Encontro de Culturas

MACAU IMAGINAÇÃO HISTÓRICA EM PERSPECTIVA(SOBRE O BARROCO CHINÊS)

Arthur H. Chen*

Frontispício de: NADAl, Jerónimo., S. J. Evangilicae historiae imagines.../auctore Hironymo Natali... —Antuerpiae: Societatis Iesu,1593.

A partir dos finais do século XVI até ao início do séc. XVIII, os Jesuítas enviaram para a China, através de Macau, os seus elementos mais eminentes com o objectivo de espalhar a fé cristã. Dado terem sido os portugueses os primeiros europeus a chegar à China por via marítima, todos os bispos tinham de ser apresentados pelo governo português e todos os missionários tinham de viajar em barcos portugueses. Macau, "A Roma do Longínquo Oriente e Mãe das Missões na Ásia", merece certamente o seu epíteto; Macau confirmou o mote dos exploradores portugueses de "propagar a fé e o Império, levar o Evangelho de Jesus Cristo e conquistar almas para a Igreja"1. Transportados pelos portugueses e levados pelos missionários jesuítas, a relação acidental entre a difusão do Cristianismo e a disseminação dos ideais da cultura barroca encontra-se manifesta na arquitectura da Igreja de S. Paulo (1602-27).

A presença de S. Paulo proporciona-nos tanto um espaço discursivo para imaginação histórica, como um discurso espacial para a memória colectiva: imaginar e relembrar a partir da sua imagem corpórea. O espaço discursivo demarca o poderio marítimo português e o seu transporte acidental de ideias para a China; a história espacial descreve o desenvolvimento jesuíta da perspectiva do espaço à medida que transformava a oncepção pictórica do mundo. A fachada de pedra da Igreja de S. Paulo permanece como um edifício dramático de tempo e espaço, enunciando uma história divertida de teorias arquitectónicas visíveis em Macau.

Vistos isoladamente, os componentes e elementos da fachada da Igreja de São Paulo pareciam "bastante intricados, à sua maneira, mas numa construção barroca" eram essenciais ao objectivo do arquitecto "de codificar um sistema narrativo de geometria através da manipulação da luz, superfícies e perspectivas"2. O envolvimento dos sentidos perceptivos do espectador na concepção da igreja barroca e as narrativas religiosas representadas nas suas paredes tinham um propósito evangélico intencional: a manifestação divina. O conjunto geométrico forjava um assalto teatral e emocional aos espectadores, enredando-os numa geometria espacial cujas linhas nunca eram fixas, levando-os de um enclave para outro, envolvendo-os num drama representado numa série de quadros ou relevos, confundindo os domínios espaciais da arte, estrutura, ilusão e realidade. Os artistas barrocos tinham o desejo de entrar na multiplicidade dos fenómenos em formação pertétua — as suas composições eram dinâmicas e tendiam a ampliar os seus limites estabelecidos; os elementos, formas e dispositivos ligavam-se a um sistema oculto e não podiam ser separados uns dos outros. Tais denominadores arquitectónicos não só contribuem para, como também reflectem o envolvimento dos jesuítas no intercâmbio de ideias entre o Oriente e o Ocidente.

A ARTE E CIÊNCIA DA TEOLOGIA

O catolicismo da Contra-Reforma possuía um mecanismo eficaz, na sua capacidade de utilização da comunicação visual: através dos estímulos emocionais da imagética divina da arte, o crente supostamen-te entenderia o significado dos ensinos litúrgicos da Igreja. Os Jesuítas empregam dois tipos de processos imaginativos: um que começa na palavra e acaba nas imagens visuais e outro que começa nas imagens verbais e termina na expressão verbal. Os Jesuítas dão muito maior ênfase ao exercício imaginativo que parte da palavra para as imagens visuais. No início dos seus Ejercícios Espirituales [Exercícios Espirituais] (Roma, 1539=41), Inácio de Loyola determina a ordenação intensa para atingir a "composição visual da percepção do local" em termos que relembram instruções para a mis-en-scène duma peça teatral:

[41] O primeiro prelúdio é a composição visualizando o local. Chama-se agora à atenção que quando a meditação ou contemplação se baseia em um objecto visível, a composição consistirá em ver com os olhos da imaginação o local físico onde o objecto que desejamos contemplar está presente. Por local físico quero dizer, por exemplo, um templo ou uma montanha onde Jesus ou Nossa Senhora estão dependendo do sujeito da contemplação3.

A referência aqui a um locus ma imago é claramente percebida como dois ingredientes básicos da Ars memorativa[a arte da memória]. Para Inácio a composição tem que ver com a ordenação interna de modo a obter a meditação no teatro de memória tal como era praticado no séc. XVI. Este prelúdio será o primeiro passo para todas as meditações durante as 4 semanas, espirituais com adaptações apropriadas ao assunto e ao objectivo específicos de cada semana. No primeiro dia da segunda semana o exercício espiritual explora um vasto panorama visionário:

[106] 1. ō O primeiro passo é observar as pessoas que habitam à face da terra, tão variadas no seu vestir e no seu comportamento. Umas são brancas outras negras, mas estão em paz, outras fazem guerra; umas choram, outras riem; umas estão bem e outras estão doentes; umas nascem, outras morrem, etc.

O segundo passo é ver e considerar as três pessoas divinas sentadas no seu trono real de Majestade Divina, como observam toda a Terra na sua imensa vastidão bem como as pessoas em completa cegueira, como morrem e descem ao Inferno.

Terceiro irei ver Nossa Senhora e o anjo que a saúda. Irei reflectir, que poderei tirar proveito de tal visão"4.

Vignola: Plano da Igreja de Gesù em Roma, 1568?-75.

