Cinema

CINEMA EM MACAU III (1932-36)

Henrique de Senna Fernandes*

Teatro Nanquim. Macau.

O ano de 1932 iniciou-se calmamente, a população portuguesa preparando-se para gozar o mês do Carnaval, com a organização de "tunas" e planos para os "assaltos". A guerra na Manchúria, amortecido o impacto dos primeiros tempos, voltara a ser um acontecimento em terra remota. As corridas de cães obtinham um êxito notável, com os barcos de carreira superlotados, aparecendo nas viagens entre Macau e Hong-Kong um novo ferry, rápido, cómodo e elegante - o "Veneza".

No capítulo do cinema, ouvem-se pela primeira vez as vozes de Lon Chaney e Greta Garbo, respectivamente nos filmes "The Unholy Three" e "Romance", ambos no Vitória. O Capitol distingue-se com uma película que é um vale de lágrimas: "East Lynne". Janeiro também será o mês de "Huckleberry Finn", com Mitzi Green e Jackie Coogan, e de "King of Jazz", um dos melhores filmes musicais de todos os tempos, ambos apresentados no Capitol.

A vida continua tão despreocupada que "A Voz de Macau" se entretem, numa coluna, a falar de uma das figuras mais populares e características da nossa terra nos anos 30, o "Calito Maluco", também conhecido por "Calito-Tâo-Kai" (Calito que furta galinha). Quem, das gerações mais velhas, não se recorda desse pobre homem, desdentado, calvo, sujo, tanta vez embriagado, falando um patois retinto, fazendo de moço de recados para não morrer de fome, ou simplesmente pedindo "emprestado" dez ou vinte avos às pessoas conhecidas?

Quem não se lembrará do seu pregão habitual: "Quim querê comprá Alua? Fiado cerzi mêa! Ginête cornesstach!", pelas ruas da cidade pacata, batendo a várias portas. Lamuriava sempre, tratando toda a gente por "mano" ou "mana". Sofria vexames e impaciências com resignação e só perdia a cabeça quando a criançada cruel gritava "Calito-Tâo-Kai". Era um homem honrado que ganhava os seus dez ou vinte avos com lisura e não podia suportar que o chamassem de ladrão. Então enfurecia-se e da sua boca ouviam-se pragas e impropérios.

Era um homem original. "A Voz de Macau" relata em certa passagem:

"Contam-se dele coisas interessantes como: empurrar um carro (riquexó) durante meia hora e, logo que recebe a paga do seu trabalho, meter-se no carro que empurrou e, de perna cruzada, andar a passear outra meia hora, entregando, por fim, ao cúli que o puxa, aquilo que recebera; pedir uma esmola, e não conseguindo obtê-la, pedir vinte avos emprestados. Por fim, são-lhe dados os vinte avos a título de empréstimo, e quando o credor já não se lembra do facto, aparece o 'Calito' a pagar-lhe dez avos, dizendo que o resto será pago para o mês que vem!

Das vendas que o incumbem de fazer, presta sempre contas certas, não se enganando nem desviando um avo sequer.

Pobre Calito! Pobre, mas honesto".

Certamente que os leitores do jornal, nesse dia longínquo de 22 de Janeiro de 1932, se riram das singularidades do Calito. Mas pouco havia que se rir nesse dia, pois no jornal também vinha a notícia dos graves acontecimentos em Xangai.

O sentimento anti-japonês, muito forte em toda a China, atingira o ponto de ebulição nesta grande metrópole. Em 19 de Janeiro, um grupo de chineses atacou, na Concessão Internacional, cinco padres budistas japoneses, pondo dois em estado grave. A comunidade nipónica ferveu de indignação e 50 jovens exaltados ripostaram, atacando com trapos acesos embebidos de gasolina uma fábrica chinesa fora da Concessão, agrediram uma patrulha, matando um polícia chinês. O colega deste, também chinês, sacou da pistola e abriu fogo, ferindo três japoneses, um dos quais veio pouco depois a falecer.

Estes incidentes que podiam ter uma solucão pacífica, se houvesse de ambas as partes um espírito conciliador, foram aproveitados pelos japoneses de Xangai, sob pressão da Marinha, que também queria ter a sua "guerra", já que o Exército fazia passeios na Manchúria, para aumentar as proporções. Poucos dias depois, como a tensão crescesse, sem haver uma nota apaziguadora, pois a Marinha nipónica concentrara dez unidades navais no porto, o almirante Shiozawa, comandante da 2a esquadra japonesa na China, enviou um ultimato ao Sr. Wu Tieh Chen, presidente da câmara de Xangai, exigindo-lhe uma imediata satisfação ao protesto que o cônsul geral japonês daquela cidade mandara às autoridades chinesas, sob pena de drásticas medidas. O ultimato continha quatro condições humilhantes.

Era evidente que os chineses não estavam preparados para uma guerra e queriam protelar o ultimato. O presidente da câmara de Xangai tentou negociar, mas encontrou dureza irreconciliável doutro lado. A concentração de unidades navais japonesas era cada vez maior no porto, do que se conclui que há muito se haviam preparado para tal agressão.

Xangai vive horas terríveis à espera do desfecho. Há corrida ao ouro e as acções na Bolsa oscilam, repercutindo-se em Hong-Kong. As potências estrangeiras só pensam na defesa da Concessão Internacional e da Concessão Francesa. Convocam-se voluntários, surge a lei marcial e a trepidação daquela grandiosa metrópole de comércio pára. A "Paris do Extremo Oriente" mal respira, com a premunição de que o conflito é inevitável.

Se o presidente da câmara parece mostrar-se pronto para negociar, a população chinesa não aceita as imposições humilhantes. O 19° Exército do General Tsai Tin Kai aproxima-se. Chapei, a cidade chinesa de Xangai, começa a tornar-se uma praça fortificada. Levantam-se barricadas, colocam-se sacos de areia em todos os pontos estratégicos e passa-se busca rigorosa em todos os automóveis.

O prazo do ultimato era até às 18 horas do dia 28 de Janeiro. Sabe-se então que o presidente da câmara de Xangai está pronto para acatar as condições impostas pelos japoneses. Mas estes, que queriam a guerra de qualquer forma, não estão dispostos a desistir dos seus planos bélicos. Às 23 horas, a esquadra diante dos fortes de Woosung rompe fogo, em salvas mortíferas, enquanto 500 fusileiros desembarcam em Chapei.

As peças de Woosung respondem, e em Chapei os primeiros japoneses tombam, porque encontram resistência inesperada. Só alguns dias depois os atacantes irão compreender que não farão nenhum passeio militar em Xangai.

Quando rebentam os primeiros explosivos, alastra-se o sentimento duma catástrofe de todo o mundo. Xangai, a magnífica, a cidade ímpar, está ameaçada na sua sobrevivência.

Em Macau, a emoção é profunda. Xangai tinha uma comunidade portuguesa enorme, tão grande ou maior que a de Hong-Kong. Macau sente-se ligada a esta comunidade por laços tão grandes como os que a ligavam a Hong-Kong. Na verdade, não havia uma família em Macau que não tivesse os seus parentes a viver em Xangai, pois era um dos pontos do globo para onde se escoava, em grande número, a emigração macaense.

Em 28 de Janeiro de 1932, desencadeia-se um feroz bombardeamento que deixa Chapei, a cidade chinesa de Xangai, num mar de chamas. Imensas vidas se perdem no inferno das explosões e no desmoronamento dos edifícios.

Uma população alucinada de pânico acorre ao santuário das Concessões, a internacional e a francesa, invadin-do as suas ruas, como a elegante Nanking Road e o famoso Bund, repleto de hotéis e estabelecimentos comerciais de luxo.

O espectáculo de Chapei em fogo é um quadro dantesco e inesquecível. A população das Concessões assiste ao desenrolar da guerra nas janelas, nas varandas e nos terraços. Os refugiados vêem pulverizar bairros inteiros onde tinham o seu comércio, as suas residências, algumas delas de espampanante sumptuosidade. Nada é poupado. Assim se queima o teatro Odeon, assim fica reduzido a cinzas o edifício do famoso Comercial Press Co. Ltd, que guardava uma colecção de livros antigos e raros objectos de arte chinesa no valor de mais de dez milhões de dólares desse tempo, facto que causa profunda emoção no mundo intelectual.

As potências estrangeiras protestam contra a agressão japonesa, mas não passam disto. Só pensam na defesa das Concessões. Contanto que não toque nelas e o Japão poderá ficar praticamente à vontade. As guarnições estrangeiras são reforçadas. Em l de Fevereiro, o cruzador inglês "Berwick" parte de Hong-Kong com 800 homens de Argyll and Sunderland Highlanders. Os americanos enviam de Manila o 31° Regimento com 1200 homens e concentra uma poderosa esquadra de destroyers diante da Concessão Internacional. Chegam também a Xangai o cruzador francês "Rousseau" e o italiano "Libre". O cruzador português "Adamastor" larga Hong-Kong no dia 2, a todo o vapor, para o mesmo destino, enquanto o transporte de guerra "Gil Eanes" se apronta para levar uma parte da guarnição de Macau se a situação piorar. E há notícias de que o cruzador "República" se prepara em Moçambique para o mesmo fim.

Os voluntários portugueses passam dias seguidos nos seus postos, enquanto se desenrola a batalha de Xangai. Intervêm na evacuação de mulheres e crianças portuguesas da área de Hongkew, Kiangwan e Chapei. Nos portões, têm o doloroso papel de impedir a entrada de mais refugiados, pois os que as duas Concessões receberam nos primeiros dias da guerra ameaçam as reservas de alimentação. Os voluntários irão relatar mais tarde as cenas lancinantes que presenciaram junto dos portões. Mães, de braços estendidos, implorando protecção e piedade, crianças loucas de medo a chorar, aos gritos, homens acocorados e inertes, parecendo autómatos, exangues de forças e de esperanças. E atrás, a guerra dilacerando edifícios, matando e incinerando tudo.

As notícias chegam a Macau e são profundamente sentidas. No entanto, a firme atitude das potências estrangeiras de defender as Concessões acalma as ansiedades das primeiras horas e volta o optimismo.

Em Fevereiro festeja-se ruidosamente o Ano Chinês e o Carnaval. Os próprios chineses de Macau se encontram satisfeitos. A defesa de Xangai enche-os de orgulho, pois o 19° Exército bate-se valentemente, não dando tréguas ao agressor. A resistência e a competência do general Tsai Tin Kai vão redimir, na alma chinesa, os desastres humilhantes da Manchúria.

O cinema continua a ser o divertimento favorito da população, mas a comunidade portuguesa tem entre si uma novidade. É a visita da Tournée Teatral Portuguesa às Colónias que, depois de se exibir em África e em Goa, chega a Macau. O grupo é constituído pelas actrizes Eveline Correia, Dolores d'Almeida e Salete Barros e pelos actores Manuel Correia, José de Arêde Soveral, Carlos Barros e Artur d'Almeida. Propõe-se dar uma série de representações e "A Voz de Macau" anuncia que tem a colaboração activa do Grupo de Amadores de Teatro e Música e mais das Mlles. Edith da Costa Roque e Maria da Costa Roque.

O teatro D. Pedro V tem uma temporada que reputamos de ouro. O mês de Fevereiro é praticamente pre-enchido pelas representações da Toumée que foi muito aplaudida, muito apoiada, deixando uma larga lembrança em Macau, pois nunca mais nos visitou qualquer outro grupo de teatro português.

Os nossos hóspedes estreiam-se com o teatro do Largo de Santo Agostinho literalmente cheio, com a deliciosa opereta "A Mouraria". É um êxito. Dos amadores locais, intervêm Mlle. Edith da Costa Roque, Henrique Machado e Danilo Barreiros. A direcção musical ficou a cargo de Bemardino de Senna Fernandes, do Grupo dos Amadores de Teatro e Música. Estamos a 11 de Fevereiro.

No dia seguinte, representa-se a revista "No Balão" e em 17 apresenta-se o drama "Um Milagre de Fátima", muito apreciado e louvado pela gente devota da ter--ra. Ainda no mês de Fevereiro, exibir-se-ão a revista "Jardim da Europa", a comédia "A Boneca Alemã", a opereta "João Ratão" e a revista "Estava Escrito!".

Os membros da Toumée eram bons actores, pisando o palco com extraordinário à vontade. Foram eles que muito ensinaram os amadores de teatro que uns anos mais tarde formariam a Academia de Amadores de Teatro e Música, com os irmãos Carvalho e Rego, Henrique Machado, Lucília e Mário de Campos Néry, Vizeu Pinheiro, Jaime Bellard e outros.

O cinema exibe, no entanto, bons filmes, nesse Fevereiro palpitante para a história do Extremo Oriente. Recordamo-nos de alguns: "Lasca of Rio Grande", com Leo Carrillo e John MacBrown; "Daddy Long Legs", com Wamer Baxter e Janet Gaynor; e "Waterloo Bridge", com Mae Clarke, Kent Douglas e Doris Lloyd. Filmes musicais de retumbante êxito: "Gold Diggers of Broadway" e "King of Jazz" de Paul Whitemann.

O Capitol desbobina um dos maiores êxitos de bilheteira do ano, que é um filme documentário de origemchinesa com o nome sugestivo de "Chapei-Xangai". A população chinesa forma bichas para ver o filme onde se mostram os combates de Chapei, Kiangwan e Woosung e onde aparece o herói do dia, o General Tsai Tin Kai.

A Macau também chega, em Fevereiro de 1932, a grande companhia de circo Harneston's, que se instala com os seus animais numerosos - tigres, leões, panteras, elefantes, cavalos, cacatuas, gansos e cangurus - em Mong-Há, então terreno completamente baldio.

Um acontecimento social une as duas comunidades para uma taça de champanhe: a inauguração da nova sede da Associação Comercial no Largo de S. Domingos, que se realiza em 21 de Fevereiro.

No meio de todos estes eventos, uns tristes, outros alegres e deliciosos, surge em fins de Fevereiro uma tragédia que enlutará Macau. Ainda despercebida pela população, aparecem os primeiros casos de meningite cérebro-espinhal.

Os primeiros casos de meningite cérebro-espinhal dão-se em fins de Fevereiro de 1932. Em 2 de Março já não é possível esconder a realidade. Em "A Voz de Macau" aparece um artigo muito longo a explicar o que era essa doença, começando desta maneira:

"Lavra por aí uma certa inquietação e nos mais timoratos um tal ou qual pavor pelo facto de ultimamente terem aparecido alguns casos de meningite cérebro-espinhal".

Tentava minimizar a gravidade do facto, ensinando medidas preventivas, procurando levantar os ânimos. Num dos últimos parágrafos do artigo, lia-se:

"Mas em todas as situações há uma circunstância que deve ser lembrada - a do medo. É bem certo que, segundo o adágio, o medo é mau conselheiro e os medrosos, pela sua menor resistência, oferecem continuamente um melhor terreno (para a doença).

Não, nada de alarmes pois que o caso não é para alarmes".

No mesmo jornal, e no mesmo dia, pela primeira vez, a Farmácia Popular anunciava um medicamento contra a calamidade - "Gotas Preventivas contra o Me-ningococus de Weichselbaum".

O artigo citado, mais o anúncio da Farmácia Popular e o conhecimento que correu pela cidade de que na Direcção de Saúde se reuniam os médicos para tomar medidas para debelar a doença, abalaram definitivamente a população.

Cartaz publicitário de "Gold Diggers of 1935", de Busby Berkeley.

Se toda a cidade em conjunto se curvou alguma vez a um terror colectivo, foi desta vez. Apesar de todas as declarações para manter a calma, havia uma epidemia por ali. Segundo a crença da população, o ar estava contaminado e como todos tinham forçosamente de respirá-lo, qualquer um podia ser atacado. Atribuía-se a causa à humidade particularmente dolorosa, com o céu sempre cinzento e tristonho, aos ventos que vinham do Norte, trazendo os miasmas da guerra, dos mortos que ficavam sob as ruínas a apodrecer. Os mais supersticiosos recordavam os sinais funestos do ano transacto de grandes calamidades - o furacão e a explosão do Paiol da Flora.

Cartaz publicitário de "Magia Negra" (The Black Cat), filme de Edgar G. Ulmer, com Bela Lugosi e Boris Karloff.

No domínio do cinema, a ano de 1932 proporcionou-nos os clássicos do filme macabro. Neste aspecto, o Capitol levou a palma ao Vitória. Depois do "Drácula", de Bela Lugosi, que encheu de terror a população macaense, havendo quem confundisse o morcego com o vampiro, andando pela casa aos gritos porque o perverso conde, su-gador de sangue, estava para aparecer, surge, nos calores de Julho, "Dr. Jeckyll and Mr. Hyde", com a inesquecível interpretação de Frederich March, que lhe valeu um Óscar. O veredicto dos espectadores aterrorizados traduziu-se nas seguintes palavras: "Este filme é medonho!".

Mal refeitos do susto, uma semana mais tarde, é a vez do "Frankenstein", de Boris Karloff. Para a época, o filme foi aterrador.

