Atrium

EDITORIAL

Luís Sá Cunha

Jubilosamente, com este número, entramos no ano décimo de publicação desta revista, cujo primeiro número foi dado à estampa em Março de 1987.

Talvez o espaço só exista depois das coisas existirem: olhando para trás, sem narcisismos de retrovisor, podemos reconhecer que a RC criou um novo espaço cultural em Macau. E criou-o, transcendendo as próprias condições objectivas em que foi germinando e vigorando. E impôs-se, em constante escalada a pulso. Também a Cultura é uma guerra, e a RC, como projecto em viabilização, começou por ser uma luta, e os astros assim lhe sagraram a nascença e o destino.

Sagrar, é amaldiçoar. De misteriosa alquimia sofrida, resultou o triunfo da sua permanência, e, sem ufanismos, a possibilidade concretizável da sua continuidade pelo futuro. Tínhamos desde o princípio intentado imprimir-lhe vocação de eternidade. Mas entendemos que a RC terá cumprido o desígnio fundacional, mesmo que venha a extinguir-se pelos tempos que se aproximam.

Com perspectiva transpersonalista - sobreposição dos factos, ou seja, do que foi feito, às vicissitudes subjectivas dos homens, - permitimo-nos dizer, ao fim de 10 anos, que valeu a pena. Em jonglerie pessoana: a RC já ficou, e, ficando, ficará.

Reconhecemos que é rara, no panorama das publicações congéneres, uma tão grande longevidade. Colherá, aqui, todos os méritos, a instituição que a gerou e a sustentou durante todos estes anos - o Instituto Cultural de Macau.

De várias formas soube ela resistir às instâncias várias que intentaram enredá-la na circunstância do efémero. Feita num tempo, também para o seu tempo, ela sonhava-se intemporal. Recusou a funcionarização a imperativos de calendário, a tentação intervencionista que busca os lauréis imediatos. A Cultura apressa-se lentamente. Voz do presente, a RC procurou sobretudo ser a voz do passado amplificada para o futuro.

Já lá estamos, porque numa regra sagrada não cedemos: primaciar sempre o trabalho cultural de fundo, sobre a ligeirice a que as pressas obrigam.

Quisemo-la repositório de memórias, urdidora de elos de tradição, durável instrumento de consulta, corpo editorial a continuar e a coleccionar, em vencimento da tirania do tempo.

Nascendo num tempo de vazio ou indefinição de objectivo estratégico para a orientação cultural em Macau, foi a RC que, precocemente, esboçou dois propósitos que haveriam de ser posteriormente consagrados nas políticas oficiais e nas Linhas de Acção Governativa: - a polarização das acções culturais no objectivo da substanciação e densificação da identidade cultural das comunidades haventes no território, pressuposto e alicerce da diferença e da autonomia a consolidar; - a proclamação de Macau como "obra da Cultura", aspirando a uma política de actos que confirmassem Macau como "cidade de cultura".

Teve, desde o início, a RC, o horizonte de ascender ao padrão de organum editorial de nível científico e académico, objectivo que veio a atingir poucos anos depois do 1.o número.

Assim alcançou as mais vastas e gerais cotações de qualidade nos meios culturais, portugueses e internacionais, dos investigadores e autores singulares às instituições por que foi sendo distribuída: Universidades, Departamentos de Investigação, Bibliotecas e Arquivos mais importantes de todo o Mundo.

Se, por um lado, foi dando gradualmente conteúdo, com a publicação de trabalhos inéditos de investigação, ao seu objectivo editorial de inovação e de densificação cultural da identidade comunitária, por outro lado, foi lançando pontes de mais estrita inserção do território no seu espaço geográfico-cultural, e aprofundando o intercâmbio entre os universos culturais de Portugal e da China.

As muitas colaborações de autores, sobretudo portugueses e chineses, meticulosamente traduzidas, foram talvez um dos mais relevantes contributos da RC ao encontro de culturas, num dos trabalhos mais gratificantes, mas ao mesmo tempo mais morosos e operosos, pela dificuldade de traduzir categorias culturais irredutíveis.