Inágio prossegue, convidando os seus leitores a visualizar o Templo de Jerusalém, as sinagogas onde Cristo pregou, as cidades por onde passou. A esmagadora importância atribuída por Inácio ao sentido da visão no seguimento da percepção ciceroniana,e, sobretudo, a sua insistência em recorrer às "semelhanças corpóreas" nas suas imagines reverte-nos claramente à Ars memorativa, não na sua concepção clássica, mas transformada para servir fins puramente religiosos, como na Idade Média, particularmente por S. Tomás de Aquino5. As meditações ignacianas apelam para o exercício da memória artificial mais do que a memória natural segundo a noção mneurotécnica da Ars memorativa. Os loci e as imagines dos Exercícios baseiam-se na narrativa das Escrituras. Os loci, por exemplo, consistem uma variedade de locais, sendo cada um apropriado à meditação em questão. Não consistem, como na Ars memorativa, um templo específico, teatro ou cenário semelhante nos quais são colocadas as notae mnemónicas e as imagines, para serem subsequentemente retiradas na altura apropriada. Inácio oferece "pontos" de memória através da linguagem, descreve como imaginar, mas as imagens a ser imaginadas estão ausentes dos exercícios espirituais. A sua insistência na meditação, no teatro de memória tem um objectivo claro: fazer sobressair a imagem pura, a imagem não contaminada, a imagem em completa solidão, a imagem original, a imagem divina. A imagem obtida através da meditação no teatro de memória é a imagem perfeita pois é nela e através dela que Deus se manifestava. A imagem transformar-se-á em linguagem e regressará ao domínio público. O que diferencia a atitude de Inácio, mesmo em relação às formas de devoção do seu tempo, é a passagem da palavra para a imagem visual como um meio de atingir um conhecimento, de um significado extremamente profundo.

Anunciação. Extraído de: NADAL — Evangelicae historiae imagines.

Ainda mais intrigante, os ensinos litúrgicos dos Jesuítas invertem a direcção da meditação mencionada nos Exercícios Espirituais: partir de uma imagem específica, proposta pela própria igreja e não primeiramente "imaginada" pelo crente, para se chegar ao significado litúrgico. Os pontos de partida e chegada foram já estabelecidos por uma dada imagem, mas no meio "abre-se um campo de infinitas possibilidades para o exercitar da imaginação do indivíduo, na maneira como descreve os personagens, os locais e as cenas em movimento"6. Este movimento de memória é melhor ilustrado na supervisão do gravar do livro litúrgico Evangelicae Historiae Imagines [Imagens da História Espiritual] (Antuér pia, 1593) por Gerónimo Nadal (1507-1580), no geral as cenas bíblicas são ilustradas em perspectiva e os leitores têm acesso ao processo de imaginar e relembrar tal como foram praticados por um homem do séc. XVI como Inácio. Um missionário jesuíta, como Matteo Ricci (1552-10), teria que se apoiar no livro de Nadal para demonstrar pedagogicamente a imagem de Deus nos seus ensinos litúrgicos e para assegurar aos Chineses que as histórias sobre Deus são verídicas e que Deus está realmente vivo7. Com objectos memorizados por imagens, a arte dos Jesuítas tem um interesse especial na utilização clássica e mneurotécnica da Ars memorativa para fins religiosos. Em vista de se dar ênfase à comunicação visual, a evolução da perspectiva na pintura desempenha um papel importante para. a difusão da liturgia jesuíta. Particularmente, a ciência da perspectiva, os seus técnicos e técnicas têm uma relação análoga com a composição da imagem visual de Inácio, através da qual na descrição apropriada e fiel da cena bíblica é tida em conta como proveitosa para orientar a vida espiritual do crente. Apesar dos jesuítas nunca terem advogado um estilo próprio de arte para si mesmos,enobreceram teorias e práticas sobre a perspectiva na sua arquitectura e na sua literatura8.

A CIÊNCIA E A TEOLOGIA DA ARTE

A cultura barroca estava intimamente ligada à Contra-Reforma e, em particular, com a ordem jesuíta que aliava a ciência à religião. Ao examinar-se a Igreja Gesù de Roma, a primeira igreja jesuíta concebida pelo padre jesuíta Giacomo Barozzi da Vignola (1507-73), repara-se na forma como os jesuítas ligavam a sua preocupação pela ciência dos efeitos acústicos e ópticos com a apresentação dos seus sermões religiosos. Esta preocupação está espelhada na planta da Igreja de Gesù que estabelecia uma geometria baseada num auditório que derivava duma planta central (a grande escala da cúpula) e a planta da basílica (reduzida, contudo, a uma única nave, sendo os corredores laterais substituídos por capelas). A fachada da Igreja de Gesù de Roma acabou de ser construída por Giacomo della Porta (1532-02) em 1575, e serviu de modelo para inúmeras igrejas barrocas posteriores, incluindo a de S. Paulo de Macau.

Vignola não só estabelecera um modelo jesuíta para a igreja barroca utilizando disposições geométricas, mas explicou igualmente a "perspectiva jesuíta" em 1583: o método distância-ponto da perspectiva linear também conhecido, em termos contemporâneos, por método oficinal. O método distância-ponto dividia as linhas para obter vários entre elas sem definir os pontos de evanescência e podiam ser manipulados para produzir uma perspectiva central unificada sem designar na estrutura pictórica preferida pela perspectiva do ponto evanescente de Alberti. Embora os tratados de Vignola, Regole (1562) e Le du Regole della prospettiva practica (1583), fossem mais práticos que os de Serlio (1537-51), tivesse melhores ilustrações e procedimentos mais claros, o método distância-ponto não conseguia convencer os comentadores italianos, o espectador e a estrutura pictórica. Todavia o método distância-ponto era preferido nos ateliers do Norte da Europa e era eficaz na construção de uma visão cartográfica do mundo na era das Descobertas9.

Através da ciência da perspectiva, os jesuítas conseguiram fazer a ligação do Cristianismo à arte e à ciência, tais como a astronomia e a arquitectura, ordenando o natural e o sobrenatural uma relação geométrica e representando o espaço terrestre e espacial um espaço pictórico. A perspectiva linear foi aplicada a uma corrente de pensamento única que assinalou todo o universo, do infinito ao infinitesimal, tornando-se por isso um constituinte vital do conhecimento total.

Para os Jesuítas foi significativa a descoberta de que o infinito divino podia ser representado num espaço pictórico e finito, sem se definir um ponto de esvanecimento: o trompe-l'oeil insinuava movimento, voo, instabilidade, metamorfose, magnificência e paraíso.

Demonstração da segunda "regola" ou o método distância-ponto. Não existe nenhuma "imagem" na construção, por não existir nenhuma "janela enquadrada" por onde olhar. Extraído de: VIGNOLA — Le due regolle della prospettiva practica, Roma, 1583.