Houve quem não dormisse a noite inteira, tremendo por baixo do lençol, embora o calor fosse muito. Daí para diante, quando se queria assustar as crianças, era só imitar o monstro, mãos à frente, andar pausado e direito, a cara morta. No carnaval do ano seguinte, lá apareceram inevitavelmente outros "Frankensteins".

Volvendo para o cinema mais ameno, apontemos alguns filmes que permaneceram na saudade da geração de 1932:

"The Desert Song", no Vitória, com John Boler; "Dance Fools Dance", que consagrou Joan Crawford como actriz de talkies; "Delicious" com o grande par amoroso Janet Gaynor e Charles Farrell; "Palmy Days", hilariante filme de Eddie Cantor; "The Man I Killed" de Phillip Holmes, no Capitol; "One Hour with You", com Janneth Mac Donald e Maurice Chevalier.

O Vitória ofereceu-nos também o melhor filme, quanto a nós, sobre a África, o famoso "Trader Hour", com Harry Carey, que foi um grande êxito de bilheteira. No Capitol, apareceram também alguns filmes europeus, como o espanhol "Hay que Casar el Príncipe", com José Mojica e Conchita Montenegro, e os filmes da Casa Os - so, francesa, iniciando-se com o "Cantor Desconhecido", interpretado pelo actor e tenor Lucien Muratore.

No mês de Novembro, apareceu noticiado o plano de construção dum novo cinema - o Carlton Theatre - que seria mais tarde o Apolo.

O ano de 1933 vive sob os efeitos da depressão económica derivada da guerra sino-nipónica de 1931-32. O sentimento nacional chinês está profundamente atingido; no entanto, recrudescem as lutas intestinas entre os warlords. Os japoneses, por outro lado, não desistem dos seus intentos de expansão, perante a inércia da Inglaterra, França e Estados Unidos.

Os periódicos de Macau fazem-se eco da carestia de vida e queixam-se do aumento geral dos preços em tudo. Contudo, essa carestia de vida era perfeitamente suportável e para nós, hoje, totalmente ridícula. Se não, vejamos:

Uma viagem a Hong-Kong, no "Sui Tai" ou no "Sun An", custava, em 1a classe (cabine), $2,00 por pes- -soa. E a Cantão, no "Seng Cheong", também em 1a clas--se (cabine), $2,50. Não era necessário passaporte ou salvo-conduto, nem se conhecia esta terrível instituição conhecida por Serviços de Imigração.

O preço corrente dum fato de verão - calça e casaco - andava à roda de $7,00 (nota). Na "Loja Luso-Japonesa" de J. Manuel da Rocha, à Rua do Campo, vendia-se vinho da Bairrada, tinto, a $4,50 e, branco, a $5,50, por uma dúzia de garrafas. No "Oriente Comercial, Lda.", à avenida Almeida Ribeiro, uma caixa de 24 meias-garrafas de espumante adamado custava $36,00. Um cate de batatas para a tropa era adquirido a 4 avos e, se fosse ao quilo, eram 5 avos. Nas mercearias, uma lata de chouriço Isidoro custava $1,11.

No "Fat Siu Lau", um bife com ovo estrelado e batatas fritas pagava-se por 25 avos (prata), e um prato substancial de arroz chau-chau por 10 avos. Os comensais da Pensão e Botequim "Aurora Portuguesa" pagavam pelos pequeno-almoço, almoço e jantar, $22,00 (nota), por mês. A "Casa do Povo", um dos melhores restaurantes de comida portuguesa que existiram em Macau, orçava pela mesma barateza. Eis a ementa de 16 de Abril, Sábado:

Almoço especial

(das 12 às 15 horas)

Sopa: Canja de galinha

1. Feijoada

2. Lombo recheado

3. Presunto e ovos

4. Pastelinhos de carne

5. Arroz de camarão

6. Pudim

7. Fruta

8. Chá ou café $1,00 (nota)

Jantar especial

Sopa à Juliana

1. Peixe com molho de tomate

2. Coelho guisado com batatas

3. Galinha assada com ervilhas

4. Croquetes com azeitonas

5. Arroz à Jardineira

6. Pudim

7. Fruta

8. Chá ou café $1,00 (nota)

A rua chique ainda era a Rua Central, para onde se subia depois da missa das onze na Sé, aos domingos, para conhecer as "novidades" expostas nas lojas dos "mouros". Na "Royal Silk Store" de J. H. Bejonjee, vendia-se seda riscada para camisas a $1,08 a jarda, o mesmo acontecendo com crepe de seda pesado; o crepe da China estampado custava $1,30 a jarda; o crepe de setim pesado $2,00 a jarda. Camisas de seda Fuji para homem custavam $3,50 cada e pijamas de seda Fuji para homem $4,50 cada. Os preços nas lojas vizinhas do "mouro" Elias e do "mouro" Haaji ficavam uma pela outra.

E havia quem se lamentasse do custo de vida!

Para benefício da elegância das senhoras de Macau, depois que Miss Dina Rosemberg exibira, com grande sucesso, lindos vestidos no Hotel Riviera, em Dezembro do ano anterior, surge, entre nós, Madame Lebon, uma francesa imponente e refinada, que abre um atelier, salvo erro de informação, na loja "Paradis des Dames", à Praia Grande.

É claro que o melhor da sociedade macaense acor - reu ao atelier e começou a vestir-se à moda de Madame Lebon, que ditou cartas, desdenhou as costureiras caseiras do burgo e pontificou com o seu prestígio parisiense, para grande arrelia das algibeiras dos maridos e dos papás. Quando alguém titubeava quanto ao preço, Madame Lebon alçava o queixo e rematava em tom profundamente superior:

- "Este vestido não é para toda a gente".

O Carnaval, caído entre fins de Fevereiro e princípio de Março, era particularmente retumbante. Já não havia a guerra nem a meningite para ensombrar os ânimos. "A Voz de Macau", ao relatar os festejos dos clubes, os cortejos das "tunas" e os "assaltos" em casas particulares, usava um tom alegre e brejeiro que traduzia a despreocupação da época, passados os pesadelos.

Por isso é que ninguém pareceu ligar às eleições na Alemanha, onde triunfou o partido nazi e subiu ao poder um nome praticamente desconhecido, Adolfo Hitler. A notícia veio publicada em 6 de Março, mas passou-nos indiferente. A imprensa local e de Hong-Kong preocupou-se mais com o famoso julgamento, na colónia vizinha, de Cheong Kwok Yau, um play-boy chinês e, parece, filho único de pais milionários, que assassinara outro milionário, George Fung. Fora um crime passional que apaixonara a opinião pública, mesmo a estrangeira, e tanto na defesa como na acusação estavam envolvidas as mais prestigiosas figuras da advocacia inglesa.

O ano de 1933 ficou marcado, no futebol, pela luta renhida de dois grupos rivais, o Argonauta e o Tenebroso, que travaram o seu primeiro desafio em 7 de Fevereiro. Venceu o Argonauta por três bolas a duas num desafio memorável, disputado com alma, genica e intenso espírito desportivo.

Mas é no hóquei que Macau marca os seus melhores tentos, adquirindo fama por todo o Extremo Oriente. Entra-se na idade de ouro daquela modalidade desportiva. Praticamente todos os domingos, grupos de Hong-Kong deslocam-se ao campo de Tap Seac. O treino dos nossos rapazes é tão eficiente que Hong-Kong apenas leva daqui derrotas. Toda esta preparação dá como resultado poder-se defrontar no ano seguinte a fortís--sima selecção da Malaia. Os nossos "ases" do hóquei tornam-se ídolos da mocidade. Todos os garotos sonham poder exibir um dia as suas habilidades no relvado verde do Tap Seac e receber as mesmas aclamações.

A construção do novo cinema, no terreno baldio frente ao edifício dos Correios e Telégrafos, não passa ainda de planos. Coloca-se a tabuleta, com o dístico Carlton Theatre, mas o terreno mantém-se ainda cheio de erva daninha e entulho. Correm boatos de que o Vitória vai fechar para outro destino. E fala-se num outro cinema a instalar-se no fim da Rua Nova do Comércio, no primeiro andar do mercado do Tarrafeiro. E o teatro Nanquim, nome patrioticamente dado pelos chineses, em honra da então capital da China. Há ainda outros cinemas em funcionamento, mas de filmes mudos que só servem a clientela chinesa - o Hoi Keang, na Rua Praia do Manduco, e o San Kio, nos bairros integralmente chineses de San Kio e Sé Kong.

O Capitol mantém o domínio do filme macabro. Em 1933, exibem-se "Chandu, the Magician", em que Ed-mond Lowe tem um memorável papel, derrotando, com os seus poderes mágicos, o diabolismo de Bela Lugosi, noutro papel maquiavélico. Boris Karloff volta à tela em "The Old Dark House" e, uns meses mais tarde, em "Mummy" (A Múmia), tão célebre como Frankenstein.

O Vitória distin-gue-se pelos seus filmes românticos, o melhor que a Metro-Goldwyn-Mayer oferece. Quem não se recorda de "Grande Hotel", extraído dum livro de Vicki Baum, em que aparecem alguns nomes gigantes da Metro, como Greta Garbo, John e Lionel Barrymore, Joan Crawford, Wallace Beery, Lewis Stone? Garbo aparece, no Vitória, com outro filme dramático, "Anne Cris-tie", e mais uma vez impõe ao espectador a sua beleza enigmática e distante.

Cena de "The Old Dark House".

O Vitória também tem a primazia dos filmes de guerra. Apontemos dois, o "Kreuzer Emden", filme alemão sobre o célebre cruzador-corsário da Grande Guerra, e "Tell England", inglês, sobre a campanha dos Dardanelos, que os produtores pretenderam equiparar em realismo e dureza ao "All Quiet on the Western Front", americano.

A talho de foice, vêm-nos à memória alguns acontecimentos de 1933, que julgamos interessar aos nossos leitores.

Em 10 de Fevereiro, reunia-se o Conselho do Governo para ouvir uma importante comunicação do Governador Bernardes de Miranda. Tratava-se nada menos do que informar o ilustre corpo consultivo que fora remetido ao Ministério das Colónias um assunto "de suma importância para o futuro de Macau". Era o projecto de ligação com as ilhas da Taipa e Coloane, apresentado pelo engenheiro Lund, um estrangeiro que desejava investir no Território e materializar o velho sonho macaense.

Em que consistia este projecto, quais as bases da proposta do estrangeiro e quais as vantagens que prometia advir para Macau, não sabemos. Mas o apoio ao projecto foi unânime da parte dos membros do Conselho do Governo.

Alguém teria comentado, entre duas "carambolas" na sala de bilhar do Clube de Macau:

- "Mais um sonho... Planos, planos... promes--sas, promessas, para tudo ficar no fundo da gaveta".

Sim, fora mais um sonho, como tantos a que nos habituámos. Os planos ficaram na gaveta e o engenheiro Lund teria marcado um largo compasso de espera para afinal desistir. As "sumidades" do Terreiro do Paço não mexeram uma palha, com a sua característica indiferença, e tudo foi esquecido. Tivemos que aguardar mais quarenta e um anos, para que o sonho fosse concretizado, com a ponte General Nobre de Carvalho.

O problema das ilhas merecia nessa altura grande atenção da imprensa portuguesa. De notável, os vários artigos de António de Santa Clara, esse quase desconhecido escritor de Macau, de pena irónica e brilhante.

As ilhas eram então iluminadas a luz de petróleo e de gás. A 26 de Março vem uma notícia em "A Voz de Macau", que transcrevemos:

"Foi anteontem assinado entre a Companhia das Águas desta cidade e a Comissão Administrativa das ilhas da Taipa e Coloane um contrato.

Boris Karloff e Zita Johann em "A Múmia" (The Mummy).

Informam-nos que a Companhia das Águas tem em vista o melhoramento destas ilhas, para o que brevemente vão ser iniciadas obras de grande vulto, contando-se com um capital de cêrca de um milhão de patacas".

Bela tentativa a da Companhia das Águas de então. A luz eléctrica limitou-se aos aglomerados populacionais das duas vilas e o resto manteve-se na escuridão. E quanto aos melhoramentos prometidos, foram outros tantos planos que também ficaram no fundo da gaveta. Promessas, promessas...

O grande acontecimento social de Macau em 1933 foi a inauguração do Edifício da União Recreativa, à Areia Preta, junto do Hipódromo, a 25 de Março.

Temos a descrição do imóvel, relatado em "A Voz de Macau":

"O elegante edifício, de linhas sóbrias e bem lançadas, é bastante amplo. No terreno vasto que lhe pertence, onde, à direita, existe já um parque para estacionamento de automóveis, ficarão instalados os campos de Futebol, Ténis, Golf, Basket-Ball, Hockey, e ainda um Parque Infantil para diversão dos filhos dos sócios, estando a Direcção envidando os seus melhores esforços para conseguir a realização duma ampla piscina".

A Sociedade da União Recreativa foi fundada em 1924 por um grupo de macaenses que se reuniam para tocar música. Eram uns vinte e, entre eles, destacamos, sem desdouro para outros, António Ferreira Batalha, Paulino A. da Silva, Pedro e Alberto Ângelo e António Galdino Dias. Do entusiamo destes vinte, nasceu a ideia de criar um Centro Musical. Pouco a pouco, pelo dinamismo dos fundadores, o número de sócios aumentou, chegando a duzentos, número importante em relação à exiguidade da população portuguesa no Território. Agora já não era apenas um centro musical, mas também um centro recreativo e desportivo. O grupo representativo da União Recreativa, no futebol, era importante nos fins dos anos 20 e só foi dispersado quando rivalidades internas levaram os seus componentes a agruparem-se no Argonauta e no Tenebroso.

Não havia sede nem instalações adequadas para comportar tamanho número de sócios. As festas e outras iniciativas exigiam um novo prédio. Mais uma ideia brilhante nasceu: o plano duma espécie de country club, fora de portas, em sítio calmo e ameno, onde a Sociedade pudesse dar largas às suas actividades. A Areia Preta era então um local ideal, pelo seu sossego, pelo ar de praia que ainda possuía. É preciso lembrar que a cidade mor-ria na orla da avenida Horta e Costa; e, dali para o mar e para a Porta do Cerco, havia apenas algumas casas, tipo vilas, o Canídromo, o Hipódromo, aldeamentos chineses e imensos terrenos baldios.

A Sociedade teve o apoio incondicional do Governador Tamagnini Barbosa. O Governo subsidiou, também a Associação dos Proprietários do teatro D. Pedro V, e outros vieram da iniciativa privada.

Ficou-nos na memória a festa da inauguração. Ainda nos lembramos de ver muita gente e estarmos à frente duma mesa pejada de iguarias e guloseimas, dum riquíssimo "chá gordo".

Discursaram o Presidente da Sociedade, António Ferreira Batalha, o Encarregado do Governo, Rocha Santos, e o Dr. Américo Pacheco Jorge, como representante da mais antiga agremiação macaense, o Clube de Macau.

"A Voz de Macau" remata o seu artigo de 26 de Abril, com as seguintes palavras:

"Seguiu-se a assinatura da acta da inauguração, após o que numerosas pessoas assistentes dispersaram pelo amplo edifício e campos adjacentes, formando aqui e além pequenos grupos de cavaqueira, enquanto outros, os apreciadores de danças, iniciando a série de fox-trots, steps, valsas, etc., enlaçavam as gentis senhoras e meninas, danças que se prolongaram até cerca das 21 horas, com muito pesar dos fervorosos que desejariam que elas se prolongassem pela noite adiante.

Mas Roma e Pavia não se fizeram num dia; e, como outras interessantes e simpáticas festas de certo se hão-de seguir, tirarão então a desforra..."

Não nos lembramos de ter havido campos de futebol, hóquei, golfe e basquetebol. Nem a piscina projectada. O que houve e tivemos ocasião de presenciar, foram as grandes partidas de ténis nos seus courts arejados e de vista ampla.

A vida da União Recreativa foi brilhante nos primeiros anos, com festas e outras actividades que ficaram notáveis. Decaiu nos anos de 30 para reviver com a Guerra do Pacífico, sob outro nome - o Clube Melco. Mas este assunto será tratado noutra ocasião.

Outro acontecimento digno de registo foi a inau-guração do Posto de Radiodifusão de Macau, instalado no edifício dos C. T. T., em 26 de Agosto. No seu discurso, na presença do Encarregado do Governo, de altos funcionários e de representantes da imprensa, Luciano da Costa Martins, o então Chefe dos Serviços dos C. T. T., afirmaria:

"Este facto [a inauguração] que poderá ser banal, representa mais uma etapa vencida no caminho do progresso que esta Colónia - hoje pode dizer-se na vanguarda das colónias portuguesas quanto a serviços rádio-eléctricos - encetou em 1925".

O Posto da Radiodifusão, custeado por uma verba do Governo, no valor de $30.000,00, mostrara-se, na sua fase experimental, muito eficiente, pois fora captado por amadores e pelas estações de Manila e Díli e, segundo cartas e notas recebidas, considerado o melhor do Extremo Oriente, vinha permitir que a voz de Macau fosse escutada, marcando a presença de Portugal nestas paragens.

