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A MAIS ANTIGA DESCRIÇÃO DE CANTÃO (1555)

Benjamim Videira Pires*

A primeira descrição que se conhece da Cidade de Cantão, feita por um europeu, é a do Padre Mestre Belchior Nunes Barreto, S. J., com a data de 23 de Novembro de 1555. Ía o jesuíta a caminho do Japão, na companhia de Fernão Mendes Pinto. O documento foi escrito em Macau, como elucida claramente o autor da Peregrinação, numa sua carta escrita igualmente "de Macau, 20 de Novembro de 1555": "Hoje cheguei a Lampacau, que é o porto onde estamos (normalmente), a este de Macau (...), onde achei o padre mestre Belchior, que de Cantão aqui veio ter (...)." 1

Talvez Femão Mendes Pinto tivesse partilhado fraternalmente, com o seu vice-provincial religioso, algumas informações que recebera de Vasco Calvo e outros navegadores nossos. Barreto visitou duas vezes Cantão e, "de cada uma, esteve lá um mês", "por ver se podia tirar do cativeiro uns três portugueses (entre os quais Mateus de Brito) e outros três cristãos da terra" e "para dar ao principal dos regedores, para que os soltas-se, de peita, mil e quinhentos cruzados" emprestados.2

Transcrevemos, anotando-a, a descrição famosa:

"Tem a China treze províncias ou reinos, cada uma com uma cidade principal por cabeça, por onde se governa, e toda a província lhe é sujeita. De todas estas cidades grandes, dizem que Cantão é a mais pequena, a qual, a parecer de todos os que ali fomos,3 tem mais população e gente que Lisboa. Esta é bem murada e de boas casas e cada rua tem uma porta que se fecha de noite, porque, de uma a outra, não vão furtar nem fazer outros malefícios.4 A maior parte delas (das ruas) tem arcos triunfais, os quais me parece que serão mais de mil, os quais fazem os governadores quando acabam seus três anos de governo e os deixam por memória sua com seus letreiros que dão fé do autor e da era, e nas ruas onde não há estes arcos, estão árvores mui grandes e frescas, a cada porta uma, postas por ordem, por sorte que as ruas parecem jardins.

"É cidade mui abastada e em cada rua há azougue e muitas outras coisas de comer. Navega-se quase todo ao redor dos muros, de um braço grande, de um rio que meteram na cava.

"A maior parte dos caminhos para a cidade é de campos mui grandes com regos de água, que os regam todos, e todo o serviço destes campos se recolhe em barcos e dá três novidades por ano, por ser regada a terra destes rios que digo de água doce. As frutas,árvores e animais, e serviço da terra é muito semelhante à Europa. O trajo todo dos homens e mulheres é honesto, têm leis para castigar os adúlteros. As ruas são repartidas de tal maneira que os oficiais de cada ofício estão juntos, e nenhum pode dar ofício a seu filho senão o mesmo seu; nenhum deixam ocioso sem ofício mecânico, ou de injustiça; até os cegos, por não andarem pedindo, moem nas atafonas. Tem esta gente o mais singular engenho de mãos, que me parece que não há noutra nação de maior. Entre eles, não consentem que nenhum seja grande e nobre nem que tenha rendas de juro, donde não há lugar a se levantar com o reino, porque todos os seus parentes e filhos têm cada um em sua cidade, em tudo entregues à sujeição e obediência dos regedores da cidade com grandes vigias sobre si; e afirmou-nos um embaixador do Sião que tinha el-rei quinhentos gigantes de sua guarda e que ele os vira, e as-sim o dizem os Chins comummente.

"É tão abundante esta terra que estão, neste porto (de Cantão) onde estamos, trinta e tantos mil quintais de pimenta e cem mil cruzados de prata, em uma nau que agora chegou do Japão. E tudo isto se gasta em obra de um mês, como dão licença que tragam as fazendas de Cantão para esta ilha de Sanchoão,5 donde se faz trato com os Chins e se vende a troco de fazenda que para a Índia e Portugal e outras partes vão; e semelhante a isto dizem que se faz todos os anos.

"Afirmam os Chins que esta província de Cantão, que é a mais pequena de todas as treze da China, rende a el-rei cada ano quatro mil picos6 de prata, que são mais de seis mil quintais, e isto parece muito, mas os impostos que há nela são mui grandes, porque cada pessoa, como chega a dezoito anos, paga cada ano seis vinténs até à idade de sessenta, e cada casa outro tanto; e de todas as fazendas que à terra vêm, vinte por cento; e de algumas a metade, por onde será possível render o que dizem.

"São tantos os navios nesta terra, grandes e pequenos, que é maravilha, porque em obra de um mês e menos, aparelharam nesta cidade duzentos e oitenta juncos e dez mil homens para irem sobre os Japões,7 porque estes são tão valentes que lhe vão correr a costa e destruir a terra. E ajuntam-se muita gente e navios para irem a pelejar com eles, e os Chineses querem tamanho mal aos Japões que dão um preço certo por cada um deles que matam.