Em La perspective pratiqué par un Parisien, religieux de la Compagnie de Jesus (3 volumes, Paris, 1642-9), Jean Dubreuil declarou uma função eclesiástica jesuíta para dirigir o mundo através de uma ordem de perspectiva. Com Dubreuil "todos os fenómenos naturais e arquitectónicos que podem ser reduzidos a uma perspectiva são reduzidos e todas as formas de mudança visível são submetidas à disciplina geral da perspectiva10. Além do mais, o bom religieux de la Compagnie de Jesus preocupava-se com a aplicação da decoração da perspectiva a todos os aspectos da sua vida, assim como ao teatro. Muito embora o cuidado com que Serlio trabalhava os pontos evanescentes da sua perspectiva pouco tivessem a ver com Vitruvius e mais com a maturação da fase da perspectiva do teatro barroco, abriu, por certo, um domínio por forma a que os jesuítas contribuíssem com as suas ilusões eclesiásticas para a representação teatral do espaço. Com convicção científica na religião, Andrea Pozzo (1642-09), depois de Jean Dubreuil, foi um auto-proclamado "amante da perspectiva" e o seu trompe-l'oeil estonteante condensaram as ilusões eclesiásticas jesuítas como "teatros" do mundo. Os tratados de Pozzo, Perspectiva pictorum et architectorum (dois volumes, 1693 e 1700) incluíam gravuras da sua arquitectura real e efémera. Aos olhos de Pozzo, todo o ponto de ilusão era ser capaz de, miraculosamente, aglutinar o caos distorcido de formas numa revelação coerente quando vistos da posição adequada.

Andrea Pozzo: "Glória de Santo Inácio", igualmente conhecido por "Entrada de Santo Inácio no Paraíso", 1690-94. Fresco, S. Ignazio, Roma.

No seu prefácio, Pozzo anunciou com firmeza que pretendia "com uma resolução marcar todas as linhas até esse ponto verdadeiro, a Glória de DEUS"11. Na concepção teatral de Pozzo, o ponto do infinito no cenário do palco, insinuava os planos oblíquos, espelhava o local privilegiado do camarote real onde a perspectiva do ponto único de visão encarnava a epifania do ideal. No caso da abóbada da nave, A Transmissão do Espírito Divino (1688-94, Roma, S. Inácio), o ponto de perspectiva é na realidade o Filho de Deus que, de acordo com Pozzo, "envia um raio de luz ao coração de Inácio, sendo por este transmitido para as regiões mais distantes dos quatro cantos do mundo"12. Sendo um virtuoso do trompe-l'oeil, dessa famosa perspectiva italiana conhecida por di sotto in su (de baixo para cima), Pozzo trouxe o paraíso até a uns 60 pés da terra como majorem dei gloriam, "para maior Glória de Deus", de acordo com a divisa da Companhia de Jesus. Todo o sistema de perspectiva da dinâmica óptica, à medida que crescia para o seu foco central, servia o âmago radiante da visão e os raios da energia espiritual radiavam para os povos do mundo através dos missionários jesuítas. O termo, Arti del disegno, no qual, muito provavelmente, "Belas Artea" se fundamentou, foi cunhado por Giorgio Vasari (1511-74), que o iniciou como conceito regente para a sua bem conhecida colecção de biografias. A noção de Arte del disegno marcou uma mudança na teoria que encontrou a sua expressão institucional em 1563 quan- do, em Florença, uma vez mais sob a influência pessoal de Vasari, pintores, escultores e arquitectos cortaram as suas anteriores ligações com as associações de artífices e formaram uma Academia do Desenho (Academia del Disegno), a primeira do género que serviu de modelo para as instituições semelhantes posteriores de Itália e de outros países13. A ideia de que disegno podia servir de fundamento da arte e ciência nasceu dos debates entre o platonismo de Florença e aristotelismo de Pádua, no fim do século XVI. Inicialmente, a noção de disegno dirigia-se ao tipo de desenhos que se referia não à aparência das coisas, mas sim à sua selecção e ordenação de acordo com o julgamento do artista e, em particular, à ordenação do corpo humano. Estabelecer-se o disegno como a base para exprimir coisas seleccionadas da natureza permitia ao artista dirigir um olho para a natureza (o real) e o outro para a beleza (o ideal).

A obra L'idea de' pittori, scultori e architetti (Turim, 1607), de Federico Zuccaro, tem sido considerada o fim da literatura renascentista italiana e como odesenvolvimento teorético mais exaustivo da ideia de disegno14. Federico Zuccaro (1542-09) foi o fundador da Accademia di San Luca, de Roma15. Para Zuccaro, disegno (que significa desenho e, mais especificamente, desenho com linhas) dever-se-ia tornar a pedra basilar das artes.

Uma vez estabelecida esta base, as artes (com as suas regras e procedimentos característicos) estariam livres para encontrar o seu lugar entre todas as actividades humanas. Zuccaro definiu uma linha como um "simples linea mento, circunscrição, medida e forma de qualquer coisa real ou imaginária" — como o "corpo adequado" e substância visível do disegno interno. A linha é "simplesmente a operação de formar alguma coisa." "Declara e expressa" uma "imagem ideal" formada na mente e chama-se disegno porque "significa, e mostra aos sentidos e intelecto, a forma da coisa formada na mente e gravada na ideia." A linha fica entre o verdadeiro disegno interno, que é o concetto formado pela alma, e a sua realização nas cores da pintura ou nas pedras da escultura16. Para Zuccaro, o conhecimento não deriva somente da sensação, mas é também necessário a todas as ciências para assumir uma forma sensível.

Pozzo: "Glória de Santo Inácio", pormenor.

