

Este trecho presta-se a variados comentários, de que farei apenas aqueles que concernem directamente o tema da minha comunicação.

A intervenção de Valignano em ordenar a redacção e impressão do livro é bem assinalada. E até a urgência na efectivação da obra: "maturius" ("muito depressa").

E realmente o livro, que não foi composto apenas sobre as notas dos embaixadores japoneses, mas sobre outra bibliografia impressa também, revela sinais de composição apressada, na paginação e na monotonia do vocabulário e da sintaxe.

Não quer isto dizer que o P.e Sande seja um fraco latinista. Pelo contrário, tenciono mostrar, num estudo especial, que se trata dum grande prosador latino. E compor uma obra destas em poucos meses é uma proeza de que poucos seriam capazes!

Não esqueçamos que a Embaixada chegou a Macau, de regresso da Europa, em Agosto de 1588 (cf. p. 378 do De Missione), e que em 1 de Setembro do ano seguinte já estava escrito, como se vê pelas licenças.

Continuando a citar a carta de Sande a Acquaviva, na parte que nos interessa: "Cum ergo opus hoc conficiendum susciperem, placuit eidem patri, ut non continuatae historiae, quae fastidium aliquod gignere posset, sed dialogi formam obtineret: loquentesque introducerentur Mancius et Michael legati, Martinus et Iulianus socii, praeterea Leo et Linus: Leo quidem Arimensis regis frater, Linus uero Omurensis principis germanus et uterque Michaelis legati frater patruelis: tres namque fratres Leonem, Linum et Michaelem genuerunt. Ex his ergo Leo et Linus tamquam e laponia non egressi, et nostrarum rerum adhuc ignari, caeteros tam multarum rerum cognitionem assecutos, de multis interrogant; illi uero copiose satisfaciunt."4

Explicada a razão por que foi preferido o diálogo ao texto corrente, convém lembrar que o diálogo, como forma de exposição, estava então na moda. Para não falar dos diálogos do Renascimento italiano, anteriores aos da restante Europa, e dos Colóquios de Erasmo, os mais famosos do século XVl, recordemos em Portugal, como autores: João Rodrigues de Sá de Meneses, André de Resende, Luísa Sigeia, D. Jerónimo Osório, todos em latim; João de Barros, Garcia de Orta, Fr. Heitor Pinto, Fr. Amador Arrais, etc., em português.

O final da carta confirma a posição de autor do livro, assumida pelo P.e Duarte de Sande em toda ela: "Hunc igitur laborem, qualis qualis ille sit, laponensibus quidem utilem, Europeis non omnino ingratum, Deo imprimis omnium contentionum mearum scopo, deinde Paternitati tuae, et patri Visitatori, quos ego Dei loco recognosco, libens offero, et committo: speroque fore, ut aliquando eius me non poeniteat, laponensi agro huius libri doctrina, quasi quadam opportuna irrigatione iucundiores fructus in dies Christianae reipublicae cum summa iucunditate omnium ferente."5.

Deixei para o fim desta parte, uma prova que poderia igualmente ter usado no princípio: a das licenças eclesiásticas.

O livro, como é próprio da praxis da Igreja, foi mandado ao bispo da China, D. Leonardo de Sá, para aprovação. O bispo mandou-o, por sua vez, a Valignano (prova de que não era considerado o autor) para que este e outros, a designar por ele, dessem o competente parecer.

Eis o parecer de Valignano: "Ego Alexander Valignanus Visitator Societatis Iesu in prouincia Orientali cum patribus Iacobo Antunez et Nicolao de Auila eiusdem Societatis, ex commissione reuerendissimi D. Leonardi de Saa Episcopi Sinensis & C. perlegi et examinaui librum de missione legatorum Iaponensium rebusque in Europa ac toto itinere animaduersis, compositum a patre Eduardo de Sande nostrae item Societatis, nihilque inuenimus quod Christianae religioni bonisque moribus aduersaretur: immo ualde utilem ac necessarium Iaponensi ecclesiae iudicauimus: et ad id testificandum subscripsimus. Quarto nonas Octobris Anni 1589. Alexander Valignanus. Iacobus Antunez. Nicolaus de Auila."

