Linguística

A LITERATURA MACAENSE DE EXPRESSÃO PORTUGUESA

Wang Chun*

PRÓLOGO

Quatrocentos anos de vida em comum, entre portugueses e chineses, e a história de uma coexistência pacífica entre a China e o Ocidente fizeram de Macau um ponto de convergência e de permuta, uma ponte para o intercâmbio cultural da China com Portugal e com os vários países latinos. Uma arquitectura luso-chinesa colorida e multifacetada, várias religiões de variadas origens, muitas línguas em contacto e uma tradição culinária própria são características da especificidade cultural e do valor ímpar de Macau, enquanto produto do intercâmbio entre as duas culturas.

De entre as características próprias de Macau, a mais proeminente, porque a mais representativa, é a existência duma comunidade mestiça — os portugueses macaenses — resultado da fusão harmoniosa entre as duas culturas. Os eu-ro-asiáticos de Macau, produto da evolução histórica do Território, têm como denominador comum a cultura portuguesa e a religião cristã. Uma parte desta comunidade tem origem no cruzamento de sangue chinês com sangue português. Os seus membros, cujas raízes espirituais mergulham na cultura portuguesa e nos valores ocidentais, incorporam também em si os genes da cultura chinesa, predominante no Território.

O poeta macaense, Leonel Alves, descreve assim o fenómeno da fusão entre as duas raças e culturas: "Cabelos que se tomam sempre escuros / Olhos chineses e nariz ariano, / Costas orientais, peito lusitano, (...). Coração chinês e alma portuguesa. / Casa com chinesa por instinto". Muitos portugueses macaenses ainda se poderiam, actualmente, rever neste retrato físico-psicológico..1

Os portugueses macaenses são, por um lado, e como eles próprios se auto-definem, "filhos da terra", o que quer dizer são "cem por cento" de Macau. Por outro lado, tanto em termos de consanguinidade, como em termos de afectividade e de mentalidade, a sua relação de "parentesco" com a raça chinesa foi sempre uma constante. Segundo o actual conselheiro cultural da embaixada de Portugal em Pequim, Jorge Morbey, eles constituem "uma herança comum" deixada a Portugal e à China pelos 400 anos de história de Macau.2

Não obstante a importância desta herança, a verdade é que desde longa data a vimos descurando. Pouco temos estudado ou investigado as várias questões que a comunidade macaense, enquanto fenómeno racial e cultural específico, levanta. No tocante à Literatura, a comunidade macaense não tem falta nem de escritores nem de obras. E entre as obras, há algumas de conteúdo muito rico. Contudo, por razões de vária ordem, entre as quais avulta a barreira linguística, nunca tivemos a oportunidade de franquear este jardim literário, aqui mesmo ao nosso lado. E assim temos vindo a perder, ao longo do tempo, a fruição das suas flores exóticas. Se tomarmos a expressão "literatura de Macau", como um todo integral, não poderemos deixar de considerar esta falta de atenção como uma perda real.

Este trabalho vai no sentido de desbravar esse terreno virgem, através do estudo dos principais autores e obras macaenses, e da exploração do valor cultural da visão do mundo subjacente a esses textos literários. É meu desejo poder dar conta, não só da existência da literatura dos portugueses macaenses, como também do seu significado, no contexto do fenómeno global da Literatura de Macau.

DEFINIÇÃO E SIGNIFICADO DA LITERATURA MACAENSE

Os "portugueses macaenses", tradicionalmente conhecidos em português apenas por "macaenses" ou "filhos da terra", são designados, nos documentos oficiais portugueses, como "habitantes de ascendência portuguesa". A definição do conceito "macaense" sempre foi, e continua até agora, a ser feita em termos um tanto vagos. Considera-se, em geral, que da comunidade macaense fazem parte os seguintes grupos: (1) as pessoas nascidas em Macau, de pais portugueses; (2) os mestiços nascidos em Macau, de cruzamento chinês-português; (3) as pessoas nascidas fora de Macau, mas que aqui se instalaram, tendo recebido, por essa via, a cultura local dos descendentes dos portugueses. (I) Por vezes também se tomam como macaenses, apesar de não terem sangue português, os chineses que, por terem estado desde criança em contacto com a cultura portuguesa, não só falam a língua, como mantêm com a sociedade portuguesa uma ligação muito estreita. (II) Há actualmente estudos em Macau que definem os macaenses como mestiços eu-ro-asiáticos "nascidos em Macau, cujas raízes mergulham na cultura portuguesa e no cristianismo".3 (III) O advogado macaense e membro da Assembleia Legislativa, Leonel Alves, ao definir o conceito, algo fluido, de "macaense", teceu as seguintes considerações: "O macaense típico tem de ter nascido em Macau e/ou ter sangue português, misturado, na maior parte das vezes, com sangue chinês". Além destes dois tipos, L. Alves ainda referiu o costume de incluir na categoria de "macaense" outro género de pessoas, que classificou assim: (a) os residentes portugueses, só com sangue português, nascidos em Macau; (b) portugueses nascidos fora de Macau, mas que, por se terem instalado aqui, adquiriram a cultura local; (c) os chineses que, tendo recebido desde pequenos uma educação portuguesa e falando a língua, entraram no meio português local.

Considerando que a descrição acima é relativamente clara, limito-me a acrescentar que a palavra "macaense" designa, neste texto, sobretudo aquelas pessoas que Leonel Alves classificou de "macaenses típicos". E a expressão "literatura macaense" designa os textos literários por eles produzidos.

Os Estudos sobre a Literatura Macaense

Como já disse, os portugueses macaenses constituem um grupo étnico, com características muito especiais, formado ao longo do processo histórico de Macau. Não obstante a sua longa história e o facto de, enquanto comunidade, constituírem um modelo típico do intercâmbio e da fusão cultural entre o Ocidente e o Oriente, raros têm sido os estudiosos a debruçar-se de forma sistemática sobre os vários aspectos da sua história e cultura. A literatura não constitui uma excepção.

Antes deste trabalho, não tenho conhecimento de que alguém tivesse tratado as obras escritas pelos portugueses macaenses como fenómeno literário independente. Também não sei de ninguém que tivesse procedido, de forma sistemática, à recolha, registo e classificação do corpus desta literatura. Os poucos trabalhos de investigação, até agora publicados sobre estas obras, focam, na sua maioria, a questão da "língua local de Macau", um crioulo com base no português do Século XVI/XVII, misturado com palavras ou expressões cantonesas.4

Entre esses trabalhos, o de Graciete Batalha, Poesia tradicional de Macau, merece atenção especial. Nesse estudo, analisa-se a criação literária em português, de poesia tradicional, no seio da comunidade macaense. Apesar da abordagem incidir, mais uma vez, na questão da "língua de Macau", segundo a autora, um português cheio de influências de outras línguas, Graciete Batalha não deixa também de levantar algumas questões a respeito da literatura dos portugueses macaenses. Interroga-se, por exemplo, sobre a des-proporção entre os longos quatrocentos anos de história passada e o reduzido número de obras deixadas pelos macaenses.

Refere a compilação e publicação, feita "com respeito e fidelidade", entre finais do século passado e princípios deste, de algumas cantigas macaenses. Foi o único trabalho que encontrei encarando e tratando a literatura macaense como fenómeno literário independente.5

Entre as razões que determinaram esta situação, por parte da comunidade chinesa, foi a barreira linguística que constituiu o principal obstáculo. Por outro lado, como sempre têm sido escassos os contactos entre macaenses e chineses, estes últimos pouco ou nada sabem ou se interessam pela cultura dos primeiros.

Entre os portugueses, e segundo as considerações pes-soais dum estudioso português, há dois aspectos a considerar. Por um lado, as obras e os escritores macaenses, não sendo em número elevado, não têm suscitado muita atenção. Por outro lado, sendo escritos em português, os textos literários macaenses têm sido sempre tomados como parte da literatura portuguesa. A atitude de encarar os macaenses como um grupo étnico separado é um fenómeno recente.

Para a elaboração deste trabalho, recolhi e estudei materiais relacionados com a literatura dos macaenses, li e tentei traduzir para chinês algumas obras originais. Também entrevistei alguns escritores, familiares seus, ou apenas amigos. É com base neste processo de recolha de informações e do trabalho sobre elas que concluo ser neces-sário e possível levar por diante o estudo da literatura dos portugueses macaenses como fenómeno literário independente.

Tanto em chinês como em português, as expressões "português macaense" e "filho da terra" não só são diferentes na forma como têm um significado diferente da palavra portuguesa "português". A palavra portuguesa "macaense" é traduzida, em chinês, por tusheng, o que reconvertido novamente em português, equivale a "nascido na terra". Quanto à expressão "filhos da terra", o tradutor para chinês da obra de Ana Maria Amaro, Filhos da terra, explica-a da seguinte maneira: "Quanto à maneira de traduzir a expressão 'filhos da terra', penso ser necessário um breve esclarecimento. Tanto na língua como na cultura chinesas, a designação mais frequente é a de 'nascido na terra', expressão com conotações negativas". Em português, contudo, a situação é diferente.

Em chinês, a palavra "macaense", isto é tusheng, é um regionalismo do Sul, equivalente a "indígena" ou "nativo", expressões mais usadas no Norte. Apesar de ainda não ser pacífica a definição de "filhos da terra", julgo que "natural de Macau" pode servir.

