Arte

FAUSTO SAMPAIO E MACAU

Margarida Marques Matias*

Fausto Sampaio. Macau.1936

Desde a pintura China Trade até à actualidade, Macau tem sido um pretexto e uma fonte de inspiração para inúmeras imagens, quer dos seus monumentos, das suas gentes, dos seus costumes, quer dos seus trechos pitorescos, ou dos seus vestígios históricos.

Macau possui ainda hoje um grande encanto, um charme prenant, passe a expressão, nos aspectos que o tempo e os homens não apagaram entretanto. Contudo, nos séculos anteriores devia possuir aquela qualidade "pincturesca"que, a par da quietude, quebrada a espaços pela chegada de forasteiros, e do exotismo do seu quotidiano, prendia homens sensíveis e dotados ao Território, muitas vezes pelo tempo suficiente para deixar marcas estilísticas no seu percurso de artistas. Lembramos Chinnery e Borget, entre outros.

Situa-se neste contexto Fausto Sampaio (1893-1956), o pintor sobre o qual hoje nos debruçamos, artista singular do período naturalista de transição para o modernismo, temperamentalmente situado na atmosfera romântica do Século XIX e do início do Século XX.

A sua técnica, sem compromissos com os cânones em vigor para os diferentes movimentos artísticos da sua época (realismo, impressionismo, "fauvismo", ex-pressionismo e outros), apresenta-se original e bebida de várias fontes.

A temática que adoptou, colocou-o junto dos grandes artistas ocidentais que aderiram ao "orientalismo", termo que a partir do Século XIX passou as fronteiras geográficas do extremo Leste para abranger as civilizações fora do mundo ocidental e cujo embrião residia no gosto da chinoiserie, que se tornou moda no Século XVIII.

No século seguinte, a expedição de Bonaparte ao Egipto, a guerra da Independência na Grécia, a conquista francesa da Argélia, os tratados comerciais com o Japão, as explorações africanas, as expedições científicas e a acessibilidade das viagens para fora da Europa foram determinantes no interesse do mundo culto pelas "novas" civilizações.

Os impérios construíram-se e, simultaneamente, à carga significante que o termo "colonial" encerrou, contrapôs-se progressivamente o olhar estupefacto, culturalmente interessado e reflexivo, do tal mundo culto face aos ambientes e povos desses Impérios. No caso português não se fugiu à regra.

Relativamente às artes plásticas, foram a "Exposição Internacional de Londres" de 1862, seguida pela de Paris de 1867 e de Viena de 1873 que, ao mostrar exemplos de arte japonesa, despertaram a atenção do público e dos artistas que as visitaram.

Contudo, já anteriormente Delacroix, ao fascinar-se no Norte de África pelo povo, costumes e paisa-gens "bíblicas" e ao transpor esse fascínio para as suas telas (Baudelaire diria que a cor geral dos seus quadros participava também da cor púrpura das paisagens interiores "orientais") contribuiu para a apetência dos seus contemporâneos e discípulos pela temática exótica.

O "Oriente" identificou-se então com a cor, levando Klee, depois de uma estadia no Norte de África, a dizer: "A cor tomou conta de mim. Já não preciso de ir atrás dela (...) cor e eu somos um só (...) eu sou um pintor", palavras que poderiam servir ao portuguesíssimo Fausto Sampaio, cuja cor tomou nos seus trabalhos um papel fundamental e cujo exotismo constituiu a temática predominante.

Klee, Renoir e Matisse, que também permaneceriam com brevidade em África, exaltarão do mesmo modo a cor. Outros fixar-se-ão nas formas e no movimento, como foi o caso de Rodin que não precisou de sair de Paris para "apanhar" o "Oriente". A sua "Dançarina Cam-bodgiana" (1906) tal o explica.

Simultaneamente com os esplendores exóticos da cor, do movimento e das formas, o interesse científico dos costumes, do folclore, das etnias, tornou-se objecto de apreciação e uma plêiade de artistas veio a debruçar-se esteticamente (muitas vezes com a precisão do cientista) sobre estes temas do seu interesse.

Fausto Sampaio percorreu ao longo da sua obra de pintor várias escalas de influências. Estas interlaçaram-se de tal modo na sua pintura que mal se distingue a separação entre o homem capaz de fortes emoções, o etnógrafo amador e o pintor profissional. Com ele não se põe a dúvida que um dia Fromentin colocou: "A questão reduz-se a saber se o Oriente se presta a interpretação, em que medida o admite e se interpretar não é destruir". Na verdade, quando se olha para os quadros de viagens de Fausto Sampaio, provas profundas e sentidas da compreensão da paisagem física e humana, a inquietação do pintor oitocentista não tem razão de ser. A justificá-lo, os magníficos trabalhos da ilha de S. Tomé, em que vários "climas" tão bem se representam. Se é certo que a África Negra, revelada em 1906 a Matisse, Vlaminck, Derain e Picasso, com a sua autenticidade essencial e propostas de novos valores estéticos, não é a mesma que se revelou a Fausto Sampaio, não é menos verdade que o nosso pintor seguiu caminhos que conduziram a sentimentos e visualizações variadas, de carácter particular mas simultaneamente universal, na medida em que a expressão anímica e o realismo obtidos se tomaram na generalidade reconhecidos.

Conforme as terras que visitou, Fausto Sampaio assim exprimiu a atmosfera, os contrastes, a paisagem, a luz, as figuras e as formas de cada uma. A rápida pincelada e a extrema facilidade de manejar a espátula serviram-lhe com justeza à expressão dos seus sentimentos e emoções, à captação da impressão do momento. Neste sentido, foi sem dúvida um impressionista.