O parecer assinado pelo italiano Alexandre Valignano, o português Diogo Antunes e o espanhol Nicolau de Ávila é assim concebido: "Eu, Alexandre Valignano, visitador da Companhia de Jesus na província do Oriente, com os padres Diogo Antunes e Nicolau de Ávila da mesma Companhia, por comissão do reverendíssimo D. Leonardo de Sá, bispo da China, etc., li e examinei o livro 'Sobre a Missão dos Embaixadores Japoneses e as Coisas Observadas na Europa e em Todo o Percurso', composto pelo padre Duarte de Sande, igualmente da nossa Companhia, e nada nele encontrámos que fosse contrário à religião e aos bons costumes. Pelo contrário, julgámo-lo muito útil e necessário à Igreja japonesa, e para o comprovar subscrevemos. A 4 de Outubro de 1589, Alexandre Valignano, Diogo Antunes, Nicolau de Ávila."

O parecer, assinado por Valignano, diz expressamente que o livro é da autoria de Duarte de Sande. Com estas três provas, a saber, a carta de Valignano e a de Duarte de Sande, e o parecer subscrito pelo próprio Valignano, creio que ficou documentalmente demonstrado que o autor do De Missione Legatorum laponensium ad Romanam Curiam (...) Dialogus é o P.e Duarte de Sande.

Mas há um género de prova, mais subtil mas não menos comprovativa, a que chamarei a do "lusitanismo" do autor do livro.

Com efeito, o autor do De Missione Legatorum Iaponensium fala repetidamente de Portugal, e sempre em tom encomiástico, mesmo quando isso não é necessário. Esta atitude dificilmente se pode esperar num estrangeiro.

Falar dos portugueses era natural, a propósito dos lugares onde os viajantes tocaram, seguindo a rota portuguesa das Índias, em barcos portugueses, com companheiros portugueses e ancorando em lugares então dominados pelos portugueses: Macau, Malaca, Goa, Cochim, Moçambique, Santa Helena, etc. Também natural era falar dos portugueses, durante o percurso do território português europeu, com passagem ou estadia em localidades como Vila Viçosa, Évora, Lisboa, Santarém e Coimbra.

Mas já é menos natural, e de todo inesperado, quando Portugal e personagens e factos da sua história são mencionados, durante a viagem através de Espanha e de Itália. Ou quando, ao tratar de aspectos gerais da Europa, os exemplos são tirados da história de Portugal. Estes aspectos do De Missione Legatorum Iaponensium dariam, só por si, uma nova comunicação.

E não basta para fazer o arrolamento dos passos significativos, utilizar o índice final, à primeira vista muito completo. A verdade é que muitos destes factos nele não figuram. É como se alguém, tendo reparado no excessivo "lusitanismo" do livro, tivesse aconselhado a sua redução ou supressão: Portugal, não esqueçamos, estava desde 1580 sob o domínio de Filipe II de Espanha. Ora Filipe é, com os papas Gregório XIII e Sisto V, a principal entidade histórica, social e política, referida no livro.

E não convinha ferir a sua sensibilidade. Bastará referir a este propósito que D. Sebastião, mencionado pelo menos meia dúzia de vezes no livro, sempre com simpatia, e uma vez até como herói e mártir do cristianismo, não figura no índice.

Darei apenas dois exemplos da história de Portugal. O primeiro deles já foi usado, a outro propósito, numa conferência que li em Fermo, na Itália, cidade de que o Papa Sisto V foi bispo, e publiquei na Miscelânia em Honra do Doutor A. de Amorim Girão, "Biblos", Coimbra, (65) 1989, pp. 1-12. A conferência intitula-se "Sisto V e l'Ambasciata Giapponese".

Trata-se das alfaias da igreja pontifícia de S. Pedro em Roma, de que o P.e Sande se ocupa no Colóquio XXIII, p. 245:

"Quid ego uobis hoc loco agam de sacra Summi Pontificis supellectile, de uasorum aureorum multitudine, de uestium pretiosissimarum uarietate atque aestimatione, de infinito gemmarum atque unionum numero, quo omnia haec opera sunt referta? Satis sit dicere, haec nobis intuentibus stupenda uisa fuisse: cuius rei non leue erit argumentum, quod una tantum uestis sacra olim summo pontifici Leoni decimo ab Emmanuele Lusitanorum rege dono data, centum aureorum millibus steterit, trecentis uero millibus. tiara quaedam, quae capitis ornamentum est, triplicem coronam mutuo connexam continens."6

Isto diz Miguel ou o P.e Sande. Mas num outro passo, onde também se não trata expressamente de Portugal, no Colóquio XIV, intitulado "Sobre os Combates Navais que se Travam na Europa", discute-se o problema da sucessão dos soberanos. No Japão daquele tempo, os pais deixavam em plena pujança da vida o poder aos filhos jovens e inexperientes, em boa parte, porque receavam ser por eles depostos ou até assassinados.