Zuccaro pintou a Alegoria do Disegno no tecto de uma das salas de sua casa, a chamada Sala del Disegno. Zuccaro pintou uma alegoria do Disegno marcadamente escorçada e barbada, rodeada de alegorias femininas das três artes do disegno: pintura, escultura e arquitectura. O disegno está aureolado por três grinaldas que simbolizam a unidade tríplice das três artes (uma variante do esquema pessoal de Miguel Ângelo) e vagueia para cima, para uma fonte de luz mais elevada, em direcção à qual parece que ascende. Aqui, há inscrições numa placa: "luz do intelecto e vida de actividades; uma luz a brilhar em três." O disegno caracteriza-se como uma luz, proveniente da luz da graça suprema e divina. Como uma luz para o intelecto, deve ser mais elevada que o intelecto e, ao mesmo tempo, é uma luz que se refracte nas luzes subordinadas da pintura, escultura e arquitectura17. Zuccaro acreditava que o Disegno era a força criativa da mente humana, presente em todas as outras actividades, desde a sensação e conduta da vida até aos êxitos mais maravilhosos da arte e os feitos mais arrogantes da especulação, um espelho da criatividade divina, do mundo ordenado, continuamente trazendo-o para a existência. Não é difícil imaginar que a adaptação que Zuccaro fez da psicologia aristotélica e da ordenação platónica para formular a ideia do disegno para a pintura, escultura e arquitectura tinha implicações mais vastas em termos de pedagogia e propaganda quando apareceu com grande frequência em escritos Contra-Reformistas sobre arte e as suas aplicações18. Naturalmente, os jesuítas abraçaram a ideia do disegno e as suas práticas florescentes das academias fundadas recentemente na Itália. Derivando o intelecto da luz absoluta de Deus, definindo a linha como elemento essencial da ordem divina e codificando o mundo numa hierarquia geométrica, tal ideia disciplinada, construída e quantificável de arte, adaptava-se particularmente à metafísica jesuíta,a lógica da qual Ricci e os seus seguidores podiam também querer modelar as ciências matemáticas e as suas missões.

A ARTE DA CIÊNCIA E DA TEOLOGIA

Matteo Ricci (1552-10), fundador da missão jesuíta na China, foi o primeiro a compreender que para se espalhar a fé Cristã, para aumentar os seus seguidores e, acima de tudo, converter os altos funcionários (os literatos chineses), era necessário apresentar-se não como um missionário humilde que tinha feito votos de pobreza, mas como um embaixador radiante de ciência ocidental19. Ricci estava certo dequese os burocratas-erudi-tos do imperador se convencessem da superioridade da ciência ocidental sucumbiriam inevitavelmente à lógica do cristianismo católico-ro-mano20. Para fazer isso na China, com milhões de almas convertidas a Cristo, significaria a maior vitória cristã desde a conversão do Império Romano. O triunfo do cristianismo sobre o budismo na China podia ser facilmente conseguido através da demonstração do irresistível poder da ciência ocidental fundamentado no catolicismo. Sem hesitações, Ricci fazia-se acompanharde dois importantes livros na China: Evangelicae historiae imagines., de Jerónimo Nadal, para espalhar a palavra de Deus, e Elementos de Geometria, de Euclides, uma cópia anotada ilustrada por um matemático jesuíta, Christopher Clavius (1537-12)21. Tal como todas as ordens missionárias do séculoXVI, os jesuítas temiam que os seus convertidos pudessem interpretar mal as imagens cristãs e adorá-las tal como tinham adorado os seus ídolos. Assim, o objectivo de Ricci era utilizar desenhos e quadros somente como um meio de transmitir mensagens cristãs, especialmente aos literatos que eram incapazes de compreender a expressão verbal do significado divino. O objectivo de Ricci era convencer os chineses através do "realismo" em perspectiva, presente no livro de Nadal através dos seus desenhos, de que Cristo é de facto o Deus "vivo"; e ofereceu aos convertidos imagens"específicas" para imaginar e obter de Deus o significado litúrgico. Infelizmente, Ricci, não era artista e, por isso, era incapaz de demonstrar a perspectiva renascentista e chiaroscuro, e de apresentar a descoberta do disegno das academias recentemente fundadas em Florença e Bolonha.

Após concluir o seu noviciado no mosteiro jesuíta de Coimbra, Giuseppe Castiglione (1688-66) partiu num barco português, seguindo os passos de Matteo Ricci, e chegou a Macau em Julho de 1715, o quinquagésimo quarto ano de K'ang-hsi (1662-22). Quatro meses mais tarde, Castiglione foi apresentado ao Imperador K'anghsi, sob a égide do padre Matteo Ripa (1682-45) cujo conhecimento da língua chinesa permitiu-lhe desempenhar as funções de intérprete e pintor da corte22. Castiglione foi empregado imediatamente como pintor da corte, trabalhando na companhia de pintores chineses e recebeu o nome chinês de Lang Shih-ning.

Pozzo: "O corredor próximo aos aposentos de Santo Inácio", 1680. Fresco, S. Ignazio, Roma. A ilusão da imensidão do espaço é dramatizada pelos efeitos perspectivais nas superfícies lisas das paredes e na leve curvatura da abóboda.

Nenhum jesuíta que se encontrava na China era capaz de enunciar a ciência ocidental tão eficazmente como Castiglione, o discípulo de Andrea Pozzo. Estando empregado na corte, Castiglione conseguiu uma posição privilegiada para demonstrar a ideia do disegno e para incorporar técnicas de perspectiva e chiaroscuro na pintura chinesa. Durante o reinado de Yung-cheng, Castiglione foi assistente de Nien Hsi-yao, Superintendente de Costumes e director dos trabalhos de porcelana em K'ing-tö-chen, na adaptação para chinês do tratado de Andrea Pozzo, Perspectiva Pictorum et Architec-torum, com o título de Shih-Hsüeh (técnicas visuais) que apareceu em 1729 e foi novamente publicado em 1735. No seu prefácio de Shih-Hsüeh, Nie Hsi-yao afirmava que tinha estudado as subtilezas da pintura chinesa — especialmente a criação da ilusão tridimensional com sombras — sob a direcção de Lang Shih-ning23.

Antes da presença de Castiglione na corte, nenhum pintor chinês tinha utilizado o método chiaroscuro na pintura, nem tinha apresentado nenhum efeito da perspectiva renascentista. Uma das muitas diferenças entre as pinturas chinesa e europeia centra-se na compreensão conceptual da linha e das suas funções na representação. Através da apropriação da linha como aparelho conceptual, o desenvolvimento do disegno forneceu à perspectiva renascentista e chiaroscuro um fundamento científico separando a linha como elemento irreduzível de construção geométrica de uma forma essencial de representação pictórica.

Embora as técnicas da pintura tradicional chinesa tenham por base as linhas, esta técnica linear relaciona-se com a caligrafia na qual as linhas são formas essenciais da representação pictórica. A pintura e caligrafia chinesas funcionam na "força" do trabalho do pincel e suas variações de formas-linhas.

