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PRIMEIRAS IMAGENS DA DINASTIA MING SOBRE OS PORTUGUESES

K. C. Fok*

Os portugueses foram os primeiros marinheiros europeus que os chineses conheceram. A forma e a época do seu aparecimento na experiência chinesa moldaram a atitude e a abordagem que lhes foram feitas, as--sim como ao Ocidente, nos anos que seguiram. De acordo com os registos existentes, os primeiros portugueses a chegar à costa chinesa fizeram-no em 1513. Três anos volvidos, os portugueses, sob o comando do capitão Fernão Peres de Andrade, subiram até Cantão e, em 1520, o seu enviado, Tomé Pires, chegou a Pequim com o objectivo de estabelecer relações comerciais formais com a China. Todavia, a missão de Tomé Pires não teve êxito, não só devido ao mau comportamento dos seus companheiros, mas também pelas intrigas provocadas pelo enviado de Malaca.1 Em 1521 e 1522, os portugueses tentaram uma vez mais renovar este comércio mas, desta feita, o mau resultado dos seus esforços foi ainda mais profundo, porque tiveram o condão de provocar um édito imperial que baniu todo o comércio aos estrangeiros.2 Assim, devido a uma série de incidentes, a chegada dos portugueses à China não foi auspiciosa. Por outro lado, as primeiras impressões dos chineses sobre eles nada fizeram para alterar o seu destino imediato. Os cronistas chineses, a registar os primeiros grupos de ocidentais, poucas vezes tiveram tempo suficiente para coligir mais do que impressões superficiais, verbais e visuais. Observadores sem preparação, estes cronistas estavam tão enredados na sua própria sociedade que lhes era difícil observar e compreender com precisão os desígnios de vida de outros povos. Deste modo, há dois factores que, mais do que quaisquer outros, serviram para inibir o observador Ming a recolher uma imagem descomprometida dos portugueses: a natureza casual da exposição a estranhos estrangeiros e o pressuposto de que a nossa forma é a mais humana. Estas imprecisões e incompreensões iniciais fizeram com que a China olhasse para os ocidentais com receio. Um bom exemplo do que se disse anteriormente seriam as primeiras impressões que os chineses tiveram com relação aos portugueses, imagens estas que os identificavam como uma variedade especial de gnomos, tendo somente uma parecença superficial com um ser normal e descendendo de canibais.3 Assim, apareciam em formas estranhas e grotescas e vestiam roupas bizarras. Paralelamente, "o tamanho do seu corpo mede quase sete pés. Têm um grande nariz, a cor é clara, boca de papa--figos e olhos de gato. A sua barba é encaracolada e o cabelo quase vermelho. Mas há muitos carecas e com a barba cortada."4 Não era somente o seu aspecto físico que fazia com que os portugueses fossem considerados muito diferentes; tal consideração deveu-se igualmente ao facto de desconhecerem os ensinamentos tradicionais chineses e, por isso, os académicos chineses compararam esses estrangeiros com animais, em termos de comportamento. O tema dominante da descrição, naquela época, era de que os portugueses podiam comportar-se como seres humanos somente quando estavam contentes, mas a sua natureza brutal emergia sempre que perdiam a calma.5

É importante referir que as acções dos portugueses não ajudaram a dissipar estas impressões do tempo dos Ming. Os actos violentos e criminosos de que os primeiros portugueses foram acusados abrangiam o rapto de mulheres e crianças para prover o comércio de escravos, a captura de crianças para servirem de alimento e o desprezo às leis chinesas, assim como interferências oficiais. A origem da acusação de que os portugueses assavam e comiam carne de crianças chinesas ainda está por esclarecer. Contudo, os relatos de portugueses saboreando carne de crianças eram deduções "lógicas" da ideia errada de que descendiam de canibais. Yueshan congtan parece ter sido a primeira obra chinesa a espalhar este falso juízo. Dizia-se que os portugueses gostavam da carne de crianças e, uma vez que no seu país só o rei tinha acesso a essa raridade, logo que chegaram à China, trataram de comprar um grande número de crianças com este objectivo.6 A obra referida anteriormente faz igualmente uma descrição viva de como as crianças chinesas eram compradas por 100 di-nheiros cada e como eram preparadas para ser comidas:

"Assim, os portugueses procuravam secretamente comprar crianças com mais de dez anos de idade para as comer. Cada uma custava 100 dinheiros. Isto encorajou os jovens maus de Cantão a raptar crianças, sendo o número de crianças comidas muito grande. O método de preparação da criança era, primeiramente, ferver sopa numa enorme panela de ferro e colocar a criança, que se encontrava presa numa jaula de ferro, lá dentro. Depois de fervida, a criança era retirada e esfolada com uma escova de ferro. A criança, ainda viva, era morta e cozinhada, depois de desventrada."7

Segundo Zhang Tianze, há uma descrição semelhante na obra Shuyu zhouzilu (prefácio de 1574), de Yan Congjian, e, embora o autor não mencione especificamente a sua fonte, deve ter consultado a obra Yueshan congtan.8 No entanto, a obra Shuyu zhouzilu foi, possivelmente, a primeira existente a identificar os portugueses como descendentes de canibais. Saber-se qual obra influenciou a outra, ou se ambas se fundamentaram na mesma fonte, é um assunto de menor importância. O que é importante é o facto de esses relatos, dos supostos hábitos diabólicos dos portugueses, terem sido acolhidos pelos literatos chineses, que impulsionaram ainda mais a imagem de evidência das primeiras chegadas de europeus. Na sua obra famosa e genericamente sóbria, Tianxia junguo libing shu (prefácio de 1662), o influente homem de letras Gu Yanwu fez citações de ambas as obras referenciadas anteriormente, ao descrever o hábito que os portugueses tinham de comer crianças chinesas.9 Tanto Mingshan zang, compilada por He Qiaoyuan (depois de 1632), e Guangzhoufuzhi, compilada por Shi Jing, registaram os mesmos relatos.10

As primeiras imagens que os chineses tiveram dos portugueses, como raptores e comerciantes de escravos, acompanharam os relatos das capturas que faziam de crianças para se alimentarem. Embora as histórias de portugueses comendo chineses não possam ser levadas a sério, já os raptos perpetrados pelos portugueses foram substancialmente documentados em fontes mais fidedignas.11 Para além deste comportamento horrendo, os portugueses eram conhecidos também pela sua "irreverência bárbara" e desafio às leis e regulamentos burocráticos chineses e, assim, eram objecto de censura.12 Estas imagens de suposta evidência foram, pouco tempo depois, reforçadas com a demonstração real da ameaça militar portuguesa.

Entretanto, o enviado do fugitivo rei de Ma-laca tinha chegado a Pequim para relatar as "atrocidades" cometidas pelos portugueses naquele local.13 Imediatamente, os portugueses foram acusados por funcionários superiores chineses por terem conquistado o estado vassalo da China. Destas acusações, as maiores foram feitas pelos censores Qiu Daolong e He Ao. Qiu queixou-se ao imperador do seguinte modo:

"Malaca era um estado vassalo que tinha rece-bido o direito de governar a si próprio, mas os estrangeiros, portugueses, ousaram anexar o seu território e, além disso, de nos seduzir com a esperança de lucros por forma a que lhes déssemos o direito de governar e de nos pagarem tributos. Não devemos nunca aceitar tal pretensão, nem receber o seu enviado. Temos de lhes dizer claramente se os consideramos obedientes ou recalcitrantes. Devemos exigir que devolvam a Malaca o território ocupado; só depois disto é que devemos deixá--los pagar-nos tributos. Caso se mantenham renitentes em desistir daqueles erros, devemos distribuir manifestos por todos os estados vassalos estrangeiros para dar a conhecer os seus crimes, devendo-se enviar expedições punitivas contra eles."14

Pouco tempo depois, He Ao acrescentou o seguinte:

"Os estrangeiros são muito cruéis e astuciosos. (...) Há alguns anos, vieram subitamente a Cantão, e o ruído do seu canhão fez estremecer a terra. Os que permaneceram no posto violaram a lei e tiveram contacto com outros. Os que vieram à capital eram arrogantes e lutaram entre si para ocupar o lugar de chefe. Se os deixarmos vir livremente para exercer a sua actividade comercial, tal originará certamente lutas e derramamento de sangue, pelo que o infortúnio do sul da China não terá limites."15

Será importante referir que a maioria das acusações feitas contra os portugueses vinha de censores como Qiu e He, assim como de outros funcionários da capital, isto é, homens mais directamente envolvidos na política da corte do que em assuntos locais. Além disso, em regra, preocupavam-se mais com ideais confucionistas e a necessidade ideológica de uma ordem rígida. Para eles, os portugueses tinham obviamente posto em perigo essa ordem ao minar o sistema altamente regulado do "comércio tributário". Na sua mente, tal não podia ser tolerado.