Acabados os discursos e o "Porto de Honra" que se seguiu, procedeu-se à primeira emissão oficial. Consistia esta na música tocada por um quinteto de violas, guitarra e bandolins. O quinteto era formado por Henrique Braga, J. Rodrigues, Arnaldo de Sequeira, João Braga e António Amante.

As emissões de radiodifusão de Macau não são, porém, diárias. Na fase inicial, são esporádicas, faltando-lhes planificação de trabalho. O Grupo inaugural de cordas continua a colaborar, agora com o nome de Bragazi-nho. Também uma orquestra chinesa, denominada "Chan Seng", sob a direcção de Ma Seng Tac (Mahomed) dá o seu prestimoso contributo, tocando músicas chinesas.

No fim do ano de 1933, a estação de radiodifusão passa a ser conhecida por Estação Emissora C. Q. N. de Macau. No dia 1° de Janeiro de 1934, o Governador Ber-nardes de Miranda fala pela primeira vez na rádio. Inaugura, assim, a longa sequência das mensagens dos governadores nessa época festiva que dura até aos nossos dias.

Cartaz publicitário de "King Kong".

Na colónia vizinha de Hong-Kong, também se cria, ao longo de 1933, a Estação Emissora Z. B. W. e, a partir de 3 de Janeiro de 1943, o "Jornal de Macau" publica diariamente o programa dessa emissora. Começa em Macau o furor de aquisição de aparelhos de rádio, sem a loucura do que se passou com a televisão, dez anos atrás, pois os chineses ainda não se tinham habituado a ouvir a rádio. Um dos números favoritos era, então, o relay dos programas da "Hong-Kong Hotel Grill Room Orchestra" e da orquestra do cabaret "China Emporium". A gente de Macau ficava assim a conhecer novidades musicais de dança, quase todas inspiradas nos filmes.

O cinema brilha em Janeiro de 1934. O filme escolhido no Capitol, para o dia 1°, é o famoso "King Kong", com os actores Fay Wray, Robert Armstrong e Bruce Cabot. Nos anúncios, o filme figura como a "oitava maravilha do mundo". A bilheteira esgota-se durante os dias de exibição, porque todos querem admirar a odis-seia do macaco gigante. Nunca havemos de esquecer as exclamações "uá" dos espectadores chineses, perante o macaco em fúria, a caminhar pelas ruas de Nova Iorque e a subir o Empire State Building, onde encontrará a morte, perante as balas duma esquadrilha de aviões. O filme deixou uma memória perdurável que a segunda versão, feita há dois anos, e recentemente exibida entre nós, não apagou nem diminuiu. O primeiro "King Kong", dentro do capítulo do filme de aventuras, é um clássico.

O Vitória não fica atrás da competição e em 5 de Janeiro oferece-nos um grande filme alemão de guerra "4 Infantrymen" (Os Quatro de Infantaria) que ombreia com "All Quiet on the Western Front" (Nada de Novo na Frente Ocidental). Era a resposta alemã ao filme americano, mas movida pela mesma finalidade - o pacifis-mo, o repúdio da guerra, denunciando os seus horrores. Por ironia, a Alemanha estava nas mãos de Hitler e do Nacional-Socialismo.

Há outros filmes de lágrimas, de ternura e de pura evasão, como "White Sister" com Clark Gable e Helen Hayes, "Smilin' Through" de Norma Shearer e Frederich March, "Me and my Girl" de Spencer Tracy e Joan Ben-nett. Nomes que se fixam na mente e são preferência dos cinéfilos, todos eles no caminho ascencional da fama.

O Capitol apresenta uma série de fitas da casa alemã UFA, donde destacamos "Ronny" e o clássico "Madcheu in Uniform" (As Raparigas de Uniforme), hoje considerado um filme de antologia, com a bela actriz Dorothea Wieck.

Em Fevereiro, aparece anunciado no Vitória um filme que causa engulhos. Correu pela cidade que a película estava recheada de escabrosidades e indecências. Intitulava-se "Modern Womanhood" que os anúncios traduziram para português "A Mulher Moderna", acrescentando "um filme educativo" e logo, mais severamente, "não é permitida a entrada de menores". Pairou, por este motivo, um ar de escândalo, em volta da fita, cujos actores não eram conhecidos ou cujos nomes nem eram mencionados. Houve, assim, uma pré-exibição para os censores, transformados em pilares da moralidade da sociedade macaense. O "Jornal de Macau" de 2 de Fevereiro transcreve a seguinte notícia:

"Assistimos ao ensaio desta fita para a qual foram convidadas as autoridades, polícias, médicos e imprensa portuguesa e chinesa.

O filme é interessantíssimo, mostrando a formação da mulher moderna e os vários costumes dos povos. Produção de uma empresa russa [nós diríamos hoje, com mais franqueza, soviética], mostra o cuidado que as autoridades têm pelo desenvolvimento da presente geração, especialmente das mulheres.

O filme, focando assunto delicado, não contém todavia escabrosidades, sendo porém conveniente não ser visto por menores dum e doutro sexo, cujas cabeci-nhas poderiam tirar conclusões temerárias que o filme em si verdadeiramente não contém."

É claro que o Vitória encheu-se de senhoras e cavalheiros interessados em saber o que era "uma mulher moderna". Houve quem se escandalizasse, pronunciando a crónica expressão: "Que horror!". Que diriam essas mesmas pessoas se vissem os filmes que hoje por ali abundam, em especial, "Deep Throt" (A Garganta Profunda) que corre mundo, exibido nas melhores casas de espectáculo das grandes cidades, onde papás e mamãs circunspectos vão receber a sua educação pornográfica, sem murmúrio nem protesto, até com laivos de admiração?!

Nesse Fevereiro, para sofrimento e decepção dos aficionados, Macau Hóquei Clube é batido pela primeira vez na temporada e em Hong-Kong, perante uma enorme. assistência. O oponente vencedor são os oficiais do navio "H. M. S. Midway" que ganham por 3 a l. O "Jornal de Macau" não esconde a sua amargura e é severo na sua crítica, quando diz no fim:

"Distinguem-se Lino Ferreira - o único que jogou bem do princípio ao fim - Hugo do Rosário, Ramalho e Cardoso, que teve a sua melhor tarde na presente época".

No entanto, as palavras eram talvez injustas, pois os nossos rapazes tiveram apenas uma tarde de azar e levaram uma tremenda descompostura do Tenente Filipe O'Costa, mentor e treinador, alma do grupo. A derrota não lhes fez perder a confiança e foi mais um treino a sério, para a grande luta futura com a selecção da Malaia.

Tudo isto ficou, em breve esquecido, com as festas de Carnaval, talvez as mais brilhantes e as mais ani-madas da década dos 30. Duas semanas antes do Sábado Gordo (10 de Fevereiro), realizaram-se os mais famosos "assaltos" da quadra, com tunas - eram três - a percorrer as ruas do velho burgo macaense. Os "assaltos" de que nos lembramos foram às residências de Abílio Basto, de Edmundo de Senna Fernandes, de Júlio Eugénio da Silva, da família Remédios, que vivia na casa onde reside hoje o Meretíssimo Juíz da Comarca. Também não esquecemos os "assaltos" à residência do Prof. Fernando de Lara Reis e a de António Ferreira Batalha. Éramos garotos, mas recordamo-nos de tudo, da esfusiante alegria, das tunas a tocar continuamente, das brincadeiras carnavalescas, das máscaras falando o patois e dos pares, muitos pares a dançar fox-trots, blues, quick-steps, valsas e marchas portuguesas, até alta madrugada.

A direcção do Clube de Macau decidira, nesse ano, ornamentar o salão de baile com motivos regionais portugueses. Um mês antes, ensaiou-se a garotada para se exibir na matinée de Domingo, com danças folclóricas nacionais. Adultos entusiasmados também quiseram aprender e formavam grupos à parte. Em todas as bocas se cantaram "Ora bate Padeirinha, ora põe o pé no chão" e "Rapazes, vamos ao vira, ai, que o vira é coisa boa".

O Carnaval de 1934 iniciou-se com a soirée mas-quée, o baile tradicional do Clube de Macau. Houve muito poucos trajes carnavalescos, mas imensas casacas, smokings e jaquetinhas de cavalheiros e lindos evenings de senhoras. Madame Lebon, para tal acontecimento, fizera uma pequena fortuna. Todo este rigor e cerimonial era por causa da presença do Governador. Mais animado e popular, foi o baile que nessa mesma ocasião, se realizava no Clube de Sargentos, como era conhecido o Clube Recreativo 1° de Junho, onde não havia preocupações de protocolo e onde se estava mais à vontade. Tão divertida foi a festa do Clube de Sargentos que os sócios do Clube de Macau, mal terminaram a ceia, partiram para aquele Clube.

No Domingo Gordo, realizaram-se as matinées para os filhos dos sócios do Clube de Macau e do Clube de Sargentos. À noite, foi o baile na União Recreativa, com exibição das tunas e centenas de mascarados. Na Segunda, foi a vez do baile tradicional do Grémio Militar, mas também muito protocolar, nas primeiras horas, mas animadíssimo, depois da ceia. Na Terça-Feira, a rematar de novo, no Clube de Macau e no Clube de Sargentos, ambas as festas divertidíssimas, esquecendo-se todos que no dia seguinte era dia de trabalho e Quarta-Feira de Cinzas.

Foi assim que se divertiu a boa gente de Macau, adultos, jovens e crianças no Carnaval de 1934.

A Primavera de 1934 foi assinalada por um acontecimento de máximo relevo para a vida desportiva de Macau - a vinda do famoso team de hóquei da Malaia, considerado o melhor do Extremo Oriente e, na sua modalidade, um dos melhores do mundo. A notícia foi acolhida com natural alvoroço e enorme expectativa e, durante semanas, não se falou doutra coisa. Era nos clubes, na rua, nos adros das igrejas, ao Domingo, e na mesa, quando a família se reunia para as sacramentais refeições.

A estadia dos malaios em Hong-Kong nos primeiros dias de Abril foi coroada de duas vitórias para a equipa visitante. Um grupo civil foi vencido por 3-2 e a selecção de Hong-Kong sofrera uma pesada derrota por 4-2. Como se ia portar o Macau Hóquei Clube, perante a incontestável força dos malaios, era pergunta que pairava em todas as bocas. Em 9 de Abril, realizou-se o grande jogo Macau-Malaia, no campo de Tap Seac, perante cinco mil espectadores, número que julgamos nunca mais ter sido excedido. A população portuguesa de Macau concentrou-se em peso, para apoiar os seus rapazes, vendo-se no campo pessoas que normalmente mal saíam das suas casas. Antes do jogo, reparou-se que os membros da equipa macaense não tinham a constituição física dos malaios, mas marcavam pela sua juventude e confiança.

Logo no início do jogo, se notou que as equipas se igualavam, embora os malaios se mostrassem mais experientes. Foi um certame inesquecível para todos quantos o presenciaram. Se alguma vez o hóquei atingiu as alturas de verdadeira arte foi naquele dia, num jogo intenso de vibração de alma, uma mistura de elegância e de virilidade, em todos, de parte a parte, havendo a determinação de vencer.

Macau perdeu por uma bola a zero, mas a vitória da Malaia não foi líquida, deixando dúvidas. É que o árbitro malaio anulou dois goals nossos, o último dos quais, segundo a maioria esmagadora dos espectadores e o consenso dos nossos jogadores, fora absolutamente limpo. Não foi de admirar a reacção hostil de um sector dos espectadores no fim do jogo contra o árbitro. Um empate teria sido mais justo, pela forma como ambas as equipas jogaram.

Do desafio, transcrevemos parte do artigo de Adelino da Conceição, em "A Voz de Macau" de 10 de Abril:

"Como jogo e como espectáculo não encontro positivamente termos nem adjectivos para o classificar.

Inventem os leitores os adjectivos que quiserem, compulsem livros e dicionários, que todos os termos encomiásticos podem ser justamente aplicados àquele espectáculo inolvidável.

Jamais Macau registou, nos anais da sua vida desportiva, um triunfo semelhante. É o triunfo do desporto, da mocidade, da vida, do movimento e da cultura do corpo. Fosse Macau uma terra maior, eu faria uma descrição o mais possivelmente circunstanciada do jogo. Mas julgo desnecessário. Todo o Macau hoquista esteve no campo, todos viram e vibraram inteiramente com o espectáculo que não hesito em classificar o mais belo que tenho visto.

A impressão de beleza inesquecível ficou gravada no espírito do público e dos jogadores. Esta é, igualmente, a que está gravada no meu".

O team de Macau, o que classificamos de "linha de ouro" do hóquei de Macau, isto sem desdouro para outros grandes hoquistas que mais tarde surgiram, era constituído pelos seguintes componentes que enumeramos do guarda-redes ao ponta esquerda:

César Capitulé (Almada); Jacinto Rodrigues e Manuel Pinto Cardoso; Lino Ferreira, João dos Santos Ferreira e Alexandre Airosa (Chane); Frederico Nolasco da Silva, Fernando Ramalho, Pedro Ângelo, Rui Hugo do Rosário, Amílcar Ângelo.

O desporto local viveu uma das horas mais brilhantes da sua existência com este desafio ímpar.

A mesma Primavera trouxe também outro acontecimento, este, de grande importância para a vida cultural e artística de Macau - a aprovação dos estatutos da Academia dos Amadores de Teatro e Música. Daí por diante Macau tinha uma agremiação destinada especificamente para a arte musical e cénica. A Grande Tournée Teatral às Colónias, que partira em 1932, deixara raízes e havia grande entusiasmo entre certos amadores para a arte de representar. Isto, principalmente, porque ficara entre nós um dos actores, José de Arede Soveral, agora funcionário público, depois que bebera a "água do Lilau".

A música fazia parte da educação do macaense. Rara era a casa que não tivesse, ao menos, um membro que tocasse algum instrumento musical. De preferência, eram o piano e o violino. Havia, no entanto, muita gente que dedilhava outros instrumentos de corda, como o bandolim, a viola, a guitarra e o eukalili. As tunas carnavalescas tinham incrementado esse pendor entre a rapaziada, pelos seus incontestáveis êxitos. Por isso, formar uma orquestra de amadores não era coisa muito difícil.

Nessa altura, a polifonia sacra estava nas mãos de dois notabilíssimos grupos corais. A Schola Cantorum de S. Lourenço, plena de vozes juvenis, e o Coro da Capela de Santa Cecília, do Seminário de S. José, este, especificamente formado pelos alunos internos do mesmo seminário.

O Colégio de Santa Rosa de Lima primava pelo ensino do piano e havia distintos professores particulares desse instrumento musical, entre eles, o Prof. Harry Ore, brilhante pianista que vinha uma ou duas vezes por semana de Hong-Kong e corria, de casa em casa, a leccionar os seus alunos, além de dar frequentes concertos no teatro D. Pedro V, no Grémio Militar e em casas particulares.

A estação de Radiodifusão C. Q. N. de Macau costumava dar as suas emissões sem programação diária. Alternando com o Grupo Bragazinho, havia a colaboração do Grupo Clímaco, que deu vários concertos aos microfones daquela estação. O Grupo Clímaco era um quinteto, constituído pelo Pe. João Clímaco, 1° violino; Francisco Freire Garcia, 2° violino; José de Jesus (Pan-cho), viola; Cipriano Bernardo, violoncelo; e Alderico Viana, piano. A estação também encontrava colaboração da Banda Musical de Macau e da mencionada Schola Cantorum.

Havia, assim, um lisongeiro ambiente musical em Macau, em 1934.

Outro acontecimento que merece menção nessa longínqua Primavera, foi a soirée-cotillon, realizada pelas alturas do "Micareme", no belo edifício da União Recreativa, à Areia Preta. Foi o último baile no seu género, em Macau. Ali se marcou a quadrilha, com rigor palaciano, bailaram-se os "lanceiros" e as "polcas" dos tempos idos e exibiram-se outras danças próprias dum cotillon.

Quanto ao cinema, surge-nos "Flying Down to Rio". Os actores principais são Pat O'Brien e Dolores Del Rio. Mas os olhos dos espectadores ficam concentrados num par de dançarinos que se estreia nesse filme - Ginger Rogers e Fred Astaire. Dum dia para o outro, conquistam o favor dos cinéfilos, desbancando outros pares que se apagam no olvido. Ginger Rogers, loira e insinuante, ofusca Nancy Carroll, Ruby Keeler e Clare Bon. Fred Astaire encontra-se só, sem rival, no seu género. É também em "Flying Down to Rio" que o público admira e ouve o "Carioca", música e dança, cuja popularidade se mantém até aos nossos dias.