Num comentário a Fausto Sampaio, em "O Século" de 5/12/1939, a certo passo Matos Sequeira refere-se ao "poder do artista que soube fixar e espiritualizar esses casarios distantes apenas irmanados pelo espírito português", querendo dizer que a presença portuguesa era palpável e concreta nessas distantes paragens. De acrescentar que a portugalidade do pintor, permitiu o elo cultural do Portugal Continental e das antigas Colónias. A linguagem do artista, pesem embora as diferentes cambiantes de cor, de formas, de luz dos lugares que visitou, é sempre uma linguagem em Português que se revela. Foi herdada dos melhores cultores do nosso naturalismo e é curioso notar que Fausto Sampaio nasce no mesmo ano em que Silva Porto, o observador atento e apaixonado da paisagem portuguesa e o grande impulsionador do naturalismo, morre.

Fausto Sampaio foi, pois, como tantos outros artistas da sua época, apesar da sua técnica específica, um dos muitos herdeiros dos primeiros naturalistas de que obviamente se cita para além de Silva Porto, Marques de Oliveira.

Sem embargo dos belos trabalhos executados de norte a sul do país, referir-se-á como expoentes da vivência do pintor a obra realizada em Paris ("Arco do Triunfo", "Notre Dame"), por terras de Espanha, no Oriente (Macau, Timor, Macassar, Índia) e em África. Neste continente, que mais vezes visitou, executou belos trabalhos, plenos de valores atmosféricos e riqueza pictu-ral. Utilizando uma matéria dúctil, rica de pigmentos, o pintor conseguiu, através de crostas subtis, passagens de tonalidades de difícil execução, que só poderiam resultar da grande experiência e sensibilidade daquele.

Igual mestria, a que lhe tinha proporcionado a admissão nos Salons de 1928 e 29 de Paris, mostrou-a o artista nos quadros que executou em Macau, onde se deslocou em 1936. Seu irmão viera ocupar o cargo público de Chefe de Serviços da Administração Civil do Território e Fausto Sampaio, aproveitando a sua estadia e a da família, permaneceu algum tempo com eles.

O virtuoso da pintura à espátula, essa espátula "mágica" como lhe chamou Mário de Oliveira em 1954 no"Diário Popular", pôde registar em Macau, em dezenas e dezenas de telas, figuras, tipos, retratos, trechos de paisagens e monumentos que hoje, juntamente com os vestígios remanescentes, são indispensáveis à reconstituição mental de uma época e da Cidade.

Já em 1942 essa particularidade era notada por Lopo Vaz de Sampaio e Melo, professor e oficial de Marinha, que numa palestra dedicada ao pintor por ocasião da grande exposição do artista na Sociedade Nacional de Belas Artes, refere a certo passo: "[O artista] percorre a cidade em todas as direcções, devassa o bairro china, estuda as tonalidades e a difusão da luz, perscruta o mistério das lendas através da neblina que encinzeira o ar e o éter, elege os assuntos que mais tentam a paleta, afaga sedas sumptuosas, tange a porcelana de vasos milenários, escuta-lhe o som caro (...) embriaga-se com o delírio cromático das decorações urbanas, das tabuletas, das bandeiras, dos letreiros (...) observa os tipos humanos, examina-lhes os traços somáticos e étnicos (...) tudo isto numa verdadeira caçada de belezas exteriores e numa verdadeira pescaria psicológica de expressão da vida interior dos seres, e da alma das coisas". Mais adiante, focando as "características definitórias do meio", ainda o conferencista acentua que Fausto Sampaio "dá com profunda fidelidade, não só a paisagem terrestre, o aspecto urbano e os tipos humanos, mas, também, alguns primorosos retratos, alguns interiores (...) alguns documentos etnográficos preciosos (...) algumas lindíssimas marinhas (...)".

Deste núcleo tão rico e variado será sempre de salientar o Retrato, género para o qual o pintor, logo em 1933, evidenciou, através do seu auto-retrato, grande vigor e penetração psicológica no seu tratamento pictórico. "Superior de Bonzaria", "Retrato" (Mary Leitão) e "Estudo", aqui reproduzidos, respectivamente o primeiro de 1936 e os dois últimos de 1937, não escondem a qualidade de execução das obras, neste caso envolvidas por um sentimento poético e algo enigmático. Já em "Tanca-reiras", de 1937, é o realismo das figuras, a volumetria da composição e o poderoso e hábil colorido o que se impõe ao espectador, como afirmação de que se está perante um artista com maturidade.

Fausto Sampaio trabalhou muito e integrou-se na sociedade de Macau durante a sua permanência na Cidade. Deu lições de pintura aos que pretendiam e mostravam talento para tal. Destas actividades resultou um convívio amistoso com muitos residentes, chineses e portugueses, e por onde passou, quer por Macau, quer por outras terras longínquas do Oriente e da África, foi-lhe sempre manifestada grande admiração pelo trabalho realizado e gratidão por "segurar" no tempo valores culturais e humanos, em muitos casos já então em vias de desaparecimento.

Para além dos aspectos obviamente estéticos, a fixação destes valores nas suas telas constituiu uma tomada de atenção para o património existente. Por isso, como já dis-semos no passado, reconheça-se igualmente ao talentoso artista a contribuição dada à salvaguarda de um património que é universal.

A compreensão integral do valor da sua obra passará, porém, pela contemplação dos quadros do Artista, reunidos em simultâneo numa desejável Mostra a efectuar.

Auto-retrato.

Fausto Sampaio.

*Licenciada em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa, habilitada com seis cadeiras do Curso de História da mesma Faculdade. Conservadora de Museu de car-reira e Historiadora de Arte. Neste campo os seus estudos incidem fundamentalmente nas Artes Plásticas e Decorativas dos Séculos XIX e XX. É actualmente assessora no Departamento do Património Cultural do ICM.

desde a p. 176
até a p.