E Leão, um dos dois interlocutores que não estiveram na Europa, quer saber se nos reinos europeus acontece o mesmo.

Fachada da Igreja da Madre de Deus ou de São Paulo, pormenor: nicho central inferior, 3. a fileira, que contém a estátua em bronze a representar Nossa Senhora da Assunção, ladeado por anjos e, num plano mais afastado, pelo cipreste e pela fonte da vida. Xie Ronghan: fotografia, 1991.

Miguel, o narrador, depois de negar tal possibilidade, responde com um exemplo da história de Portugal:

"Michael ─ Nullum profecto istius mali est periculum, rebus Europae diligenter cognitis. Nam imprimis, ut iam superius diximus, et aliquoties repetendum est, tantus est filiorum in parentes amor, tantaque uicissim parentum erga filios benignitas. ut nulla tanti criminis suspicio in Europeos mores cadat, quod uel ex eo exemplo perspicere potestis Lusitanorum monumentis tradito. Cum enim Alfonsus Lusitaniae rex, huius nomints quintus, iam fere quinquagesimum annum agens, belli grauissimi, quod susceperat, administrandique regni taedio afficeretur, et iter Hierosolymam ad sanctum Christi sepulchrum institueret, filio Ioanni, iuueni prudentia, aliisque naturae bonis cumulato gubemaculum regni reliquit, statuens in ea regione, quae Christi in terris olim agentis est insignita uestigiis, reliquum uitae spatium pie sancteque traducere: sed cum omniurn fere Europeorum regum, ipsiusque summi pontificis precibus ab incepto itinere reuocaretur, officiosa quaedam et pietate plenissima inter parentem fíliumque orta est contentio: dum parens priuatus in regno uiuere sub filii administratione cupit; filius contra regium munus exercere, patre uiuente, penitus recusat: filii tamen preces adeo uehementes fuerunt, ut patrem ad locum regium rursus obtinendum, etiam tergiuersantem compulerint. Vnde colligere potestis, quam aliena sit Europeorum mens a crimine proditionis." 7

As razões da viagem de D. Afonso V a França, a sua desilusão com Luís XI, e o seu posterior desejo de ir a Jerusalém, constituem um problema mais complexo do que nesta exposição sintética do P.e Sande. Mas o exemplo da história de Portugal aí está, num contexto onde ele não era indispensável. Será curioso notar que não há qualquer alusão, no índice final, a este acontecimento, nem sob D. Afonso V, que lá não figura, nem sob D. João II, que é apenas mencionado uma vez, a outro propósito, embora no livro seja citado, pelo menos, três vezes.

No caso das relações com seu pai, poderá supor-se que Filipe II não apreciaria a sua menção no índice? Mas no caso de Filipe, foram as relações com o filho, com algo de estilo japonês, que não correram bem.

Os exemplos da história de Portugal, ou de portugueses mencionados (e omissos no índice), podiam multiplicar-se, mas não quero alongar esta comunicação, para além dos limites que me foram marcados.

Para terminar, darei mais um exemplo que dificilmente teria ocorrido ao P.e Alexandre Valignano, se ele fosse o autor do De Missione Legatorum Iaponensium ad Romanam Curiam... Dialogus.

No Colóquio XXXI, quase todo ele dedicado à cidade de Coimbra, cujo título começa "De Urbe Conimbrica, & Celebri in ea Societatis Collegio" ("Da Cidade de Coimbra e do Célebre Colégio da Companhia aí Existente") há aquela que é certamente uma das primeiras manifestações da famosa "saudade" coimbrã. É Lino, um dos que ficaram no Japão, que abre o Colóquio: "Vrbis Conimbricae nomen, cuius in calce superioris colloquii mentionem, Michael, fecisti, crebris usurpatum sermonibus, a patribus Societatis, scimus, Collegiique Conimbricensis, in quo multi ex illis educati sunt, iucundum saepe desiderium memoriamque renouari. Quo fit, ut tam de urbe, quam de collegio illo celebri nos magnopere edoceri cupiamus.

Michael ─ Faciam, Line, libentissime, id enim et patribus apud nos morantibus et mirae charitati, qua Conimbricenses patres nos complexi sunt, deberi mihi persuadeo."8

Isto não quer dizer que Valignano, se fosse ele o autor, não pudesse experimentar o sentimento da saudade, que é universal, mas não certamente a saudade de Coimbra, onde nunca estudou.