Oliver Hardy e Stan Laurel (Bucha e Estica), entre nós mais conhecidos por Gordo e Magro, exibem-se no Vitória, com um dos seus melhores filmes do sonoro, "Fra Diavolo", juntamente com o célebre barítono Den-nis King. Esta parelha de cómicos, que conseguira adaptar-se admiravelmente ao novo cinema, iria manter durante anos os seus pergaminhos de comicidade. É claro que havia outros duos como Cohen e Kelly, escoceses, e Wooley e Wheeler, americanos. A popularidade dos escoceses nunca foi muito grande e, com a morte prematura de Wooley, o seu companheiro desapareceu no esquecimento, depois de tentar emparceirar-se com outros, em filmes que falharam.

Fred Astaire em "O Turbilhão da Dança" (Dancing Lady, 1933).
Stan Laurel e Oliver Hardy em "A Caminho do Oeste" (Way Out West, 1937).

Em 1934, já os Marx Brothers (Groucho, Chico, Harpo e Zeppo) eram conhecidos do público de Macau, mas, por mais que investigássemos, não nos foi possível fixar a data precisa em que se exibiram. No entanto, lem-bramo-nos deles nos primeiros anos dos talkies e certamente o "Monkey Business" (1931) foi desbobinado nessa altura. Tivemos a ocasião de voltar a ver este filme, no quadrado da televisão, ainda há pouco tempo e rimos como teríamos rido no passado. Zeppo, o galã dos filmes desses irmãos, sem muita graça, retirar-se-ia cedo do cinema, ficando os três mais velhos na galeria dos cómicos imortais.

O teatro Nanquim, que pretendeu, no princípio,ser um cinema de estreia, reduziu-se a cinema de bairro, com filmes em reprise. De vez em quando servia para o "auto-china", em competição com o Cheng Ping. Cor-riam boatos de que o Vitória ia fechar, com a edificação da nova casa de espectáculos, o Carlton.

Não obstante os boatos, o Vitória continuou a oferecer-nos filmes, de preferência os da Metro-Gold-wyn-Mayer. Foi assim que se patenteou ao público uma das melhores películas da guerra submarina, sempre excitante. Foi o "Hell Bellow" de Robert Montgomery, Walter Houston e Madge Evans.

Em Maio de 1934, a população chinesa de Macau regozijou-se com a exibição da afamada companhia de auto "Ma Si Chang" que, durante quatro noites, representou no teatro Cheng Peng completamente à cunha. Infelizmente não temos dados para dizer se efectivamente, à frente do elenco, se encontrava o célebre actor Ma Si Chang. O que é certo é que esta companhia de teatro, com o seu nome feito, deliciou a grande comunidade chinesa, redendo a sua exibição milhares de patacas que depois foram dados ao ensino.

A população portuguesa, depois da visita duma esquadrilha de hidroaviões ingleses de Hong-Kong, a caminho de Singapura, e da vinda do destroyer japonês "Ashi" por uns dias, concentrou o seu interesse na inauguração do Clube de Caçadores, instalado numa área verde da zona do hipódromo, à Areia Preta, e quase paredes meias com o clube da União Recreativa.

Macau estava, nessa altura, pejada de entusiastas de caça e a prática venatória fazia-se nas várzeas e colinas da "terra-china", donde os caçadores traziam, ao cair das tardes de Domingo, narcejas, rolas, perdizes, patos bravos e outras peças de caça. Mas, como nem sempre se podia ir à China, pensou-se em criar aqui o tiro a pratos para distracção dos aficionados.

A inauguração realizou-se em 19 de Maio, às 16:30 horas, numa tarde ardente e luminosa, com a assistência do Governador, autoridades civis e militares, inúmeros sócios e respectivas famílias. A festa começou por um leilão de 24 espingardas, sendo todas disputadas. A seguir veio o torneio inaugural com a intervenção de 22 caçadores.

A luta foi renhida e temos à mão os resultados. O 1° classificado foi Mário Baptista, 14 pontos; o 2° foi Celedónio Gomes, 13 pontos; para o 3°, classificaram-se Dr. José Alves Ferreira e António Ferreira Batalha, 12 pontos; a seguir, Fernando Rodrigues (pai), Alberto Mel-lo, José Simão Rodrigues e Mário Ribeiro, 11 pontos; Américo Pacheco Jorge, 10 pontos, António Ribeiro e Horácio Pais Laranjeira, 8 pontos; Veríssimo do Rosário, 7 pontos; Júlio de Oliveira, Guedes Pinto, D. João de Vila Franca, 6 pontos; Emílio Bontein da Rosa, 5 pontos; Luís Miranda, Luís Mello, António Mello Jr., 4 pontos; José Sales da Silva, 3 pontos; D. João Mesquitela, 2 pontos; e António Alexandrino de Mello, 0 pontos.

Para o terceiro lugar, houve depois um desempate entre Dr. José Alves Ferreira e António Ferreira Batalha, vencendo aquele. Distribuiram-se depois os prémios para os três primeiros classificados e António Alexandrino de Mello recebeu o prémio de consolação, que aceitou com bonomia e grandeza de alma.

A alegre violência da comédia: os irmãos Marx em "Um Dia nas Corridas".

António A. de Mello, filho do Barão de Cercal, era uma veneranda e popular figura de macaense e tinha a qualidade de ser um grande gourmet. Nesta festa inaugural do Clube dos Caçadores, o chá-gordo que se seguiu ao torneio foi dirigido e organizado por ele. De modo que, se recebeu um prémio de consolação, consolou também a todos os presentes com um finíssimo chá-gordo que ainda persiste na memória daqueles que tiveram a dita de participar nele.

Quanto à vida artística, preparava-se para a estreia das actividades da Academia de Amadores de Teatro e Música. Durante o verão, porque a agremiação ainda não possuía instalação própria, os ensaios realizavam-se na casa de Bernardino de Senna Fernandes, à Praia Grande. Em dias marcados da semana, enchiam-se as salas de sócios, em serões onde o sério se misturava com o bom humor e vontade de cumprir.

Chamou-se sarau à estreia da Academia, que teve lugar no dia l de Setembro. Foi uma noite admirável e inesquecível de arte, contribuindo todos os participantes com o melhor do seu esforço para o êxito da empresa.

Eram cerca de cinquenta os amadores. Houve uma parte cénica e outra musical. Na parte teatral apresentaram-se duas peças de um acto cada. Quanto à parte musical, houve solos de violino, canto e violoncelo, conjuntos corais e de orquestra, um trio que tocou o "Trio Opus 49" de Mendelssolm.

Os amadores que se responsabilizaram pela parte cénica foram: Lucília de Campos Néry, Maria Helena de Menezes Ribeiro, José de Arede e Soveral, D. João de Vila Franca, Mário de Campos Néry, os irmãos José e Francisco de Carvalho e Rego, Henrique Teixeira Machado e Henrique de Serpa Pimentel.

A orquestra teve a seguinte composição:

Regência - Bernardino de Senna Fernandes; piano - Maria de Natividade de Senna Fernandes; violinos - Joseph Pasquier, Luís Baptista, Alberto Barros Pereira, Francisco Freire Garcia, Carlos de Mello e Jorge Estorninho; violoncelos - Cipriano Bernardo e Evaristo Carvalho; flauta - Edmundo de Senna Fernandes; saxofone - Emídio Tavares; cornetins -Alberto Ângelo e Pedro Coelho; trombone - Jacinto Azinheira; contra-baixo - Lúcio Carion e bateria - Fernando de Albuquerque.

Os coros eram formados por:

Arcádia Borges, Arminda Borges, Amália Rodrigues, Eduarda Amaral, Maria Helena de Menezes Ribeiro, Júlia Maria Garcia, Lília Mello, Lucília de Campos Néry, Maria Amália de Carvalho e Rego, Maria José Amaral e Renée de Senna Fernandes.

Amadeu Borges, Cláudio Vaz, Eduardo da Silva, Francisco de Carvalho e Rego, José Freire Garcia, Henrique Teixeira Machado, Henrique de Serpa Pimentel, José de Arede e Soveral, José de Carvalho e Rego, D. João de Vila Franca, Luís Gonzaga Gomes, Mário de Campos Néry e Pedro Ângelo Jr.

Um dos números mais aclamados pela sensibilidade dos artistas foi o trio que tocou a obra de Mendels--solm. Esse trio era composto por Maria Amália de Carvalho e Rego (piano), Bernardino de Senna Fernandes (violino) e Cipriano Bernardo.

O êxito foi um impulso para que os amadores continuassem na sua obra artística e educadora. Daí que, imediatamente, se prepararam para levar à cena, a primeira peça de fôlego do seu programa "O Poço do Bispo".

Quanto ao cinema, o Verão de 1934 marca o fim do Vitória. O encerramento faz-se no dia l de Julho, com a promessa de que um novo teatro o irá substituir - o teatro Carlton, ainda em construção. Mas antes de fechar as suas portas, o Vitória ofereceu-nos películas notáveis.

Stan Laurel e Oliver Hardy em "Marinheiros à Força".

"Blue Angel", célebre realização de Josef von Stemberg, com Marlene Dietrich e Emil Jennings, pro-dução da base UFA; "The Cat and the Fiddle" de Ramon Novarro e Jeannette MacDonald; e outra hilariante comédia de Oliver Hardy e Stan Laurel (Bucha e Estica), denominada "Sons of the Desert".

Reina, como único cinema de primeira categoria, o Capitol e o público cinéfilo não fica desiludido, embora já não pudesse ver filmes da Metro-Goldwyn-Mayer cujo exclusivo pertencia à empresa cessante do Vitória. O Ca-pitol tinha os filmes da Fox, R. K. O. Radio e Universal.

Foi nesta altura que vimos dois filmes que guardamos gratamente na memória. Primeiro, "The Lost Pa-trol" (A Patrulha Perdida) de John Ford, com os grandes actores Victor Maclaeglen, Boris Karloff, Wallace Ford e Reginald Denny - um filme dos mais realistas sobre as agruras da Legião Estrangeira. Outro filme foi "Morning Glory", com Katherine Hepburn, Douglas Fairbanks Jr. e Adolphe Menjou.

Aparece-nos um filme que faz chorar Macau, denominado "Back Street", com Irene Dunne e John Boles. Mais tarde vieram outras versões que, porém, não chegaram a ser vales de lágrimas como aquele. Surge-nos também um magnífico filme para adolescentes que nos encheu a imaginação, o "Emílio e os Dectectives", filme alemão de base UFA. A perseguicão final ao criminoso, feita em bicicleta, levou a rapaziada da plateia do Capitol a uma gritaria infernal, em apoio ao herói Emílio e os seus companheiros.

A partir de l de Julho de 1934, o Vitória encerrou as suas portas e tudo indicava que seria para sempre. As suas instalações eram desconfortáveis e a falta de higiene um motivo constante de queixas duras da imprensa. Fechava-se assim um ciclo da história do cinema de Macau e ninguém pareceu lamentar na época o desaparecimento dessa casa de espectáculo, que tivera a sua idade de ouro no silêncio e exibira o primeiro filme sonoro.

Para a população não chinesa, ficou apenas o Ca-pitol. É certo que havia outros teatros ou animatógrafos, como o Cheng Peng, mais casa de "auto-china" do que de cinema, na travessa do Aterro Novo; o Hoi Keang, à Praia do Manduco; o San Kio, na Almirante Lacerda; e o Iün Iün, na avenida Almeida Ribeiro, n° 52 a 60. Mas estes serviam uma clientela chinesa ou, então, filmes ocidentais, mas mudos. Havia o Nanquim, que a princípio tivera veleidades de cinema de primeira categoria. Sito, porém, no bairro retintamente chinês da Ribeira do Patane e em cima do mercado, pouco ou nada conseguiu neste sentido, acabando por ser frequentado praticamente pelos habitantes da área. Podemos ainda citar uma outra casa de cinema, a do Clube dos Amigos de Equitação de Macau, no próprio Campo de Corridas de Cavalos, mas de tão pouca dura, que apenas a mencionamos por curiosidade e rigor histórico.

O Capitol ficou, assim, só, no domínio do cinema, reinando sem rival. No Outono daquele ano, não nos desiludiu com a selecção dos seus filmes.

Apontemos, em primeiro lugar, a película musical "George White's Scandals", com Rudy Valée, o famoso vagabond lover, o cómico Jimmy Durante e Alice Faye. É pela primeira vez que o público macaense se apercebe da presença e da voz envolvente desta actriz que, poucos anos depois, se tornará na artista mais bem paga da casa Fox e um dos símbolos da América feliz e ingénua de antes da guerra, e recuperada dos anos da Depressão.

Irene Dunne e John Boles em "Back Street".

Em segundo lugar, aparece-nos "Bolero", com dois actores ainda quase desconhecidos, George Raft e Carol Lombard. Raft tem um papel notável na figura de um gaseado de guerra, condenado a morrer a qualquer momento. O tórrido amor por Carol Lombard leva-o a dançar, no final do filme, o seu último bolero, com todos os "matadores". O esforço é demasiado e morre nos braços da mulher amada. Um filme sentimental, romântico, muito 1930, mas que encantou e fez chorar os espectadores. George Raft foi alcandorado pela publicidade, como o futuro Valentino do sonoro. Felizmente que enveredou por outros caminhos, imortalizando-se como um dos grandes gangsters do cinema, ao lado de Edward G. Robinson, James Cagney, Humphrey Bogart e Sidney Greenstreet.

Inevitavelmente, a moda do bolero pegou em Macau e nos bailes da época surgiram nas salas da União Recreativa e do Clube de Macau uns tantos convencidos Georges Raft a dançar com as respectivas Carols Lombard, estas mais convencidas ainda, para aplauso dos basbaques.

O maior acontecimento cinematográfico desse Outono foi, porém, a exibição de "The Invisible Man" (O Homem Invisível), em 20 de Outubro, com Claude Rains e Gloria Stuart. Foi sensacional! Transcrevemos de "A Voz de Macau" uma parte da notícia sobre o filme: "Apreciou o público o filme 'Dracula' em que Bella Lugosi foi extraordinário de verdade, belo na sua impressionante personalidade?

Apreciou o público Boris Karloff, no filme que jamais se apagará da memória de todos os que tiveram a ventura de assistir à sua exibição, filme extraordinariamente emocionante, pela inolvidável figura de 'Frankenstein'?

Haverá quem possa esquecer-se do mesmo actor Karloff na terrível 'Múmia', peça tão fantasiosa que o mesmo actor encheu de verdade e emoção?

Quem poderá esquecer Fredrerick March, esse simpático e admirável actor, no hediondo papel de 'Mr. Hyde', do filme 'Dr. Jeckill and Mr. Hyde'?

Pois foram todos estes filmes já citados os melhores do género produzidos até à data em que a casa 'Universal' anunciou ao público ter concluído nos seus estúdios o filme intitulado 'O Homem Invisível', a mais estupenda e formidável produção do género até hoje realizada.

Todas estas extraordinárias figuras que a nossa memória retém, Drácula, Frankenstein, a Múmia e Mr Hyde, darão lugar a uma única e incomparável: 'O Homem Invisível'.

Claude Rains, actor consagrado nos palcos de Nova Iorque e Londres, criou o personagem 'O Homem Invisível' com tal verdade que não pode haver, entre quem assista à exibição deste extraordinário filme, uma só pessoa que não creia na real existência desse monstro, vítima da ciência, dessa figura impossível que, não se vendo por vezes no próprio filme, sentimos a nosso lado segredando-nos uma ameaça terrível."

Com tais palavras, não era difícil acreditar que ao Capitol afluísse uma enchente desusual. O filme não desiludiu e, para o tempo, a técnica empregada foi um prodígio de espantar. Para a criançada, foi outro papão assustador, ajuntar-se ao Drácula, Frankenstein e outros monstros congéneres.

Boris Karloff em "O Homem Invisível" (The Invisible Man).

A Academia dos Amadores de Teatro e Música, depois do êxito da sua estreia, apresentou duas peças de fôlego, a primeira, em 4 de Outubro, "O Poço do Bispo", uma comédia hilariante de Ernesto Rodrigues, Félix Bermudas e João Bastos, e a segunda, a popularíssima e sempre encantadora "A Vizinha do Lado", de André Brun. Na primeira peça, distinguiram-se, sem desdouro para outros brilhantes amadores, Maria Amália de Car-valho e Rego e José Alves Ferreira, então, delegado do Procurador da Comarca, ambos estreiantes. Em "A Vizinha do Lado", o público do Teatro D. Pedro V pranteou abertamente. Isto, em Dezembro, em dia cuja data não podemos fixar rigorosamente, mas que não esquecemos. E novos louros foram para Maria Amália de Carvalho e Rego, uma artista consumada.

O evento social daquelo Outono longínquo foi a inauguração da pastelaria "As Delícias", dirigida por três senhoras da nossa sociedade, as irmãs Menezes, Celeste e Maria, e Ana Teresa d'Assumpção, mais conhecida por Anita d'Assumpção. "As Delícias" ficava na avenida Almeida Ribeiro, onde hoje se encontra a Livraria da China fazendo esquina com a Rua Central.

