Urbanismo

FILIPE DE SOUSA (1927)

Mário Vieira de Carvalho*

Filipe de Sousa nasceu no Maputo, a 15 de Fevereiro de 1927. Fez os seus estudos musicais no Conservatório Nacional, tendo-se diplomado em Piano (classe de Abreu Mota) e Composição (classe de Croner de Vasconcelos). Ao mesmo tempo licenciava-se em Filologia Clássica pela Faculdade de Letras de Lisboa.

Em 1957 obteve o diploma de chefe de orquestra na Staatsakademie de Viena, com Swarowsky, no termo de uma bolsa de estudos que lhe permitiu trabalhar também em Munique com Mennerich e F. Lehmann e em Hilversum com Alberto Wolf. Para além da sua actividade como pianista, a quem se ficaram a dever numerosas audições portuguesas de obras de Bartók, Hindemith, Stravinsky, Shoenberg, Alban Berg, Milhaud, entre outros, e como compositor, em cuja produção se salientam a Suite de Danças para orquestra (1954), a Sinfonieta (1956), e uma numerosa obra para canto e piano, Filipe de Sousa, que se apresentou ainda como chefe de orquestra em Portugal e no estrangeiro, tem chamado a si uma importante missão: a da investigação sistemática da música portuguesa antiga, conduzindo à recuperação de várias obras-primas cujo paradeiro se desconhecia. A sua formação clássica e cultura literária são ainda componentes determinantes da personalidade do artista, que conta entre os seus poetas favoritos (e por isso os musicou) Rilke, Jean Moréas, Sebastião da Gama, Fernando Pessoa e seus heterónimos, Camilo Pessanha, Orlando de Carvalho, Manuel Bandeira, Schiller, Garcia Lorca, Langston Hughes, Paul Éluard, etc..

[...] Nos Dois Sonetos de Camilo Pessanha (1950), a simples introdução de um desenho de três colcheias no piano (lá# — si — lá#), somando-se a duas outras (fá# — sol#) até então imutáveis no acompanhamento, concentra em breve episódio um movimento por graus conjuntos (encetado na dominante) que responde, por inversão, a um movimento semelhante de mínimas encetado, de início, na tónica. Esse acontecimento semantiza-se no golpe de vento a desfolhar as rosas, como se explicitará logo a seguir na frase vocal. A interrogação "Em que cismas, meu bem?" estiliza-se numa "melodia da fala" que sobe de tensão num movimento ascendente para a dominante, culminando em "As Vozes" ("Porque me calas / As vozes com que há pouco me enganavas?"). A textura harmónica altera-se radicalmente, torna-se instável, ao mesmo tempo que o já referido motivo de mínimas, até então no baixo, passa a sobressair na voz superior do acompanhamento. A esta mudança musical corresponde no poema a transição do plano da observação e do diálogo com a natureza e com "o outro" para o plano da introspecção: a harmonia marcha "sem norte" como na imagem do poeta ("Castelos doidos! Tão cedo caístes!... / Onde vamos, alheio o pensamento, / De mãos dadas?"). O retorno à natureza e ao diálogo repõe o campo harmónico inicial. A neve cai... "Em redor do teu vulto é como um véu!" — a exclamação, tensa de paixão, arranca na dominante, no registo agudo e desce depois suavemente para a tónica. Depois, é como se o universo parasse: omovimento perde velocidade, suspende-se. Fica no ar sem resposta (fecho na dominante — a I>Halbschlufi da terminologia germânica) a interrogação: "Quem as esparze — quanta flor! — do céu, / Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?". Entretanto, a persistência, do princípio ao fim, do motivo recorrente de mínimas onde se salienta sempre de novo o efeito descendente de si, lá#, sol#, é naturalmente a contrapartida sonora de uma imagem poética várias vezes repetida: caem pétalas, cai neve, caem os "castelos doidos"...

A coerência músico-dramatúrgica do trabalho do compositor, que, como decorre deste esboço de análise, não enjeita nem dissimula, antes assume, quando o julga conveniente, a herança clássica da harmonia funcional como parte integrante do seu pensamento musical moderno, tem ainda expressão na unidade de concepção de cada um dos ciclos de poemas. Escritos respectivamente em si maior e sib menor, com conclusão na dominante, métrica a 3/2 e configuração melódica aparentada, os Dois Sonetos de Camilo Pessanha constituem um díptico incindível [...].

PORTUGALSOM, Filipe de Sousa (1927), Lisboa, Strauss — Música e Vídeo, 1995 [folheto do disco compacto].

DOIS SONETOS DE CAMILO PESSANHA

Filipe de Sousa

FLORIRAM POR ENGANO AS ROSAS BRAVAS

Floriram por engano as rosas bravas

No Inverno: veio o vento desfolhá-las...

Em que cismas, meu bem? Porque me calas

As vozes com que há pouco me enganavas?

Castelos doidos! Tão cedo caístes!...

Onde vamos, alheio o pensamento,

De mãos dadas? Teus olhos, que um momento

Perscrutaram nos meus, como vão tristes!

E sobre nós cai nupcial a neve,

Surda, em triunfo, pétalas, de leve

Juncando o chão, na acrópole de gelos...

Em redor do teu vulto é como um véu!

Quem as esparze — quanta flor! — do céu,

Sobre nós dois, sobre os nossos cabelos?

PASSOU O OUTONO JÁ, JÁ TORNA O FRIO

Passou o Outono já, já torna o frio...

— Outono de seu riso maguado.

Algido Inverno! Oblíquo o Sol, gelado...

— O Sol, e as águas límpidas do rio.

Aguas claras do rio! Águas claras do rio,

Fugindo sob o meu olhar cansado,

Para onde me levais meu vão cuidado?

Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos d'ela, flutuando,

E, debaixo das águas fugidias,

Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?

— E, refractadas, longamente ondeando,

As suas mãos translúcidas e frias...

*Musicólogo.

desde a p. 115
até a p.