Quase ao mesmo tempo, os delitos cometidos pelos portugueses na região de Cantão chegaram também ao trono, conforme foi resumido por Simão de Andrade. Simão de Andrade era irmão de Fernão Peres e viera para assumir o comando dos portugueses, em 1518, substituindo o irmão. Segundo uma obra contemporânea:

"O seu carácter era marcado por cobiça, parcialidade e despotismo. Com tal temperamento, protegia de boa vontade os ladrões, raptores e todos os tipos de maldade. Construiu um forte perto de Tunmen, no distrito de Dongguan, e acabou por apropriar-se das prerrogativas de um soberano, aventurando-se a condenar à morte um marinheiro e fazer executar essa sentença. Esse acto de hostilidade aberta e a recusa em retirar-se da ilha era um sinal evidente da sua maldade."16

Tais actos macabros de Simão de Andrade originaram logicamente a publicação de petições oficiais contra a presença portuguesa na China.

As impressões relatadas ao governo Ming, pelo enviado de Malaca, sobre o facto de os portugueses serem conquistadores e guerreiros, ficaram substancialmente provadas através de duas lutas travadas entre os portugueses e a armada Ming em 1522. Segundo os registos, os portugueses envolveram-se com as forças navais Ming em dois confrontos sérios. Um teve lugar em 1521, perto do porto de Tunmen. Wang Hong, então o haidao ou comandante da armada de Cantão, recebeu os louros por ter derrotado os portugueses, porque conseguira alistar nas suas forças dois chineses que tinham estado com o inimigo durante muitos anos e sabiam como fundir canhões e fazer pólvora; assim, Wang Hong ficou a dever-lhes muito o sucesso da batalha.17

A segunda batalha travou-se um ano depois, quando os portugueses, de acordo com relatos oficiais da dinastia Ming, invadiram Xicaowan, no distrito de Xinhui.18 As forças chinesas, comandadas pelo beiwo zhihui (comandante provincial das forças contra os piratas japoneses), Ke Rong e o baihu (centurião), Wang Yingen, conseguiram parar esta invasão e, no seguimento do seu êxito, perseguiram os portugueses até Zhaozhou onde se desenrolou uma batalha feroz. Aqui, parece que ambos os beligerantes registaram perdas significativas.19 O relato contido na obra Ming shilu dá conta de que os chineses conseguiram capturar dois navios e fazer quarenta e dois prisioneiros, incluindo o corajoso capitão Pedro Homem. Todavia, sofreram importantes baixas, incluindo Wang Yingen.20 Em consequência desses confrontos, os portugueses foram proibidos de visitar Cantão e os funcionários locais receberam ordens para recorrer à força e, se necessário, expulsá-los. O Ministro dos Ritos, Huo Tao, por exemplo, considerava que era necessário tomar medidas de segurança muito enérgicas contra os portugueses:

"Os portugueses são os mais cruéis entre os bandidos estrangeiros. Muito simplesmente têm de ser expulsos. (...) A melhor política a adoptar é (...) admoestar os portugueses quando aqui vierem por razões comerciais. Se tal não conseguir afastá-los, devemos mobilizar tropas para nos defendermos e, ao mesmo tempo, emitir declarações em como estamos determinados, caso seja necessário, a exterminá-los."21

Entretanto, desapontados com as suas tentativas em estabelecer relações comerciais com a China, os portugueses começaram também a participar no comércio ilícito entre os japoneses e os seus colaboradores chineses, depois de 1523, nas costas de Fujian e Zhejiang. Assim, os portugueses passaram a estar profundamente envolvidos na pirataria e contrabando que grassavam no período do reinado de Jiajing. Fontes contemporâneas legaram-nos um relato bem documentado sobre a colaboração entre portugueses e os contrabandistas chineses e japoneses na zonas de Fujian e Zhejiang. Por exemplo, havia palavras de profunda amargura que lamentavam a abertura com que os portugueses eram recebidos pela desleal e ao mesmo tempo influente e poderosa pequena nobreza local, na costa de Fujian. A coberto da negligência dos funcionários locais, Zhu Wan registou que os portugueses tinham reparado dois navios na localidade depois de terem concluído as suas transacções ilegais.22Outro exemplo foi o incidente de Zoumaqi, de 19 de Março de 1549, no qual Zhu Wan lançou-se com êxito contra os contrabandistas. Sob a liderança hábil dos comandantes Zhu Wan, Lu Tang e Ke Qiao, as tropas governamentais apanharam os contrabandistas de surpresa, capturando e matando duzentos e trinta e nove na costa de Zhaoan, em Zoumaqi.23 Entre os capturados, dezasseis foram identificados como estrangeiros de raça branca, quarenta e seis de raça negra, vinte e nove estrangeiras e mais de cem piratas chineses.24

