A Missionação

MACAU E A ARTE DA COMPANHIA DE JESUS NA CHINA

Gonçalo Couceiro*

Página anterior: Crucifixo. Trabalho sino-português, séc. XVII. Madeira, prata e marfim, 82x58 cm D. M., Igreja de S. Lourenço, Pr. S. 50 Extraído de: As ruínas de S. Paulo: um monumento para o futuro.

l. A ORIGINALIDADE DA OBRA ARTÍSTICA EM S. PAULO DE MACAU

No campo da arte missionária da Companhia de Jesus no Oriente, e particularmente na China, a importância do estudo da sua obra artística em Ma-cau evidencia-se, para além de outras razões, no fac-to de a Igreja de S. Paulo e a sua fachada terem sido construídas de 1601 a 1644. Ora a primeira metade do século XVII é, simultaneamente, o grande período do cristianismo na China e a época do movimento de construção desenvolvido pela ordem inaciana.

A Companhia de Jesus, ao serviço do Padroado Real Português, tomara Macau, desde 1565, como base das operações para a sua penetra-ção na China. Quando se constrói (1601-1644) a Igreja do Colégio da Madre de Deus de Macau, dedicada a Nossa Senhora da Assunção, a Compa-nhia de Jesus entrava em Pequim, estava-se nos últi-mos anos da dinastia Ming e Portugal, até 1640, viveria sob domínio espanhol.

A cidade de Macau era animada pela corrida ao comércio marítimo no Extremo Oriente, corrida onde estavam também, para além de Portugal, a Es-panha, a Inglaterra e os Países Baixos.

O Colégio da Madre de Deus, ou de S. Paulo, era então um importante centro missionário e um pólo cultural que protagonizou uma experiência ex-traordinária e irrepetível de contacto entre as civili-zações europeia e chinesa.

Esta fundação jesuíta de Macau está na origem do que é hoje um impressionante monumento, a Facha-da de S. Paulo, considerado simultaneamente a obra--prima e o auge da arte cristã no Extremo Oriente.

A singularidade da fachada da Igreja do Colé-gio da Madre de Deus justifica plenamente que se proceda ao seu estudo em pormenor, não apenas pelo seu valor arquitectónico formal, mas também, necessariamente, em função da escadaria ainda hoje existente, que extravasa o simples carácter de obra de arte religiosa (missionária) para se afirmar, no conjunto, como uma incisão no plano urbanístico duma cidade nascente.

Para lá dos motivos que adiante exporemos, pareceu-nos premente proceder já a uma aturada in-vestigação sobre o tema proposto em título. Cremos poder, em breve, apresentar documentos do maior interesse para o estudo da Igreja de S. Paulo no con-texto da arte da Companhia de Jesus na China1.

A importância desse estudo aprofundado quanto a Macau assume, em nosso entender, maior dimensão se considerarmos que a fachada da antiga igreja do colégio dos jesuítas apresenta uma origina-lidade incontestável, e é simultaneamente um ele-mento conotativo importante do programa de adap-tação gizado pela Companhia de Jesus com vista à propagação do Santo Evangelho na China.

Nestas circunstâncias, a relação Arquitectura--Retórica aí enunciada conduziria a uma apresenta-ção de nova iconografia no discurso da arte religiosa após o Concílio de Trento (1545-1563). O que mais se acentua pelo recurso, nesta obra, a soluções cons-trutivas e decorativas de raiz oriental.

Também devemos salientar que os edifícios construídos pelos jesuítas na China, onde a arte orien-tal e a arte ocidental estão combinadas, permanecem ausentes dos livros e manuais de história da arte dos séculos XVII e XVIII.

De uma forma pertinente esta mesma questão foi já colocada, acerca dos Palácios Europeus na Corte da China, construídos segundo os planos do jesuíta Giuseppe Castiglione (1688-1766) no Yuan Ming Yuan, pelo facto de constituírem um "compro-misso" estético de algumas normas estruturais e construtivas chinesas com "uma arquitectura pensa-da e decorada à ocidental por artistas-missionários". Listo levou a que Daniel Rabreau e Marie-Raphaël Paupe se interrogassem acerca dos Palácios Euro-peus de Pequim, tratando de saber se estamos peran-te "um estilo original ou Gostos Reunidos".