Mas, na língua portuguesa, há uma diferença entre "macaense" e "filho da terra", que correspondem a "natural de Macau" e "português". A natureza desta diferença revela, no plano da realidade, as características particulares e únicas do grupo a que se referem. Uma vez que, tanto em português, como em chinês, não chamamos "macaense", nem a um português, nem a um chinês, só pelo facto de serem naturais de Macau, então, a conclusão lógica, a nível da literatura, terá de ser que a literatura escrita pelos "macaenses" só pode ser chamada de "literatura macaense".

Como refere a obra Filhos da terra, os macaenses são, do ponto de vista genético, um grupo rácico muito rico; e, do ponto de vista cultural, representam o cruzamento entre diferentes culturas. Os escritos oriundos desta comunidade, embora usando o português na sua escrita, revelam, tanto no plano mental como no plano afectivo, na maneira de pensar, na simbologia do seu comportamento, nos valores morais, nos gostos estéticos, marcas do seu estatuto específico, do seu meio ambiente particular e da influência do seu contexto histórico. E estas características especiais, que revelam na sua escrita artística, são diferentes tanto das dos chineses como das dos portugueses de Portugal. Na verdade, eles constituem um grupo único de escritores.

As obras de literatura macaense, apesar de não serem muitas, têm uma história longa. Na revista "Ta Ssi Yang Kuo" estão publicados alguns poemas macaenses que terão mais de cem anos. No conjunto intitulado Folk-lore macaísta: adivinhas, avança-se a hipótese da origem destas cantigas poder ser ainda mais antiga.6

Acredito que, à medida que se for desenvolvendo o estudo e a investigação sobre a literatura macaense, possam vir a ser descobertas mais obras, assim se enriquecendo a área dapesquisa e do estudo. Além disso, os temas, a língua e o estilo das obras literárias macaenses têm uma individualidade própria, que revela com muita nitidez a especificidade do seu estatuto de "macaenses" ou "filhos da terra". Assim, por se tratar dum corpus, com um estilo literário distinto do resto da literatura de Macau, em geral, entendo poder classificá-la como fenómeno literário independente.

Principais Autores e Obras da Literatura Macaense

Uma vez que até agora ainda não encontrei quaisquer materiais sobre a história da literatura macaense, é-me difícil, só com os materiais disponíveis, fazer um resumo geral, do ponto de vista da história da literatura. Tenho assim de me limitar a seguir o fio condutor dos materiais existentes. Para estabelecer e determinar as relações e as ligações das recentes reedições desses escritores, há ainda que avançar com o processo de investigação.

No final do Século XIX, o português macaense, João Feliciano Marques Pereira, publicou, em "Ta Ssi Yang Kuo", uma compilação sua de 21 poemas, que intitulou Folklore macaísta: adivinhas.7 No princípio deste século, o português Leopoldo Barreiros reeditou, na revista "Renascimento",8 a maioria desses poemas, aos quais acrescentou mais alguns. Não foi até agora possível determinar, nem a época nem os autores destes poemas que, no entanto, e nesta fase da investigação, podem ser tidos como as obras mais antigas da literatura macaense.

Em "Ta Ssi Yang Kuo" aparecem outros poemas escritos por alguns "poetas macaístas" do princípio do Século XIX, como Ajuste de casamento de Nhi Pancha cô Nhum Vicente, da autoria de José Baptista Miranda de Lima;9 Em 23 de Dezembro,10 e Dizia o nosso poeta Francisco de Sá, a senhora bem o sabe, da autoria de A. J. Ruas.11 Sob a rubrica Uma poesia macaísta, 12 é publicada, na mesma obra, uma carta que o conhecido filólogo português, José Leite de Vasconcelos, enviou a J. F. M. Pereira, na qual chama a atenção para outro poema de Miranda de Lima, Deálogo entre dois pacatos na rua Direita na noite de 13 de Maio de 1824.

Além disso, Ana Maria Amaro também publica, em Filhos da terra, o poema duma cantiga macaense, "Amor de Macau", assim como manuscritos póstumos de João Feliciano Marques Pereira.13

Graciete Batalha, em Poesia tradicional de Macau, acentua que os poemas e cantigas macaenses dessa época revelam fortes influências, muito arcaicas, de textos semelhantes da Malásia, Goa, Índia, etc.

A partir dos anos 40 deste século, começam a ser editadas várias obras da literatura macaense. Entre as mais representativas contam-se: uma colecção de poemas de Leonel Alves, Por caminhos solitarios;14 uma colecção de contos de Deolinda da Conceição, Cheong-sam: a cabaia;15 uma colecção de poemas de José dos Santos Ferreira, Macau, jardim abençoado e a sua História de Maria e alferes João;16 de Senna Fernandes, o romance Amor e dedinhos de pé, a sua antologia de contos Nanvan e ainda o seu último romance, A trança feiticeira;17 de Maria Edith Jorge de Martini, The wind amongst the ruins.18

Algumas destas obras tinham sido anteriormente publicadas em orgãos da Imprensa local de língua portuguesa, como é o caso do "Notícias de Macau".

VALOR CULTURAL DA LITERATURA MACAENSE

Riqueza Temática

Os portugueses macaenses têm dois contextos culturais. A maioria, sendo produto da mistura de sangue chinês e português, contacta diariamente com as duas comunidades e culturas, assim se constituindo como o intermediário privilegiado entre elas. Esse estatuto especial, que é também uma condição existencial muito particular, deu-lhes uma mentalidade especial para encarar a vida e o mundo, bem como uma experiência humana única, tanto em termos de avaliação da sociedade em geral, como da sua comunidade em particular.

Os temas da literatura macaense revelam abundantemente o colorido local e reflectem à saciedade a terra, as pessoas e as coisas de Macau, demonstrando bem o estatuto de "filhos da terra" que é o dos seus autores. Eles mostram-nos a paisagem natural de Macau, os cenários urbanos, os gostos e os costumes locais, o estilo de vida, bem como a vida quotidiana dos chineses, portugueses e macaenses. Histórias de Macau, belas, mas ao mesmo tempo nostálgicas, entretecem-se como que para nos dar uma ampla visão de conjunto da terra e das suas gentes.

Descrita por Senna Fernandes, a paisagem natural de Macau é ainda mais bela do que uma pintura: "os crepúsculos da Penha", "o Mirante de D. Maria", "o jardim Camões com as suas frondes", "a curva do Bom Parto, junto à barraca do pescador, a presenciar a recolha das redes, onde prateavam mugens e tainhas", "Estrada de Cacilhas, Montanha Russa, Ilha Verde", são recantos da cidade, cuja beleza o autor considera empolgantes. O encanto aumenta ainda com "a paisagem nocturna de Macau, o casario da Penha e da Barra, diluídos em sonho no fundo azul da noite".19

Em quase todos os textos dos escritores macaenses, aparecem descrições da paisagem natural, que relevam um profundo amor por Macau. Em A esmola, de Deolinda da Conceição, mesmo o decrépito cais de Macau, de tão triste memória para o protagonista da história, provoca no leitor uma impressão difícil de esquecer, pelo que simboliza de amor pela terra natal.20

Todos estes autores nos mostram que é neste pedaço de terra que estão as suas "raízes" e que esta terra é a razão das suas existências.

Os chineses, os portugueses e os macaenses são as três principais comunidades étnicas de Macau. Há cinco séculos que aqui vivem, lado a lado. Não é senão natural que o mundo das personagens criado pelos escritores macaenses seja também constituído, na sua maioria, por esses três tipos de pessoas. Através da sua caracterização e da descrição do que acontece à sua volta, não só podemos ver a relação, e os sentimentos recíprocos, entre as três comunidades, como também os seus diferentes contextos e estilos de vida, bem como as suas características psicológicas distintas. Estas obras reflectem também, com particular acuidade, a cultura dual oriente-ocidente e a maneira como as duas culturas se atraem e se interpenetram. E também como se chocam.

Por exemplo, Deolinda da Conceição, em A esmola, descreve com pormenor o confronto entre a cultura oriental e a ocidental, a nível do dia a dia: o pai come com garfo e faca enquanto a mãe usa pauzinhos; o pai é de opinião que se deve consultar um médico ocidental, mas a mãe defende a ida a um médico chinês, etc. No entanto, e a par deste tipo de choques culturais, a situação de culturas em contacto tem como resultado positivo o facto do filho aprender, sem o mínimo esforço, tanto o português como o cantonês. Através da descrição destes pormenores da vida quotidiana, é-nos mostrado o clima especial em que vive o mestiço, cuja cultura própria é o resultado da fusão de duas culturas. Tudo isto num percurso histórico marcado, tanto pelo choque das mentali-dades, como pela permuta cultural.21

A mesma autora, em O refúgio da saudade, deixa-nos ver como este processo de contacto e confronto mútuos, entre a cultura chinesa e a cultura ocidental, pode dar origem a situações trágicas. Trata-se duma história de amor entre uma rapariga chinesa e um jovem arquitecto português. A oposição da família da rapariga acaba por pôr fim ao amor dos jovens, sendo a rapariga, no final, a pagar, com a vida, o preço do amor impossível.22 Neste conto, o amor entre uma chinesa e um português revela, justamente, até que ponto as duas culturas desconhecidas entre si, depois do primeiro encontro, se podem sentir atraídas uma pela outra, como elas se podem (re)conhecer mutuamente. Além disso, pode-se dizer que a morte da rapariga é o resultado infeliz das diferenças entre as duas culturas e dos conflitos delas decorrentes. Daí que o texto possa ser lido como uma alegoria do desenvolvimento histórico das culturas chinesa e portuguesa, feito sempre na dinâmica da atracção e rejeição entre ambas. Ele também revela o preço elevado que, tanto a cultura portuguesa como a cultura chinesa, tiveram de pagar, durante o período histórico que vai desde o encontro inicial até à fase do intercâmbio e da fusão.