Na realidade, mesmo antes da ocorrência deste incidente, Zhu Wan enviou muitas petições ao trono relatando pormenorizadamente o contrabando desenvolvido pelos portugueses com a ajuda dos seus colaboradores japoneses e chineses. Numa petição extensa, em que insistia na aplicação da pena capital aos contrabandistas capturados, Zhu Wan apresentou uma lista dos resultados das suas investigações relativamente a diversos acontecimentos. Nas palavras de Suo Guanwai:

"Dos três bárbaros de pele escura, dois tinham sido comprados pelos portugueses, um era contratado como navegador, estando todos a bordo com dez portugueses e nativos de Zhangzhou e Ningbo — no total, havia mais de setenta a bordo. Antes da sua captura, tinham navegado entre Zhangzhou e Ningbo, assim como no Japão. Vieram com pimenta e prata para trocar por arroz, tecidos e outros artigos de seda. Relataram igualmente como é que tinham sido ludibriados por alguns comerciantes e mascates chineses."25

Após o incidente de Zoumaqi, os portugueses viram-se forçados a retirar de Zhejiang e Fujian. Expulsos destas províncias, os portugueses regressaram à zona de Cantão para aí desenvolverem o seu comércio clandestino. Há muitos registos que testemunham o comércio feito entre portugueses, japoneses e habitantes chineses, nas águas ao largo de Cantão, na década de cinquenta, Século XVI. O relato seguinte, na obra Riben yijian, éum bom exemplo:

"No ano Yimao (1555), os portugueses persuadiram os japoneses a vir negociar nas águas de Cantão. Zhou Luan e outros levaram os japoneses a vestir-se de portugueses e, em conjunto, desenvolveram o seu comércio na rua Maima, de Cantão, aí permanecendo durante um período de tempo apreciável. A partir daí, ano após ano, os portugueses persuadiram os japoneses a vir e a negociar em Cantão...

No ano Jimei (1559), reinado de Jiajing, o censor responsável pela província de Cantão, Pan Guixun, proibiu os portugueses de desembarcar e ir a Cantão, masestes continuaram a desenvolver o seu comércio nomar."26

Esta nova actividade dos portugueses nos mares de Cantão relacionava-se directamente com o próspero comércio português com o Japão, que tivera início no início dos anos quarenta do Séc. XVI. O grande desejo que os portugueses tinham de explorar ainda mais o comércio japonês em breve os obrigou a chegar a um acordo provisório com os funcionários de Cantão. Mas antes de nos debruçarmos detalhadamente sobre esta nova era das relações luso-chinesas, seria importante apresentar o cenário que originou toda a problemática daépoca Ming sobre os portugueses.

Os portugueses chegaram à China em meados da governação Ming, que estava vocacionada para defender as suas zonas costeiras, especialmente as províncias de Zhejiang e Fujian, em consequência da devastação trazida pelos numerosos ataques dos wokous (piratas). O governo central tentava implementar padrões mais rígidos ao então permissível e altamente regulado sistema "tributário" de comércio com os estrangeiros que chegavam por via marítima. Felizmente, os portugueses tinham chegado a Cantão onde havia registos anteriores que indicavam que os funcionários locais tinham abrandado os regulamentos do "comércio tributário" por forma a ir ao encontro das necessidades comerciais dos estrangeiros. Todavia, os portugueses discordavam com o facto de ter de desenvolver a sua actividade segundo a vontade dos funcionários locais. O objectivo da visita de Fernão Peres de Andrade e Tomé Pires era conseguir junto do imperador chinês direitos comerciais. Mas os portugueses não demoraram a perceber as dificuldades intransponíveis que os esperavam. Ao contrário dos estados vassalos do governo Ming, os portugueses estavam interes-sados em fazer comércio e não em prestar vassalagem ao imperador chinês. Além disso, o código que regulava o "comércio tributário" não admitia nenhum participante que não constasse da respectiva lista. Após consultas junto aos funcionários de Cantão, tornou-se óbvia aos enviados, que não podiam reclamar como antecedente terem os portugueses realizado missões de vassalagem à China, a impossibilidade de serem incluídos na ordem chinesa da diplomacia e comércio.