A partir da sua inauguração, em 2 de Outubro, passou a ser apoiada pela melhor sociedade macaense, à hora do chá. Alguém dizia que correspondia em Macau à cafeteria Max de Hong-Kong. Descontando o evidente exagero, "As Delícias" era um local chique e elegante, de encontro e de reunião. Faziam-se toilettes para lá ir e não era de bom tom não o frequentar.

A pastelaria vinha satisfazer uma necessidade. Para quem não tivesse o bilhar e as partidas de "má-jong" e de brídige nos clubes e não permanecesse em casa, à hora da merenda, como se dizia em Macau antigo, o único sítio a ir era o Hotel Central. O Hotel Riviera, no entanto, tinha pruridos a hotel inglês, com as ementas nesta língua e os criados mascavando-a com convicção. Esse pseudo ambiente britânico não se coadunava com a vivacidade latina. Tirando a mesa de café do Dr. Carlos de Melo Leitão, à janela frente ao Banco Nacional Ultramarino, onde se reunia um grupo obrigatório para a cavaqueira, lá por volta das duas e meia da tarde, tudo o mais era inglês ou chinês de Hong-Kong. O "United States", mais popular e terra-a - terra, não satisfazia os elegantes. Comia-se ali um espantoso "kai-si-fán" (arroz de galinha), muito nutriente, dizia - se, para quem viesse das blandícias da Rua da Felicidade, mas não tinha nada de requintado.

"As Delícias" apresentava um ambiente muito português. Os pastéis e os bolos eram divinos e, por todos os lados, só se ouvia o português. Tornou-se um centro nevrálgico de Macau. Quem quisesse conhecer as novidades da terra, os boatos, o diz-se, era para "As Delícias" que se dirigia. Ali pontificavam os avatares da cidade, os que arvoravam em saber de tudo. A expressão "Ouvi ontem dizer nas Delícias..." obteve foros de sacramental. Quem quisesse contactar com as figuras mais em evidência na terra, tinha que se sentar nas mesas de "As Delí-cias". E nessas mesmas mesas, muito namoro e casamento se forjaram. "As Delícias" tinha uma verdadeira cor local, numa cidade muito portuguesa e ainda com ressaibos largos da vida patriarcal dos nossos maiores.

Lembramo-nos do nosso primeiro encontro com "As Delícias". Tínhamos vindo do matagal da Guia, onde fomos construir uma "mina" com companheiros. Mal chegámos a casa, a criada disse que os pais nos esperavam na pastelaria. Esquecemo-nos da apresentação e fomos com os joelhos marcados de terra, a camisa amarrotada. O olhar fulo da mãe gelou-nos. Sentámo-nos embaraçado, mas os pastéis dourados de amêndoa e ovos breve nos fizeram esquecer as agruras. Estávamos com fome e, logo à primeira, metemos todo o pastel na boca, com a voracidade típica da adolescência. Outro olhar fulo da mãe e a reprimenda clássica: "Esqueceste as maneiras que aprendeste". Esta a primeira recordação de "As Delícias".

Em meados de Outubro de 1934, chega a notícia de que o então tenente aviador Humberto da Cruz se propõe fazer um raid Lisboa-Díli, passando no regresso por Macau e Estado da Índia. Isto despertou um enorme interesse dos portugueses destas paragens, ainda não esquecidos do vôo, dez anos atrás, de Brito Pais, Sarmento Beires e Manuel Gouveia. Afinal, os aviadores portugueses também eram pioneiros de vôos de longo curso.

Em 25 de Outubro, efectivamente, o tenente Humberto da Cruz, acompanhado do seu mecânico, o primeiro-sargento Gonçalves Lobato, sobe para o ar em Amadora, no seu frágil monoplano, propondo-se cobrir um percurso calculado em 44.180 quilómetros.

Precisamente nessa altura, o mundo estava abalado com a primeira corrida aérea Inglaterra-Austrália, onde participaram cerca de vinte aviões de várias nacionalidades, sendo vencedores os ingleses Charles Scott e Campbell Black, nomes hoje inteiramente desconhecidos, que fizeram o vôo record de 71 horas, considerado espantoso para a época.

O raid de Humberto da Cruz vinha demonstrar que também os portugueses tinham o espírito da aventura. Este facto encheu de legítimo orgulho as comunidades lusas do Extremo Oriente, que sempre mostraram um acendrado amor pela Pátria, embora tantas vezes esquecidas e tratadas de somenos. Dia a dia se seguiu o raid com emoção. Em Macau, as pessoas que se encontravam na rua, nas "Delícias", nos clubes e nos serões em casas particulares, perguntavam, umas às outras, se havia mais novidade, se os aviadores já teriam aterrado aqui ou acolá, fazendo votos para que não houvesse nenhum azar.

Em 7 de Novembro, o pequeno aeroplano pousa em Díli, trazendo as asas de Portugal para aquele território português mais longínquo, sendo aclamados os aviadores delirantemente pelos timorenses, tão ciosos da sua portugalidade. Em Macau, prepara-se uma recepção condigna que será a 19 daquele mês.

A aterragem estava marcada para as 12 horas no relvado do Hipódromo e àquela hora encontrava-se aí uma compacta multidão à espera. O avião atrasou-se, no entanto, e só deslizou graciosamente no chão do improvisado aeroporto às 16 horas. Antes disso, Humberto da Cruz sobrevoara a cidade, passando pelo campo de Tap Seac, onde havia um renhido desafio de hóquei. Imediatamente os espectadores do jogo abandonaram o campo, acorrendo para o Hipódromo.

Os aviadores puderam admirar a alegria genuína da gente de Macau, que os encheu de aclamações e palmas, havendo em muitas pessoas lágrimas nos olhos. Seguiu-se uma sessão solene no Salão Nobre do Leal Senado da Câmara e depois vieram várias recepções, festas e outras manifestações de carinho, deixando na alma dos bravos visitantes uma indelével recordação de Macau. A comunidade portuguesa de Hong-Kong não quis ficar atrás e o acolhimento na colónia vizinha ficou memorável, sobretudo, a recepção no Clube Lusitano, que foi uma das mais brilhantes nos anais daquela prestigiosa agremiação.

Em Dezembro, as atenções de Macau desviam-se para a visita a Malaia do Macau Hóquei Clube, para uma série de jogos. Aparecem de toda a parte boas vontades para ajudar os "rapazes". O Governo e o Leal Senado subsidiam, o mesmo procedendo entidades particulares, como Júlio Eugénio da Silva e António Maria da Silva. A Academia de Amadores do Teatro e Música leva a efeito a peça "As Alegrias do Lar", entregando todo o produto da receita àquele clube desportivo. Na venda dos bilhetes distinguem-se Celeste Vidigal, Celsa Rodrigues e Guidinha Nolasco, que mereceu um agradecimento público do referido clube.

Em 24 de Dezembro, os representantes do hóquei partiram de Hong-Kong no "Tilawa", a caminho de Singapura. Macau ficou aguardando, com grandes expectativas, o triunfo deles. Foram quatro os jogos entre 29 de Dezembro e 4 de Janeiro de 1935. O primeiro jogo realizou-se entre Macau e a selecção de europeus de Singapura, com o resultado a nosso favor de 2-1. O segundo desafio, no último dia do ano, com resto de Singapura, isto é, uma selecção de jogadores não europeus, em que perdemos por 4-2. Para Macau foi um banho de água fria. No dia 2 de Janeiro de 1935, realizou-se em Kuala Lumpur o jogo principal: Macau-Malaia. A nossa linha era a mesma que no ano anterior enfrentara a Malaia:

Almada; Pinto Cardoso e Jacinto Rodrigues; Lino Ferreira, João dos Santos Ferreira e Alexandre Airosa; Frederico Nolasco da Silva, Laertes da Costa, Fernando Ramalho, Rui Hugo do Rosário e Amílcar Ângelo. Reservas - Pedro Ângelo Jr., João Nolasco da Silva e Leonel de Oliveira Rodrigues.

Era o jogo principal. O resultado foi duro para nós: perdemos por 3 bolas a zero; os goals metidos no primeiro quarto de hora da primeira parte. Ouçamos Filipe O'Costa:

"Antes do jogo, chuva. E assistimos novamente ao descalçar dos sapatos, como em Singapura. Mas houve pior. No primeiro quarto de hora, o nosso grupo, por nervosismo, por cansaço ou pelas duas causas reunidas, jogou mal como raras vezes o tenho visto jogar e os goals vieram, enexoravelmente. Eu, a arbitrar, quási que arranquei os cabelos.

Mas honra lhes seja, não desanimaram e começaram a mostrar o que sabem; daí por diante o jogo foi igual e até com notável domínio nosso no final da segunda parte.

Passado esse quarto de hora negro, todos jogaram bem, especialmente Ferreira, Rosário e Jacinto, embora o último não tivesse sido tão brilhante como em Singapura".

O último jogo, em 4 de Janeiro, realizou-se em Malaca, em que Macau venceu por 2-0, num "jogo agradável e regular" com "grande assistência, a maior, segundo nos disseram, que ainda presenciou um desafio de hóquei em Malaca".

O telegrama recebido no dia 3 de Janeiro, anunciando a derrota com a Malaia, causou enorme consternação. A cidade portuguesa pareceu enlutada. No entanto, a actuação do nosso grupo em todos os desafios mereceu grandes encómios da imprensa de Singapura e de Kuala Lumpur. Macau Hóquei Clube não saiu desprestigiado e foi considerado um dos melhores grupos da Ásia.

À chegada, o grupo foi recebido por uma grande massa de aficionados. A Sociedade da União Recreativa deu em honra dele, no dia 13 de Janeiro, uma "soirée dançante", que decorreu muito animada até alta madrugada, interrompida apenas para um fino "copo de água" e para o discurso entusiástico do Presidente da Agremiação, António F. Batalha. No capítulo do cinema, o Capitol apresenta, em 7 de Janeiro, o primeiro filme da série em sonoro, que cor-reu em Macau, chamado "The Host Special". Para a estudantada e a garotada, foi um belo filme, com muita pancadaria, perseguições mirabolantes e várias situações de suspense. A rapaziada amplamente delirou com a fita. Mas o mesmo não aconteceu com a gente adulta. A época e a moda dos filmes da série tinham já passado, o gosto do público era para os dramas e películas musicais. E o reflexo deste gosto dos adultos estava que em todas as festas se tocavam as últimas novidades em dança, toada do filme "Twenty Millions Sweethearts" de Nancy Carrroll e Dick Powell, sendo o hit favorito "I'll String Along with You".

O teatro, que teria o nome de Carlton, inaugura-se com o nome de Apolo no dia 2 de Fevereiro, com "Merry Widow" (A Viúva Alegre), tendo como principais actores Maurice Chevalier e Jeannette MacDonald. Acudiu a melhor gente de Macau para o novo teatro, que possuía a novidade de ser muito amplo para a época, à imitação de alguns teatros de Hong-Kong. O filme foi recebido com encómios, mas a ninguém escapou que a sonorização era péssima, com uma máquina de projecção que se dizia de segunda mão. Pelo menos, não batia a do Capitol que esta sim, era de primeira. Um mês depois da inauguração, já "A Voz de Macau" se recalcitrava com a sonorização e o as--seio. Nas preferências do público, o Capitol marchava em primeira linha. Alguns filmes notáveis do Inverno foram "The Black Cat" e "I Love a Woman", em que Kay Francis aparece com um actor novo para Macau, Edward G. Robinson, ainda não em papel de gangster, que o imortalizaria.

Em 16 de Fevereiro, "A Voz de Macau" dá-nos uma notícia retumbante, com o título "Hollywood em Macau". Vamos transcrevê-la na íntegra:

"Informam-nos que em breve a Companhia de Hollywood de Macau vai iniciar os seus trabalhos de construção dum estúdio, com uma enfermaria, piscina, etc., no Porto Exterior, pois possui já, para esse efeito, a devida autorização superior, devendo nos primeiros oito meses de trabalhos despender a quantia de $400.000 (ouro) e mais $300.000 passado o período de 18 meses.

Esta Companhia que aforou do Estado 136.000 metros quadrados de terreno a $0,01 o metro quadrado vai despender nessa grandiosa obra e nas filmagens a quantia de cerca de $4.000.000 (ouro) contando empregar grande número de operários portugueses e chineses, bem como artistas de ambas as nacionalidades.

Informam-nos, ainda, que o contrato já foi aprovado pelo Conselho do Governo, na sua sessão de 14 do corrente, tendo essa Companhia pedido isenção de contribuição predial".

Bela Lugosi, à esquerda, e Boris Karloff em "Magia Negra" (The Black Cat).

Durante algum tempo, falou-se muito desta Companhia e houve gente que se via transformada em actor ou actriz. Mas como tantas coisas de Macau, os planos,se os houve, ficaram no fundo da gaveta. E os Iodos do Porto Exterior ficaram a aguardar outros planos grandiosos que foram sempre falhando, a ponto do macaense não acreditar em nada, por muita desilusão sofrida.

O Carnaval de 1935 foi animadíssimo e, segundo os coevos, tão divertido e brilhante como o do ano transacto. Houve vários "assaltos" em casas particulares, mas o que excedeu toda a expectativa foi o que se realizou em 16 de Fevereiro, na Sociedade da União Recreativa. Ouçamos o "A Voz de Macau", de 18, Segunda-Feira:

"Realizou-se no Sábado, 16 do corrente, nos salões da U. R., um dos característicos "assaltos" carnavalescos que decorreu com uma animação desusada, tendo uma assistência computada em 200 pessoas.

São de louvar estas festas numa quadra em que a crise económica deprime a alegria salutar da mocidade.

Felicitamos os promotores desta simpática festa, srs. Edmundo de Senna Fernandes; Dr. Adelino Barbosa da Conceição, José Choi Anok, Alberto Barros Pereira e José Tavares.

A tuna do grupo deu uma animação extraordinária à festa e a sua entrada nas salas da S. U. R., acompanhada dum grupo de mais de 60 mascarados, foi verdadeiramente triunfal.

Que estas festas se repitam a fim de quebrar a monotonia em que vivemos".

O Carnaval propriamente dito inicicou-se no Sá-bado-Gordo, 2 de Março, com o baile local a rigor no Clube de Macau, tão protocolar e chique que alguém, fugindo para outro mais popular, o Clube de Sargentos (Sociedade Recreativa 1° de Junho), apelidou de "baile de embaizada". E até Terça-Feira seguinte foi um delírio. Nesse ano, para animar os clubes havia um enorme grupo de Hong-Kong e mais a oficialidade da canhoneira inglesa "Moth" e da americana "Izabel", que se aproveitaram da visita ao nosso porto para gozarem o Carnaval de Macau, que tinha fama nestas paragens.

Sobre o baile de Terça-Feira do Clube de Macau, extraímos o seguinte artigo do mencionado periódico:

"Para não fugir à tradição, a festa da Terça-Feira do Carnaval, no Clube de Macau, foi de todas a mais animada. Foi interessante a entrada dum grande grupo de simpáticas meninas trajando diversos costumes regionais das Províncias de Portugal. Dispostas estas meninas numa roda, surgiu, como por encanto, uma interessante cigana que exibiu uma dança fartamente aplaudida pela numerosa assistência.

Tivemos a seguir uma desilusão quando descobrimos que a linda cigana era o Eduardo Silva!

Por volta das onze horas e meia fêz a sua entrada na sala a 'Tuna Camélia', acompanhada dum luzidio cortejo de mascarados. A festa atingiu então a sua maior animação, tendo durado até altas horas da madrugada.

E assim terminou um Carnaval excepcional mente animado".

Enquanto a gente macaense se divertia, toldava-se a situação internacional. Na China, estalara, com terrível ferocidade, a guerra entre as forças do Governo Central e os "vermelhos". Embora em Macau se não soubesse, eram as lutas da "Longa Marcha", que na altura decorriam nas províncias de Kweichow, Yunnan e Sze-chuien. Na Europa, Hitler e os seus apaniguados, agitando o patriotismo alemão, reclamavam o retorno do Sarre à Alemanha. E em Roma, Mussolini iniciava a sua campanha contra a Abissínia, com vista à sua absorção. Tudo isto, no entanto, não perturbava a calma e pasmaceira de Macau, como factos decorrendo em outros mundos.

A Academia dos Amadores de Teatro e Música, inaugurada tão auspiciosamente uns meses antes, encontrava-se em grande crise. O pedido de demissão de Ber-nardino de Senna Fernandes, como Director Musical nos fins de 1934, fora um duro golpe. Agora surgia outra machadada quando subitamente faleceu, em 24 de Janeiro, Henrique Teixeira Machado, um dos maiores amadores de teatro que pisaram os palcos de D. Pedro V. A peça "As Duas Causas", de autoria de Mário Duarte e Alberto Morais, marcada para o dia 30, ficou adiada sine die. A Academia durante meses iria estagnar-se e nunca mais se recuperaria destas duas perdas.

Em princípios de Março, as atenções de Macau concentravam-se na visita do aviso "Gonçalves Zarco" que, em viagem de soberania, mostrava ao Oriente o que era a proclamada Renovação da Marinha de Guerra Portuguesa. Era um navio de guerra novo que trazia a estas paragens a bandeira das Quinas, preenchendo uma lacuna deixada pelo velho cruzador "Adamastor", que regressara a Lisboa um ano e tal atrás, para ser abatido.