Os temas da literatura macaense são fortemente apelativos do ponto de vista cultural, o que se deve ao facto dos seus autores serem, ou possuírem as caraterísticas do mestiço, com dois contextos culturais atrás de si. Graças ao facto das suas vidas se desenrolarem, ao mesmo tempo, no seio de duas culturas diferentes, os macaenses são particularmente sensíveis aos dois modelos e às duas atmosferas sociais que os rodeiam, sobre os quais, de resto, têm uma experiência muito profunda. Se os elementos culturais patentes nos seus textos parecem jorrar espontaneamente de dentro dos autores, é porque o seu discurso é, sempre, feito a partir da sua própria experiência.

Estrutura Social Complexa e Muito Estratificada

A literatura é uma forma artística que revela a natureza interna da sociedade. Enquanto fenómeno literário de Macau, a literatura macaense reflecte, sob vários aspectos, a realidade de vida e a complexa estratificação social do território.

a) Nas ligações por casamento, entre portugueses e chineses, reflectem-se as relações contraditórias, feitas, simultaneamente, de choques e de encontros entre as duas camadas sociais e raciais.

Por exemplo, no capítulo "My father" (The wind amongst the ruins), de Maria Edith Martini, tal como nos dois contos de Deolinda da Conceição acima mencionados, é retratada a realidade social do casamento no Macau antigo.

A estudiosa de Macau, Beatriz Basto da Silva, acentua a este respeito: "Embora recentemente os casamentos luso-chineses se tenham vulgarizado, essa prática não foi observada com a regularidade e caudal que se poderá supor. A desconfiança e a xenofobia dos filhos do Celeste Império proibiu-lhes tal ligação no início (por medo à nossa fixação definitiva no Sul da China) e nunca a fomentou, embora viesse a suportá-la".23

Em O refúgio da saudade, a família da rapariga, da aristocracia de Macau, fortemente arraigada às tradições culturais chinesas, considera todos os estrangeiros como bárbaros. Quando a filha se apaixona pelo jovem português, ficam imediatamente reunidas as condições para o desencadeamento da tragédia. O fracasso amoroso reflecte um facto histórico, verificado desde muito cedo — as dificuldades que se deparavam aos portugueses sempre que se queriam ligar oficialmente, através do casamento, a raparigas chinesas.

Por outro lado, em "My father", de Maria Edith Martini,24 a relação que o pai, português, mantém às escondidas com a amante; ou, em A esmola, a coabitação entre o português e a rapariga chinesa pobre constituem retratos das relações, "sem laço formal", verificadas entre portugueses e chineses.

Tal como acontece com o filho bastardo de A esmola, a filha ilegítima, em A Chan, a tancareira,25 mostra como estas ligações mistas e não oficiais fazem aparecer, na sociedade, outras contradições, acarretando para este grupo de pessoas destinos diferentes e outro tipo de sofrimentos.

b) Através da descrição dos vários estratos da sociedade de Macau, os autores conseguem reflectir as relações e as interacções verificadas no seio da sociedade: na medida em que os escritores macaenses dominam as duas línguas, o seu espaço de existência e de manobra é muito mais lato do que o das pessoas que não falam chinês ou que não falam português.

A sua experiência pessoal, tal como a sua compreensão das pessoas e coisas das duas sociedades, é muito grande. Enquanto descedentes dos dirigentes portugueses, os macaenses sempre ocuparam, tanto política como economicamente, uma posição de superioridade perante os chineses. Por um lado, têm acesso natural às velhas famílias influentes; por isso mais oportunidades de contactar com a camada mais elevada da sociedade e a real detentora do poder. Alguns escritores macaenses provêm mesmo desse estrato social. Ao mesmo tempo, mantêm frequentes contactos, directos ou indirectos, com os chineses das camadas inferiores. Esta situação especial, que lhes dá uma compreensão e um conhecimento, muito vastos, das circunstâncias materiais e psicológicas de todos os estratos sociais, é o que permite, à sua escrita, a análise tão profunda da realidade social de Macau.

Pela sua pena, podemos ver a vida, tanto no seio das classes elevadas da sociedade macaense, como entre as camadas baixas chinesas. Maria Edith Martini, através da caracterização duma importante família macaense, mostra-nos o quotidiano da classe alta: inúmeros criados; comida requintada e bebidas caras; cabaias da melhor seda e vestidos dos tecidos mais delicados, sofisti-cadamente bordados, xailes à espanhola (como então se usavam); mulheres de maneiras e figuras tão elegantes e delicadas que mais parecem lírios: divertimentos de todo o género; desportos e viagens; homens com amantes; chás ou cocktails ao pôr do sol, em luxuosos clubes privados; recepções por ocasiões especiais como casamentos, festas de caridade, reuniões culturais. Assim passavam o tempo os membros da classe alta, no ócio e no luxo.26

Em contrapartida, tanto Senna Fernandes como Deolinda da Conceição, respectivamente em A Chan, a tancareira e em A esmola, dão-nos a ver a terrível dureza das condições de vida dos pobres. Em A esmola, a mãe, devido às suas origens e sem os direitos ou o poder conferidos pelo casamento, tem em casa o estatuto duma criada. Até o filho sente a mãe como uma humilhação pessoal e, em público, recusa-se a reconhecê-la como tal.Em A Chan, a tancarareira, A Chan, "mal desabrochavam os seis anos", é vendida pelos pais. É frequentemente maltratada pela velha tancareira, chegando a ficar com o corpo "roxo de vergastadas". No entanto, estes maus tratos parecem-lhe menos duros de suportar do que a vida cruel e desumana às mãos do milionário, seu dono anterior.

Já no seu romance Amor e dedinhos de pé, Senna Fernandes descreve a experiência amarga da "queda", do topo da pirâmide social, por parte dum português mestiço, o libertino Francisco que, depois de banido da comunidade portuguesa, passa a viver tal e qual como um chinês, entre a camada mais baixa da sociedade. Através da descrição do sofrimento experimentado nos dois estratos da sociedade de Macau, dá-se a ver, com grande clareza, o estatuto de superioridade dos colonizadores portugueses, a posição inferior dos chineses, a riqueza das famílias da aristocracia macaense, o vazio da atmosfera social, as relações económicas entre portugueses, macaenses e chineses. Todos estes aspectos estão reflectidos na obra que, quadro a quadro, os dá a ver ao leitor, desdobrando aos seus olhos a realidade social e cultural da época.

Há também obras da literatura macaense que reflectem a realidade social de Macau, durante a Segunda Guerra Mundial. Em A Chan, a tancareira, evoca-se a forma como os "roncos sinistros 'dos aviões de guerra' angustiavam os indefesos lares macaenses e traziam à boca preces de corações alanceados". Os amantes "abraçavam-se um ao outro desesperadamente" sob a ameaça da dança da morte, no ar, por cima das suas cabeças, depois da guerra ter posto fim à sua felicidade. Ao mesmo tempo, mostra-se como "a indigência dos refugiados de todos os lugarejos da China sofredora contrastava com a opulência dos novos ricos e dos japoneses que traficavam à sombra duma bandeira neutral". Este conto de Senna Fernandes mostra bem como as gentes de Macau abominavam a Guerra do Pacífico e como ansiavam pela paz.27

A literatura macaense também reflecte as interrogações sobre o futuro. No dia 13 de Abril de 1987, o governo chinês e o governo português assinaram a Declaração Conjunta sobre a questão de Macau, estipulando que, a partir do dia 20 de Dezembro de 1999, Macau regressa à soberania chinesa. O território passará então a ser uma Região Administrativa Especial, situação que não será alterada durante os 50 anos seguintes, no contexto do esquema conhecido por "um país dois sistemas". A nova fase histórica provocou um choque intenso entre os macaenses que, desde longa data e mercê do seu estatuto especial, sempre têm ocupado lugares cimeiros, tanto na política, como na economia. Muitos poemas de José dos Santos Ferreira, por exemplo, reflectem o sentimento de perda, de perplexidade e confusão, nascidos neste novo contexto. Poemas como Futuro, História duma mãe com muitos filhos, Macau do nosso coração, etc., são representativos deste género de poesia.28

A partir do final da década de 70, a política chinesa de abertura e de reformas reforçou o desenvolvimento da economia de Macau e promoveu o intercâmbio, a todos os níveis, entre Macau e o interior da China. O jovem poeta macaense, Carlos Marreiros, levado por esta maré da História, pisou pela primeira vez a "terra sagrada", encetando com esta civilização oriental, velha de cinco mil anos, um contacto e um diálogo profundamente íntimos, do qual resultaram os poemas Dragão de língua preta, Li bai e Lilazes purpúreos da dinastia Ming, verdadeiro registo pessoal dessa sua primeira romagem histórica.