Para os chineses, impregnados de ensinamentos tauistas, o termo "natureza-morta" não tem significado. Para eles não existem objectos inanima-dos (incluindo linhas); tudo tem a sua vitalidade e espírito, ch'i-yun, tendo de ser representado na pintu-ra. A função das linhas nas pinturas chinesas não ilus-tra a mesma representação conceptual do realismo renascentista ou do naturalismo barroco. Armado com as ciências da matemática e física, o pintor ocidental seguiu a perspectiva linear, obedeceu ao chiaroscuro procurou desenhar edifícios de acordo com a arqui-tectónica e empenhou-se na exactidão anatómica ao reproduzir figuras humanas. Contrastando com estia atitude, o processo criativo da pintura chinesa correspondia ao processo criativo da mente literária dos literatos.

Uma página do Shixue [Técnicas visuais], de Nian Xi Yao, publicado em 1729 e reeditado em 1735. Perspectiva segundo Castiglione, baseada no livro de Andrea Pozzo. Perspectiva pirtnrum et architectnrum.

Quando, pela primeira vez, os jesuítas apresen-taram as suas pinturas ocidentais ao imperador, este t os seus cortesãos apreciaram o efeito teatral da pers-pectiva apresentado nessas pinturas24. Mas o impera dor Ch'ien-lung, pertencente a uma era posterior, não apreciava as técnicas ocidentais. Mandou que Castiglione aprendesse as técnicas chinesas da pintura e, assim, este veio a criar um estilo completamente novo. Representando objectos e ideias através da arte do disegno e empregando efeitos de perspectiva e chiaroscuro, Castiglione acrescentou algumas técnicas chinesas de trabalho-linha para satisfazer as exigências imperiais25. Em consequência, Castiglione distingue-se na representação da aparência das coisas no estilo do realismo; "as suas obras de arte são poucas"26. Na corte de Ch'ien-lung, o desempenho artístico de Castiglione era mais de um ilustrador do que de um artista. O seu talento e conhecimentos sobre pintura estavam direccionados para a documentação histórica de acontecimentos tais como as Batalhas na Ásia Superior, Kashgaria, Turquestão, Zungars (em 1759 sob o nome de Sin-kiang ou Novo Território), e das cerimónias do imperador casos do famoso pergaminho Mu-lan (0,77x27m) que registava a caçada anual do imperador.

Contudo, antes de Castiglione, os jesuítas não foram capazes de enunciar a ideia do disegno como ofundamento de representação na arte. Embora a obra Images, de Nadal, tivesse sido levada primeiramente para a China por Ricci, nenhum jesuíta fora tão talentoso como o pintor Castiglione na demonstração da ideia do disegno como teoria da geometria da perspectiva na pintura. Através destas técnicas sofisticadas de perspectivas e dos tratados de Pozzo, Castiglione confrontou a concepção chinesa do quadro introduzindo a ciência da arte através da compreensão religiosa que fazia do disegno.

Como arquitecto, Castiglione foi um agente eficaz da arquitectura barroca na construção da secção europeia de Yuan-ming-yuan, Jardim da Claridade Perfeita (1747-60). É interessante reparar por que razão a arquitectura ficou nas mãos de Castiglione, conhecido, antes de mais, como pintor e desenhador. O imperador presumiu que Castiglione possuía as mesmas capacidades dos tradicionais literatos chineses que estavam equipados com um conhecimento impecável sobre a ciência, arte, humanidade e engenharia e eram capazes de interpretar e construir a imaginação do imperador de forma tangível. Para os auxiliar nesta obra, os jesuítas pediram à Europa várias obras de arquitectura, entre as quais Le premier volume des plus excellents batiments de France (1576-9), de Jacques Androuet Du Cerceau (1520-84?), três versões (latim, francês e italiano) da obra De Architectura, de Vitruviu, e outros tratados sobre construção27.

Os palácios da secção europeia de Yuan-ming-yuan tiveram início em 1747 tendo por base os desenhos de Castiglione cujo conhecimento da "arte do disegno" e ideia da geometria de perspectiva fundamentou o posicionamento das figuras e esquemas alegóricos nos edifícios: um processo idêntico aos seus procedimentos de construção de perspectivas lineares28.

Castiglione: "Cem cavalos", pormenor. Pintura em seda, 94,5x776,2 cm, Museu Nacional de Taipé. A obra exemplifica o uso do efeito claro-escuro (chiaroscuro) na representação das sombras, técnica nada tradicional na China.

Os projectos apresentados por Castiglione ao imperador eram de um barroco fascinante. A partir das ruínas e dos fragmentos decorativos que ainda se pode ver em Yuan-ming-yuan e nalguns jardins de Pequim, pode-se dizer que Castiglione deve-se ter inspirado na arquitectura barroca italiana. Algumas das fachadas com as suas linhas curvas e as suas enormes volutas sobre os portais e janelas fazem lembrar os edifícios borrominescos, de palácios genoveses do fim do século XVI29. "Globalmente, a influência francesa é menos aparente" quanto à arquitectura, mas bastante evidente na paisagem, com referência a Versalles, como modelo europeu30. No processo de construção, a tarefa mais difícil foi a instalação da maquinaria teatral, especificamente os espectáculos de trabalhos hidráulicos. Castiglione recorreu a Benoist para projectar e construir os espectáculos dos trabalhos hidráulicos, uma vez que Ch'ien-lung exigira palácios "iguais aos dos bárbaros europeus" no meio de uma multitude de jactos de água, cascatas e repuxos31.

Castiglione: "Mulan IV, Qianlong caçando veados". Pintura em seda, 0,77x27 m, Museu Guimet, Paris.