A visita fora esperada com orgulho e nervosismo,pois todos queriam admirar essa "moderna unidade de guerra". Em 8 de Março, Sexta-Feira, Macau engalanava-se para a receber. Diz "A Voz de Macau", em termos líricos:

"Às 13:30 horas, avistou-se o 'Gonçalves Zarco', ao longe, todo cinzento e cuja elegante silhueta se desenhava altiva no horizonte, primeira unidade naval das que o ilustre Chefe do Governo, Dr. Olivera Salazar, mandou construir em Inglaterra e veio até nós, os portugueses do Extremo Oriente, que comovidamente a contemplávamos, como se contempla amorosamente o torrão da Mãe-Pátria".

As unidades da Marinha Privativa da Colónia dirigiram-se ao largo para fazer a escolta. Comandava-as a lancha-canhoneira "Macau", onde se encontrava o Capitão dos Portos, 1° tenente Samuel Vieira. Atrás seguiam com altivez as lanchas "Demétrio Cinatti", "Talone" e "Coloane", os rebocadores "Neptuno" e "Berta", dois motores da Capitania dos Portos, as lanchas n° 5 e 6 e duas lanchas mandarinas. A incorporar no cortejo figuravam também a lancha "Luntsing" das Alfândegas Chinesas e outras lanchas e motores particulares. Nessa "esquadra" iam funcionários civis e militares; muitas senhoras; escoteiros de Macau; Banda Municipal; pessoal civil e militar das ilhas de Taipa e Coloane; representantes de "A Voz de Macau" e dos periódicos chineses; representantes do comércio e indústria desta cidade; Leal Senado, Clero, etc.

As boas vindas foram dadas por meio de apitos e queima de panchões das lanchas. Ao entrar no canal, o "Gonçalves Zarco" deu a salva da ordenança, sendo respondido pela bateria de artilharia da Fortaleza da Guia. Então "os juncos de pesca que se encontravam no porto, embandeirados, salvaram também o aviso 'Gonçalves Zarco' com as suas peças de carregar pela boca e queimando inúmeros panchões".

"Nunca em Macau assistimos a tão grandiosa recepção, imponentíssima, majestosa", diz o articulista do "A Voz de Macau". No Porto Exterior e na encosta da Guia, havia lágrimas em muitas pessoas, o patriotismo a tocar-lhes na corda sensível.

"Gonçalves Zarco", sob o comando do então capitão de fragata Manuel Cardoso Quintão Meireles, teve um acolhimento inesquecível. A hospitalidade de Macau, sempre fidalga, não regateou esforços para obsequiar os 133 homens, entre os quais 120 oficiais. Para muitos, depois de uma tão longa viagem pelo Oriente, Macau foi uma autêntica Ilha dos Amores. Voltando ao cinema, a inauguração do Apolo constituiu um rival para o Capitol. Já não estava sozinho em campo e, por isso, os filmes passaram a ser melhores do que quando se achava o único em campo.

Coreografia de Hermes Pan e de Fred Astaire para "Chapéu Alto" (Top Hat, 1935), de Mark Sandrich.

Não temos possibilidade de mencionar rigorosamente quais os filmes exibidos nas duas casas de espectáculo na época, pois subitamente, a partir de Fevereiro e ao longo de todo o 1935, "A Voz de Macau" (a nossa grande fonte de informação) deixou de fazer o anúncio dos filmes. Por isso, recorremos à nossa memória. Se não podemos enumerá-los cronologicamente, sabemos, ao menos, que foram exibidos nessa altura.

Com o desaparecimento do Vitória, o Apolo ficou com o exclusivo das películas da M. G. M, da United Artists e do Paramount. O Capitol reteve os filmes da R. K. O e da Fox.

Uma garotita de três anos, de extraordinário talento, conquista dum momento para o outro o público macaense. O seu nome é Shirley Temple, nos filmes "Little Miss Marker" e "Stand Up and Cheer". A empresa do Capitol esfrega as mãos de contentamento e vai ter daí para diante uma "mina" com os filmes daquela criança engraçada.

É também o Capitol que nos proporciona dois filmes do par Fred Astaire-Ginger Rogers, agora já em papéis principais. Os filmes são "Top Hat" e "Gay Divor-cee". As canções destas películas tornam-se populares, como, por exemplo, "Cheek to Cheek". O Capitol oferece-nos outros filmes inolvidáveis como "It Happened One Night", de Franck Capra, com Clarck Gable e Claudette Colbert; "One Night of Love", com Grace Moore e Tulio Carminatti; "Of Human Bon-dage" (A Servidão Humana), com Leslie Howard e Bette Davis, então praticamente desconhecida. O papel da sórdida Mildred abre para Bette Davis a oportunidade para o es-trelato. No entanto, quanto a nós, o melhor filme do Capi-tol da época foi o "Great Expectations" (Grandes Esperanças), extraído da obra de Dickens. Henry, Phillips Hol-mes, Jane Wyatt, Florence Reed e Alan Hale encarnam extraordinariamente bem as figuras imortais de Dickens.

O Apolo não fica atrás, exibe também filmes admiráveis. Apontemos, da Metro Goldwyn Mayer, três grandes: "The Barrett of Wimpole Street", com Charles Laugh-ton, Frederic March e Norma Shearer; "Viva Villa", Wal-lace Beery no papel de Pancho Villa; e "The Treasure Is-land" (A Ilha do Tesouro), também com Wallace Beery, coadjuvado por Leslie Howard e pelo garoto Jackie Cooper.

O Apolo exibe também os chamados filmes biográficos, tais como "Cleopatra", uma produção de Cecil B. de Mille, com Claudette Colbert no papel de rainha do Egipto, Henry Wilcoxon, no de Marco António, e Wa-rren Williams, no de César. Apontemos outros: "The Pri-vate Life of Don Juan", o último filme de Douglas Fair-banks (pai); "The House of Rotchilds", com George Ar-liss quase no fim da sua carreira de actor. No entanto, para nós que então éramos um rapazito, o melhor filme do Apolo foi o "The Count of Monte Cristo" (O Conde de Monte Cristo), fita que nos levou a ler e devorar os livros de Alexandre Dumas (pai). Os actores desse filme de que guardamos grata memória foram Robert Donat, Elissa Laudi e Sidney Blackmer.

No começo do Verão de 1935, as atenções concentravam no edifício do teatro Vitória, que se transformava em Palácio Fortuna, um lugar de entretenimento que se dizia para todas as idades.

Por razões que não estão no âmbito deste trabalho, o Governo da Colónia resolvera acabar com o exclusivo do jogo, concedendo licenças de exploração defantan a toda e qualquer empresa que reunisse determinadas condições. Assim, deixou de haver apenas uma companhia conces--sionária. A empresa do Vitória, munida dessa licença, meteu obras no edifício para torná-lo num futuro casino.

Douglas Fairbanks, ladeado por Merle Oberon e Melville Cooper, em "The Private Life of Don Juan".

"A Voz de Macau" fez-se eco desse acontecimento ao publicar uma local no dia 16 de Maio, de que extraímos as seguintes passagens:

"Para chamar o turismo e dar vida à cidade, vai pois a 'Empresa Vitória' inaugurar no dia 18 o Palácio Fortuna, no antigo edifício do teatro Vitória, adequadamente remodelado, onde o público encontrará toda a espécie de entretenimento.

Dar vida a Macau é tarefa digna de ser patrocinada por todos os portugueses. Sem reclamo e sem o devido auxílio de todos, nada se conseguirá de útil para Macau.

É já tempo de fechar ouvidos ao que interesses particulares possam dizer e procurarmos por todos os meios fazer progredir este lindo e tão aprazível torrão português.

A inauguração do Palácio da Fortuna, primeiro passa para esse desideratum, promete ser grandiosa".

No mesmo jornal e noutra página, lê-se o seguinte anúncio:

"Palácio da Fortuna

Único no seu género no antigo teatro Vitória, completamente renovado e artisticamente decorado.

O público encontrará no Palácio da Fortuna todos os entretenimentos desde a dança até os mais aprazíveis passatempos.

Amplos salões de dança; belas bailarinas, esplêndido jazz; luxuosos quartos higiénicos; e, anexo, um belo restaurante.

No Palácio da Fortuna, o público desfrutará o máximo de alegria e o máximo de conforto.

O Palácio da Fortuna é o Paraíso da Vida onde encontrareis tudo que é agradável.

Visitai o Palácio da Fortuna".

A inauguração fez-se com pompa e alvoroço. Houve discursos, exibiu-se o grupo acrobático australiano "Wallaby", a seguir desenrolou-se uma pequena sessão cinematográfica e "auto-china".

"A Voz de Macau" em 20 de Maio descreve assim o Palácio da Fortuna:

"O Salão Vitória que pode, sem favor, ser considerado um dos grandes melhoramentos desta cidade, é de facto uma obra digna de ser vista.

Bastante amplo, ele possui, além de uma sala de jogo absolutamente independente, um salão de dança espaçoso, confortável e esplendidamente iluminado.

No andar superior, um restaurante bem montado fornecerá brevemente comida chinesa e portuguesa.

Enfim, uma sala de diversões que vem preencher uma lacuna que já se ia fazendo sentir numa cidade que agora, mais do que nunca, pretende dar um intenso desenvolvimento ao turismo".

Estas eram as belas intenções, mas a população estava pobre, não podendo apoiar praticamente os planos da Empresa Vitória. Uma lotaria inaugurada no ano anterior, chamada chee tam fazia estragos consideráveis nas parcas economias da gente de Macau, portugueses e chineses.

Com base nas oitenta letras do pacápio, a última das vinte premiadas era o chee tam. O prémio que se pagava para este era aparentemente muito convidativo. Ganhavam-se setenta vezes o preço por que se comprava uma letra. Assim, se déssemos $1,00 pela letra premiada, auferiríamos $70,00. Não havia limite pelo número de letras marcadas, mas todas tinham que ser apostadas pelo mesmo preço que se dava a uma e que variava segundo as posses de cada um.

Havia três extracções por dia: uma ao meio-dia, a seguir a das 19 horas e a última às 23 horas. Quando a lotaria se iniciou, toda a gente começou a jogar, talvez mais por curiosidade, por ser uma novidade. Os prémios muito lucrativos entusiasmavam. Numa época, em que para um estivador ou um cúli de riquexó dez avos representavam uma refeição, ganhar-se 70 vezes mais era mesmo fascinante. O dinheiro chegava para todo o mês.

Que o prémio seduzia, não havia dúvida. Recordo-me de uma experiência passada comigo. Vínhamos para casa, depois da primeira sessão da noite, no Capitol, cerca de 22 horas, quando passámos por uma casa de lotaria. O meu pai perguntou-me se tinha algum palpite e eu disse o nome de uma letra fo (fogo). O meu pai, tirando uma moeda de 20 avos, comprou o bilhete onde o mesmo caracter estava marcado a vermelho, isolado dos outros 79 de cor verde. Fomos para casa e não soubemos do resultado senão no dia seguinte, ao ouvir a chinfrineira das criadas no quintal: "A letra premiada foi fo". As $14,00 foram-me dadas generosamente pelo meu pai e, durante muito tempo, vivi como um privilegiado, convertendo o dinheiro em matinées, sorvetes, em livros de Salgari, comprados na Livraria Lucas, e da colecção Terramarear, na Livraria Oriente Comercial. E também aparos esquisitos no Po Man Lau.

Conheço alguém, cujo pai era um inveterado jogador de chee tam, jogando forte. Um dia, ao sair da casa, o progenitor deu-lhe cinco patacas para comprar uma letra qualquer, pois tinha um palpite forte. O rapaz foi para o seu passeio e esqueceu-se da incumbência, só se lembrando quase no fecho da sessão. O pior é que não se lembrava qual era a letra do palpite e marcou uma qualquer cujo som lhe parecia ser aquele que o pai lhe dis-sera. Suou angustiado, aguardando pelo resultado. Se comprasse uma letra que não fosse a do pai e se esta saís-se! A extracção da lotaria deu, no entanto, uma surpresa. A letra marcada, ao acaso, saiu premiada.

A sua intenção era, de facto, entregar o dinheiro, mas quando anunciou que vencera uma letra diferente, o pai interrompeu-o, afirmando, em tom despiciendo, que afinal perdera apenas cinco patacas. O demónio da tentação de ser "rico", de repente, fez calar o filho. Forreta, não partilhou com ninguém da fortuna, adquirindo coisas com que há muito sonhava. É claro que $350,00 era algum dinheiro na altura e Macau uma terra pequena. Dois dias depois, muita gente congratulava o pai por ter acertado na letra. Intrigado, averiguou e veio a descobrir tudo. Houve uma tremenda descompostura e ameaças de castigo e tudo ficou por aí, mas o pai arrecadou o resto do dinheiro, que ainda era vultoso.

Um outro amigo meu teve mais sorte. Não pertenceu à minha geração; era mais velho e a história foi-me contada na varanda do Extremo Oriente, muitos anos depois. A mãe tinha-lhe dado dez patacas para comprar vários artigos na mercearia Cheong Hing, na Rua do Campo. Era de manhã, quando se dirigiu à loja. De repente, viu na frente uma rapariga que há muito fazia o seu pé de alferes. Habitualmente ela andava de cinzento ou preto, mas nessa manhã andava duma cabaia dourada. Ficou estarrecido e disse-me textualmente que, de repente, sentira um "eflúvio subir pelo espírito acima". Não fez mais nada; pegou nas dez patacas e comprou na primeira casa de lotaria a letra kam (ouro). Como o outro, sofreu de angústia depois. Se não saísse a letra, como justificaria a perda das dez patacas? Planeou, na emergência, contar uma história patética à sua madrinha para lhe arrancar o dinheiro. Mas não foi preciso tal estratagema, porque a letra kam saiu vencedora. Viu-se um príncipe com $700,00; comprou os artigos da mercearia para a mãe, o resto resolveu gastá-lo. Mas este era generoso, um bom colega e partilhou da sua riqueza com os amigos, que viveram à grande. Eram piqueniques - estava-se no verão -, eram almoçadas e iam-chás nos culaus, e porque eram matulões, as festarolas acabavam nos bairros de amor. Alguns amigos tornaram-se homens, à custa da generosidade do juvenil "nababo". Como, por fim, ninguém guardasse discrição, surgiram zunzuns dessa súbita riqueza, até que caíram nos ouvidos da mãe. O rapaz foi chamado a pretório e, muito vermelho, confessou a verdade. Houve gritaria da mãe e o avô irado, com punhadas na mesa, disse-lhe que cometera um crime de abuso de confiança e devia confessar os seus pecados ao padre, logo no primeiro domingo. E ambos caçaram-lhe o que restava. Aos amigos, comentava:

- "Berros e castigos, vá lá, eu merecia! Mas ficarem-me com o dinheiro é que não! Eu ganhei-o, afinal!"

O rapaz saiu amachucado, recebeu do padre um terço de penitência, mas não ficou convencido de que não merecesse a massa. Os amigos é que nunca mais esqueceram aqueles prodigiosos dias de farra.

Isto, a parte humorística das recordações do chee tam. Mas esta lotaria teve efeitos desastrosos na população. Toda a gente jogava, velhos, adultos e crianças. Famílias ficaram reduzidas à miséria, houve casos de falência, lares desfeitos, casos de loucura, divórcios e suicídios. Não estamos a exagerar. Para corroborar a nossa opinião, transcrevemos uma página da Tribuna do Leitor, de 17 de Agosto de 1935, de "A Voz de Macau":

"Chee Tam

Será este o cancro que está minando a vida económica da população de Macau?

Pelas investigações que fizémos, inclinamo-nos a acreditar que é no Chee Tam que está a causa de todo o mal que sofre a população da Colónia.

Vamos aos factos.

Entrámos há dias numa padaria e perguntámos:

- Como vai o negócio?

- Muito mau, senhor.

- Porquê?

- Chee Tam, senhor.

Inquirimos. Antigamente a padaria vendia $80,00 de pão diariamente. Hoje a venda não chega a $40,00. As mães costumavam dar aos filhos uns cobres para a compra de um pão, mas os garotos reunidos ajuntam os cobres e vão deixá-los na primeira loja do Chee Tam.

Também as mulheres que vendem canja nas ruas contam a sua história. Antigamente tinham vendida a canja cerca das 9 horas da manhã; hoje, caminham até ao meio-dia e voltam para casa com metade da canja por vender. Porquê? Porque os cobres destinados à canja vão para o Chee Tam.

Quantos desgraçados percorrem as ruas desta cidade vítimas do Chee Tam! Quantas lágrimas, quanta miséria e quantos sofrimentos por causa do Chee Tam! Ainda não há muitos dias, uma mulherzinha endinheirada teve que vender as suas casas por causa do Chee Tam! Aquela desgraçada, cujo cadáver foi encontrado na Baía da Praia Grande, atirou-se ao mar, em parte devido ao Chee Tam, segundo informações que colhemos. Encontrámos há dias na rua uma mulher doida, inofensiva, que não falava senão no Chee Tam. Uma miséria, enfim!