Estes autores concluíriam2, afirmando que o programa ditado pelo Imperador Qianlong (em 1747) e entregue à criatividade dos próprios missio-nários, longe da emulação criativa das cortes e cida-des europeias, mostra a enorme "inventiva" e origi-nalidade artística da obra.

Já anteriormente Delatour havia dito que a ar-quitectura, tal como é praticada na Europa, desconhe-cia os termos para o designar o que os missionários chamavam, na China, "a arquitectura à europeia". E propunha que esta se classificasse como de estilo "Italo-Gótico-Chinês", embora a maioria dos especia-listas, mesmo até neste século, viessem a considerar estas obras como "um compromisso deplorável entre o gosto europeu e a estética chinesa".

Para o caso da Igreja de S. Paulo, em que a sua ausência das histórias da arte tradicionais é um facto, os estudos e pesquisas já realizadas e a reali-zar deverão permitir o melhor entendimento dos fenómenos que deram origem a estes invulgares ob-jectos artísticos. Os novos estudos terão de ser leva-dos para além do domínio da arquitectura compara-da (sem dúvida de interesse) na procura da renova-ção dos métodos de análise em História da Arte.

A numerosa documentação publicada ao lon-go deste século, cujo conhecimento se deve aos es-forços de Charles Boxer, José Maria Braga, António da Silva Rego, Manuel Teixeira, Videira Pires e Pasquale D'Elia, entre outros, veio a permitir já a elaboração de alguns estudos e obras de pesquisa histórica respeitantes ao templo jesuíta em Macau.

Estão neste caso duas obras bem conhecidas:"The Church of St. Paul in Macau" da autoria de Monsenhor Manuel Teixeira3 e o artigo do Professor Hugo-Brunt "An Architectural Survey of the Jesuit Seminary Church of St. Paul's Macao"4 que, com o evidente mérito do pioneirismo, pela recolha docu-mental e gráfica que trazem à luz e pelas pistas apontadas, não esgotam contudo as numerosas ques-tões que se levantam sobre esta obra de arte, a come-çar mesmo pela verdadeira autoria dos planos de construção e outras problemáticas de natureza iconográfica.

2. A FUNDAÇÃO JESUÍTA DE MACAU E A ENTRADA DOS MISSIONÁRIOS NA CHINA.

A concessão da península de Macau a Portu-gal teria sido a consequência da ajuda prestada aos Chineses, por cerca de quinhentos portugueses, no combate à pirataria que infestava os mares do Sul da China5, a que se juntaria o facto de Leonel de Sousa ter conseguido um assentamento, em 1553-54, em Guang Hai, na província de Cantão, com o intendente marítimo deste porto.

A partir daí os portugueses gozaram de per-missão para ir à feira de Cantão (Guangzhou), onde beneficiavam de uma taxa mais baixa do que a nor-mal e ficando mesmo isentos os navios de guerra.

Desde as primeiras décadas de existência da incipiente colónia criou-se um próspero movimento comercial, assente, em parte, no contacto bianual com a cidade de Cantão, onde eram trocadas espe-ciarias por seda chinesa.

Anualmente, partia de Macau para o Japão a "Nao do Trato", sobretudo carregada de seda, que aí era finalmente convertida, quase na totalidade, em prata em lingotes. Alto risco para fabuloso lucro.

Ao fim de algumas décadas (c. 1630) Macau contava já com oitocentos e cinquenta portugueses, com os seus filhos "os mais fortes e vigorosos do que outros no Oriente"6. Os portugueses ricos vi-viam rodeados de escravos, alguns chineses e os seus "jurubassas" (tradutores). A prosperidade local devia-se fundamentalmente às viagens anuais do Ja-pão, mas também saíam navios para Manila, Solor, Coreia e outros destinos, com relevo para Goa.

Foi com a criação deste estabelecimento no Sul da China que Portugal tomou o lugar de pioneiro nas relações entre a Europa e o Extremo Oriente, no tempo do grande passo da abertura do comércio ex-terno da China, nos finais da dinastia Ming. Os Portu-gueses tiveram lugar neste marco de primeira impor-tância no comércio mundial dos tempos modernos.

A descoberta acidental do Japão por aventu-reiros portugueses, em 1542-43, veio a beneficiar grandemente Macau. A ocupação deste porto, depois de 1557, pelos portugueses, proporcionou umabase segura para o comércio, assente nos itine-rários entre Goa-Malaca-Macau-Cantão-Nagasáqui.