Já depois de escrito o presente estudo, pude ver o artigo em que o P.e Henri Bernard, S. J., defende a autoria de Valignano. Intitula-se Valignani ou Valignano, l'Auteur Véritable du Récit de la Première Ambassade Japonaise en Europe (1582-1590) e foi publicado em "Monumenta Nipponica", Tóquio, (1) 1938, pp. 86-93.

Neste trabalho do P.e Bernard, toda a prova de que Valignano foi o autor do De Missione Legatorum Iaponensium ad Romanam Curiam assenta em duas cartas do próprio Valignano ao Geral da Companhia, uma datada de Macau, 23 de Novembro de 1588: "El libro del viage destos cavalleros japones que escrevi el año pasado a V. P. que haria y embiaria este año, aunque lo comencé también no Io pude acabar. Mas con ayudo de Dios agora lo acabaré aqui en la China, y creo que será obra mui provechosa para Japon, y el padre Duarte de Sande que aqui está lo hará en latin, porque es mui buen retorico, y después de hecho se embiará a V. P."

A outra carta, datada de 27 de Setembro de 1589, começa: "El año pasado escrevi a V. P. que yvamos aqui haziendo un dialogo de la mission de los Señores iapones, y que despues de hecho le trasladeria en latin el padre Duarte, ya se hecho todo por la gracia de N. Señor y creo que será cosa provechosa para Japon..."

Note-se que na primeira carta Valignano não diz: "El libro... que escrivi el año pasado" mas "El libro... que escrivi el año pasado a V. P. que haria y embiaria este año..." Simples promessa!

E na segunda carta a sua autoria é ainda mais vaga: "El año pasado escrivi a V. P. que yvamos aqui haziendo un dialogo de la mission de los Señores iapones..." Porque não diz "que yo yva aqui haziendo..."? Por cortesia? Não creio.

Mas acredito que Valignano se interessou profundamente pelo livro: terá sugerido temas a tratar, terá participado na selecção das informações. Todos lhe atribuem a sugestão de escrever a obra em diálogo.

E foi Valignano quem enviou ao P.e Pedro da Fonseca as 92 páginas que se encontram em Coimbra, decerto para receber sugestões. Dos dois exemplares da Biblioteca Nacional de Lisboa, um deles traz a dedicatória de Sande ao P.e António de Vasconcelos, no Colégio de São Roque, em Lisboa.

As páginas de Coimbra, datadas de 1589, são claramente uma primeira tentativa, quando comparadas com os três exemplares que estou utilizando na minha tradução.

Pessoalmente, nada tenho contra a autoria do P.e Valignano. Como português, preferia mesmo que fosse ele o autor, para aceitar como imparciais as suas declarações sobre a nobreza moral e a superioridade de carácter dos portugueses em páginas como as que podem ler-se no Colóquio IV.

Durante a recente guerra colonial, quando Portugal foi objecto duma campanha de difamação internacional, teria sido consolador para os portugueses ler palavras como estas: "Michael ─ Iure optimo non solum a suis regibus, sed ab exteris etiam Lusitani magni fiunt: omnesque Indiae populi felices se arbitrantur, si in suis finibus Lusitanorum saltem mercatorum conuentum aliquem, uel oppidum habeant: experiuntur enim, se inde magnas percipere utilitates, quod nos etiam ex Lusitanorum ad nos aduentu testari possumus."9

No Colóquio IV, a seguir, afirma-se que aos negócios dos mercadores se juntou da parte dos reis o desejo de difundir a fé cristã e de combater os muçulmanos, inimigos mortais dos cristãos.

E Portugal é elogiado e defendido com tanto entusiasmo, por toda a parte no Dialogus, que parece nele sentir-se pulsar o coração dum português amargurado em tempos de dominação estrangeira.

SANDE, Duarte de, De Missione Legatorum laponensium ad Romanam Curiam.... Macaensi Portu, Societatis lesu, 1590.

Biblioteca Nacional de Lisboa.

O Japão Visto pelos Portugueses, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1993, p. 103.

Por outro lado, voltando ao P.e Alexandre Valignano, penso que uma imagem verosímil da sua personalidade se encontra na carta "aos alunos dos seminários japoneses" que fez imprimir no começo da Christiani Pueri Institutio do P.eJoão Bonifácio, S. J., editada em Macau em 1588, e reproduzida anastaticamente, com um Prefácio, por Manuel Cadafaz de Matos, em 1988, em edição do Instituto Cultural de Macau. Aí não deixa Valignano os seus créditos por mãos alheias, no que diz respeito à publicação do livro: foi ele quem o escolheu, o adaptou, quem obteve da Europa os caracteres tipográficos para o imprimir. Enfim, tudo lhe é devido.