O Governo da Colónia anda empenhado em resolver a crise económica que atravessa esta cidade, mas enquanto se não debelar este mal, o cancro que tudo está minando, a alegria e a prosperidade da população da Colónia serão um mito, creia, Sr. Redactor e creiam todos que me leram."

O Palácio da Fortuna, tão auspiciosamente inaugurado para incrementar o turismo, abria as suas portas numa altura muito má.

Nada há a assinalar, no campo do cinema, nos fins de 1935. O Apolo e o Capitol exibem continuada-mente filmes americanos, raros filmes europeus. A cinematografia chinesa, muito incipiente, é de origem cantonense, não sendo populares os filmes produzidos em Xangai, por dificuldades de língua, não se conhecendo ainda o processo de dobragem. As fitas apresentadas exibem-se nos cinemas dos bairros retintamente chineses. No entanto, ainda nos lembramos de ter visto pelo menos um filme americano, ainda mudo, nessa altura, no cinema "San Kio".

A crise económica, como consequência da guerra sino-nipónica de 1931-32, faz-se sentir em Macau. Os grandes planos e a euforia dos começos de 31 desaparecem. Macau volta à sua sonolência de pequeno burgo me-diterrânico, implantado nas costas da China. As corridas de cães entram praticamente em falência, as corridas de cavalos não trazem também lucro e o Palácio da Fortuna, anunciado como pedra mestra do turismo macaense, não é chamariz para forasteiros, mais habituados às casas de fantan da Rua da Felicidade e de outros pontos dos bairros chineses. Os barcos de carreira Macau-Hong-Kong são muito lentos, levando o "Sui Tai" e o "Sui An" quatro horas e tal de viagem. Somente o "Veneza", barco transformado duma canhoneira italiana, consegue a velocidade espantosa de três horas, mas mesmo assim não traz e leva passageiros com lotação esgotada.

No entanto, a população de Macau vive aparentemente contente, mais preocupada com os resultados de chee tam do que com as notícias internacionais. Quem folhear os jornais do tempo assinala este tremendo contraste. A vida da cidade calma, segura, imensamente barata para os padrões actuais, os clubes em constante actividade de convívio social, o desporto girando em volta do futebol, hóquei e ténis, os caçadores em práticas ve-natórias na "terra-china", piqueniques a Li-Chai, Choi Hang e Seac Kei, de preferência a Taipa e Coloane, ainda muito abandonadas e desconhecidas, embora António de Santa Clara, em artigos inteligentes, revele as grandes possibilidades das mesmas para o futuro de Macau.

As notícias internacionais mostram, porém, um mundo em turbilhão. Na China, prossegue-se ferozmente a guerra civil, não tanto entre os senhores da guerra e o Governo Central, como, sobretudo, entre nacionalistas e comunistas. Para Macau, essas lutas parecem pertencer a um mundo remoto que nenhuma influência têm no seu viver quotidiano. Os jornais nunca se referiam à Longa Marcha, essa caminhada épica que levaria os comunistas até ao refúgio de Yennan. Os diários estão mais concentrados nas novas pretensões japonesas. Não contentes com o terem tirado à China a Manchúria, exercem terrível pressão para arrebatarem as cinco províncias do Norte, entre as quais a província estratégica de Ilhol, criando-se um governo autónomo. Agora tratava-se de esfacelar a China propriamente dita. O sentimento anti-nipónico dos chineses é profundo. Por toda a parte, nas principais cidades chinesas, há levantamentos e protestos. Em Xangai, eterno centro nevrálgico da China, a situação assume uma gravidade desusual, obrigando ao êxodo da população da cidade chinesa que não queria sofrer a repetição da carnificina da guerra de 31-32. Os japoneses, embriagados por esta última vitória, não fazem política de apaziguamento. As provocações são contínuas e humilhantes. O aparecimento de uma flotilha de destroyers em Swatow, o desembarque de mais tropas em Xangai e as exigências em Tietsin e Hangkow são provocações que aumentam quanto mais indeciso e débil se mostra o governo nacionalista de Nanquim.

Nos fins de 1935, a autonomia das cinco províncias é um facto. Mas é uma vitória pírrica, pois é o prelúdio das hostilidades que hão-de rebentar em 1937, com o famoso incidente da ponte de Marco Polo em Pequim.

No Ocidente, as coisas não vão melhor. A morte do marechal Hindenburgo, na Alemanha, deixa à vontade Hitler. Pouco tempo depois, o novo chanceler, num discurso frenético, anuncia o rearmamento alemão, rasgando as condições do Tratado de Versalhes. Mas é a Itália que domina as atenções. Mussolini, invocando razões fúteis, clamando que é um dever da civilização, inicia a agressão contra a Abissínia, procurando concretizar o sonho dum Império Colonial Italiano. As hostilidades explodem em princípios de Outubro e espera-se que, com todo o seu potencial bélico, a guerra seja fácil, pouco mais que um passeio militar.

Não é bem assim. Os etíopes ou abissínios recuam, mas põem uma resistência admirável, contra um superior material de guerra. A luta é dura e os italianos têm surpresas desagradáveis e sangrentas. Os nomes do imperador Selassié e dos generais Ras Kasse e Ras Sey-ounce tornam-se familiares com os nomes dos generais Braziani e De Bono, da parte dos italianos. A certa altura, dá-se a impressão que estes se encontram derrotados ou pelo menos não avançam. De Bono é substituído pelo general Badoglio e a guerra, terrivelmente dura para o invasor, torna-se mais favorável.

O Reino Unido e a França, no entanto, apenas protestam. Não se opõem aos japoneses, não se opõem aos italianos nem aos alemães. Apesar da opinião pública das duas nações ser pró-Abissínia, pelo Canal de Suez passam continuamente os transportes italianos, num desafio arrogante ao leão britânico.

A leitura dos jornais, narrando o dia a dia dos acontecimentos mundiais, é um enervante testemunho da política de apaziguamento das democracias ocidentais (o Reino Unido e a França), que só falavam mas não levantavam um dedo para reter as fúrias desencadeadas pelos alemães, italianos e japoneses. Os Estados Unidos, embriagados com o New Deal rooseveltiano e ainda sarando das feridas da Depressão, encasulavam-se no seu tradicional isolacionismo.

Macau conhece estas notícias, mas não se alarma. Como dissémos atrás, tudo se passava em terras remotas que poucos tinham visto ou conheciam. Há outros eventos mais interessantes em que pensar. Por exemplo, a vinda de Henri Cochet, o campeão do mundo em ténis e vencedor da Davis Cup.

Henri Cochet apresenta-se no Ténis Civil, no dia 31 de Outubro, perante uma compacta assistência. A sua exibição é memorável. Para os entendidos, não deu o máximo das suas possibilidades, mas a impressão é boa. "A Voz de Macau" classifica-o de mestre. Joga contra os tenistas locais, entre eles Raul Canavarro, figura de renome entre os tenistas do Extremo Oriente e várias vezes campeão de Xangai, o qual perde com galhardia. O chá, que depois foi servido, revelou ao francês a fina elegância da sociedade macaense de então.

O intercâmbio desportivo entre os portugueses de Macau e Hong-Kong mantém-se activo. Há um campeonato de bilhar e o desafio de uma nova modalidade para Macau: é o badminton, jogado entre o Recreio de Hong-Kong e o Clube de Macau. Alinham pelo mesmo clube os pares José Nolasco-Peter Mok, Eduardo Silva-Álvaro Silva e Alfredo Silva-Remígio Bañares. A superioridade e a classe do Recreio são evidentes, ganhando por 161 pontos contra 124 ao Clube de Macau.

As tardes do Domingo são ocupadas pelo hóquei. O team de Macau mantém a sua forma; é praticamente o mesmo que jogou em Singapura, mas com um novo jogador em evidência: é Henrique Manhão. Macau continua a derrotar Hong-Kong e os encontros que mais fascinam são com os punjabs e outros teams da guarnição indiana da colónia vizinha.

Mas, nesse fim do ano de 1935, as atenções convergem para o futebol, em que se disputa com entusiasmo a Taça Natal dos Pobres de Macau, iniciativa do tenente Guedes Pinto da PSP, uma das figuras mais populares e características de Macau desse tempo. São oito os clubes contendores - o Argonauta, o Tenebroso, a Polícia, as Metralhadoras, a Artilharia, o Negro Rubro, a União e o único grupo chinês, Ó Kiu. Os nomes dos participantes mostram que o número dos portugueses, macaenses e metropolitanos constitui uma maioria esmagadora em relação aos chineses. A população desportiva acompanha o certame com entusiasmo, apaixonando-se nas opiniões, terminando as discussões com murros e cortes de relações. O Tenebroso é o vencedor incontestado.

A actividade dos estudantes de Macau, no último trimestre de 1935, é digna de louvor. No começo do ano lectivo de 1935/36, em Setembro, lançam-se as bases da Associação Escolar do Liceu que tem, por emblema, um escudo de cinco quinas entre duas raposas, tudo em verde, que durante alguns anos vai ser o estandarte orgulhoso do Liceu Nacional de Macau. O emblema é da autoria do estudante João Tomás Siu, hoje engenheiro civil.

A Associação Escolar do Liceu, fruto do carinho do saudoso professor Fernando de Lara Reis e da juventude dos alunos finalistas, com o indefectível apoio do reitor, Dr. José Ferreira e Castro, teve uma vida efémera, mas brilhante. Organizou exposições, sessões culturais, bailes, representações teatrais, piqueniques a Coloane e à "terra-china", uma delas a Nove Ilhas e outra a Choi Hang, terra natal do fundador da República Chinesa, Dr. Sun Yat Sen. Mas o passeio de que os alunos mais gostavam era a excursão, em Abril, a Hong-Kong, onde se jogava o hóquei com a Universidade de Hong-Kong e havia uma recepção certa no Clube de Recreio.

Um facto notável a assinalar. A Associação Escolar não morreu por falta de apoio dos alunos, que sempre acarinharam essa agremiação, onde todos se sentiam em família. Para os dirigentes, incutiu neles o sentido da responsabilidade, tão útil para a vida fora. A Associação Escolar foi a digna continuadora das tradições da "Academia do Liceu" dos anos 20.

Agonizou primeiro com a substituição do reitor, que os estudantes do tempo consideraram injusta. Não houve protestos abertos, mas a iniquidade foi sentida pela maioria dos alunos. Estávamos nos primeiros dias do ano lectivo de 1941-42 e éramos aluno finalista do 7° ano.

Morreu definitivamente quando o novo reitor, logo à primeira reunião da direcção da Associação Escolar, fez um exórdio exaltando a Mocidade Portuguesa, organização que iria ser introduzida em Macau. O seu desdém pela Associação Escolar era mais do que evidente. Ao terminar o seu longo arrazoado, decretou, com ironia ditatorial, que a Associação Escolar podia continuar... mas "acabavam-se os bailes". Como se a nossa Associação Escolar só tivesse organizado bailes!

Os estudantes responderam pela única via que lhes era permitida na ocasião. Puseram fim à Associação, a direcção deixou de se reunir e as quotas nunca mais se cobraram. E fomos mais longe. Deixámos de colaborar com as iniciativas da reitoria, patenteando uma indiferença geral, alimentando a cada passo uma enervante resistência passiva. Bailes? Continuámos a tê-los, indo dançar em outros locais. E, se nestas festas lográvamos encontrar o novo reitor, em colaboração com o par dançávamos mais juntinhos para molestar o seu falso puritanismo de militante da nova ordem de separação do sexo.

Bons tempos aqueles em que os protestos e reivindicações dos estudantes se traduziam desta maneira!

A primeira direcção da Associação Escolar, que tomou posse no dia 2 de Dezembro, foi a seguinte: Alberto Maria da Conceição (vice-presidente); Cons-tâncio Lemos de Araújo (secretário) - Secção de Assistência; João Carreo Braga (tesoureiro) - Secção de Cooperativa; Albino Pacheco Borges (vogal) - Secção de Excurções; e Fernando Garibaldi Pinto de Morais (vogal) - Secção Desportiva.

O Presidente da Junta dos Delegados à Associação era o reitor do Liceu; o presidente da Direcção, o prof. Fernando de Lara Reis.

A primeira grande festa da Associação Escolar foi em 23 de Dezembro de 1935, numa tarde iluminada de sol, a prometer um Natal deslumbrante. Realizou-se no Ginásio, que ficava ao lado do edifício do antigo liceu, hoje Centro de Saúde. A festa abriu com "Duas Palavras" do vice-presidente da Associação, seguindo-se depois a sessão músico-literária, o chá e o baile. O Ginásio desapareceu, mas ficou em nós, para sempre, a saudade daquela casa e daquela tarde de maravilha. A saudade da Árvore do Natal, das prendas para os "caloiros", que nós éramos nesse ano, do rosto radiante das moças que hoje são avós, das canções ouvidas (As Penas, Que Noite Serena, Joana dantes cantava, etc.), do baile em que dançávamos pela primeira vez com garotas que não eram nossas irmãs.

Nesse Natal já longínquo e só na memória de alguns, a Escola Comercial levou ao palco no Teatro D. Pedro V uma representação teatral, de louvável nível, apresentando cenas de romaria e da vida campestre de Portugal.

Assim findou o ano de 1935.

Nos princípios de 1936, pairavam grandes esperanças sobre o futuro de Macau. Os aterros da Praia Grande completam-se. Em conjunto com os aterros do Porto Exterior, uma nova cidade vai nascer, moderna, com avenidas rasgadas e aranha-céus. Estes sonhos casam-se com a grande novidade do dia. Macau vai finalmente ser conhecida pelos estrangeiros, pois é um dos términos da Pan American Airways, que vai estender as suas viagens para o Extremo Oriente.

Em Macau, na época, só raros teriam experimentado alguma vez o baptismo do ar. As viagens só se faziam de barco. Para Europa, ia-se no "Dempo" e noutros barcos da "Royal Interocean Lines" holandesa, ou no "Victoria" e "Conte Rosso" da Lloyd Triestino italiana. Para o Japão e para a América, havia o "Asama Maru", o "Empress of Japan" e o "Empress of Canada" da Canadian Pacif Line. Quando o "Empress of Britain" fazia a sua viagem imperial até Hong-Kong, ia-se de propósito a esta cidade para visitar o paquete. Havia ainda quem escolhesse para a Europa os paquetes da Pacific and Orient Line (Mantua) ou da Messageries Maritimes francesa, com escala obrigatória em Saigão, cidade de langores e perdição.

Viajar de avião era, portanto, coisa fora deste mundo. Só havia duas linhas aéreas conhecidas: a Imperial Airways, e a Pan American Airways. Esta, agora com os seus hidro-aviões, vinha até Macau. E entre os hidro-aviões, o mais falado era o "China Clipper", o maior e mais imponente da frota.

As negociações, começadas algures em 1935, transformaram-se em realidade, contra a opinião dos pessimistas, fartos de palavras, promessas e desilusões. No Porto Exterior, construía-se o Pavilhão do Terminal, edifício que mais tarde seria a sede do Clube Náutico de Macau e hoje o Restaurante Riviera. Nas colinas da Penha erigiam-se duas estações rádio-telegráficas da Companhia.

No plano internacional, continua a guerra na Abis--sínia, estafante e sangrenta para os italianos. O rearma-mento alemão é um facto. Na China, a luta contra os senhores da guerra e o Governo Central. Os comunistas são também uma ameaça real, combatendo duramente os nacionalistas, enquanto os japoneses não desistem de exigir mais vantagens e mais zonas de influência. Sobe ao trono o popularíssimo Príncipe de Gales, que se torna Eduardo VIII. Os jornais põem em evidência, nestas paragens, a agitação política em Espanha. Os nomes de Largo Caballero e Gil Robles aparecem constantemente no noticiário.

Macau preocupa-se nesta época do ano com o Carnaval. Iniciam-se os "assaltos" com as tunas "Águia" e "Popular" organizadas e rivais. À noite, pelas ruas da cidade, passam as tunas com o seu cortejo de mascarados, "assaltando" casas particulares, seguidas da petizada chinesa que grita: "Aqui Bobo!... Aqui...". O "assalto" ao Grémio Militar na noite de l de Fevereiro é animadíssimo com a tuna "Águia" esfalfando-se com marchas, valsas, tangos, fox-trots e quick-steps. A mesma tuna "Águia", num gosto simpático para a Associação Escolar do Liceu, fez um "assalto" ao ginásio daquele estabelecimento de ensino no dia 15, numa tarde em que praticamente todos os estudantes se mascararam. Nós fomos de mexicano!

