Centenário

O ATLAS DAS MÃOS

José Figueiredo

Elachama-lhe Van Gogh Joaquim Franco Pastel sobre papel,1994 40×60cm Col. Francisco Cordeiro

Uma mão encontra a outra. Conhecem-se desde que nasceram. Vivem juntas há muito tempo. Umas mãos não enganam.

Gravura = parte do quotidiano.

Gravura, coisa qualquer, elipse temporal que afirma, acentua, não liberta. Muito presente. Muito tempo.

Joaquim Franco pertence a essa elipse temporal que se torna constante. Essa permanente forma de encarar as mãos, que quando livres fazem parte desse quotidiano. Essa permanente afirmação de um qualquer modo de vida que não dispensa a franqueza da realidade, a emoção da vida.

Uma história do mundo remoto: umas mãos, uma caverna, as mãos por exprimir-se. Uma e outra inscrevendo na pedra - situações do quotidiano. De caça, ou de aspecto fantasista, quiçá possíveis lendas.

As mãos sempre descobrem caminhos que não enganam. Existe neste fazedor uma noção brava do mistério criativo. As suas mãos procuram transmutar o ambiente pela paixão das tintagens e dos efeitos que as técnicas de Gravura resolvem.

Existe um acepção melancólica na gravura.

Acepção é um significado a meio termo. Elã melancólico que tem a ver com as limitações impostas pelo manuseamento dos materiais.

Umas mãos que não enganam.

Quando? Perguntam ao braço que não sabe o que o cérebro organiza.

Uma história do mundo recente: o humanóide começou a estampar tecidos, a carimbar documentos, a gravar sem dar por isso. As mãos são anónimas. Obedecem a anotações.

Uma mão, a direita desenha muito. Sabe desenhar relíquias do passado.

Um rosto pode espelhar as mãos?

Uma mão, a esquerda rasga o ar. A sua ajuda é fundamental. Indispensável.

O homem que domina as mãos chama-as cons-tantemente, exige. A gravura. A pintura. Paixões de sempre.

As mãos trabalham arduamente em conjunto com os olhos. O criador apaixonado pela técnica e pelas possibilidades de expressão do género permanece num intocável limbo.

Umas mãos descobrem a pintura.

Um dia de sol ou de chuva tanto faz. Esta pintura é interior. As suas cores sublinham os símbolos, sobre os quais a sua pintura fala.

A interpretação plástica trabalha o retrato de situação, o retrato de hábito. Existe no trabalho das mãos um certo sabor dos anos 20.

Anos 20 ou anos 90. Os símbolos deixaram de ter data. Deixaram de ter assinatura. Tanto faz. As mãos não se importam e sabem que os olhos também não. Os olhos registam porque se enaltecem. As mãos encaliçadas.

O estar plástico. Indiferente ao redor, alimenta--se de signos, sinais-tipo que resistem à indiferença do abstracto.

Modos de representação equivocados, que trabalham o emblema pela associação limitada de um ou outro mote. Equivocados pois aqui e ali é natural.

Aqui e ali este estado equivocado pertence-lhe, como lhe pertence a naturalidade e a dúvida. São estes pressupostos que fazem da sua criação uma verdade. Aqui e ali este estado equivocado pertence-nos porque nos pertence o olhar, porque nos pertence a emoção, e essas coisas não precisam de qualquer explicação.

Aqui a expressão. Aqui a expressão sobrevive porque sobrevive no meio. A três tempos levemente literários. O dos músicos, o das naturezas mortas, o das mulheres.

O conteúdo iconográfico destes motes. Uma acção directa. Em passeio pelo interior ajeito de intróito. Obriga as mãos a uma vontade de representar, de fazer significar.

A vida bamba, baloiça balsâmica. O criador acometido neste significado. Num estado mental que aproxima a vida ao fazer plástico. As mãos e os olhos são porque. Porque pele de ser corpo indivisível.

O corpo todo e sem ele nada. Porque o corpo todo, e sem ele nada.

Usar e proteger a observação = instrumento primeiro.

E a vida na viagem das mãos ao terreno da memória.

Ao terreno da memória na viagem da cabeça. Cabeça = mente. Mente = sentido de ser. Proteger a observação = tópico de príncipio meio e término.

Existe uma certa inocência no tratamento do traço. Muito expressionista. Um traço descarnado, soluço que espreita. Murmúrio similitude com esta certa inocência natural, assumida.

Poderia funcionar como um estratagema. Um engenho dissoluto. Uma astúcia em função de um determinado género de representação. Poderia definhar lindamente. Mas não. Não, pois este traço descarnado vive.

O traço bulhento funciona neste caso porque julga a vida. O traço airoso com uma assumida irresponsabilidade deixa-se cair, satisfaz-se. A seu agrado exalta uma evidente ruptura com o passado. Rebento giratório. Imberbe submissão feiticeira. Ajuíza porque. Ajuíza para uma constante revisitação da infância.

Quando a voz quis acompanhar e os ouvidos não.