Quem tanto insiste no seu papel pessoal, num livro menos importante do que o De Missione, teria admitido tão complacentemente a autoria do P.e Sande, se não fosse este o autor?

Aproveito esta oportunidade para corrigir alguns lapsos no artigo do P.e Henri Bernard:

Na página 90, "le quatre des nones d'octobre, 12 octobre 1589". É um erro: o dia 12 de Outubro é o quarto dos Idos e não das Nonas.

O texto de 1589, com 92 páginas, está na Biblioteca da Universidade de Coimbra, como traz Armando Cortesão, citado na nota 20, p. 93, e não na Biblioteca da Ajuda, como escreve o P.e Bernard.

No texto do artigo, na página 89, falando das notas manuscritas "(aduersaria) maturius disposita", o Autor interpreta "maturius" como "mûrement". Creio que o advérbio não quer dizer "maduramente", mas "mais depressa", "bastante depressa" (comparativo intensivo).

Finalmente, tentando afastar o P.e Sande da autoria do livro, por omissão do seu nome, o P.e Bernard escreve: "Les 'ambassadeurs' eux-mêmes prirent des notes au sujet de tout ce qui les frappait; suivant l'usage du pays, nous dit-on, ils ne manifestèrent aucun étonnement durant leur voyage, etc." (p. 87).

"Nous dit-on" é uma fórmula ambígua. A expressão exacta seria: escreve o P.e Sande na sua carta ao geral Acquaviva, no começo do livro.

Comunicação apresentada no Simpósio Internacional "Religião e Cultura", comemorativo do IV Centenário da Fundação do Colégio Universitário de S. Paulo, realizado pelo Instituto Cultural de Macau, Divisão de Estudos, Investigação e Publicações, entre 28 de Novembro e 1 de Dezembro de 1994, em Macau.

Revisão de texto por Fernando Lima; revisão final de Júlio Nogueira.

NOTAS

1 Em tradução portuguesa: "Veio agora felizmente à luz este livro, cujos factos foram todos diligentemente anotados pelos embaixadores da vossa pátria, enviados à Cúria Romana, e por mim confiados com o maior empenho ao padre Duarte de Sande, da nossa Companhia, que agora vive na China e outrora se dedicou aos estudos de Humanidades e sempre teve o maior interesse pelas vossas coisas, para que ele, coligindo as informações dos próprios legados, as ordenasse e passasse para latim, compondo-as, para maior clareza, num diálogo entre os embaixadores, companheiros e parentes uns dos outros, que fosse de proveito vosso" (fol. A2).

2 Em português:" (...) e os nossos padres aconselharam-nos persistentemente a que não deixassem passar nada que nesta longa peregrinação tivessem observado, notado e escrito. Eles (dado o seu natural de escol e por obediência aos padres) anotaram infatigavelmente nos seus rascunhos tudo quanto lhes pareceu notável e digno de memória e, não revelando no rosto qualquer admiração, como é costume dos japoneses, todavia guardaram bem fundo nos sentidos e na alma tudo quanto lhes despertou maior admiração."

3 Em versão portuguesa: "Entretanto, para que este trabalho deles se não perdesse, e passados poucos anos se não delisse a memória, quer desta viagem, quer da observação de tantas coisas, mas, pelo contrário, comunicando-as a toda a nação japonesa, esta útil recordação se conservasse no espírito das crianças desde a infância, com o seu primeiro colorido, decidiu o reverendo padre Alexandre Valignano, Visitador de toda esta região oriental, que tudo o que estes jovens adolescentes tinham escrito, a correr, fosse muito em breve ordenado e redigido em língua latina, para que os japoneses, estudiosos do latim, pudessem manusear assiduamente o livro composto sobre a embaixada. Este livro, traduzido posteriormente para japonês, podia ser lido com interesse pelos que não sabiam latim, e os dois livros, quer o latino, quer o japonês, uma vez impressos, seriam como um perpétuo tesouro e um agradável prontuário de coisas tão necessárias e úteis."