Ao ritmo do crescente poderio co-mercial, chegam à cidade o clero secular e as várias ordens religiosas, para prestar assistência espiritual à população cristã, europeia ou asiática. Por outro lado, as ordens religiosas fixavam-se nas feitorias e cidades do Oriente onde os portugueses, ou espanhóis tinham o seu comércio, com o objectivo maior de catequizar as populações.

Neste movimento chegaram a Macau os jesuítas, os fran-ciscanos, os dominicanos, os agostinianos e as clarissas que, desde os começos da cidade, ainda que em situação precária, visa-vam a conquista espiritual da Chi-na, a par da obra de assistência à população, o que notavelmente de-senvolveram.

À Companhia de Jesus — uma ordem secular nascida em 1540, com a aprovação do papa Paulo III, e chamada a Portugal por D. João III para se ocupar da evangelização das Índias -- caberia o proe-minente papel do apostolado na China, quer no pla-no religioso, quer no científico e cultural.

Os membros da Companhia estão em Macau desde os primeiros anos da sua fundação, primeiro de passagem com destino ao Japão, ou daí regres-sando. Mas, no espírito dos seus elementos a preo-cupação fundamental era, desde 1552 (ano da morte de S. Francisco Xavier), fazer entrar o cristianismo na China.

Com a embaixada régia de Gil Góis, chegada a Macau no dia 29 de Junho de 1563, vêm os padres Francisco Perez, Manuel Teixeira e o irmão André Pinto7, "para se fazer o mesmo que se pretendeo de fazer no tempo que foy para lá o Pe. Mestre Francisco" [Xavier] segundo o testemunho do Visitador das missões para o Oriente, P. Ale-xandre Valignano.

Estes três membros da Companhia de Jesus integravam-se numa embaixa-da feita por determinação do rei dePortugal e preparada pelo vice-rei da Índia, D. Francisco Coutinho, que não teria conseguido os seusobjectivos, crê-se, por D. Fran-cisco de Eça, o capitão de Ma-laca, não a ter prendado con-dignamente.

Para os três jesuítas as directivas chegam em breve, depois do fracasso da missão diplomática; o padre provincial da Índia, António Quadros, or-dena-lhes em 1565 que se es-tabeleçam em casa própria, pelo que deixaram as depen-dências que ocupavam na re-sidência de Pero Quintero.

Santo jesuíta (Santo Inácio de Loiola ou S. Francisco de Borja?). Trabalho português de influência oriental, séc. XVII. Madeira com vestígios de carnação, policromia e douramento, 173x69 cm M. M., Inv. 108 Extraído de: As ruínas de S. Paulo: um monumento para o futuro.

Com isto criava-se o primeiro "hospício", ou casa própria da Companhia de Je-sus, em Macau, pelas vanta-gens de se dispor de residênciacerta: quer para nela estarem os mis-sionários da Missão do Japão, enquanto aguardavam partida para Goa ou para o arquipélago Nipónico, quer pelo facto, mais próximo, de se poder ter uma base para organizar a futura instalação dos missioná-rios da Companhia na China.

A primeira residência jesuíta em Macau resu-mir-se-ia a "Huas casinhas térreas", com divisórias de madeira e constava ainda de uma pequena capela, em palha, que contava habitualmente com dois pa-dres e um irmão, a quem os padres de passagem para o Japão prestavam apoio. O primeiro superior desta casa foi o padre Francisco Perez8, ainda que por escasso período.

A primeira capela viria a arder, acidente que se repetiria, tal como noutras igrejas de Macau, por exemplo as de S. Lourenço e de St. º António.

O desenvolvimento da missão dos jesuítas em Macau foi célere. A ajuda na educação dos filhos dos comerciantes portugueses viria a instituir-se em escola de primeiras letras (primarum litteratum scholam), pequena, erigida junto à residência da Companhia de Jesus, em 1572. Mais tarde, pela ne-cessidade de atender à missão do Japão e à formação do respectivo clero, assistimos à criação dum colé-gio, em 1592, que seria elevado a colégio de estatuto universitário9.

Mas o principal objectivo era a entrada dos missionários na China, o que se tentava mais direc-tamente com as viagens bianuais à feira de Cantão. Em 1575 o padre Cristóvão da Costa demora-se cer-ca de dois meses em Cantão mas não consegue a permissão desejada, o que se atribui ao facto de os chineses terem considerado a presença de estrangei-ros no seu país como perturbadora dos seus interes-ses.