Ao infante a música, periódico enamoramento. O infante queria ser melómano. Um violino, para seu contentamento.

O seu ascendente inscreveu-o num atelier.

O infante pactuou plácido. Descobriu novas habilidades. A voz nunca estava no tom certo. As mãos iluminadas ofereçem-se.

As mesmas mãos fizeram adereços. Há já muito tempo. E adernais recordam-se bem. Do tempo em que desenharam fascínios da história. Restos de civilizações antigas, num desenho técnico, rigoroso e muito preciso. Um desenho que demorava muito. Um desenho bonito.

As mãos procuram, fazem esboços. Exercícios sobre a linha e sobre a expressão da mancha, densidade e autonomia do material. As mãos procuram, não se dão por contentes. Não sabem porquê esta sua deliberada vontade de construção, este ritmo que procura o sentido abstracto dos corpos. Perfiguram um caminho que se pretende pessoalíssimo. Uma vertente que actua sobre o esforço.

As mãos presentes constroem um ritmo próprio. Uma estrutura não fluída mas sincopada.

As suas figuras estão voltadas para si próprias. Num príncipio de instabilidade progressivo. Um princípio que se situa a meio termo, meio interior, meio revelador.

Existe em alguns universos plásticos esta sublime tentação de convocarem um processo de apropriação do mundo seja pela conquista da verdade simbólica, seja pela implicação de resgate e sobrevivência dentro de um campo em si dilatado e radicalmente cúmplice de si.

Como modo de existir parece delinear-se uma expressiva vontade de deleite com a matéria e com os eventuais pressupostos da vida quando inscrita na arte.

As mãos não enganam ou melhor será.

As mãos sistematizam os sentidos, orientam a tensão no espaço gráfico. Encaminham as visões do oscilatório mundo exterior e previnem a grafia visual da mancha e da linha para as embriagadas soluções reservadas no interior.

As mãos não se enganam. O espírito assim assim.

As mãos libertas instrumentalizam a vacilante dúvida plástica como se ao relento pretendessem alge-brar o som do vento.

A pintura de J. F. é exígua porque reserva-se ao isolamento de uma aura de sentimentos insubmissos. Afasta-se do mundo pois só se revela a si.

A si insuspeita comoção. O que contamina e assimila um complementar efeito de instruir as mãos. As mãos de nada sabem, encontram-se desinteres--sadas. Mas de certo por vezes insufladas, quando encontram espaço.

Há coisas das quais não palpamos o seu interior, reserva-se apenas esse estado pronunciado de sedução. As mãos não nos revelam a pele das coisas. Pronunciam-se apenas, deixando-nos à imaginação uma área de exploração. Ao observador cabe interpretar esse distraído olhar que vagueia por sobre a superfície.

Prazer por prazer pode ser de sonhar. Acima de tudo. Como que para interpretar a figura do Capitão Nemo o homem conduz a roda da prensa.

De sonhar. Existe o abandono. Ao trabalho.

Pintar, gravar = alfabeto. Imagem de síntese.

Agora o símbolo, o salto de regiões:

Música. Paixão de infãncia. Insegurança. Partida da memória. O sonho. A vida.

Retrato. Desafio auto-proposicional. Desafio da história. Literatura. Autocultura. Etc... Retrato desenho. Retrato Pintura. Intimidade e ou oportunidade. Escala. Proporção. Claro-escuro. Linha. Textura. Transparência. Blá blá. Retrato vida.

Dobra. Ajudar. Dobra de novo.

O salto de regiões. Em tempos. Das Marcas à alquimia. Ideografias. Questões. Condição humana. Aprofundar o trabalho realizado dentro da própria esfera de atelier. O corpo do boneco ou o segredo do sentido das coisas. Fronteira inclinada esta vocação semi-narrativa onde é impossível entrar. Parâmetro absoluto de tensão. O atelier espaço de tensão. O que separa o mero comentário da presença da imagem do ser e do sofrimento. O que separa o discurso plástico da invertebrada actividade de simulacro de dor e alegria. O que separa o manuseamento dos materiais do jogo onde ar--riscar é um perigo constante e apreciado.

Assim aqui e ali o que faz Joaquim Franco quando se rende à tentação criativa? Faz aquilo que lhe é impos-sível de contornar. Deixa-se livremente às matérias e á vida. Rende-se àquela única verdade que conhece e que não o atraiçoa. Faz de si próprio o operário da expressão.

As mãos, as suas mãos não enganam, não o enganam, tomam transparentes os seus olhos. Deixam--nos a certeza de que ainda existe lugar para o sonho, mesmo que ele seja indefenido.

Guitarrista Pastel e acrílico sobre tela, 1994 120 x 90 cm Col. William Vong

Sem título (Pormenor) Pastel sobre papel, 1995 70 x 50 cm Col. Danna Vong

Guitarrista II Pastel sobre cartão, 1994 100 x 100 cm Col. Jimmy Chu

desde a p. 202
até a p.