Estas diferenças elementares existentes nos conceitos e atitudes relativamente ao comércio e contactos levaram rapidamente a confrontos entre portugueses e o governo Ming. Tomé Pires, corajosamente, tentou fazer o impossível. Mesmo assim, o seu plano audacioso para chegar até ao imperador falhou. O facto de os portugueses serem conquistadores e guerreiros foi transmitido pessoalmente ao trono pelo enviado do fugitivo rei de Malaca. Estava condenada a esperança que os portugueses tinham em ser reconhecidos na ordem chinesa. Os relatos sobre os repetidos actos insultuosos que os portugueses cometeram em Cantão impediram uma atitude de compromisso relativamente aos estrangeiros. Pior do que isso, estas imagens de suposta evidência foram em breve reforçadas pela demonstração real da sua ameaça militar às zonas costeiras, conforme chegavam notícias sobre o envolvimento dos portugueses em dois confrontos com as forças navais do governo Ming. Para rematar o que foi dito anteriormente, em face do conluio entre portugueses e japoneses na prática de contrabando, nas costas de Fujian e Zhejiang e posteriormente ao largo de Cantão, o governo Ming, de meados do Séc. XVI, teve uma má imagem sobre esses estrangeiros.

Assim, com uma imagem repugnante de comedores de crianças, raptores, comerciantes de escravos, contrabandistas e saqueadores, os portugueses eram considerados pessoas más, foras-da-lei e destruidoras, que causavam confusão e alteravam a ordem estabelecida. Por isso, os portugueses constituíam não só uma preocupação para as autoridades, mas também um perigo à segurança. Todavia, o que os distinguia de outros grupos tribais violentos e destruidores das fronteiras terrestres e que ameaçavam o governo era o horror do seu armamento de que os observadores Ming se tinham apercebido logo desde o início. Este reconhecimento da sua superioridade em armamento tinha aumentado muito as cautelas que os chineses tinham relativamente ao primeiro grupo de estrangeiros. Os chineses ficaram a saber que eram mais difíceis de combater do que os ferozes piratas japoneses que tinham, até então, atacado as zonas costeiras da China.

Em 1520, o censor He Ao referiu que os portugueses eram "muito ferozes e velhacos" e que a sua capacidade de utilizar armas não tinha igual entre os estrangeiros. A referência era breve. Embora He Ao não tenha especificado quais eram esses armamentos temíveis, deixou poucas dúvidas na sua observação, a seguir à referência, que se tratava de navios de guerra e enormes canhões.27 Esta consciência da superioridade dos portugueses relativamente ao armamento foi posta ainda mais em evidência numa petição apresentada ao imperador em 1523 por Wang Hong, que era o então haidao fushi de Cantão:

"Os portugueses assumiam uma atitude feroz e rude simplesmente porque tinham canhões e navios diferentes. Os seus canhões eram superiores a quaisquer armas de que alguma vez tivemos conhecimento."28

Na realidade, os funcionários Ming demoraram muito a transformar esta consciência num sentimento imediato de temor.29 O censor Chen Wude foi um dos primeiros a fazer soar este aviso numa petição dirigida ao imperador em 1569. De facto, Chen Wude insistia em medidas eventuais para abordar a província de Cantão onde grassavam os rebeldes. A partir da experiência que tinha com os portugueses, considerava vital que se estabelecessem regras burocráticas para controlar os estrangeiros. Tal proposta relacionava-se com a procura de métodos viáveis para acabar com os grupos rebeldes que tinham provocado grande destruição à cidade de Cantão e seus arredores. Chen Wude testemunhara o comportamento devastador de alguns portugueses que incluía o rapto, a resistência à jurisprudência oficial chinesa e intriga junto de renegados locais. Tudo isto convenceu-o de que havia necessidade urgente de medidas eficazes para defender Cantão. Mas o que mais o alarmava era a30 perícia militar dos portugueses.