4 Em português: "Começando eu, pois, a elaboração desta obra, pareceu bem ao mesmo padre [i. e., a Valignano], que revestisse a forma, não de uma história seguida que poderia causar algum fastio, mas dum diálogo, e que fossem apresentados dialogando Mâncio e Miguel, embaixadores, Martim e Julião, seus companheiros, e ainda Leão e Lino. Leão, irmão do rei de Arima, Lino, irmão do príncipe de Omura, ambos primos direitos do embaixador Miguel. Na verdade, Leão, Lino e Miguel são filhos de três irmãos. Ora, destes, Leão e Lino, que não saíram do Japão e são, portanto, ainda ignorantes das nossas coisas, interrogam os outros que obtiveram o conhecimento de tantas delas. E eles esclarecem-nos abundantemente."

5 Em português: "Portanto, este trabalho, por modesto que seja, útil aos japoneses e não desagradável aos europeus, ofereço-o gostosamente e entrego a Deus, alvo principal de todos os meus esforços, depois à tua Paternidade e ao padre Visitador, os quais eu reconheço no lugar de Deus, e tenho esperança de não vir um dia a acontecer que eu dele me arrependa, quando o campo japonês, graças aos ensinamentos deste livro, por uma como que oportuna irrigação, produzir frutos dia a dia mais agradáveis à República Cristã, com a maior alegria de todos."

6 Em português: "Que vos contarei, neste lugar, das alfaias sagradas do Sumo Pontífice, da multidão dos vasos de ouro, da variedade e preço dos paramentos preciosíssimos, do número infinito de pedras preciosas e de pérolas, de que todas estas obras estão recheadas? Basta que diga que aos nossos olhos elas parecem de causar pasmo. E uma prova disto que digo é que uma só veste sagrada, oferecida ao Papa Leão X por Manuel, felicíssimo rei dos portugueses, custou cem mil cruzados, trezentos mil uma tiara que é um ornamento da cabeça que contém três coroas, entre si ligadas."

7 Em versão portuguesa: "Miguel ─ Não há perigo algum desse mal, sendo bem conhecidas as coisas da Europa. Em primeiro lugar, como já atrás disse, e devo repetir ainda algumas vezes, tanto é o amor dos filhos pelos pais e, inversamente, tanta é a bondade dos pais para com os filhos, que nenhuma suspeita de tão grande crime tem lugar nos costumes europeus, como podeis ver até por este exemplo, transmitido pelos livros dos portugueses. Sofrendo Afonso, rei de Portugal, deste nome o quinto, com cerca de cinquenta anos já, de melancolia, por causa de uma guerra importantíssima em que se envolveu e por causa da administração do reino, resolveu fazer uma peregrinação a Jerusalém, ao Santo Sepulcro de Cristo. Deixou as rédeas do reino a seu filho João, jovem cumulado de prudência e outras qualidades naturais, e decidiu passar piedosa e santamente o tempo restante da vida naquela região famosa pela passagem de Cristo, quando outrora vivia na terra. Mas tendo sido dissuadido da viagem começada, pelas preces de quase todos os reis europeus e do próprio Sumo Pontífice, levantou-se uma disputa oficiosa e cheia de respeito, entre pai e filho. O pai queria viver no reino, como simples particular, sob a administração do filho; este, pelo contrário, recusava absolutamente exercer as funções de rei, enquanto o pai vivesse. E as preces do filho foram tão veementes, que forçaram o pai a receber de novo, embora hesitasse, o trono régio. Daqui podeis coligir como é alheia a mente dos europeus, do crime de traição" (p. 142).

8 Em versão portugesa: "Lino ─ Sabemos que o nome da cidade de Coimbra, a que fizeste referência na conclusão do diálogo anterior, aparece com frequência nas conversas dos padres da Companhia de Jesus e que a saudade gostosa e a memória do Colégio Conimbricense, no qual muitos deles foram educados, se renovam repetidamente. Por estas razões, desejamos com empenho ser informados tanto da cidade, como do seu famoso Colégio.

Miguel ─ Fá-lo-ei de muito boa vontade, porque assim creio satisfazer uma dívida para com os padres que moram connosco e corresponder à bondade com que os padres de Coimbra nos obsequiaram."

9 Em português: "Miguel ─ Com toda a razão, os portugueses são exalçados não só pelos seus reis, mas também pelos estrangeiros, e todos os povos da índia se consideram felizes se nos seus territórios os portugueses têm ao menos uma feitoria (mercatorum conuentum) ou uma fortaleza. É que sabem por experiência que daí tiram vantagens como também nós próprios podemos testemunhar, pela chegada dos portugueses ao Japão" (Colóquio III, subfine).

* Professor catedrático jubilado da Universidade de Coimbra.

desde a p. 43
até a p.