Em resumo, toda a história de Macau, desde a época da colonização, passando pela sucessão das gerações dos macaenses, a Guerra do Pacífico, a abertura política e as reformas da China, a Declaração Conjunta lu-so-chinesa de 1987, as manifestações exteriores das contradições verificadas no seio da estrutura social de Macau, foi transformada e plasmada na superfície da representação escrita. Ou, por outras palavras, todos estes aspectos estão registados, com profundidade, nas obras da literatura macaense.

AFINIDADE COMA CULTURA CHINESA

A cultura chinesa, uma das civilizações mais antigas do mundo, é uma chama que desde sempre iluminou a civilização humana e que esteve na origem da história da humanidade. Há milhares de anos que a civilização chinesa vem irradiando a sua luz própria. Contudo, nos tempos modernos, o espírito de conquista do mundo, por parte da civilização ocidental, quase que reduziu a civilização chinesa a uma exótica feira de antiguidades e bricabraque, onde o Ocidente procura toda a espécie de novidades. Com os macaenses, porém, a situação é diferente. A sua ligação à China e à cultura chinesa é impossível de quebrar, até porque, na sua maioria, são o produto da fusão das duas culturas. É por isso que os seus sentimentos perante a China e perante a cultura chinesa são diferentes dos dos outros "estrangeiros" ocidentais. Como os chineses de Macau, eles rezam a Guan Gong, o deus da guerra, tomam remédios chineses, no primeiro dia do ano novo lunar vão ao templo queimar incenso e fazer os seus votos, e depois acompanham os pais a uma refeição tradicional chinesa. Os hábitos da vida quotidiana dos macaenses são profundamente impregnados de influência chinesa. Face à cultura chinesa, em geral, entre os macaenses e os ocidentais, há um fosso intransponível. Uns estão connosco deste lado do rio, os outros limitam-se "a olhar-nos da outra margem". A literatura macaense também dá conta desta diferença.

Leonel Alves, no seu poema Sabem quem sou, traduz muito expressivamente essa diferença: "Meu pai era transmontano, / Minha mãe china taoista"; "Tenho um pouco de Camões / E defeitos lusitanos / E nalgumas ocasiões / Pensamentos confucianos"; "Meu peito é luso-chinês, / Meu génio sino-lusitano"; "É verdade que me exalto / À maneira portuguesa / Mas também sei fazer alto / Com toda a calma chinesa".29

Este poeta macaense fala-nos da sua alegria e orgulho por ser "macaense". O facto de se saber portador das duas culturas é para ele uma honra. O confucionismo e o tauismo que, tal como Camões (cujo aniversário da morte é o dia nacional de Portugal), são tidos como os símbolos mais elevados das respectivas culturas, ocupam, na alma do poeta, um lugar idêntico. Noutros escritores ocidentais é muito raro encontrar este sentimento.

Também o poeta Carlos Marreiros se relaciona, de perto e desde criança, com a cultura chinesa. Segundo ele próprio conta, com 15 anos já tinha lido os romances de Han Suyin. tendo na maior estima a poesia chinesa antiga, de Li Bai, por exemplo, ou contemporânea, de Ai Qing. A leitura do seu poema Espelho da minha avó faz-nos sentir o afecto do poeta pela avó chinesa, simbolizada pelo "espelho biselado / com moldura de pau preto / e requinte ornamental chinês".

A trama dos fios sentimentais, nestes dois poemas, constitui como que o diagrama dos laços de sangue de Marreiros com a cultura chinesa. Muito naturalmente, o "espelho chinês" tem um significado simbólico, representando a cultura chinesa que Marreiros traz no coração. Em Dragão de língua preta ele usa quatro símbolos muito ricos da cultura chinesa: o marfim, a cânfora, o jade e a tinta da China. Estes quatro símbolos chineses constituem um verdadeiro retrato da sua alma.

Senna Fernandes tem uma base cultural chinesa parecida, que deixou marcas visíveis em A Chan, a tan-careira. Por exemplo, após o acidente violento que vitimou a Velha, no mar, A Chan organiza o enterro, para o qual "vieram os bonzos para os ritos" e, durante o qual, "prantearam as amigas e as carpideiras".30 Ou, no mesmo texto, sobre a personagem feminina, diz: "Estava-lhe porém, nas veias, o fatalismo da raça e, com ele, a sujeição milenária da mulher chinesa aos caprichos do seu homem e senhor".31 Ou ainda, explicando o facto de A Chan não sentir ciúmes pelas outras mulheres que passavam na vida do seu homem, "porque se criara na lógica do concubinato e da bigamia".32

Este substrato cultural chinês é particularmente evidente na forma como Senna Fernandes modela as duas personagens femininas, duas chinesas típicas: A Chan, a tancareira, e a A Luen, a tancareira. Ambas provêm da classe baixa, ambas são obrigadas a vender a força do seu trabalho, sem cultura nem instrução, sem conhecimentos, as duas de feições grosseiras. No entanto, o autor respeita tanto a sua beleza moral, que vai ao ponto de as classificar como tesouros sem preço, assim revelando os seus sentimentos de empatia e simpatia com a cultura chinesa.

É claro que os macaenses, cujas raízes mergulham na cultura portuguesa e no cristianismo, sofreram as influências da moral, dos conceitos e dos valores da sociedade ocidental. Foi, no entanto, um processo que não se terá decerto passado sem conflitos com aquilo que é o cerne da cultura chinesa, representado pelo conceito da "benevolência" da moral confuciana, o ren.

Deolinda da Conceição, em O refúgio da saudade, mostra o domínio despótico e de tipo feudal dos pais sobre os filhos que, sem individualidade própria, vivem sob as ordens dos pais, de mentalidade fechada e conser-vadora, nomeadamente no tocante ao casamento. A sua vida faz um contraste violento com o modo de agir e de pensar duma família representativa da cultura ocidental. Este contraste representa justamente o confronto das culturas ocidental e oriental.

Senna Fernandes, em Amor e dedinhos de pé, ao mesmo tempo que descreve os aspectos retrógrados da cultura chinesa antiga, manifesta a sua profunda compaixão e simpatia por aqueles que a sofrem no corpo.

Entre os portugueses também há muitos que têm escrito sobre Macau, dando conta da sua experiência de contacto com a cultura chinesa. Tendo permanecido bastante tempo em Macau, acabaram por contactar de perto, e por se relacionar a vários níveis, tanto com Macau em si, como com a cultura chinesa em geral. A sua escrita demonstra, em relação a ambos, conhecimentos e sentimentos. No entanto, se pusermos, lado a lado, estes dois tipos de textos, verificaremos, sem dificuldade, que é na mentalidade e na afectividade reveladas na e pela literatura macaense que, nós chineses, "nos" podemos reconhecer.

Forte Sentimento Histórico

Ana Maria Amaro, que investiga, na sua monografia sobre os macaenses, as origens desta comunidade, acentua que, devido à falta de materiais históricos completamente fiáveis e/ou conclusivos a respeito do grupo dos macaenses, a questão tem sido sempre polémica. A esse respeito enumera várias opiniões divergentes. Escreve a autora: "Para Bento da França (1897), no tipo dos macaenses predominam '(...) traços gerais mongóli-cos, mas também participa de feições dos europeus, ma-laios, canarins (...) e é produto de grande mistura de raças e sub-raças, resultante de repetidos cruzamentos, feitos à mercê do acaso'. Eduardo Brazão (1957) conclui: 'Pelas características actuais, a maior parte dos macaenses deve descender do cruzamento com a raça malaia, e poucos com a indiana, num número bastante grande verificam-se características acentuadas da raça china.' Monsenhor Manuel Teixeira (1965), baseado em opiniões de vários autores, e no estudo dos Arquivos Paroquiais de Macau, defende a tese de serem, os macaenses, originários do casamento de homens portugueses com chinesas".33

A autora, por seu lado, e "da análise comparativa de todos estes dados", propõe, condicionalmente, que "as euro-asiáticas teriam sido, em grande maioria, as mães dos macaenses, filhos das primeiras famílias estáveis radicadas em Macau". Pelo modo cauteloso como defende o seu ponto de vista, podemos ver a complexidade desta questão. Além disso, e ainda de acordo com as palavras da autora, a situação dos casamentos ou ligações oficiais, registados nessa época, entre homens portugueses e mulheres euro-asiáticas, sempre foi muito complicada. Além dos casamentos legais, assentes na riqueza e na posição social, houve sempre um grande número de ligações sem casamento, ligações essas que incluíam a coabitação, o concubinato e a compra de escravas. E Ana Maria Amaro acentua, finalmente, que "nenhum autor, até hoje, reparou no anonimato em que ficaram as filhas destas ligações. Qual seria o destino das euro-asiáticas? Levantada a questão nestes termos, ainda se torna mais evidente a complexidade da origem dos macaenses".34

A sensibilidade especial dos escritores macaenses para a sociedade e para a vida de Macau, tal como a sua profunda experiência do Território e a sua especial habilidade para conhecer a natureza das coisas, permitiu-lhes tomar consciência, com uma vivacidade particular, das influências variadas que formam o seu contexto histórico.

Daí que as suas obras, seja qual for o ângulo por que representem a vida, se constituam sempre, ainda que através de diferentes meios artísticos, na expressão do que, de mais fundo, lhes vai na alma. E é por isso que elas são sempre, e em última análise, uma meditação em torno da questão do "quem sou eu".

