Urbanismo

CLEPSIDRA: OITO POEMAS DE CAMILO PESSANHA PARA CANTO E PIANO

Fernando Lopes-Graça

R OSASDE INVERNO

Corolas, que floristes

Ao Sol do Inverno, avaro,

Tão glácido e tão claro

Por estas manhãs tristes.

Gloriosa floração,

Surdida, por engano,

No agonisar do ano,

Tão fora da estação!

Sorrindo-vos amigas,

Nos ásperos caminhos,

Aos olhos dos velhinhos,

Às almas das mendigas!

Desse Natal de inválidos

Transmito-vos a bênção,

Com que vos recompensam

Os seus sorrisos pAidos.

ENFIM, LEVANTOU FERRO

Enfim, levantou ferro.

Com os lenços adeus, vai partir o navio.

Longe das pedras más do meu desterro,

Ondas do azul oceano, submergi-o.

Que eu, desde a partida,

Não sei onde vou.

Roteiro da vida,

Quem é que o traçou?

Nalguma rocha ignota

Se vai despedaçar, com violento fragor...

Mareante, deixa as cartas da derrota.

Maquinista, dá mais força no vapor.

Nem sei de onde venho,

Que azar me fadou?

Das mágoas que tenho,

Os ais porque os dou...

Ou siga, maldito,

Co'a bandeira amarela...

…………………………………

Pomares, chalets, mercados, cidades.

A olhar da amurada,

Que triste que estou!

Miragens do nada,

Dizei-me quem sou...

PASSOU O OUTONO JÁ, JÁ TORNA O FRIO

Passou o Outono já, já torna o frio...

— Outono de seu riso maguado.

Algido Inverno! Oblíquo o Sol, gelado...

— O Sol, e as águas límpidas do rio.

Águas claras do rio! Águas claras do rio,

Fugindo sob o meu olhar cansado,

Para onde me levais meu vão cuidado?

Aonde vais, meu coração vazio?

Ficai, cabelos d'ela, flutuando,

E, debaixo das águas fugidias,

Os seus olhos abertos e cismando...

Onde ides a correr, melancolias?

— E, refractadas, longamente ondeando,

As suas mãos translúcidas e frias...

NA CADEIA OS BANDIDOS PRESOS

Na cadeia os bandidos presos!

O seu ar de contemplativos!

Que é das feras de olhos acesos?...

Pobres de seus olhos captivos...

Passeiam mudos entre as grades.

Parecem peixes num aquário.

Campo florido das saudades,

Porque rebentas tumultuário?

Serenos. Serenos. Serenos.

Trouxe-os algemados a escolta...

Estranha taça de venenos,

Meu coração sempre em revolta!

Coração, quietinho, quietinho!

Porque te insurges e blasfemas?

Pss... Não batas... Devagarinho...

Olha os soldados, as algemas.

CANÇÃO DA PARTIDA

Ao meu coração um peso de ferro

Eu hei-de prender na volta do mar.

Ao meu coração um peso de ferro...

Lança-lo ao mar.

Quem vai embarcar, que vai degredado,

As penas do amor não queira levar...

Marujos, erguei o cofre pesado,

Lançai-o ao mar.

E hei-de mercar um fecho de prata.

O meu coração é o cofre selado.

A sete chaves: tem dentro uma carta...

— A última, de antes do teu noivado.

A sete chaves, — a carta encantada!

E um lenço bordado... Esse hei-de o levar.

Que é para o molhar na água salgada

No dia em que enfim deixar de chorar.

VOZ DÉBIL QUE PASSAS

Voz débil que passas,

Que humílima gemes

Não sei que desgraças...

Dir-se-ia que pedes.

Dir-se-ia que tremes,

Unida às paredes,

Se vens, às escuras,

Confiar-me ao ouvido

Não sei que amarguras...

Suspiras ou falas?

Porque é o gemido,

O sopro que exalas?

Dir-se-ia que rezas.

Murmuras baixinho

Não sei que tristezas...

— Ser teu companheiro? —

Não sei o caminho.

Eu sou estrangeiro.

— Passados amores? —

Animas-te, dizes

Não sei que terrores...

Fraquinha, deliras.

— Projectos felizes? —

Suspiras. Expiras.

QUEM POLUIU, QUEM RASGOU OS MEUS LENÇÓIS DE LINHO

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,

Onde esperei morrer — meus tão castos lençóis

Do meu jardim exíguo os altos girassóis

Quem foi que os arrancou e lançou no caminho?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco!)

A mesa de eu cear — tábua tosca de pinho?

E me espalhou a lenha? E me entornou o vinho?

— Da minha vinha o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe!... Não te ergas mais da cova.

Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...

Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.

Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,

De noite a mendigar às portas dos casais.

AO LONGE OS BARCOS DE FLORES

Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila,

— Perdida voz que de entre as mais se exila,

— Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila

E os lábios, branca, do carmim desflora...

Só, incessante, um som de flauta chora,

Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora

Cauta, detém. Só modulada trila

A flauta flébil... Quem há-de remi-la?

Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

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