Jesuítas na China

O TÚMULO DUM JESUÍTA, EMBAIXADOR IMPERIAL

Manuel Teixeira*

Epitáfio em Latim

Havia em Cantão um túmulo com este epitáfio:

HIC JACET

P. JOSEPHUS PROVANA

SOCIETATIS JESU PROFESSUS SACERDOS ET MISSIONARIUS SINENSIS

QUI

A SINSRUM EMPERATORE

KANG-HY,

IN EUROPAM MISSUS FUERAT LEGATUS

REDUX CIRCA CAPUT BONAE SPEI,

FATIS CESSIT

ANNO 1720

DIE 7ª FEBRUARII

AETATIS ANNO 62

SOCIETATIS 24

ET JUSSU IMPERATORIS

IN HOC LOCO SEPULTUS FUIT

DIE17ª DECEMBRIS1722

Eis a tradução: "Aqui jazo P. José Provana, sacerdote professo da Companhia de Jesus e missionário da China que fora enviado à Europa por Kang--Hi, imperador da China, como legado. Ao regressar, morreu perto do cabo da Boa Esperança, no ano de 1720, com 62 anos de idade e 24 de Companhia, e por ordem do imperador foi sepultado neste lugar no dia 17 de Dezembro de 1722."

EPITÁFIO CHINÊS

No mesmo túmulo do P. Provana lia-se um epitáfio em chinês, composto pelo delegado que o Imperador Kang-Hi mandara ao seu funeral, e que dizia o seguinte:

"Remontando à origem do venerável mestre José Provana, achamos que era italiano de nascença e pertencia a uma ilustre família, pelos postos que há ocupado. Dotado duma sabedoria acima da sua idade e cumulado de bênçãos que o Céu se comprazia em espalhar sobre ele, jovem ainda, renunciou ao seu património e às esperanças do século para se consagrar a Deus pelo celibato voluntário, com a promessa de propagar o seu santo nome entre as nações mais distantes. Agregou-se, pois, a uma piedosa associação de santos padres e pouco tempo depois, impulsionado pelo desejo de cumprir os seus compromissos, deixou o seu país e embarcou para regiões longínquas, a fim de pregar a sua religião e de levar os povos a abraçá-la.

Chegado ao litoral da província de Cantão, passou de lá à capital do Império, onde chegou no 46. º ano e 10. º mês do reino de Kang-Hi, tendo per-manecido cinco anos na cidade, muito ocupado nos trabalhos do seu nobre ministério.

Enviado à Europa na qualidade de legado o Imperador, quer junto do Papa, então reinante1, quer junto do rei de França, Luís XIV, a fim de tratar dos negócios da Religião, teve de atravessar os mares, vindo a padecer de uma longa e grave enfermidade que iria mantê-lo ausente durante 13 anos, ou seja, até ao 58. º ano e 9. º mês do reino de Kang-Hi.

O Soberano Pontífice, vendo que a sua saúde periclitante exigia ainda uma demora prolongada na Europa, concebeu o projecto de enviar outro legado em seu lugar. Mas uma tal proposição estava longe de agradar ao generoso missionário.

Cheio de reconhecimento pelas bondades do imperador e de fidelidade no cumprimento dos seus deveres, nem o seu estado de saúde, nem as vagas e os perigos do mar puderam quebrar a sua coragem. Embarcou de novo e, avançando através do grande oceano Atlântico, alcançara já o cabo da Boa Esperança quando, após uma furiosa tempestade, foi acometido duma violenta enfermidade o sofreu a sorte reservada a todos os mortais.

Ainda que repleto de méritos por uma vida inteira de virtudes e de trabalhos, pode dizer-se que ele atingiu o cúmulo por este acto de devotamento e que o Céu quis, sem dúvida, recompensá-lo por tão nobre sacrifício chamando-o a Si. Deixou, pois, este mundo no 59. º ano e 6. º mês do reino de Kang-Hi. O seu corpo, levado para a cidade de Cantão, foi depositado no Templo das Nuvens Brancas, onde ficou dois anos até se consultar o imperador e se receber uma resposta sobre a sua sepultura.

Segundo as ordens de S. Majestade, foi-lhe destinado um arpento2 de terra para a sepultura e alguns recursos para conservar a este lugar a honra e decência convenientes.

E ali que agora repousam os restos deste grande mestre, perpetuando-se de idade em idade e recordação dos seus méritos e virtudes.

Quanto a mim, escolhido pelo Imperador paracumprir esta alta incumbência, não a posso desempenhar melhor do que lembrando os méritos deste ilustre doutor e gravando-os na pedra. E vós, grande mestre, que gozais já da eterna felicidade, sentado sobre o trono da vossa glória, dignai-vos escutar favoravelmente os nossos votos e mostrar um coração cheio de clemência e de bondade àqueles que vieram a esta cidade e a este lugar honrar a vossa memória e encorajar-se com a recordação das vossas virtudes.