Em Leonel Alves, sobretudo no poema Filho de Macau, essa meditação transforma-se em auto-retrato. Nele, tanto encontramos a experiência da descoberta do estatuto do "eu", como deparamos com a expressão do sentimento de orgulho pela pertença a duas raças excelentes, a chinesa e a portuguesa, na base dum carácter especial e representativo do melhor que há nas duas heranças genéticas.35

Em Senna Fernandes também encontramos esse olhar histórico sobre o passado. A personagem feminina do conto A Chan, a tancareira, tal como a personagem principal do romance A trança feiticeira, respectivamente, a tancareira e a aguadeira, são figuras simbólicas de como, embora oriundas das camadas mais baixas da sociedade, as primeiras avós dos macaenses eram dotadas duma beleza interior e duma superioridade moral tais que, ainda hoje, continuam a constituir motivo de orgulho para os seus filhos e netos.

Ao contrário, Deolinda da Conceição, no conto A esmola, dá-nos a ver, através da ligação entre o português e a chinesa pobre, o outro lado da questão; ou, por outras palavras, ela analisa a realidade histórica da época por outra perspectiva, a dos filhos ilegítimos, produto dessas ligações não oficiais. E a figura do "bastardo" é como que uma resposta à questão levantada por Ana Maria Amaro. Ao mesmo tempo que revela, com profundidade, o destino trágico deste tipo humano. Todos estes factos históricos e meditações interiores, transformados através da elaboração artística, conferem às obras da literatura macaense uma espessura histórica muito forte.

Esse sentimento histórico também transparece na fortíssima ligação sentimental dos escritores com Macau, abundantemente reflectida nas suas obras. Em qualquer dos autores referidos podemos descobrir este afecto trans-bordante, sempre entranhado no seu coração. Eles elogiam a sua terra, cantam a sua "beleza", a sua "pureza", a "doçura", a "tranquilidade", confessando exaustivamente o sentimento de lhe pertencerem de corpo e alma.

É uma fidelidade amorosa que vem de longe, ou não estivesse a origem e o desenvolvimento da comunidade macaense intrinsecamente ligados a Macau. Há mais de quatrocentos anos que, geração após geração, aqui nascem, crescem e se multiplicam, sempre considerando Macau como a sua sagrada terra natal. Aqui estão enterrados os seus antepassados, neste solo ficaram gravadas as pegadas do seu crescimento. As raízes e a trama das suas vidas aqui se entrelaçam, como aqui estão presas as raízes da sua cultura. Este bocado de terra é uma parte inseparável da vida e da história desta comunidade. O facto de eles se intitularem a si próprios "filhos da terra" demonstra o amor profundo e devotado que nutrem por ela.

É por essa razão que o seu sentimento de afecto por Macau, manifestado na literatura, tem sempre o poder de comover o leitor, de calar fundo no seu coração. No plano da realidade, a expressão desse sentimento é sempre feita em termos do conhecimento e da experiência da sua identidade histórica.

A este respeito, leia-se, por exemplo, o poema de José dos Santos Ferreira, Macau pequenina: "Minha terra, / Meu berço, / Amor ardente do meu coração; / Macau pequenina, / Filha duma Pátria grande!"36

Ou, então, de Leonel Alves, a Canção de fé macaense: "É Macau terra pequena, / Mas com alma grande e leal / (...) Porque deste infértil chão / Nasceu com toda a beleza / Uma planta de afeição / Com raiz luso-chinesa".37

Postas a par, estas duas citações, se, por um lado, aproximam os seus autores — no amor por Macau, por outro lado, revelam bem a diferente consciência que cada um tem sobre o estatuto histórico da sua terra natal.

Este aspecto é ainda mais evidente na obra de Maria Edith Martini. Livro de memórias sobre a vida em Macau, a obra assenta no sentimento de saudade pela terra natal, experimentado pela autora no país distante onde vive. Este retrato duma experiência de alma é, porém, e sobretudo, um olhar para trás de tipo histórico. Isto mesmo é dito, com muita clareza, na parte introdutória, da obra referida: "Strange and frightening! (...) recollections so vivid that it seems I am travelling backwards forty-five years through a tunnel towards my childhood, towards my birthplace" [Estranho e assustador! (...) recordações tão nítidas que me parece estar a viajar no tempo, quarenta e cinco anos para trás, através dum túnel, até à minha infância, até à minha terra natal].38

"She [the author's grandmother] died alone, so far from her roots, from that fascinating island where she was bom, lived and built her family. And I am still farther away in a country where there is no knowledge of that exotic place where I belonged (...) she held out her hand and took the small child that exists in me, and we both crossed this great length of time separating the present from the past and she made me learn to reach out for my roots, to know myself better" [Ela [a avó materna da autora] morreu sozinha, tão longe das suas raízes, da encantadora ilha onde nasceu, viveu e construiu a sua família. E eu ainda estou mais longe, num país que desconhece a existência do lugar exótico a que pertenci (...) ela estendeu-me a mão e, pegando na criança que há em mim, atravessámos as duas a enorme distância que separa o presente do passado, ela ensinou-me a procurar as minhas raízes para me conhecer melhor].39

O processo de auto-conhecimento, que emerge neste texto, consiste no fazer da sua própria história e da sua família, bem como do da comunidade macaense em que ela se insere, no contexto do processo histórico de Macau. E nessa medida volta a ecoar, na escrita da autora macaense, a sempre presente questão do "quem sou eu".

Contudo, a História não deixa às pessoas, apenas, o passado. A Declaração Conjunta luso-chinesa estipula que, em 1999, Macau regressa à China. A administração política portuguesa de Macau cessa a partir dessa data. A mudança do estatuto histórico do Território confronta os macaenses com uma viragem nas suas vidas, na medida em que implica um futuro em aberto. A nova situação é vivida já em termos de memória e saudade, numa espécie de nova responsabilidade espiritual que também transparece na sua escrita.

É exactamente a mistura entre o passado e o futuro, o olhar para trás, avaliando o que se foi, e para a frente, imaginando o que se vai ser, a mistura de perdas e de esperanças entrelaçadas nas obras da literatura macaense, que lhes confere uma forte conotação histórica, bem como o seu sabor verdadeiramente único. É por esse lado que estas obras têm o condão de levar o leitor a meditar sobre a vida humana, o destino colectivo e individual. Em suma, é o que lhes confere o seu carácter épico.

Psicologia Atravessada de Contradições

A estrutura psicológica duma sociedade é a camada mais profunda e a essência básica, pela qual se podem distinguir as diferentes culturas humanas. Sendo diferentes as condições naturais, físicas, sociológicas e históricas, que estão na base da vida humana, também a psicologia cultural dos povos apresenta diferenças muito grandes.

As obras da Literatura não constituem apenas a cristalização da existência espiritual dos seus autores. Elas resultam também das camadas profundas da estrutura espiritual e psíquica da comunidade.

Os portugueses macaenses vivem há muito tempo numa terra que pertence à China, mas que é administrada politicamente pelos portugueses e têm, na sua herança genética, dois sangues diferentes, o sangue europeu e o sangue asiático. Uma história complexa, na realidade das suas vidas, fê-los sofrer influências complexas. A sua psicologia colectiva é atravessada por numerosas contradições que se reflectem na literatura, isso constituindo outra característica peculiar. Estas contradições psicológicas reflectem-se, antes de mais, na sua relação afectiva com Macau.

Os macaenses nutrem um sentimento muito forte pela terra que os gerou e criou. No entanto, devido ao seu estatuto particular, enquanto comunidade, e à língua que falam, eles sentem que Macau é um "lugar inseguro", segundo as palavras do antropólogo português João Pina Cabral: "(...) um dos aspectos mais constantes do que se tem escrito sobre Macau de há cem anos a esta parte [é] a recorrência de frases em que se anuncia para breve o término da comunidade macaense (...) 'morte anunciada' [que] está associada a uma imagem de abandono, aquilo a que tantas vezes se tem chamado a 'diáspora macaense'". E Pina Cabral continua (citando o que classifica de "tendencioso" relatório da alfândega da Lapa de 1921, referido na obra de C. A. Montalto de Jesus, Macau histórico, Macau, Livros do Oriente, 1990): "Cada mudança de governador ou nova leva de boatos traz a sua quota parte de imigrantes cujo único desejo é sair de onde estavam".40

Em resumo, na relação dos macaenses com a sua terra natal tem estado sempre subjacente, ao longo da História, uma certa preocupação.

Em Maria Edith Martini pode-se vislumbrar essa psicologia complexa e contraditória. No começo do capítulo Yesterday, lemos a seguinte descrição, feita através do "eu" duma rapariguinha de cinco anos que, em frente duma janela, assiste a uma tempestade: "The Pearl River on the far horizon is turning dark brown, with wisps of white foam. The whole island is rocked back and forth by the force of the winds and rains, and I think, will this force blow away the pains, the fears, the dark memories that lately have troubled my sleep? Will it blow away the old imposing house (...) will it crack its walls, bring down the roof, and transform this place into another ruin amongst so many others in this old city?" [Ao longe, o Rio das Pérolas está a ficar castanho escuro, com farrapos de espuma branca. Toda a ilha oscila, dum lado para o outro, com a força das chuvas e dos ventos, e eu pergunto-me se esta força irá varrer o medo, a angústia, as más recordações que ultimamente me têm perturbado o sono? Se irá deitar abaixo a imponente casa velha (...) se fará ruir as paredes e abater o telhado, transformando-a numa ruína entre as muitas outras que há nesta velha cidade?].41

O que se pode ver é que, ao mesmo tempo que lá fora a ilha oscila e vacila com a força dos ventos e da chuva, o coração, por dentro, também oscila e vacila. E isto porque o "eu" não tem maneira de prever o resultado da tempestade. Deseja que a tempestade possa "varrer o sofrimento, os medos, as más recordações que ultimamente me têm perturbado o sono", mas também teme que ela possa varrer, de vez, a "velha casa", transformando-a "numa outra ruína".