O jardim de Yuan-ming-yuan compreendia três recintos. No primeiro, ficava o Hsieh-ch'i-ch'u (Palácio do Deleite e Harmonia). Este edifício, afirmou o jesuíta francês, "podia-se comparar ao castelo de Versalles e Saint-Cloud"32. Todo em mármore e majólica, com motivos coríntios, flanqueado por dois pavilhões ligados por uma galeria de vidro — pavilhões que se destinavam a músicos. Mas o que. mais encantou o imperador foi um complexo de repuxos. A partir da sua janela, sentado no seu trono e rodeado pelas suas concubinas, o imperador podia contemplar os jactos de água que saíam de ovelhas e gansos selvagens de bronze. Uma ponte e repuxos abriam caminho para um segundo recinto onde havia um labirinto e um quiosque central, todo em mármore. Este labirinto europeu chamava-se o Hua-yuan (Jardim de Flores). No dia da Festa das Lanternas, o décimo quinto dia do oitavo mês, o imperador organizava uma corrida de lanternas para as raparigas do palácio. Cada uma transportava uma lanterna amarela de seda com uma vela acesa na sua ponta. A primeira a chegar ao quiosque recebia um presente do imperador. No centro, subia o Hai-yen-t'ang (Palácio do Mar Calmo), assim denominado devido ao grande reserva-tório existente no terraço para abastecer os repuxos e cascatas. A arquitectura do edifício, apesar dos muitos pormenores barrocos, inspirava-se no palácio de Versailles e no de Trianon (1670-87) que eram, ironicamente, considerados palácios de "estilo chinês" na Europa33. Ch'ien-lung apreciava particularmente o extraordinário relógio de água que decorava a base da enorme escadaria. Foi um grande projecto para o padre Benoist: doze animais do zodíaco chinês: um rato, um touro, um tigre, uma lebre, um dragão, uma cobra, um cavalo, uma cabra, um macaco, um galo, um cão e um porco cuspiam água, um após o outro, durante uma hora. Só ao meio-dia é que a água saía de todos ao mesmo tempo. Castiglione construiu ainda outros pavilhões, casos do Hsu-shui-lu (Casa para se juntar as Aguas) que escondia a máquina hidráulica. As paredes do Yang-ch'ueh-lung (Aviário) eram cobertas com pinturas de barcos e faisões. Era aqui que se criava os pavões e outras aves raras. Para este edifício, Castiglione desenhara uma porta em ferro forjado representando um quebra-cabeça e cujo trabalho de fundição foi muito elogiado pelo imperador.

"Os locais criados pelo espírito e guardados por Deus proporcionam ao rei um espaço para passear e descansar."34 Foram estas as palavras escritas pelo imperador Ch'ien-lung para resumir a extrema beleza do Yuang-ming-yuan depois de construído. E óbvio que tudo nestes edifícios foi feito com o objectivo de se admirar os efeitos teatrais: motivos arquitectónicos vazios de todo o sentido, uma profusão barroca de ornamentos supérfluos. As pilastras de mármore branco contrastavam com as paredes de tijolo cobertas de argamassa vermelha. A grande variedade de cores faz lembrar certos palácios italianos ou portugueses, mas os telhados cobertos com telhas amarelas, azuis ou verdes respeitavam a tradição chinesa. Composto como era, o efeito global era, todavia, elegante. Era impossível, como afirmavam os jesuítas, não "admirar a arte com a qual esta irregularidade foi executada"35.

Quando as tropas franco-britânicas, comandadas pelo Lorde Elgin e pelo General Cousin--Montauban, pilharam os Palácios de Verão em 1860, os soldados encontraram uma grande quantidade de jóias, caixinhas de rapé em ouro, pratos cristalizados, serviços de mesa e roupas sumptuosas que eles próprios vestiram. Foi uma festa selvagem. Os soldados divertiram-se com as notáveis colecções de autómatos que tinham sido oferecidas aos imperadores pelos soberanos ocidentais. "A segunda noite que passámos no Palácio de Verão foi impossível, louca, vertiginosa", escreveu o Conde d'Herisson no seu diário."Todos os tropas tinham o seu próprio pássaro, caixa de música, despertador e coelho... as campainhas tocavam em todo o lado."36 A pilhagem durou dois dias e terminou com um incêndio. Os soldados delirantes arrancaram as tapeçarias bordadas a prata para tentarapagar o fogo37. Desta forma, o palácio das Noites daArábia dos imperadores da China e os seus curiosos brinquedos, macacos, dançarinas, coelhos tocadores de pratos foram todos queimados, enquanto que os pássaros canoros chilreavam loucamente dentro das suas gaiolas douradas. Até a memória dos edifícios dedicados aos requintes do prazer desapareceu. A única coisa que ficou para servir de testemunho desta grandeza foi um conjunto de vinte pratos de cobre feitos em 1786 por dois alunos de Castiglione sob a supervisão do imperador.

Facsímile de um desenho do Yuan Ming Yuan (Palácio Ocidental), por Castiglione.

Em 5 de Agosto de 1774, a notícia de que o Geral dos jesuítas, padre Laurent de Ricci, tinha sido preso e do decreto papal que dissolvia a Companhia de Jesus chegou à China. Os missionários estrangeiros nunca mais conseguiram atingir posições privilegiadas como as que os jesuítas tinham ocupado na corte imperial. Durante o século que se seguiu, os europeus recorreram a métodos muito diferentes para impor o seu querer: o canhão substituiu o sermão.

Xie Qi Qu (Palácio do Deleite e da Harmonia). Colecção de gravuras, Bibliothèque Nationale. Paris.

Hai Yan Tang (Palácio do Mar Calmo). Colecção de gravuras, Bibliothèque Nationale. Paris.

Hua Yuan (Jardim das Flores). Colecção de gravuras, Bibliothèque Nationale, Paris

EPÍLOGO

Os historiadores gostam de colocar esta questão: em que é que o ocidente contribuiu realmente para a civilização do Oriente, especialmente China, nos últimos três séculos? Em Science and Civilization in China, Joseph Needlham referiu que os jesuítas trouxeram para a China quatro princípios de engenharia: l) o parafuso na forma do elevador de água de Arquímedes, 2) a bomba de força dupla ctesibiana para líquidos, 3) o eixo de manivela e 4) o mecanismo de relógio38. Em The Heritage of Gitto's Geometry, Samuel Y. Edgerton sustentou que os jesuítas apresentaram aos chineses o chiaroscuro renascentista e a perspectiva linear que democratizaram as capacidades e os conhecimentos técnicos da Europa39. De facto, as diferenças entre Needlham e Edgerton têm uma base comum na perspectiva de que os reinos visíveis da tecnologia e ciência se tomam ambos num importante contraste e ligação entre o Ocidente e o Oriente. As suas diferenças reflectem o desenvolvimento antropocêntrico do pensamento arquitectónico e as suas práticas no Ocidente, especificamente ao reconhecer o poder do desenho como processo epistemológico. Independentemente das discussões metafísicas entre os ideais de Aristóteles e de Platão, o Ocidente foi capaz de representar o conceptual no domínio do perceptivo e de transformar o invisível no reino do visível através dos processos do desenho desenvolvidos pelo pensamento arquitectónico. No caso das invenções de máquinas, o desenho concebeu a experiência e a formação de ideias. Por exemplo: no século XVII, o tratado de Francesco di Giorgio Martini (1439-01), contendo desenhos destas máquinas experimentais (que chegaram a pertencer a Leonardo), foi o livro de engenharia mais influente em toda a Europa Ocidental, sendo que os jesuítas espalharam as suas ideias contidas nos desenhos na China. Através da demonstração do desenho, um objecto e as suas peças podem ser definidas por sequências espaciais, controlado por ordens geométricas e medido por escalas projectivas. Sem a invenção do desenho, os quatros princípios de Needlham teriam dificuldade em conseguir alguma invenção ou avanço técnico. Sem a ciên-cia do desenho, disegno, a perspectiva linear e o chiaroscuro poderiam somente produzir efeitos "realistas" e não teriam tanta influência como proclamava Edgerton. Sem a construção da secção europeia do Yuan-ming-yuan, a ciência e a arte do disegno talvez não tivessem sido semeadas no solo da China. Devido a uma coincidência histórica, os jesuítas apadrinharamo desenvolvimento barroco do pensamento arquitectónico, especialmente a ideia do disegno como a fonte das artes, levando-o para a China como importação teológica e científica.