Seria a ousadia de um homem, o P. Alexan-dre Valignano (1539-1606), Visitador das Índias, que apontaria o caminho para se conseguir a fixação dos jesuítas na China.

Depois de ter estado na Índia de 1575 a 1577, Valignano chega a Macau em Agosto de 1578. De imediato reconhece a impossibilidade de abrir as "portas" da China aos missionários sem que estes saibam primeiro as "letras chinesas". Pede então a Goa um padre para se dedicar exclusivamente a tais estudos, sem se ocupar de outra tarefa.

O Provincial da Índia envia-lhe Miguel Ruggieri mas, quando chega a Macau em 1579, já Valignano havia partido para o Japão. Deixava, po-rém, uma mensagem escrita ao recém-chegado: or-denava-lhe que iniciasse imediatamente a aprendiza-gem do chinês.

O padre Ruggieri, se bem que desencorajado ao princípio, entrega-se ao cumprimento da ordem recebida, de que dependia inteiramente o êxito da sua missão.

Uma casa de catecúmenos é criada para o tra-balho deste missionário, o Catecumenado de São Martinho de Tours, com uma pequena capela, para instrução dos neófitos, onde Ruggieri vivia com os chineses.

Esta experiência é assim relatada por um seu confrade10:

"Ma il P. Ruggiero con la prudenza e piacevolezza del suo tratare ad ogni cosa provide; e di qua prese occasione di ragionar con molti chini com lor gusto; e particolarmente col Prefetto delle marine, che Haitao chiamano; soto al quale tutti li mercanti forestieri, e le mercantie, che passano al Cantone [...]

Non poco operó questa stretta amicitia co' Magistrati a persuader loro l'eccelenza dela Religione nostra, poiché dopo non furono pochi quelli i quali li portavano le vetovaglie a Macao, che riciverono il Battesimo. Ond'avvenue, che essendo cresciuto il numero de Cathecumeni, com l'elemosina de' Portughesi, fu nel vicino colle, appresso alla nostra Chiesa fabricata una casa ed una Chiesiola detta l'Oratorio di S. Martino. Ivi si amaestravano quelli del paese, e nella parte di basso s'attendeva alla salute de' Portughesi. Ivi anco piu liberamente s'attendeva allo studio de' libri Chinesi."

Quando Valignano se apercebeu das dificul-dades da missão, apesar dos progressos verificados, e de que ela absorvia por completo os seus "operari", determinou ao padre Matteo Ricci que acompanhasse Ruggieri.

Chegado a Macau em 7 de Agosto de 1582, também Ricci ocupa o seu lugar na Casa de Catecúmenos e, enquanto prossegue os seus estudos de Chinês, os padres Miguel Ruggieri e Francisco Passio vão a Shiu hing (Zhao qing). São recebidos no final de Dezembro pelo vice-rei de Cantão, sem contudo conseguirem licença para se instalarem em solo chinês. A nomeação, por essa altura, dum novo vice-rei veio a inviabilizar-lhes porém o seu desejo, adiando mais uma vez tão importante passo nos pla-nos da ordem inaciana.

Foi apenas mais tarde, a partir de 10 de Se-tembro de 1583, que os missionários se instalaram definitivamente na China, embora só no dia 14 (do mesmo mês) vissem confirmada a concessão de um terreno em Zhao qing. Aí fundaram a histórica resi-dência11 em que passaram a viver desde então, Matteo Ricci, Miguel Ruggieri, um irmão e um in-térprete.

A casa jesuíta de Macau não se restringia ao apoio que dava às Missões da China ou do Japão. Trabalhos sucessivos de reconstrução e/ou de am-pliação ao longo dos anos (em 1572, em 1575 e em 1578), seriam completados pelas grandes obras de 1594, seguindo as intenções de Valignano. O seu fim era a elevação da residência a colégio universi-tário e sede da Província do Japão.

E a par destas tarefas assiste-se em 1594 à nomeação de um superior, distinto do da residência, para o colégio. Mas, três anos mais tarde a direcção viria a ser reunificada, no mesmo ano em que Ale-xandre Valignano estabelecia Ricci como o primeiro superior da Missão da China.

3. A POPULAÇÃO DE MACAU PATRONADO DA NOVA IGREJA COLÉGIO DA MADRE DE DEUS UM CENTRO ARTÍSTICO

No Colégio da Madre de Deus, ou de S. Pau-lo, erigiu-se um templo, a partir de 1601, que foi inaugurado no Natal de 1603, embora a sua fachada, que hoje vemos de pé, tenha sido posteriormente aposta, até 1640 ou mesmo 1644.