A "tempestade" significa a "insegurança"; a "velha casa", em contrapartida, conota, naquele contexto, o "passado" ou "as raízes". Em relação à "velha casa", o "eu" tem um sentimento ambivalente e contraditório. Se, por um lado, não quer continuar a habitá-la (porque ela já não é apropriada), por outro, também não a quer perder. Preocupa-a, sobretudo, que a casa não resista ao teste da tempestade, que se transforme numa relíquia histórica sem vida. No capítulo intitulado Today, passadas várias dezenas de anos, o "eu", que agora vive num país distante, ao voltar a enfrentar uma noite de tempestade, volta a sentir a mesma tremura e vacilação da alma. Contudo, "(...) this time (...) in my own warm house, my own small family tucked safely away in sleep" [(...) desta vez (...) no conforto da minha própria casa com a família aconchegada na segurança do sono].42

Em condições normais, uma pessoa sente-se decerto em segurança, em casa, num ambiente "confortável" e "seguro". Mas aqui, é o estado de espírito do "eu", que, tal como anteriormente, não está em sossego. De repente ela vê "(...) reflected in the wet glass the face of a five-year-old girl staring back at me with the eyes of my past" [(...) reflectido no vidro molhado, o rosto duma raparigui-nha de cinco anos, a fitar-me com os olhos do meu pas--sado]. As sombras da memória controlam-lhe a mente e trazem-lhe para a vida de "hoje" a "velha casa", já em ruínas. Esta passagem demonstra que, apesar de ter deixado a casa velha, e obtido segurança pessoal, o seu espírito não consegue estar tranquilo, talvez ela não possa, nunca mais, ver-se livre do seu "ontem", talvez não pos--sa esquecer a terra que a gerou e criou. Tal como o seu velho "eu" repete para si próprio: "The ruins are still standing, your roots are still deep in your birthland, no wind will be able to tear them away" [As ruínas ainda estão em pé, as tuas raízes continuam bem enterradas na tua terra natal, não há vento que as possa arrancar].43 Este estado de espírito contraditório pode não resultar, necessariamente, duma tomada de consciência por parte do autor. Nós leitores é que, ao analisar o texto, o colocamos no contexto histórico específico e no plano da realidade da vida dos macaenses, podendo ver, sem dificuldade, as contradições que o atravessam.

Em José dos Santos Ferreira, nomeadamente no poema História duma dama com muitos filhos, o mesmo sentimento de ambivalência é ainda mais evidente. O autor compara Macau a um "filho pequenino" que confessa à "mãe", Portugal, a sua perplexidade e preocupação: "Mãe querida, meu doce amor, / Eu não te quero deixar, / não desejo conhecer outra mãe". Mas a "mãe" acentua que é preciso aceitar a realidade. E "o filho pequenino, habituado a obedecer, / De rosto entristecido, / Joelhos postos no chão, / ergue a cabeça, olhos lacrimejando", pergunta ao anjo que, entretanto, vê aparecer no céu, "se irremediavelmente tem de seguir, / perder para sempre sua mãe, perecer (...)". No final só lhe resta orar "com fervor", pedindo protecção a Deus.44

No decurso do processo histórico de Macau, os portugueses macaenses vão sendo confrontados com novas etapas, que sempre acarretam consigo novas escolhas. O poema de Santos Ferreira acima mencionado reflecte justamente esse sentimento de dolorosa ambivalência, ligado à necessidade de ter que escolher. Este conflito interior e sentimentos contraditórios são traduzidos de forma intensa e profunda, contradição dolorosa e dor contraditória que, por terem passado a fazer parte da vida dos macaenses, deixaram, necessariamente, marcas profundas na sua literatura.

Contudo, este estado de espírito complexo e contraditório não se reflecte só na sua relação com Macau. Um autor chinês de Macau, Yan Yun Zhong, salienta:"Durante as várias centenas de anos de domínio político--administrativo dos portugueses, os macaenses ocuparam uma posição especial, quase crucial, na sociedade local. Isto porque, dominando as duas línguas e conhecendo muito bem a realidade local, os funcionários públicos portugueses dependiam deles para administrar o território. Além disso, eles também serviam de ligação entre a camada superior dos funcionários públicos e a grande maioria da população. Tanto em termos políticos como em termos económicos, e até em termos psicológicos, eles sempre estiveram numa posição superior à maioria dos chineses".

Antigamente, aos olhos dos chineses de Macau, os macaenses apareciam como pessoas dotadas dum grande sentimento de superioridade. Contudo, como acentua a autora portuguesa, Beatriz Basto da Silva: "Bem cedo os primeiros filhos da terra perceberam que os reinóis que iam chegando nas naus é que mandavam, e a exuberância, que pressupõe a liberdade, não teve lugar". Para esta autora, o macaense bem cedo se habituou "a ver no bambu, que verga mas não quebra, o seu próprio símbolo". Isto porque "quando o bambu cresce dobrado, não lhe é fácil depois endireitar-se, e poderá adoptar o seu aleijão como definitivo, para não sofrer mais. Essa submissão à dor-hábito existe no macaense, pela componente oriental da sua origem".45

O que daqui se pode verificar é que a posição dos portugueses macaenses não é igual à dos portugueses que "chegam nas naus". Os últimos são os detentores da "glória de mandar", os primeiros, em contrapartida, não têm essa liberdade. Além disso, a "componente oriental da sua origem" faz com que os macaenses se assemelhem ainda mais à "curvatura" do bambu, símbolo das pessoas para as quais o sofrimento se tornou um hábito. Por aqui vemos o sofrimento que eles não querem mostrar, vemos como escondem o seu complexo de inferioridade sob um sentimento de superioridade. Esta mistura entre um sentimento de superioridade e um complexo de inferioridade é outra contradição psicológica, que se constitui em característica específica da escrita dos macaenses.

Em A esmola, o filho bastardo, à superfície frio e desprendido, no seu foro interior sofre, em extremo. É uma ferida que vem "desde os tenros anos, quando compreendera a diferença que existia entre ele e os outros companheiros". E esse "sentimento fora o móbil principal que o impelira a trabalhar afincadamente, a passar longas horas metido entre os seus livros, a abdicar dos seus direitos de criança para pensar apenas no sonho encantador de se libertar daquela situação humilhante".46

A sua "situação humilhante" provém do seu estatuto de "bastardo", e também da "situação indefinida" dos pais, da pobreza da mãe, chinesa, "ignorante, de pé descalço, sem a mais ligeira noção de educação"; em suma, provém da marca de mestiço que traz na fronte. No fundo de si próprio, sempre se sentiu inferior aos outros.

Uma vez instalado, o complexo de inferioridade transforma-se muitas vezes numa corrente subterrânea, que secretamente perpassa pela vida mental da pessoa, determinando todos os seus comportamentos. O sacrifício que o bastardo faz da sua infância é um esforço desesperado para ser alguém, ser respeitado, fruir duma posição'de igualdade. Este desejo ou necessidade de "reparar" o que toma como a sua inferioridade pode levar a extremos em que a pessoa se vê como que despojada daquilo que em si é mais humano. No conto de Deolinda da Conceição, o filho chega ao extremo de nem sequer querer reconhecer a sua própria mãe. Ao longo do texto, vai-nos sendo dada a ver a sua revolta pelos modos que abomina na mãe: "limpar os olhos às mangas da cabaia", os "gritos que ela soltara, com aquela manifestação espalhafatosa de saudade tão própria da sua maneira de ser". O seu sentimento face a uma "mãe que ele amava no seu íntimo", mas "de quem se envergonhava na sociedade", reflecte como ele, de modo inconsciente, olha de alto para a população chinesa das camadas sociais inferiores.47

Já em A Chan, a tancareira, o marinheiro português, Manuel, consegue ver, para lá da rudeza superficial, as qualidades interiores, a beleza da personalidade de A Chan, por ela manifestando todo o respeito. Respeito que, contudo, não o impede de a abandonar e partir, numa ilustração clara dos limites da sua capacidade de respeitar a mulher que lhe deu uma filha. Ao mesmo tempo, os elogios do autor à passividade e submissão de A Chan, características femininas tidas como positivas na cultura tradicional chinesa, se vistas à luz actual são questionáveis. No entanto, no texto, essa aspiração masculina a domesticar a personalidade feminina ilustra a desigualdade de estatuto social entre a personagem feminina e a masculina.

No poema de José dos Santos Ferreira, História duma mãe com muitos filhos, em que o autor afirma que "filho de Portugal é filho de Deus", o sentimento de superioridade é bastante evidente.48 Esta é uma das obras que reflectem um estado de espírito caracteristicamente colonial.