"É esta gente regida com tão grande paz, assim nos que regem como nos que são regidos, que não se vê arma. É gente muito dada a comer e a beber. O regimento da terra é muito para ver, que é feito de maneira que, por serem muito viciosos, parece que requer cada três anos governadores novos, naturais de outra província. Eu me espanto do sossego com que regem a terra. E têm um que se chama anchaci que tem cargo de justiça do crime, que é como capitão da cidade, e outro ponchaci, que é como tesoureiro ou vedor-de-fazenda, que arrecada todas as rendas da província, e outro aitão, que rege as coisas da guerra, e pois do mar é outro que se chama chaem, que trazem no seu vestido, por divisa, um olho e uma mão, o qual é sobre todos estes, para ver se cumprem todos os seus ofícios, e depois, se eles os não cumprem bem, cumprem as sentenças ou castigo, que vêm confirmadas da corte de el-rei. Há outro que chama tutão, 8 que é como vizo-rei, maior que todos que tem governo universal de toda a província, correndo-a toda; cada um destes (dois) traz por divisa um barrete que lhes dá el-rei, e os vestidos com as armas do mesmo rei, douradas detrás, que são uns leões (dragões); e, quando têm estas divisas cada um em seu cargo, são tão venerados que é maravilha. E é tanta a gravidade e a majestade que representam, que não lhe podem falar senão de joelhos e de longe. Têm casas sumptuosas que lhes dá el-rei, e são tantos estes governadores que afirma os Chins que só desta província de Cantão dá el-rei de comer a cem mil homens para serviço de justiça e guarda da terra.

"Estando em juízo, lhe podem falar somente em tudo o que quiserem e por escrito. Têm porteiros à porta; bradam em voz alta o nome de cada pessoa, dizendo o que quiserem. As armas que trazem os homens de el-rei que os acompanham são umas canas de uma braça em comprido (e) de uma mão em través, partidas pelo meio, tostadas no fogo. Todo o homem rico, pobre, alto, baixo, mandam açoitar com estas canas, cada vez que querem por coisa mui leves; e dão estes açoites nas curvas das pernas; e cada homem dos das canas dá cinco com quanta força tem e são tão cruéis açoites que ao que dão cinquenta comummente morre ou fica aleijado, porque até os ossos lhe quebram. E uns se deram perante mim, mas creio que se os levara pela honra de Cristo, doeram mais que os quarenta menos um de S. Paulo.9

"Tanto que acabam o juízo, fecham as portas e as chapam10 com uns papéis grudados, e são as mesmas casas em que eles (as autoridades) pousam. Quando vão fora, vão sentados em umas cadeiras de estado, com cavalos a destra, com muitos homens de el-rei com suas canas e outros de maças, outros com tábuas e com borlas de seda às costas, que dizem o estado do mandarim, vão adiante dele por grande espaço de dois em dois, dando brados espantosos que dêem lugar, e ninguém pode passar pela rua; e uns se metem em casa, outros varrem as ruas por onde (os magistrados) hão-de passar, e não se ouve vez de ninguém. São tão graves estes regedores que até os portugueses que ali vão fazer suas fazendas, quando lhe falam, é de joelhos e de longe.

"Esta é a maior dificuldade, nesta terra da China para se fazerem cristãos, que a gente comum parece não ousar a tomar nova lei sem licença de regedores, nem eles a darão sem licença de el-rei".

O autor expande-se, depois, nas hipóteses da conversão da China, de que Fernão Mendes, mais positivo e com menos fé, descria por completo.

Aqui temos uma primeira abordagem ocidental à terra e maneira de ser dos Chineses feita, desde Macau, há precisamente quatrocentos e quarenta anos. Adiantámos muito no conhecimento mútuo, de então até hoje, mas teríamos acompanhado esse conhecimento com uma atitude correspondente de humildade e amor? Oxalá.

NOTAS

1 CATZ, Rebecca, Cartas de Fernão Mendes Pinto e outros documentos, Lisboa, Presença, 1983, pp. 60-5, 137.

2 Id., p. 71.

3 Além de Pinto, foi com Barreto mais Estêvão de Góis.

4 E para evitar assaltos do exterior da cidade, fechavam-se as "bocas das ruas".

5 Até à concessão do comércio livre com a China e estabelecimento dos portugueses em Macau, pelo assentamento de Leonel de Sousa e do almirante do mar (aitão) chinês, em 1553, em Kuong-hói, a veniaga ou feira fazia-se na ilha de Sanchoão, onde morreu S. Francisco Xavier, aos 3 de Dezembro de 1553.

6 Do malaio-javanês pikul; é uma medida de peso equivalente a 62 quilogramas e 500 gramas ou cem cates (de kati, também malaio-javanês).

7 Trata-se dos famosos wokous (piratas anões e nus) das Léquias, que um monumento erguido num rochedo de Kuóng-hói atesta derrotados, no fim do Séc. XV.

8 Esta nomenclatura dos ofícios do governo, que a Peregrinação repete, está certa. Há confusão no nome do aitão (chefe do mar) ou almirante. O que rege as coisas da guerra é o chumbi (em cantonense, chông-peng), que Fernão Mendes também menciona. O tutão é o vice-rei que interfere no militar e no civil. O chaem pode ser qualquer oficial do governo.

Barreto, doutor em leis por Coimbra, preocupa-se naturalmente com a administração da justiça. A sua autoridade deve ter influído em Fernão Mendes no sentido de arraigar mais, no seu espírito, a convicção de que a China dos Mings foi a Sociedade Ideal do Mundo (tese da Peregrinação). Vivia-se na época das Utopias.

9 2å Carta aos Coríntios, c. 11, vs. 24 e 25. Os 39 açoites dos judeus, porém, recebeu-os S. Paulo 5 vezes e, além disso, ainda apanhou mais, por três vezes, com varas. Barreto entrou numa das prisões, como diz a carta citada.

10 Selam.

*Licenciado em Literatura Portuguesa e Filosofia (Universidade de Lisboa). Orientalista e investigador da história portuguesa no Oriente e da missão jesuíta na Ásia, com dezenas de títulos publicados. Governador da Associação Internacional dos Historiadores da Ásia e sócio da Academia Portuguesa de História.

desde a p. 31
até a p.