Chen Wude foi o único observador Ming a deixar-nos um relato detalhado sobre as suas impressões que deixaram marcas indeléveis na mente dos funcionários chineses: "Os estrangeiros (...) tinham uma natureza mais feroz e eram mais engenhosos no uso de armas que os próprios piratas. No ano passado, o bandido Ceng [Yi-ben], com toda a sua força, atacou os estrangeiros que totalizavam menos do que mil, mas Ceng teve de se retirar para um local distante, pois sofreu pesadas perdas no confronto. A partir disto, temos de estar atentos à força dos portugueses."31

Ceng Yiben era, à época, um chefe rebelde muito temido na zona de Cantão. Cercou a cidade em 1568 durante aproximadamente dez dias e, embora não tenha conseguido tomar a cidade, causou grande destruição nas forças aquáticas de Cantão e pesadelo aos funcionários e residentes da cidade.32 Quando se retirava de Cantão e a caminho de alto mar, Ceng Yiben e as suas forças tentaram, possivelmente, atacar a povoação portuguesa de Macau. Foi precisamente baseado no resultado deste confronto entre as forças de Ceng e os portugueses que Chen Wude tirou as suas conclusões sobre a perícia militar dos estrangeiros. Os avisos de Chen explicitavam sua fobia contra os rebeldes do povo de Cantão e de suas zonas vizinhas e, certamente, surtiram algum efeito nesta região devastada por rebeldes, bandidos e piratas.

Na realidade, o conhecimento que Chen Wude tinha sobre a perícia militar dos portugueses tinha sido prognosticado pelo comandante militar da zona de Cantão, Yu Dayou, uns anos antes, em 1564. Na época, Yu nutria uma grande antipatia pelo comportamento rebelde dos portugueses a seguir à sua supressão do motim da unidade de defesa marítima em Zhelin, na prefeitura de Chaozhou. Tal aconteceu pouco depois de Yu ter alistado os serviços de navios estrangeiros de Macau para auxiliar a supressão, mas depois viu que o comportamento dos portugueses era intolerável porque, "mediante os seus serviços meritórios, presumiram poder comportar-se de forma perversa."33Yu chegou mesmo a instigar a utilização da força para subjugar os portugueses e, pela estimativa que fazia da sua força, mostrava respeito pelo seu armamento: "As suas armas de fogo são muito bem feitas e os seus canhões tremendos."34 Como comandante militar, certamente Yu não considerava os portugueses invencíveis, porque o supremo estratagema chinês acabaria por prevalecer no fim, mas avisou que "se não fizermos nada agora, não seremos capazes de os derrotar mais tarde."35

A imagem dos portugueses como comedores de crianças, assim como possuidores de armamento superior, não podia ter proporcionado aos estrangeiros um rótulo mais subversivo. Todavia, os funcionários provinciais de Cantão continuavam empenhados em encontrar os meios através dos quais os portugueses pudessem fazer comércio, sem colocar nenhuma ameaça à dinastia ou à nação. Certamente, estes funcionários tinham boas razões para tal empenho. A seguir à expulsão dos portugueses de Cantão, foram, uma vez mais, introduzidas restrições ao comércio e que se aplicavam a todos os estrangeiros. Tal significava que o comércio com os estados do sudeste asiático só era possível através de um "sistema tributário" altamente regulado. Em consequência, as actividades comerciais em Cantão diminuíram grandemente e, por isso, a economia local também sofreu. Tal originou um aceso debate entre os funcionários provinciais e os funcionários centrais responsáveis pela política sobre um tema antigo — se as restrições deviam ser abrandadas no meio de necessidades muito prementes.