Como é que Macau se toma num testemunho das ligações entre o Oriente e o Ocidente? Sustento que Macau tem sido "um teatro barroco do mundo" no qual o poderio marítimo português transportou os agentes do pensamento barroco que favorecia a conceptualização do mundo como um sistema divino exibido, visualizado e manifestado por ordens arquitectónicas. O drama histórico dos jesuítas insinua a crença de que a arquitectura era tida não só como uma profissão, mas também como uma disciplina que inquiria os vários modos de pensamento. O argumento deste drama consiste em tratados vitruvianos através dos quais os jesuítas admitiram que a arquitectura falava a língua pela qual Deus inscrevera inicialmente as Suas leis naturais do universo. A história toma-se presente quando a arquitectura fornece o seu palco. O que resta da Igreja de S. Paulo serve de palco que continua a lembrar-nos um episódio incompleto de ligações Ocidentais e Orientais.

Nota do autor: uma versão desta comunicação foi apresentada no seminário e exposição em Macau, intitulada "A Sedimentação do Lugar", realizado a l de Abril de 1994, na Fundação Oriente.

(Traduzido do Inglês)

NOTAS

1 Consultar Manuel Teixeira, "The Church in Macao" in Macao: City of Commerce and Culture, ed. Adolf Dieter Cremer (Hong Kong: UEA Press, 1987),43.

2 E. H. Gombrich, The Story ofArt (Londres: Phaidon Press, 1950), 290.

3 Para uma hermeneutica de S. Inácio de Loyola usando uma nova tradução dos seus Exércícios Espirituais, o seu diário Espiritual, a sua Autobiografia e várias das suas cartas, consultar António T. de Nicolas, "Ignatius de Loyola: Power oflmagining", com Prefácio de Patriek Heelan, S. J. (Albany: State University of New York, 1986), 116.

4 Ibid. 125.

5 Para um debate mais aprofundado, consultar René Taylor, Hermetism and Mystical Architecture in the Society of Jesus, no cap. "Baroque Art: The Jesuit Contribution", ed. Rudolf Wittkower e Irma B. Jaffe (New York University Press, 1972) 63-97. Frances A. Yates, Mediaeval Memory and the Formation of Imagery, no cap. "The Art of Memory" (Chicago: University of Chicago Press, 1966), 82-104.

6 Italo Calvino, Visibility, no cap. "Six Memos for the Next Millen-nium" (Cambridge: Harvard University Press, 1988), 86.

7 Para um debate sobre a utilização de Ricci das Imagens de Nadal, consultar Jonathan Spence, The Memory Palace of Matteo Ricci (Nova Iorque: Penguin Books, 1984), 62-3.

8 Consultar Rudolf Wittkower, Problems of the Theme, no cap. Baorque Art: The Jesuit Contribution, 1-15.

9 Consultar Utpictura, ita visio, capítulo de Svetlana Alpers, The Art of Describing: Dutch Art in the Seventeenth Century (Chicago: Universidade de Chicago, 1983), 26-71.

10 T. E. Lawrenson, The French Stage and Playhouse in the XVIIth Century: A Study in the Advent of the Italian Order (Nova Iorque: AMS Press, 1986), 178.

11 Andrea Pozzo, Perspective in Architecture and Painting (Reimpressão não resumida da edição inglesa-latina da Perspectiva Pictorum et Architectorum de 1693), Nova Iorque: Dover, 1989.

12 Kemp, 139.

13 A compreensão comum do disegno era referida como a "ciência" da arte do desenho, não se devendo confundir com o termo inglês "desenho" do final do século XVIII. As Academias de Desenho/Artes seguiram o padrão das Academias de Letras que existiam já há algum tempo e substituíram a antiga tradição oficinal com um tipo regular de instrução que incluía disciplinas científicas como a geometria e a anatomia. Consultar Paul Oskar Kristeller, Renaissance Throught and the Arts, edição alargada (Princeton: Princeton University Press, 1990), 182.

14 David Summers, the Judgement of Sense: Renaissance Naturalism and the Rise of Aesthetics (Cambridge: Cambridge University Press), 1987.

15 Zuccaro não era um grande pintor. Ao contrário do seu irmão Taddeo, "Sente-se que a abordagem de Frederico à sua arte era conceptual, de um intelectual e teórico; para ele, a pintura e o desenho não eram um meio natural e inevitável de expressão, mas o seu ponto de partida era uma ideia abstracta em redor da qual, por assim dizer, desenhava uma linha." Consultar Mundy, E. James, Renaissance into Baroque: Italian master drawings by the zuccari, 1550-1600 (Milwaukee: Milwaukee Art Museum, 1989), 9.

16 Summers, 300.

17 Summers, 285.

18 Summers, 299.

19 Para um debate sobre as primeiras missões dos Jesuítas na China, consultar Jonathan Spence, The Memory Palace of Matteo Ricci.