A construção de um novo templo era exigida pelo facto de um violento incêndio ter destruído a igreja do colégio, bem como uma boa parte do pró-prio colégio.

A reconstrução contou com a ajuda do povo de Macau, assinalada não só na pedra da base da fachada, mas ainda constante de documentos hojearquivados em Roma e em Lisboa12. A lista, existen-te em Lisboa, dos principais benfeitores do colégio e da nova igreja, foi já impressa nos trabalhos de Monsenhor Manuel Teixeira, como no terceiro volu-me da obra Macau e a sua Diocese e em The Church of St. Paul in Macau.

Na Carta Ânua de 1601, escrita pelo reitor do Colégio de Macau ao Geral da Companhia em Roma, Cláudio Acquaviva, não só se referem os da-nos sofridos no colégio e igreja, mas dá-se também conta do surpreendente apoio da população no com-bate ao incêndio e do movimento de solidariedade gerado em volta desta tragédia.

Depois de reconstruída a Igreja, aí se oficiou pela primeira vez na véspera de Natal, dizendo mis-sa o padre Visitador Alexandre Valignano, que fez a mudança do Santíssimo Sacramento, da capela pro-visória de que se vinham servindo, para o novo tem-plo.

Esta cerimónia solene foi assinalada com uma grande procissão, com cerca de sessenta religiosos da Companhia, entre padres e irmãos, com cinco andores de relíquias e imagens do colégio. Percorreu as principais ruas da povoação nascente, acompa-nhada de muitas velas, música e danças.

Não se tratava da simples inauguração dum templo da Companhia de Jesus, ma assistia-se à fes-ta da população, que via como sua a nova igreja acabada.

Para a reconstrução contou-se com uma per-centagem oferecida pelos comerciantes, que prome-teram, logo após o incêndio de 1601, doar meio por cento do valor da carga que, nesse ano tinham no Japão, promessa que se veio a cumprir.

No entanto, as obras não terminariam com esta inauguração verificada, em 1603. Os trabalhos continuaram por largos anos no interior, na constru-ção da nova fachada, e ainda na abertura de vários acessos laterais. A decoração dos altares e capelas também se veio a realizar só posteriormente.

Acerca do seu interior, o padre Rodrigues Girão afirmaria em carta de 1627: "Quem me dera vira Vossa Reverência agora esta igreja forrada às mil maravilhas, e com mil galantarias feitas e por fazer, as quais acabadas será a mais formosa de to-das as mais deste Oriente."

As referências ao esplendor deste templo não se resumem a esta, pois o célebre viajante Peter Mundy, alguns anos mais tarde, viria a notar a exce-lência do trabalho decorativo do tecto, feito por chi-neses. Este viajante vinha na expedição do capitão inglês John Wedell. Por suficientemente conhecida e divulgada, nas publicações13 que tratam da igreja ou suas ruínas, dispensamo-nos de a transcrever. Mas o que importa salientar é que Peter Mundy considerou o trabalho do tecto como o mais maravilhoso que se recordava de ter visto.

Outros viriam a referir este templo como sumptuoso e de grande beleza, indo ao extremo de o considerarem de uma beleza inigualável, mesmo pensando nas igrejas contemporâneas de Roma, com excepção da de S. Pedro14; mas naturalmente este registo devia-se, sobretudo, à surpresa que constituía uma tal igreja em tão longínquas paragens.

A maravilhosa visão do seu interior era com-pletada por quadros "muito raros"15 que chamavam a atenção do observador. Seriam algumas destas pin-turas de temática religiosa executadas por japoneses e chineses, que haviam sido iniciados pelos jesuítas na pintura a óleo ocidental, com o emprego da técni-ca do "chiaroscuro"desconhecida na China antes da chegada dos missionários.

O pintor jesuíta italiano Giovanni Nicolo ti-nha fundado em Macau uma escola de pintura, como igualmente viria outra a ser criada no Japão, em Arima, que fez escola e contou com discípulos dis-tintos16.

Alguns destes pintores japoneses, que se re-fugiaram em Macau depois de 1614, continuaram a praticar a sua arte na decoração da rica igreja de S. Paulo e produzindo quadros para a Missão da China. Também satisfaziam inúmeros pedidos que chegavam, fosse para obsequiar altos magistrados, para decorar as capelas nas casas da Companhia de Jesus, ou ainda oferecer aos novos cristãos.