Não é fácil enquadrar a psicologia cultural dum povo, na medida em que ela constitui como que o "precipitado" duma série de diferentes tempos e modos espirituais e culturais. A complexa psicologia cultural, reflectida na literatura macaense, é a manifestação artística do conteúdo cultural desta comunidade.

A PERMUTA CULTURAL ESTILÍSTICA

Um texto crítico português sobre a obra Cheong-sam: a cabaia põe em confronto as diferentes técnicas artísticas empregues em A cabaia com as usadas em obras literárias portuguesas. Esta é uma característica comum a muitas obras da literatura macaense. No texto crítico referido, tenta-se aproximar essa obra da literatura macaense do sistema literário em que se enquadra a narrativa tradicional chinesa.

A narrativa tradicional chinesa, especialmente as hua ben, sobretudo a partir da dinastia Song, sofreu uma enorme influência da literatura oral, i. e., da maneira dos narradores contarem as suas histórias. Estes, ao narrarem a história, não atribuem em geral importância aos diálogos, nem se alongam na descrição de pormenores. Até ao momento em que começa a sofrer a influência do romance ocidental, a narrativa chinesa de ficção tinha essas características. Em contrapartida, a narrativa ocidental dá muita importância à caracterização das personagens, à descrição psicológica, à descrição das paisagens e aos diálogos entre as personagens. Por vezes até inclui comentários do autor relativamente longos. Ora, a literatura macaense, ao exibir características que não correspondem às da literatura ocidental, pode parecer, aos olhos do crítico literário ocidental, como "raramente vista". Aos nossos olhos, em contrapartida, parece "familiar".

Pela caracterização de personagens chinesas, como a tancareira e a aguadeira, não nos é difícil verificar como nos conceitos estéticos e nos juízos de valor de Senna Fernandes aparecem elementos chineses. A Chan é de origem humilde, não é bonita, mas o olhar do autor, interessado em revelar a sua beleza moral interior, denuncia a sua tendência e preferência ao estilo chinês, pelo conceito de beleza moral. Em A Luen também aparece este toque de beleza moral, sobretudo no final da história, quando a nora, sem o mínimo rancor, acolhe afectuosamente o sogro que até ali não a tinha querido receber.

Estes dois tipos de mulheres nada têm a ver com a representação da personalidade feminina característica da narrativa ocidental. A narrativa ocidental, ao representar o feminino, dá atenção sobretudo à expressão da pessoa e ao seu valor individual bem como à força da sua personalidade. Na obra de muitos escritores ocidentais, a personagem feminina é representada em luta, manifestando coragem e espírito de luta, para se libertar da sua condição social e cultural, sobretudo para tentar alcançar a liberdade no que diz respeito ao casamento. A beleza interior das personagens femininas ocidentais parte sobretudo da força da sua personalidade, do seu desejo e aspiração à libertação individual, bem como da aceitação e reconhecimento dos seus próprios valores individuais na vida. Mas, em Senna Fernandes, nos dois romances, Amor e dedinhos de pé e A trança feiticeira, é o aspecto moral das personagens que é o símbolo da beleza interior, num óbvio paralelismo com o espírito e a letra da narrativa tradicional chinesa.

Nestes dois romances, que "acabam bem", é patente essa tendência chinesa para uma apreciação estética de tipo moral. O protagonista de Amor e dedinhos de pé, depois da sua amarga experiência, toma consciência dos seus erros e arrepende-se; torna-se num bom marido e num bom pai. Em A trança feiticeira, o pai obstinado e inflexível, uma vez só, arrepende-se e vai a casa do filho, onde recebe as boas-vindas da nora chinesa. Nesta cena, em que a rapariga retribui o mal que lhe foi feito com o bem, perspectiva-se o reencontro feliz de toda a família. Nela está subjacente o gosto pelo "reencontro final feliz", epílogo típico das histórias chinesas, em contraste evidente com os hábitos do romance ocidental, cujo final tende a ser trágico.

Devido à influência da estética tradicional chinesa, a narrativa tradicional chinesa sempre deu ênfase especial à união familiar. Por outro lado, o gosto pelo hap-py end provém de hábitos próprios do povo chinês. O desfecho de tipo moral e optimista, em que os bons são recompensados e os maus castigados, e todos ficam felizes, não só constitui uma lição para os leitores, como tem um efeito psicológico reparador.

A literatura tradicional chinesa sempre valorizou a poesia e desvalorizou o teatro e o romance, géneros que, passados pelo crivo do pensamento confuciano, eram considerados como "sem arte", pelo que não tinham entrada no palácio oficial das Belas Artes. O teatro e o romance pertenciam à literatura vulgar, na medida em que era forte o seu lado recreativo e fraco o conteúdo filosófico. Os chineses vão ao teatro ou lêem romances para se divertirem. Era muitas vezes para celebrar uma ocasião ou um acontecimento especial que se ia ouvir contar uma história, ou assistir a uma peça de teatro. Um desfecho infeliz não vinha a propósito. Tradicionalmente o romance e o teatro eram vistos como formas de "comprar alegria".

Por outro lado, a cultura chinesa, ao acentuar a unidade e a integração harmoniosa da pessoa na natureza, a interdependência das pessoas entre si, bem como do indivíduo com a sociedade, é levada a dar grande importância à moral e à ética, ao estudo da chamada "doutrina do meio termo", vista como o caminho da perfeição. Defendendo, desde sempre, que no mundo da realidade se deve procurar e conservar a felicidade e a alegria humanas, a cultura chinesa encarna. uma espécie de reino do "espírito optimista" nas palavras de Wang Guowei. É esse espírito que caracteriza a narrativa chinesa tradicional no nosso país.

Apesar de, em geral, não saberem ler chinês, os escritores macaenses não deixam de ter contacto com a literatura chinesa, sobretudo através de traduções. E por essa via foram e são influenciados por ela. É o caso de Senna Fernandes, que leu Hong lou meng [Dream of the red mansion, na edição inglesa, e Le rêve dans le pavillon rouge, na edição francesa]. Carlos Marreiros leu também traduções de Li Bai e de Ai Qing. Por outro lado, também não se podem menosprezar todas as influências imperceptíveis da cultura chinesa, a que estão sujeitos aos mais variados níveis. Uma vez que se reflectem, na sua escrita, influências da literatura chinesa e do espírito da cultura tradicional chinesa, não é de estranhar que, nas suas obras, também apareçam características da narrativa chinesa.

É claro que, para os escritores macaenses, a influência mais importante advém da educação e cultura ocidentais, a que sempre estiveram sujeitos. As características principais das suas obras têm a ver, antes de mais, com a literatura ocidental. É o caso da descrição, em estilo de montagem cinematográfica, por cenas, que se ve-rifica em A Chan, a tancareira: "a aldeia cinzenta, perdida algures no delta (...). Um pagode, alcandorado na lom-ba dum cerro, calvos bonzos em lúgubres pantominas".49

Em O refúgio da saudade é assim descrito o cenário natural: "Aquela casa linda, debruçada sobre o mar, rodeada dum jardim florido, de janelas sempre abertas e cortinados agitados ao vento, não era diferente das outras que surgiram a matizar a encosta doirada pelo sol e que punham uma nota tão linda no horizonte".50 Parece uma máquina de filmar que, com forte impacto visual, dá a ver o mundo ao leitor. Na mesma obra, A esmola apresenta uma caracterização psicológica invulgarmente profunda e minuciosa. O seu epílogo inesperado vem também na linha dos meios estilísticos típicos da literatura ocidental. Assemelha-se a histórias ocidentais como La parure, de Guy de Maupassant, ou The story of an hour, da escritora americana Kate Chopin, ou Telefonema das oito, do escritor português José Rodrigues Miguéis, cujos epílogos inesperados reforçam o significado trágico das histórias.

Também Maria Edith Martini recorre, em The wind amongst the ruins, a muitas imagens, efeitos de sugestão e outros recursos estilísticos característicos do simbolismo ocidental. Por exemplo, para narrar a recordação, por parte do autor, do seu passado, ela não usa o método habitual de contar o passado. Cria uma criança de cinco anos, um outro "eu" antigo, que é posto a dialogar com o "eu" actual. As recordações começam a surgir quando a criança leva a mulher a visitar a velha casa onde a última nasceu. Este "eu" de cinco anos não está presente nem ausente na história, é apenas um artifício literário que representa o passado. A "velha casa" também tem esse efeito de simbolizar o passado, sugerindo as raízes ancestrais da família da autora.

Carlos Marreiros, por seu turno, no poema Dragão de língua preta, usa quatro símbolos chineses — o jade, a cânfora, o marfim, a tinta-da-China — que exprimem o seu respeito pela civilização chinesa.

No plano linguístico, a "língua de Macau", usada na literatura macaense desde muito cedo, atraiu a atenção de linguistas estrangeiros. Em 1924, a revista "Ta Ssi Yang Kuo" publicou uma carta, enviada pelo conhe-cido filólogo português, José Leite de Vasconcelos, a J. F. M. Pereira, na qual chama a atenção para a "língua de Macau" usada na letra duma cantiga da época, que Leite de Vasconcelos investigou e analisou. Nos últimos anos, também houve estudiosos portugueses a manifestarem interesse pelo fenómeno linguístico, de características especiais, que se encontra nas obras da literatura macaense. No entanto, o interesse parece continuar a ser apenas do ponto de vista da língua. Actualmente, e na perspectiva da literatura, esta língua especial deveria traduzir novos significados. Além de ser uma característica linguística particular da literatura macaense, também ela partilha do mesmo colorido cultural, que perpassa na literatura macaense como um todo.