Os dias do Carnaval, propriamente ditos, são particularmente brilhantes, embora não atingissem o nível de 1934: os clubes, cheios, a alegria esfusiante, todos os serviços do Estado parados na Segunda e Terça-Feira do Entrudo, as pessoas mal dormidas, cor-rendo de um lado para o outro, para aproveitar todos os momentos do Carnaval. De novidade, é o aparecimento de uma tuna juvenil, de 40 rapazes cuja idade não ultrapassaria 16 anos, que actua com acerto, nível e entusiasmo, a contento de todos. Muitos desses rapazes pertencem hoje à actual Tuna Macaense, o último abencerragem do antigo e característico Carnaval de Macau.

O hóquei, o ténis e o futebol continuam a ser as modalidades desportivas preferidas da população. Em fins de Janeiro, surge a equipa de futebol da Universidade de Leng-Nam de Cantão, que disputa jogos com o Ó Kiu, Tenebroso e a Artilharia, perdendo nos três desafios.

Em Janeiro, aparece o quinzenário infantil "O Tio Tareco", de iniciativa de D. João de Mesquitela, coadjuvado por Pedro Paulo Ângelo. O quinzenário teve vida efémera, mas deliciou a imaginação da petizada do tempo. Os primeiros números foram incontestavelmente bons.

Os cinemas apresentam, entre muitos puramente comerciais, uma série de filmes de mérito. Não podemos, no âmbito destas crónicas, enumerá-los todos, apenas aqueles que mais impressionaram os espectadores. O Apolo oferece de preferência fitas da M. G. M e da Paramount, enquanto que o Capitol exibe as do R. K. O.

Mencionemos, em primeiro lugar, "The Scarlet Empress", realização de Josef von Sternberg, sobre a vida de Catarina II da Rússia. O filme não obedece a rigor histórico, mas reconstitui, com felicidade, a Rús-sia da época, com os seus boiardos brutais e cossacos em cavalgadas impetuosas, uma Rússia bárbara, ainda semi-ocidentalizada. No centro disto tudo, a preto e branco, a estranha beleza de Marlene Dietrich, no papel de Catarina, cuja interpretação é inovidável.

A perene elegância artística de Marlene Dietrich.

Coreografia de "Chapéu Alto" (Top Hat, 1935), de Mark Sandrich, filme com música de Max Steiner e canções de Irving Berlin.

Em planos e composição cinematicamente perfeitos, Sternberg valoriza a grande actriz, pondo em relevo o seu rosto enigmático, sensual, integralmente feminino que, no entanto, tem de assumir atitudes decisivamente varonis. Marlene, que obtivera louros em "Blue Angel", "Morocco", "Dishonoured" e "Shanghai Ex-press" (filme nunca visto em Macau), consagra-se defi-nivamente nesta película fora de série. É o Apolo que a exibe.

Pelas alturas do Carnaval ou pouco depois, o Capitol desbobina "Top Hat" (Chapéu Alto), o quarto filme do par Fred Astaire-Ginger Rogers, depois dos êxitos em "Flying Down to Rio", "Gay Divorcee" e "Roberta", onde se ouve a canção de Jerome Kern "Smoke gets in your eyes".

"Top Hat" é uma história alegre que se vê com um sorriso do princípio ao fim, traduzindo uma América optimista, depois de musicais de Irving Berlin e danças, entre as quais a "Pocolino". Do filme, uma canção ficará para sempre, "Cheek to Cheek". Foi a canção mais em voga no Carnaval, pela sua oportunidade, e como os namorados de então a interpretaram bem! Em nossa opinião, "Top Hat" foi o melhor filme do par Astaire-Rogers, por todo o conjunto de bom gosto, elegância e entretenimento.

Outra obra a apontar é "The Mutiny on the Bounty" (A Revolta no Bounty), realização de Frank Lloyd, com Clark Gable e Charles Laughton, nos papéis, respectivamente, de Christian Fletcher e Captain Bligh. Conta o célebre motim num navio da Royal Navy contra o seu crel capitão, a quem abandonam no meio do mar, indo os amotinados refugiarem-se numa das Ilhas Pitcairn, onde, cruzando-se com polinésias, vão dar origem a uma raça mista, que ainda hoje existe. Clark Gable ganha uma imensa popularidade e com o triunfo do ano anterior, "It Happened One Night" (Uma Noite Aconteceu), transforma-se no King de Holly-wood. "It Happened One Night" é considerado um dos dez melhores filmes americanos. Mas é Charles Laughton, já famoso pelo seu Henrique VIII, em "The Pri-vate Life of Henry the VIII", e pelo papel de pai severo, em "The Barrett of the Wimpole Street", que mais impressiona. O seu Captain Bligh é uma figura de pesadelo, a encarnação da crueldade. O filme continua ainda hoje lembrado, embora uma segunda versão tivesse vindo à luz em 1963. Com toda a técnica a seu favor, esta segunda versão foi um desastre, ainda que os protagonistas fossem Marlon Brando e Trevor Howard. Só se salvou a partitura musical de Bronislau Kaper, soberba evocação dos mares do Sul. É o Apolo que o traz para Macau.

Outro filme a apontar é "The Informer" (O Denunciante), extraído do romance de Liam O'Flaherty, exibido no Capitol em Março de 1936. É a odisseia dum bruto que, ambicionando emigrar para a América, denuncia um agente do IRA, seu amigo, às autoridades inglesas, em Dublin, Irlanda, a troco de alvíssaras. É o dinheiro de Judas. Depois, desenrola-se o desespero do remorso e a perseguição implacável dos seus correligionários, que não lhe dão quartel. O realizador é John Ford, o actor principal Victor Mc Laglen, um dos protagonistas do imortal "What Price Glory?" do silêncio. A planificação, a preto e branco, evoca-nos toda a tragédia da Irlanda na luta pela independência e realça o estudo duma alma alanceada pelo remorso. A aduzir ao prestígio do realizador e do actor, o dramático argumento de Dudley Nichols e a música de Max Steiner.

Para os aficionados da ópera, há dois filmes que enchem as medidas. O primeiro, "Blossom Time", sobre a vida Franz Schubert, encarnado por Richard Tau-ber, extraordinário tenor, mas péssimo actor. O outro é "Love me Forever", com a cantora Grace Moore, obra inferior àquela que representara um ano antes, "One Night of Love", com Tulio Carminatti.

Em meados de Abril de 1936, exibe-se no Apolo um filme que não pertence ao grande público, pois é sombrio e dilacerante. Trata-se de "Crime e Castigo" extraído de Dostoievski, onde Peter Lorre surge com uma extraordinária interpretação de Raskolnikof. A crítica abunda em elogios, mas o Óscar desse ano não vai para ele nem para o realizador von Sternberg.

O filme de sensação para o público desbobina-se em fins desse mês. É "Rose Marie", realização de W. S. van Dyke, sendo os protagonistas principais Nelson Eddy e Jeannette MacDonald. Esta actriz-cantora já era popular, emparceirada com Maurice Chevalier (Love Parade e Merry Widow) e com o elegante Jack Bucha-nan (Monte Carlo), mas Eddy era praticamente desconhecido.

Se Macau os tinha visto no ano anterior em "Naughty Marietta" (A Princesa Endiabrada), um filme sem grandes parangonas, foi em "Rose Marie" que eles se celebrizaram. Aqui como no resto do mundo, o par cinematográfico ficou na lista dos favoritos. A película chegou a Macau precedida de grande fama. Os que a tinham admirado em Hong-Kong não falavam de outra coisa. As revistas de cinema, como a "Photoplay", a "Screenland" e outras aduziram o clima suficiente para ser um grande êxito. O Apolo estava à cunha quando ele se desbobinou pela primeira vez, em 25 de Abril. Lem-bramo-nos ainda que o vimos na sessão das cinco e meia da tarde.

A história era simples e, segundo o gosto de hoje, muito adocicado e ingénuo. Mas não foi para a épo-ca, para uma América despreocupada e isolacionista, saída das agruras da Depressão, em plena prosperidade, e para o resto do mundo que se afadigava em iludir-se com as nuvens que se acumulavam sombriamente nos horizontes internacionais.

A voz suavíssima de Jeannette casava-se perfeitamente com a de barítono do parceiro. As canções foram: "Sound of the Mounties", cantada por Eddy e coro; "Indian Love Call", por Eddy e Jeannette; "A Serenade, Just for You", por Eddy; "Pardon me, Madame", por Jeannette; "Oh, Rose Marie, I Love You", também por Eddy. Jeannette cantaria ainda dois trechos de ópera, um de "Romeu e Julieta" de Gounod e outro a famosa Ária de "Tosca". "Indian Love Call" e "Oh, Rose Marie" ficariam para sempre nos ouvidos de muitas gerações e ainda se ouvem hoje com imenso agrado.

A partir de "Rose Marie", o par imortalizou-se na história do cinema, não porque fosse dotado de grandes qualidades histriónicas, mas por causa do gosto e favor de milhões e milhões de cinéfilos. Deu, assim, enormes lucros para a casa Metro, e, no género, foi o par preferido até ao advento da Segunda Guerra Mundial, quando a América entrou no conflito.

Depois de "Rose Marie", fez a mesma Metro, até 1942, seis filmes: "Maytime" (Primavera, 1937) de Robert Z. Leonard; "The Girl of the Golden West" (A Rapariga do El Dorado, 1938), de Robert Z. Leonard; "Sweethearts" (Namorados, 1938), de W. S. van Dyke; "Bitter Sweet" (Sempre Noivos, 1940), de W. S. van Dyke; "New Moon" (Lua Nova, 1940), de Robert Z. Leonard; e finalmente "I Married an Angel" (Casei com um Anjo, 1942) de W. S. van Dyke. Em "New Moon", notou-se o cansaço do público, sempre leviano, e o último foi um fracasso total. Se Jeannette apareceu esporadicamente, Eddy foi tragado pelo olvido. Sem o galã, Jeannette interviria num dos grandes da Metro, o filme "San Francisco" (1936), mas ofuscada por Clark Gable e Spencer Tracy. Sem Jeannette, Eddy actuaria em "Balalaika" (1939) com Ilona Massey, filme mais popularizado pela música do que pela interpretação dos actores.

Ainda a propósito de "Rose Marie", dois novos rostos ali apareceram, o de um rapaz muito tímido, chamado James Stewart, e outro que tinha o nome desconhecido de David Niven.

Os jornais anunciavam, na altura, a ocupação da Renânia, pelas tropas hitlerianas, rasgando as cláusulas do Tratado de Versalhes e do Pacto de Locarno. As atenções concentravam-se, no entanto, na Guerra da Abissínia, já no fim. Os acontecimentos, cada vez mais graves em Espanha, eram encarados de somenos.

Como reflexo do interesse de Macau pelo conflito na Etiópia, está o renhido desafio de ténis, organizado pelo Clube União Recreativa, de dois grupos: "Itália" e "Abissínia". Alinharam pela "Itália", António A. de Mello, José Boyol, Miguel Ayres da Silva, Luís Gonzaga Gomes e Guilherme V. da Silva. Pela "Abis--sínia", José de Senna Fernandes, José C. Almeida, Alexandrino Boyol, A. Barros Pereira e Dr. Adolfo Jorge. Ganharam os "italianos" e os "abissínios" pagaram um pantagruélico almoço. Houve depois uma desforra e os "abissínios" venceram os "italianos" e, desta vez, como sanção, pagaram estes outro pantagruélico almoço. Assim se reduzia a "Guerra da Abissínia" em Macau. A União Recreativa, entusiasmada com o êxito da iniciativa, continuou com os almoços pelo verão fora, sempre apoiados pelos consócios.

Também em meados de Abril, a Associação Escolar do Liceu, sempre activa, organizou uma bela exposição de pintura que muito honrou aquela agremiação de estudantes. O júri foi constituído pelo Reitor, Dr. José Ferreira de Castro, o Prof. Fernando de Lara Reis e o Ten. Santa Clara. Os artistas foram:

Alberto da Conceição, Albertina Carvalho, Albino Borges, Américo Ângelo, Armando Basto, Evândole Boyol, Fernando Morais, Humberto Borges, João Siu, Maria de Souza Afonso, Márcia Albuquerque, Olga Borges, Reinaldo Pedruco e Rigoberto do Rosário.

Em princípios de Maio, corre uma novidade no burgo e "A Voz de Macau" dá a notícia. É a entrada de um requerimento na Repartição Técnica das Obras Públicas, propondo a construção de uma linha férrea de via reduzida de 60 cm de largura, com as respectivas es-tações desde o quartel de S. Francisco até ao Campo de Corridas de Cavalos, na Areia Preta. Teria o comboio em miniatura por fim levar os aficionados das corridas, os turistas e curiosos, em passeio agradável. Assinava o requerimento um tal Lord Ropert Browns. Com a construção do reservatório de água no Porto Exterior, não sabemos como seria a trajectória nem quais as estações propostas. Apenas sabemos que não foi construída.

"A Voz de Macau" também volta em dois artigos suculentos a falar dos "milhões de Calcutá", uma velha história já centenária de que todas as famílias macaenses se julgam herdeiras. O assunto volta a ser um tema apaixonante, no Clube de Macau, na União Recreativa e nos serões das casas particulares, mas sem resultado prático. E os "milhões" continuam por resolver, até hoje, entrando nos domínios da fantasia e da lenda.

Entra-se em Junho quente e chuvoso. O Capitol oferece, no dia primeiro, o quarto filme de Fred Astaire-Ginger Rogers, "Follow the Fleet" (Siga a Marinha, de Mark Sandrich), com a música de Irving Berlin. Magníficos números de sapateado, a parelha na melhor forma possível. Em papéis secundaríssimos, os muito jovens Lucille Ball, Betty Grable e Tony Martin.

Quinze dias depois, é um espectacular Cecil B. de Mille, "Cleopatra" (1934) com Claudette Colbert. Para a época, foi impressionante. Banquetes, orgias, cortejos triunfais, a Batalha de Ácio reconstituída, a víbora mordendo o seio da raínha exótica e fatal. Vinte e nove anos mais tarde surgiria uma outra "Cleópatra" em Elizabeth Taylor, num filme dispendioso e totalmente fracassado. Mas a formosíssima Taylor não apagaria da memória a sensualidade serpenteante da Colbert, muito melhor actriz.

Na segunda quinzena de Junho, dois eventos da vida social. O primeiro, um grande arraial de S. João no dia 23, no Ténis Civil, e um piquenique na Praia de Cheoc Van, organizado pelo Grémio Militar, marcado para o dia 30.

A Comissão Organizadora do Arraial foi constituída pelas seguintes senhorinhas: Vera de Senna Fernandes, Maria Helena Menezes Ribeiro, Celsa Rodrigues e Celeste Vidigal. Apesar das contrariedades e da incerteza do tempo, ninguém desistiu, havendo grande apoio e entusiasmo. Os três campos de ténis da agremiação foram todos aproveitados. O primeiro foi transformado em campo de feno, as medas atadas aqui e acolá. Quatro figuras pintadas em cartolina, em tamanho natural, representavam dois homens do campo e duas raparigas em trajes minhotos. Os homens tinham a cara de Clark Gable e Warner Baxter e as moças eram Vera de Senna Fernandes e Maria Helena Menezes Ribeiro, todos muito bem pintados por Albino Borges. O segundo campo era destinado a dança, com o estrado para a orquestra, onde deviam actuar o Grupo Bragazinho e o trio formado por Alderico Viana, Luís Baptista e Cipria-no Bernardo. O terceiro campo destinava-se aos "comes e bebes". Erigiu-se um barracão, tendo ao centro um pipo de vinho. Em redor, mesas, havendo em cada uma delas um vazinho de mangerico, com um cravo e uma quadra "popular". Por detrás do pavilhão de ténis e em cima dum pequeno tanque, estava instalado um pequeno nicho, onde se encontrava a imagem do santo.

Uma bátega de água entre as 7 e 8 da noite ameaçou estragar a festa. Houve lágrimas e preces. A chuva parou de repente, certamente por intervenção do santo popular. E o arraial foi brilhantíssimo como nunca mais se fez outro igual em Macau. Dançou-se o vira, o verde-gaio, o corridinho do Algarve, a marcha "Olha o balão", com os acordes do Grupo Bragazinho. Nos intervalos, o trio tocava as músicas de dança em voga, enchendo o segundo campo de outros tantos pares. Vera de Senna Fernandes, acompanhada pelo Grupo Bragazinho, cantou para os ouvidos macaenses as seguintes canções: Fado de Santa Cruz, a "Canção de Amor" e a "Canção de Cabreira", ambas do filme "As Pupilas do Senhor Reitor", as "Tricanas de Aveiro", a alegre "Canção de Lisboa" e uma outra que começava com as seguintes palavras "Uma porta, uma janela", tão bela e tão nostálgica. Houve quem lacrimejasse, ao avaliar que nessa noite mágica, o Ténis Civil se transportava, por algumas horas, para um cantinho bucólico de Portugal. Dançou-se até às quatro e meia da manhã e a festa terminou depois de servir-se um chocolate. Era assim Macau de 1936.

* Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra. Investigador, cronista e romancista. Autor de Amor e dedinhos de pé, recentemente adaptado ao cinema, e de A trança feiticeira, que se prevê também apareça nos écrans.

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