Um dos pintores que mais se distinguiu, Jacob Niva, que havia sido discípulo de Giovanni Nicolo, veio para Macau em 1601, sendo destinado à Missão da China. Pintou um quadro, N. Senhora com o Menino nos braços, que foi oferecida ao im-perador.

Mas a colaboração de Jacob Niva estendeu-se em 1606, à própria igreja do Colégio da Madre de Deus, quando foi enviado a Macau por MatteoRicci, o Superior da Missão de Pequim, "per pingere alcune cose di quella chiesa nuova" 17.

Pintou um grande quadro, O Martírio das onze mil virgens, para a Capela das Virgens, situada do lado da Epístola, e um outro representando A Assunção de Nossa Senhora, certamente para o retábulo da capela-mor, visto que a igreja era dedicada a Nossa Senhora da Assunção.

4. ARTE E ADAPTAÇÃO ESTRATÉGIA OU CONSEQUÊNCIA DE UM NOVO MÉTODO?

Da antiga igreja de S. Paulo, como era vul-garmente designada, podemos ainda hoje apreciar o seu imponente frontispício, que escapou à destruição do incêndio que acidentalmente se ateou na cozinha do antigo colégio.

Corria o ano de 1835 e as instalações eram então ocupadas pelas tropas do Batalhão do Príncipe Regente, passadas que eram algumas décadas sobre a expulsão da Companhia de Jesus de Macau, em consequência do Decreto do Marquês de Pombal, promulgando em nome do rei D. José I.

Para além do frontispício, mantém-se ainda a escadaria monumental, que ainda hoje atesta a integração e articulação desta obra com o tecido ur-bano.

A fachada é concebida com grande desenvol-tura, sendo conferida aos elementos arquitectónicos, como por exemplo às colunas com suas bases, uma dimensão escultórica, com o jogo de luz e sombra que criam na fachada, mais visível logo ao nível do piso de entrada, empregando-se a coluna saliente como mero elemento decorativo.

A incorporação de novos elementos iconográficos revela-se do maior interesse neste mo-numento de arte religiosa. Seja pela inclusão de ca-racteres chineses, seja pela utilização, numa fachada, de elementos que são estranhos, nesta época, à ar-quitectura religiosa europeia.

Estão neste caso as representações do demó-nio, ou da morte, a par de uma simbologia de todos estranha à iconografia da arte religiosa após o Con-cílio de Trento.

Importa referir que estes aspectos inovado-res, ou inéditos, que se nos deparam nesta obra de arte, são o resultado evidente de um novo método missionário, a Adaptação. É um apostolado inova-dor, diverso do usado até então na África ou na América -- a tabula rasa. Um novo método, intuído já for Francisco Xavier, traçado por Ale-xandre Valignano e posto em prática, com êxito, por Matteo Ricci e Miguel Ruggieri, se bem que, como muito bem chamou a atenção o P. Videira Pires num dos seus trabalhos18, em todo esse pro-cesso de "aproximação", 27 jesuítas, membros de outras ordens religiosas e do clero secular, tenham entrado na China, antes de Ricci para procurar fun-dar aí estações missionárias.

Mas a entrada e estabelecimento dos missio-nários da Companhia de Jesus na China foi possível com a ousadia de Matteo Ricci, que deixou uma importante porta aberta aos seus sucessores. Em 1595, Ricci apontava numa carta as razões da sua fama pessoal: primeira, a surpresa que causava, sen-do estrangeiro e vindo de tão longe, por saber falar e escrever chinês; a segunda devia-se à sua memória impressionante, e ter de cor os livros de Confúcio; depois, os conhecimentos matemáticos e os objectos curiosos que transportava, como relógios e prismas de vidro; e só no fim a Doutrina que ensinava.

Para tirar melhor partido da situação, os jesuí-tas procuraram, naturalmente, inverter a ordem des-tas razões. Agiram, nessa enterprise de séduction, segundo a expressão arguta de Jacques Gemet19, uti-lizando as ciências da Europa para obter progressos no campo religioso.

Quanto à fachada da Igreja de S. Paulo, obra de arte fundamental no contexto da Arte da Compa-nhia de Jesus na China, há que analisá-la em função dos factores acima enunciados, bem como à luz das prescrições ou Cânones da Companhia acerca das edificações, que internamente se designavam como "il nostro" e, evidentemente, comparativamente com as práticas artísticas contemporâneas ocidentais e orientais que, de modo claro, estão nesta obra.