Em 1530, em resultado deste debate alargado entre apoiantes de uma política proibitiva do comércio marítimo e os abolicionistas que apoiavam um comércio regular, mas controlado, emergiam dois temas dominantes. O primeiro fundamentava-se num temor profundo que os portugueses e os seus semelhantes pudessem alterar a paz e, por isso, ameaçar a segurança na costa. Tal temor era partilhado por ambas as partes. Os abolicionistas especificavam que o comissário-adjunto da Defesa Militar e o comandante da Defesa Costeira contra os piratas, em locais como Dongguan e Nantou, deveriam examinar todos os navios que se aproximassem dos portos com mais vigilância. Os estrangeiros, como os portugueses, que não apresentassem credenciais para participação no comércio tributário, deveriam ser excluídos das zonas costeiras e subjugados por meios militares, caso resistissem. Contudo, os proibicionistas realçavam a eficácia de penalizar severamente os que tentassem fazer comércio com navios estrangeiros com o objectivo de desencorajá-los de virem à China. O segundo tema era o valor do comércio marítimo. Aqui, havia uma fissura entre os dois grupos. Os apoiantes de uma política proibi-cionista consideravam o comércio com os estados marítimos meramente como um meio de os pacificar, para que se pudesse manter a segurança das zonas costeiras. O lucro que advinha desse comércio não era grande e teve de ser proibido quando a sua continuidade se tornou numa ameaça à segurança costeira. Os abolicionistas, por outro lado, estavam convencidos de que o comércio marítimo dava um contributo vital ao bem-estar económico das províncias costeiras. Assim, aconselhavam o recomeço do comércio regulado, mesmo correndo o risco de possíveis pilhagens por parte dos portugueses que, pensavam eles, podiam ser repelidos se as medidas de defesa marítima fossem apertadas. Estes dois temas vieram a determinar, em grande medida, a atitude dos funcionários do governo Ming em relação à presença dos portugueses na China, hostil ou simpática.

Publicado originalmente em: PTAK, Roderich, ed., Portuguese Asia: aspects in history and economic histo-ry (sixteenth and seventeenth centuries), Wiesbaden, Franz Steiner, 1987 (Südasien-Institut, Universität Heidelberg, Beiträge zur Südasienforschung, 117), ISBN 3-515-05136-8.

Traduzido do original inglês por José Vieira.

GLOSSÁRIO

Baihu 百戶

Beiwo zhihui 備倭指揮

Ceng Yiben 曾一本

Chaozhou 潮州

Dongguan 東莞

Fujian 福建

Guangzhou fuzhi 廣州府志

Haidao 海道

Haidao 海道副使

He Ao 何鰲

He Qiaoyuan 何喬元

Jiajing 嘉靖

Jimei 羈縻

Ke Qiao 柯橋

Ke Rong 柯榮

Lu Tang 盧鏜

Maima 賣麻

Mingshan zang 明山藏

Nantou 南頭

Ningbo 寜波

Pan Guixun 潘桂馴

Qiu Daolong 邱道隆

Shi Jing 史澄

Tunmen 屯門

Wang Hong 汪鈜

Wang Yingen 王應恩

Wokou 倭寇

Xicaowan 西草灣

Xinhui 新會

Yimao 乙卯

Yueshan congtan 月山叢談

Zhangzhou 漳州

Zhaoan 詔安

Zhaozhou 肇州

Zhejiang 折江

Zhelin 柘林

Zhou Luan 周鸞

Zhu Wan 朱紈

Zoumaqi 走馬溪

NOTAS

1 Sobre os contactos iniciais dos portugueses com a China, consultar, por exemplo:

ZHANG Tianze 張天澤, Sino-Portuguese trade from 1514-1644, Leyden, 1934;

BRAGA, José Maria, Western pioneers and the dis-covery of Macao, Hong Kong, 1949;

ZHANG Weihua 張維華, Mingshi Folangji Lüsong Helan Yidaliya si zhuan zhushi 明史佛郎機吕宋荷蘭意大利亜四傅注釋, Pequim, 1934;

PELLIOT, Paul, Le Hoja et le Sayyid Husain de l'histoire des Ming, "Tong Bao", (38) 1948 [sic], pp. 81 ss.;

GOODRICH, L. Carrington; FANG Zhaoying 房兆盈, ed., Dictionary of Ming biography: 1368-1644, New York, 1976, vol. 1, pp. 372-5, 679-83, 1003-5; vol. 2, pp. 1113-6,1123-5;

KAMMERER, A., La découverte de la Chine par les portugais au XVIe siècle et la cartographie des portu-lans, "Tong Bao", (39) 1944 [sic];

BOXER, Charles Ralph, South China in the sixteenth century, London, 1953;

PTAK, Roderich, Portugal in China, Goppingen, Klemmerberg, 1980;

COATES, Austin, A Macao narrative, Hong Kong, 1978;

GOMES, Luís Gonzaga, Os primeiros contactos entre portugueses e chineses, "Boletim do Instituto Luís de Camões", 1 (2) 1966, pp. 159-74; GOMES, Luís Gonzaga, Chegam os portugueses, pela primeira vez, à China, "Boletim do Instituto Luís de Camões", 1 (3) 1966, pp. 267-85.