Há, porém, um caminho andado, cujas pistas de aprofundamento se rasgaram para o futuro, uma maior aproximação das culturas e povos das Línguas Portuguesa e Chinesa, na mais sensível prossecução da lusíada vocação de universalidade.

Só com a sua existência, como espaço livre e prestigiado de acolhimento aos trabalhos solitários das investigações privadas, funcionou a RC palpavelmente como estímulo de muitos autores ao estudo e investigação da complexa realidade macaense e da presença portuguesa nas geografias extremo-orientais, e do intercâmbio Oriente-Ocidente.

O núcleo de produção editorial da RC sempre funcionou como investigador privado, no necessário para conferir novidade, solidez e unidade aos seus números editados, mas também como organizador e incitante da investigação, convidando, propondo, aliciando, apoiando e financiando os seus colaboradores, constituindo equipas científicas de coordenação para números temáticos especiais, associando-se à organização de seminários e encontros culturais, e servindo-lhes de veículo editorial à divulgação de teses e comunicações.

Excluindo-me, não posso deixar de reconhecer publicamente os altos méritos de toda a equipa produtora desta revista, na sua competência cultural, técnica e literária, na dádiva e dedicação a um trabalho tão exigente de paciência e sacrifício.

A RC foi colaborada, ao longo de 10 anos, por centenas de escritores, poetas, autores e investigadores de todo o Mundo, entre os mais renomados especialistas das matérias que por vocação acolhe.

Entendemos, portanto, que pode a RC ser encarada como um grande investigador colectivo, em consonância espiritual e cultural do mesmo objectivo - pela cultura, que é universo das essências, contribuir para ultrapassar os acidentes, que são ainda obstáculo à compreensão mútua, entendimento e colaboração pacífica entre os povos.

A RC, pelo que realizou durante os dez anos de publicação, conquistou já inegável lugar na história das publicações culturais congéneres, é acervo fecundo de memórias para consulta do futuro, e projectou para todo o Mundo uma imagem de prestígio e qualidade do território de Macau.

Com a objectividade a que nos obrigamos, orgulhamo-nos em poder dizer, ao fim de 10 anos, que o nosso trabalho valeu a pena, e que na RC se configurou um modus exemplar de convívio, colaboração e amistoso empenhamento de portugueses e chineses em serviço de Macau, e assim, dos comuns interesses de Portugal e da China.

Votando, finalmente, para que, na continuidade desta Revista e de outros projectos tão válidos, o encontro de quatro séculos continue pelo futuro dentro.

É este número tematicamente dedicado ao Colégio de S. Paulo, no cumprimento do IV Centenário da sua fundação. Um dos mais relevantes factos de que a história de Macau se orgulha: o ter sido aqui implantada a primeira universidade de concepção ocidental europeia em todo o Extremo Oriente.

Explica-se a instituição dos Studium Generale em Macau pela acção dos Inacianos e pelo sonho de evangelização que lhes esbraseava as almas.

Entre as inúmeras designações com que Macau é assinalada nas crónicas e na cartografia primeva, duas ressaltam no significativo sentido axiológico: "Porta da China" e "Porto do Nome de Deus" (1564). Em 1586, é reconhecida como "Cidade do Nome de Deus na China", pelo Vice-Rei do Estado da Índia, D. Duarte de Meneses. Logo em 1557, Macau é instituída como sede da expansão religiosa (Bula Pro Excellenti Praeminentis, do Papa Paulo IV, de 11 de Fevereiro).

Tudo começara com o visionarismo inflamado de Francisco Xavier, que em 1552 parte de Goa para a China, convertido em estratégia planificada, posteriormente, com Ruggieri, Mateus Ricci e o Visitador Valignano.