Importa assim ajuizar das inter-relações pre-sentes, a par duma nova metodologia missionária --sem dúvida, nesses tempos, em primeiro plano --para se entender a arte da Companhia de Jesus em Macau e na China como fruto de uma estratégia e reflexo de várias assimilações.

Arte e Adaptação?

NOTAS

1 O estudo em curso, sob orientação do Professor Doutor Bruno Neveu, "Directeur d'Études" na IV Secção (Sciences Historiques et Philologiques) da École Pratique des Hautes Études, Sorbonne, em Paris, tem-se desenvolvido no âmbito dos trabalhos regulares das conferências feitas sob o título "Image Culturelle de 1'Europe -- L'Eruope et 1'Orient", em co-direcção com o Professor Doutor Jean Aubin.

2 Rabreau, Daniel e Paupe, Marie-Raphaël, "Le Yuan Ming Yuan, Jexu d'eu et Palais Européens du XVIII e siècle à la Cour de Chine", ed. Recherche sur les Civilisations, Paris, 1987.

3 Sep. STVDIA, n. os 41-42, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos da Junta de Investigações Científicas do Ultra-mar, Lisboa, Janeiro/Dezembro de 1979.

4 Journal of Oriental Studies, University of Hong Kong, vol. l, n. º 2, Julho de 1954.

5V. Rego, A. da Silva, "A presença de Portugal em Macau", ed. Agência-Geral das Colónias, Lisboa, 1946, cap. II.

6 Bocarro, António, texto publicado por Boxer, Charles, "Seventeenth Century -- Macau in contemporary documents and illustrations", Hong Kong, 1984.

7 Remetemos o leitor para o vol. III da obra de Teixeira, Manuel, Macau e a sua Diocese e ainda para o estudo de Pires, B. Videira, O IV Centenário dos jesuítas em Macau (1564-1964), Macau, 1964.

8 Pires, Videira, op. cit., p. 33, n. º 77.

9 Cf. dos Santos, Domingos Maurício G., "Macau, Primeira Universidade Ocidental do Extremo-Oriente", Academia Por-tuguesa de História, Sep. Anais, II série, vol. 17, Lisboa, 1968.

10 Ricci, Matteo -- Trigault, Nicolas, "Entrata nella China de' Padri della Compagnia del Gesù (1582-1610)", Volgarizzazione di Antonio Sozzini (1622), Libro secondo, cap. III.

11 V. A vvisi della Cina dell'ottantatre et dell' ottantaquattro, ed. anot. em inglês, Rinestra, Howard, "Jesuit Letters from China, 1583-84", University of Minnesota, Minneapolis, 1986.

12 Col. Jesuítas na Ásia, cód. 49-Iv-66, fls. 85-87, "Titolo dos bemfeitores principais deste Coll. º de Macao", Biblioteca da Ajuda, Lisboa. Encontra-se publicada na obra de Pires, Videira, Religião e Pátria, XXXVII, 25.9.1955 e posteriormente por Teixeira, Manuel, Macau e a Sua Diocese, vol. III, pp. 189 ss.

13 V. op. cit. n. º 3 e n. º 6.

14 Testemunho de Rhodes, Alexandre, "Sommaire des Divers Voyages et Missions Apostoliques, du P...., à la Chine, & autres sRoyaumes de 1'Orient, avec son retour de la Chine à Rome. Depuis 1'Année 1618jusquesàl'année 1653", AParis chez Florentin Lambert, 1680.

15 Ibid.

16 Op. cit., n. º3 Japanese Artists at St. Paul's, p. 66 e ss.

17 ARSI, Jap.-Sin, 14, f. 231 v.

18 Pires, Videira, op. cit. n. 7, p. 7.

19 Gemet, Jacques, "Chine et Christianisme -- La première confrontation", ed. rev. corr., Gallimard, Paris, 1991.

*Lic. em História da Arte, pela Universidade Nova de Lisboa; Doutorado pela Sorbonne com a tese L'Eglise de Notre Dame de 1'Assomption (ou de St. Paul) à Macao et l'art de la Compagnie de Jésus en Chine -- art et adaptation. Tem publicado trabalhos sobre Missionação e Arte Religiosa.

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