2 ZHANG Tianze, op. cit., pp. 54-60.

3 YAN Congjian 嚴從簡, Shuyu zhouzilu 殊域周咨録, Gu-gong Bowuguan 故宫博物館, 1930, cap. 9, p. 17.

4 MAO Ruizheng 茅瑞徵, Huangming xiangxulu 皇明象胥録, nova ed., 1968, cap. 5, p. 5a.

5 PANG Shangpeng 龐尚鵬, Baiketing zhegao 亭摘稿, in: LUO Xuepeng 羅學鵬, Guangdong wenxian 廣東文獻, 1864, cap.14, p.9b.

6 GU Yanwu 顧炎武, Tianxia junguo libing shu 天下郡國利病書,1901, cap.119, p.54a.

7 Ibd, ibid.

8 YAN Congjian, op. cit., p. 19; ZHANG Tianze, op. cit., pp. 48-9, n° 5.

9 GUYanwu, op. cit., pp. 53a-54b.

10 ZHOU Jinglian 周京濂, Zhongpu waijiao shi 葡外交史, Shanghai, 1936, p. 26; ZHANG Weihua, op. cit., p. 17.

11 GUO Shangbin 郭尚賓, Guo jijian shugao 郭給諫疏槁, in: WU Chongyao 伍崇曜, Lingnan yishu 嶺南遺書, 1831-1863, cap. 1, pp. 13a-15b; PANG Shangpeng, op. cit., pp. 10b-1la.

12 Ibd, ibid.

13 MING shilu 明實録: wuzong shilu 武宗實録, Zhongyang Yanjiu Yuan 中央研究院, 1965, cap. 194, p. 2b.

14 GU Yanwu, op. cit., pp. 43a-b.

15 Ibd, ibid.

16 LJUNGSTEDT, Andrew, Historical sketch of the Portu-guese settement in China, Boston, 1836, p. 6.

17 YAN Congjian, op. cit., p. 19.

18 ZHANG Tingyu 張廷玉, Mingshi 明史, 1971, vol. 55-60, cap. 325, pp. 20a-b; ZHANG Weihua, op. cit., pp. 23-6.

19 Ibd, ibid.; MING shilu 明實録: shizong shilu 世宗, Zhongyang Yanjiu Yuan 世宗實録,1965, cap. 24, pp. 8a-b.

20 Ibd, ibid.

21 HUO Tao 霍韜, Huo Tao wenmingong quanji 霍韜文敏公全集, in: LUO Xuepeng, op. cit., cap. 10, p. 10a.

22 CHEN Zilong 陳子龍, et al., Ming Qing shi wenbian 明清史文編, 1962, 6 vol., cap. 205, p. 2158.

23 SUO Guanwai, Japanese piracy in Ming China during the 16th century, East Lansing, 1975, pp. 66-7.

24 Ibd, ibid.

25 Id., p. 57.

26 ZHENG Shungong 鄭舜功, Riben yijian 日本一鑑, ed. litografada, 1939, cap. 6, pp. 4b, 5b.

27 ZHANG Tingyu, op. cit., p. 19a.

28 YAN Congjian, op. cit., p. 19-20.

29 CHEN Wude 陳吾德, Xieshan cungao 謝山存槁, 1870, cap. 1, pp.31a-32b.

30 Id., p. 31a.

31 Ibd, ibid.

32 DAI Yixuan 戴裔烜, Guan yu Aomen lishi shang suo wei ganzou haidao wenti 關於澳門歴史上所謂趕走海盗問題,"Zhongshan Daxuebao" 中山大學報, (3) 1975, pp. 153-4.

33 YU Da you 俞大猷, Zhengqitang 正氣堂集, ed. facsimilada da ed. Ming, 1934, cap. 15, pp. 40-1.

34 Ibd, ibid.

35 Ibd, ibid.

*Professor da Universidade de Hong Kong, Departamento de História. Foi bolseiro do "East-West Center", conselheiro técnico do Conselho Consultivo de Antiguidades e conselheiro honorário do Museu de História de Hong-Kong. Investigador do papel de Hong-Kong e Macau na história contemporânea da China.

desde a p. 5
até a p.