A primeira observação e experiência do imenso Império do Meio, cedo inculcou à estratégia jesuíta a necessidade de duas reconversões: - a definição de uma política de acomodação cultural - a exigência de adaptar práticas, modos vivenciais e métodos apologéticos aos cânones, praxis, e sistema ritual do Outro; - o profundo conhecimento do Outro - dominar profundamente a Língua, interpretar os clássicos chineses, para conhecer a alma e o espírito, as estruturas culturais e espirituais do Outro.

O projecto da instituição de um Colégio Universitário em Macau amadurecia na natural convergência destes dois factores.

A ideia era arquitectar, para todo o Extremo Oriente, um grande centro de irradiação cultural e de preparação dos agentes de missionação. Como S. Paulo de Goa já era para toda a Índia, Malaca, Molucas, África Oriental e Etiópia, pensava-se no grande espaço do Japão à China e ao Tonquim.

Em 1554, o Visitador Alexandre Valignano apresenta a ideia da fundação de um Colégio em Macau, dando-lhe desde 1 de Dezembro estatutos de organização autónoma.

Em 1557, estabelece-lhe a organização formal dos estudos superiores de Artes e Teologia, com a faculdade de concessão de graus.

Assim o Colégio de S. Paulo ou da Madre de Deus em Macau se tomou autêntica instituição universitária, sendo a primeira Universidade ocidental de todo o Extremo Oriente, anterior aos famosos Colégios de Manila, o dos Jesuítas (1595) e o de S. Tomás dos Dominicanos (1645).

No Colégio de S. Paulo projectaram-se, nas maiores autenticidade e qualidade, o espírito e a alma das grandes universidades europeias.

É uma corporação autónoma, à sombra de uma sede catedral (Alma Mater). Professa uma visão unitária do saber, o ideal ecuménico dos Studium. Não era uma Universidade eclesiástica, porque nela se não professava o Direito Canónico. Nem puramente civil, porque lhe falharam o Direito Civil e a Medicina dos modelares Studium Generale.

Outorgava graus académicos superiores, com o ritual e a solenidade dos actos académicos idênticos aos de Coimbra, S. Paulo de Goa e Brasil.

Polarizando a vida da polis, o Colégio de S. Paulo imprimiu à nascente Macau o cunho de verdadeira cidade de Cultura nos mais autênticos moldes renascentistas, influenciando-lhe o projecto municipalista luso-asiático - que lhe valeu o ser considerada a Primeira República Democrática do Extremo Oriente.

Circum-escolarmente, prestou elevadíssimos serviços à comunidade civil. Esparso hoje, o seu riquíssimo Arquivo ficou como importante acervo documental para a investigação histórica. Era famosa a sua Biblioteca, por onde passaram milhares de volumes (só o P.e Gaubil carregou da Europa cerca de 5000 livros), que concentravam todo o saber e tradição do Ocidente. A Botica tinha fama no Oriente, nas originais combinações de simples colhidos em todo o Oriente. Abrigou a primeira imprensa de caracteres móveis vista no Extremo Oriente, que passou ao Japão e às Filipinas, e onde se imprimiu o primeiro livro em 1585.

E, sobretudo, o Colégio de S. Paulo foi a casa-mãe espiritual da mais notável operação de compenetração cultural acontecida na História: a profunda e mútua revelação dos universos culturais Chinês e Europeu, operada pelos Padres Jesuítas entre 1582 e 1773.

Como sempre, trazendo ao presente a memória do passado, RC visiona os caminhos do futuro.

Há um espírito do lugar, que pretendemos reavivar. Fiel à sua vocação, Macau continua hoje a ser o topos vivo de sínteses culturais e de trocas entre diferentes culturas, nas suas múltiplas manifestações culturais e na profissão e serviço dos seus mais altos estabelecimentos de Ensino. No fim do Século, uma tradição que se reata, para o futuro: Macau, o mesmo pólo de intercâmbios, o caminho da China para o universo europeu e latino, centro de confluência de Ciências, Tecnologia e Humanismo.

O Director da Revista de Cultura

desde a p. 3
até a p.