Resumindo, a Literatura macaense, pelo facto de reflectir a interpenetração de duas culturas, apresenta características próprias que a toma impossível de identificar completamente com a literatura portuguesa, ou com a literatura chinesa. Na verdade ela dispõe dos seus próprios modelos estéticos e de características literárias que lhe são próprias.

CONCLUSÃO

Como já se disse, os macaenses são, enquanto descendentes dos portugueses, herdeiros naturais da cultura portuguesa; por outro lado, têm, quer em termos geográficos, quer em herança genética, uma relação inseparável com os chineses. Tendo sofrido influências múltiplas da cultura chinesa, tanto a sua estrutura mental e psicológica como os seus valores estéticos e morais não são unilaterais nem unívocos. As obras dos escritores macaenses representam, exactamente, a cristalização espiritual dessas duas fontes culturais. As alegrias, dores, perplexidades, perdas; manifestadas pela sua escrita, provêm duma mentalidade e duma afectividade particulares, que são produto das suas condições históricas específicas, do seu contexto cultural e ambiente de vida. Nessa maneira de pensar e de sentir, nem totalmente chinesas, nem totalmente portuguesas, podem-se encontrar genes dos dois lados.

Vistas as coisas do lado da literatura, a situação é semelhante. É também essa característica dual que confere à sua literatura uma singularidade particular. Ela reflecte as marcas do intercâmbio cultural verificado entre o Ocidente e a China. No estudo da literatura macaense é particularmente significativa a análise dos modelos culturais e da psicologia colectiva, condensada e reflectida pelos textos.

A literatura é uma parte do complexo cultural da sociedade. Ela está intimamente ligada tanto à cultura como um todo como às outras componentes culturais. A constituição e o desenvolvimento da literatura macaense foram fortemente influenciados por outros elementos culturais alheios à literatura. Tal como a literatura dos chineses de Macau é uma componente do sistema orgânico que é a cultura do território.

Macau é uma cidade internacional, com uma história de várias centenas de anos de trocas culturais entre o Oriente e o Ocidente, situação que se manifesta em vários aspectos da sua cultura multifacetada. A descoberta e o reconhecimento da literatura de Macau não devem ser feitos apenas como tentativa para determinar o seu valor intrínseco, devem também assumir-se como uma contribuição para a literatura de Macau e para a cultura de Macau, em geral. No entanto, e acima de tudo, o estudo da literatura macaense tem de ser um complemento para o estudo da literatura de Macau. As raízes da literatura macaense estão em Macau, não estão em Portugal. Só esta Terra, só a história desta península produziu estas obras literárias. Sendo o fruto da cultura deste solo, têm o seu lugar próprio no jardim das letras de Macau. Quando dizemos que é preciso investigar a literatura de Macau, temos forçosamente de incluir a literatura macaense. Até porque ela é, entre as componentes da literatura de Macau, uma das que mais a enriquece e melhor a define.

Se ainda quisermos avançar mais na nossa análise da literatura de Macau, constataremos que, além da literatura dos chineses e da literatura dos macaenses, há ainda a poesia, os romances ou outro tipo de textos de escritores portugueses aqui residentes, definitiva ou temporariamente, ou em simples visita. A existência destes três ramos literários constitui um tesouro cultural precioso da sociedade de Macau. Independentemente das relações entre eles, estes três ramos literários constituem um todo único, de valor humano sem paralelo, no estabelecimento do conceito "Literatura de Macau". Literatura de Macau que, não só pode encarnar amplamente o símbolo cultural da cidade, como, no contexto da literatura mundial, pode exibir singularidade e especificidade únicas. Localmente, o estudo e a comparação entre estes três ramos literários pode levar as pessoas a compreenderem as diferentes comunidades de Macau, com as suas mentalidades próprias, formadas sob diferentes contextos culturais. E assim contribuir para o enriquecimento das várias comunidades.

Pelo que fica dito para trás, julgo poder concluir que há possibilidades e capacidades para levar por diante o estudo e a investigação da literatura macaense. Este trabalho é apenas um começo, até porque o conhecimento e a compreensão que lhe serviram de base são limitados. De modo a compreender mais e melhor, há ainda muito trabalho para fazer.

Traduzido do original chinês por Maria Trigoso.

NOTAS

ALVES, Leonel, Filho de Macau, in: Por caminhos solitários, Macau, ICM, 1987.

MORBEY, Jorge, Macau 1999, Macau, ed. autor, 1990.

CABRAL, João de Pina; LOURENÇO, Nelson, O Macau bambu: um estudo sobre a identidade étnica macaense e a sucessão das gerações, "Administração", Macau, 6 (21) Set. 1993, pp. 523-557.

4 MORBEY, Jorge, op. cit.

5 BATALHA, Graciete Nogueira, Poesia tradicional de Macau, Macau, ed. autor, 1988.

6 FOLK-LORE macaísta: adivinhas, coligidos, coordenados e anotados por J. F. Marques Pereira, "Ta Ssi Yang Kuo: Arquivos e Anais do Extremo Oriente Português", Lisboa, 1899-1903, ed. facsimilada, Macau, Serviços de Educação e Cultura, Arquivo Histórico de Macau, 1980.

7 Ibd, ibid.

8 BARREIROS, Leopoldo, ed., Folk-lore macaísta, "Renascimento", Macau, 1943-1945.

9 LIMA, José Baptista Miranda de, Ajuste de casamento de Nhi Pancha cô Nhum Vicente, "Ta Ssi Yang Kuo", p. 57.

10 RUAS, A. J., Em 23 de Dezembro, "Ta Ssi Yang Kuo", p.190.

11 RUAS, A. J., Dizia o nosso poeta Francisco de Sá, a senhora bem o sabe, "Ta Ssi Yang Kuo", p. 191.

12 VASCONCELOS, José Leite de, Uma poesiamacaísta, "Ta Ssi Yang Kuo", p. 778.

13 AMARO, Ana Maria, Filhos da terra, Macau, ICM, 1988, p.91.

14 ALVES, Leonel, op. cit.

15 CONCEIÇÃO, Deolinda da, Cheong-sam: a cabaia, Macau, ICM, 1987.

16 FERREIRA, José dos Santos, Macau, jardim abençoado, Macau, ICM, 1986; FERREIRA, José dos Santos, História de Maria e alferes João, Macau, ICM, 1987.

17 FERNANDES, Henrique de Senna, Amor e dedinhos de pé, Macau, ICM, 1986; FERNANDES, Henrique de Senna, Nanvan: contos de Macau, Macau, ed. autor, 1978; FERNANDES, Henrique de Senna, A trança feiticeira, Macau, Fundação Oriente, 1993.

18 MARTINI, Maria Edith Jorge de, The wind amongst the ruins, New York, Vantage Press, 1993.

19 FERNANDES, Henrique de Senna, op. cit., 1978, pp. 10-1.

20 CONCEIÇÃO, Deolinda da, op. cit., p. 51.

21 Ibd, ibid.

22 Id., p. 107.

23 SILVA, Beatriz Basto da, Macaenses, quem são: um problema de identidade, "Via Latina", Coimbra, 1991; ou "Estudos de Macau: boletim da Fundação Macau/Universidade de Macau", (1) Set. 1993, p. 129, versão em língua chinesa.

24 MARTINI, Maria Edith Jorge de, op. cit., cap. 3.

25 FERNANDES, Henrique de Senna, op. cit., 1978.

26 MARTINI, Maria Edith Jorge de, op. cit.

27 FERNANDES, Henrique de Senna, op. cit., 1978, p. 12.

28 FERREIRA, José dos Santos, op. cit., 1986.

29 ALVES, Leonel, op. cit., p. 29.

30 FERNANDES, Henrique de Senna, op. cit., 1978, p. 8.

31 Id., p. 13.

32 Id., p. 10.

33 AMARO, Ana Maria, op. cit., p 4.

34 Id., p. 6.

35 ALVES, Leonel, op. cit., p. 34.

36 FERREIRA, José dos Santos, op. cit., 1986, p. 161.

37 ALVES, Leonel, op. cit., p. 105.

38 MARTINI, Maria Edith Jorge de, op. cit., p. IX.

39 Id., p. X.

40 Cf. nota 3.

41 MARTINI, Maria Edith Jorge de, op. cit., p. 1.

42 Id., p2.

43 Id., p. 2.

44 FERREIRA, José dos Santos, op. cit., 1986, p. 139.

45 SILVA, Beatriz Basto da, op. cit.

46 CONCEIÇÃO, Deolinda da, op. cit., p. 54.

47 Id., pp. 55-58.

48 FERREIRA, José dos Santos, op. cit., 1986, p. 13.

49 FERNANDES, Henrique de Senna, op. cit., 1978, p. 7.

50 CONCEIÇÃO, Deolinda da, op. cit., p. 109.

*Licenciada em Artes e Literatura pela Universidade de Jinan; professora da Universidade de Macau, Departamento de Estudos Chineses.

desde a p. 67
até a p.