20 Para um resumo, consultar Charles Boxer, "Jesuits at the Court of Peking", History Today (May 1991): 41:7.

21 Christopher Clavius era um matemático eminente no Collegio Romano jesuíta de Roma a quem fora pedido que confirmasse as alegações de Galileu. Clavius foi o primeiro a aceitar o telescópio como instrumento científico e frisou que as suas revelações já não podiam ser ignoradas. O curso do conflito entre cosmologias geocêntricas e heliocêntricas foi alterado definitivamente pelo telescópio. Clavius analisou e traduziu os Elementos de Geometria, de Euclides, para latim em 1574. Reformou igualmente o calendário denominado em honra do papa, Gregório XIII, entrando em vigor na Europa em 1582.

22 Matteo Ripa, um jesuíta italiano que chegou à China em 1708 e que estava na corte do imperador K'ang Hsi, foi enviado para o palácio e jardins de Verão do imperador em Jehol para executar 36 gravuras da propriedade imperial. Em 1713, o seu registo autêntico dos enomres e profusos jardins imperiais deve ter chegado no momento mais oportuno à Europa para o "estilo chinês". Regressando a Nápoles, fundou o colégio para chineses em 1732. Consultar Patrick Conner, Oriental Architecture in the West (Londres: Thames and Hudson, 1979), 42. Era comum aos jesuítas serem empregados pela corte. Em 1743, havia vinte e dois jesuítas em Pequim: dez franceses e doze portugueses, italianos e alemães. Sete destes vinte e dois jesuítas estavam empregados ao serviço exclusivo do imperador e os restantes estavam relacionados com actividades da corte. Consultar Cecile e Michel Beurdeley, Castiglione, peintre, jésuite à la cour de Chine[Giuseppe Castiglione: Um pintor jesuíta na corte dos imperadores chineses] (Rutland: Charles E. Tuttle Company, 1971), 45.

23 Beurdeley, 37.

24 No final do período Ming, o catolicismo enraizou-se na China pela primeira vez. Em 1600, o vigésimo oitavo ano do reinado do imperador Wan-Li, da dinastia Ming, o padre Matteo Ricci ofereceu uma lembrança ao imperador, juntamente com vários presentes da igeja, incluindo quadros de Jesus Cristo e da Virgem Maria. Foram estas as primeiras pinturas ocidentais a aparecer na corte da China. Pessoas que observaram estas pinturas registaram que "as faces e roupas pareciam reflexos num espelho; estas imagens parecem mexer-se como se estivessem vivas; o efeito altamente representativo fica muito além da capacidade de qualquer pintor chinês". O método do chiaroscuro e técnicas da perspectiva nas pinturas ocidentais têm a vantagem de apresentar com êxito a aparência exterior, enquanto que as técnicas tradicionais da pintura chinesa tendem a trabalhar a ressonância e espírito interior do objecto (a coisa em si).

25 Consultar George Robert Loehr, Giuseppe Castiglione (1688-1766): Pittore di Corte di Ch'ien-lung, Imperatore della Cina (Roma: Istituto Italiano per il Medio er Estremo Oriente, 1940), 37-8.

26 "Os cavalos e flores pintados por Giuseppe Castiglione são exactamente como a realidade: são uma fotografia; não têm o espírito nem o ritmo da pintura chinesa... Se estudava a pintura chinesa era para facilitar a expansão da sua religião e tal facto é de louvar. Embora tenha permanecido em Pequim durante cinquenta anos, nunca aprendeu a escrever chinês. Essa é a razão por que as imagens dos santos que pintou para as igrejas de Pequim e seus subúrbios não são assinadas por ele. As assinaturas que apresentam em caracteres chineses não foram feitas por ele. A sua pintura não influenciou a pintura chinesa." Prelecção feita pelo Arcebispo Lo Kuang por ocasião da exposição das pinturas de Castiglione; um excerto do Central Daily, 16 de Maio de 1969, Beurdeley, 152.

27 Consultar Beurdeley, 66-67 e Loehr, 78.

28 Para uma descrição destes instrumentos de perspectiva, consultar Maurice Adam, Yuen Ming Yuen: L'ouvre Architecturale des Anciens Jesuits au XVIII Siècle (Pei-ping: Imprimerie des Lazaristes, 1936).

29 Consultar Osvald Sirén, The Imperial Palaces of Peking (Paris: G. vanOest, 1926; NovaIorque: AMSPress, 1976),47.

30 Loehr, 86.

31 Michel Benoist estudou astronomia em Paris. Projectou e construiu as máquinas hidráulicas e as fontes em Yuan--ming-Yuan. Morreu em Pequim após tomar conhecimento da extinção da Sociedade de Jesus.

32 Beurdeley, 68.

33 Em 1670, apareceu, como que por magia, o primeiro edifício de uma nova espécie — um palácio ao estilo chinês. Louis XIV compara a pequena povoação de Trianon, a noreste do seu palácio em Versailles — Pavillion de Porcelaine, vindo a ser demolido em 1678 porque era demasiado pequeno até mesmo para uma festa. Mas, se se olhar para as gravuras, o Pavillion de Porcellaine não parece nada "chinês". O Trianon localizava-se simetricamente relativamente a outra parte exótica e por isso "maravilhosa" do jardim, a Ménagerie dos animais exóticos (na qual Claude Perrault relaizou as dissecações lúgubres). Assim, o tom elevado de Versailles era aliviado pelas maravilhas da Meénagerie e aporcelana Trianon, embora este último pouco lembrasse o seu modelo: o pagode de porcelana de Nanking da autoria de Nieuhoff. Consultar Jospeh Rykwert, The First Moderns: The Architects of the Eighteenth Century (Cambridge: MIT Press, 1980), 55-7, e Conner, 19-22.

34 National Palace Museum, Collected Works of Giuseppe Castiglione (Taipé, 1983), 12.

35 Beurdeley, 74.

36 Idem.

37 Idem.

38 Joseph Needlam, Ho ping-yu, Lu Gwei-Djen e Wang Ling. Science and Civilization in China, vol. l (Cambridge: Cambridge University Press, 1954), 241-3.

39 Samuel Y. Edgerton, Jr., The Heritage ofGiotto's Geometry

(Ithca: Cornell University Press, 1991).

*Doutorado em Arquitectura, pelo Instituto de Tecnologia da Geórgia; professor da Faculdade de Arquitectura, da Universidade Estatual de Nova Iorque, em Búfalo. Membro da Academia Mundial de Arte e Ciência, investiga, actualmente, & perspectiva como criação do Barroco, sendo o presente ensaio parte da investigação.

desde a p. 179
até a p.