Feito no 60. º ano, 11. º mês, 10. º dia do reino do Imperador Kang-Hi"3.

DADOS BIOGRÁFICOS

Chamava-se António Francesco Giusep-pe Provana e descendia duma ilustre família deSabóia.

Nasceu em Nice, Piemonte, a 23 de Outubro de 1662 e ingressou na Companhia em Milão, a 15 de Fevereiro de 1678.

Em 1693 embarcou em Lisboa para a China, mas o navio foi forçado a arribar. Aproveitando esse interlúdio, percorreu a diocese de Évora, onde pregou com muito fruto.

Kangxi. Desenho de Panzi, jesuíta; gravura de Martinet. Extraído de: DU HALDE — The general history of China, vol. l, ante-rosto. AH/LR 60

Reembarcou em 1694, aportando a Macau a 4 de Outubro de 1695.

Em 1696-97, baptizou em Kiangchow, Chan-si, mais de 2 000 pessoas. De 1699 a 1701, missionou nas províncias de Ho-nan, Chen-si e Chan-si. Em Kaifeng (K' ai-fong-fu) achou fechada, por ordem do mandarim, uma igreja construída pelo jesuíta austríaco Christian Wolfgang Herdrich. Esse mandarim espalhara o terror na missão, mas Provana reabriu-a e em pouco tempo baptizou mais de 300 pessoas; a 5 léguas dali, baptizou outras tantas seguidas de 20 famílias, a alguma distância. Tomando-se arquitecto de improviso, construiu uma igreja para esses cristãos.

De K'ai-fong-fu (Kaifen) passou a T'ai-yuen--fu, capital de Chan-si, e ali reconstruiu uma igreja que fora levantada pelo jesuíta belga Michel Trigault, tendo de novo convertido muita gente.

Boero refere que Provana "andava sem cessar dum lugar para o outro, fazendo longas viagens a pé através das montanhas, atravessando rios, sem temer chuva ou frio, nem os ataques dos piratas, nem as incursões dos soldados, fazendo por toda a parte uma boa colheita de almas4.

Num burgo de Chan-si, um rico idólatra havia construído um templo assaz conveniente aos seus deuses e tinha lá posto um bonzo para o servir; porém, tendo-se convertido, deu o templo ao P. Provana e despediu o bonzo. Este, furioso, acusou o neófito aos mandarins, que o exilaram e venderam o templo ao discípulo de Fó5. Logo que o P. Provana tomou conhecimento do ocorrido, foi ter com os primeiros magistrados da província e falou-lhes com tanta força e convicção que eles chamaram o neófito do exílio, expulsaram de novo o bonzo e restituíram o templo, que foi convertido em igreja (Boero, ibidem).

Em 1702, Provana foi para Pequim, onde trabalhou durante cinco anos.

EMBAIXADORES DE KAN-HI À EUROPA

Nesse mesmo ano de 1702, Clemente XI enviou à China o seu legado a latere Charles Thomas Maillard de Tournon para tratar da célebre Questão dos Ritos Chineses. Este foi radical, notificando os missionários do decreto do S. Ofício de 20 de Novembro de 1704, que proibia as cerimónias chinesas em honra de Confúcio e dos antepassados.

O Imperador retaliou expulsando da China todos os missionários que observassem esse decreto, tendo Toumon sido expulso para Macau em 1707, com 18 missionários que lhe obedeciam.

O Imperador mandou então vários embaixadores a Roma para procurarem demover o Papa da condenação dos Ritos.

Nesse mesmo ano de 1707, foram enviados por Kang-Hi a Lisboa e a Roma dois legados — os padres António de Barros6 e Antoine de Beauvollier7, contudo, viriam ambos a morrer num naufrágio à entrada do rio de Ancora, em Caminha, a 2 de Janeiro de 1708.

Estes padres iam munidos de cópias de todos os memoriais e escritos do patriarca Toumon, dos decretos imperiais, de perguntas e respostas, extraídos dos arquivos do Palácio Imperial e mandados traduzir para serem apresentados ao Papa, a quem o Imperador pedia satisfação dos excessos cometidos pelo Patriarca e solicitava que nada fosse alterado em Roma no que concernia aos Ritos Chineses.

Toda esta documentação se perdeu.

MISSÃO DO P. PROVANA

Roma mostrava-se inflexível na Questão dos Ritos. Clemente XI estava rodeado de conselheiros inimigos dos Ritos e do Padroado Português. Em vez de ouvir serenamente as duas partes e mostrar consideração por Kang-Hi, um imperador cultíssimo e amigo dos missionários, e pelo rei Magnânimo e Fidelíssimo D. João V, rejeitou de antemão todos os apelos destes dois soberanos. As consequências foram trágicas para as Missões da China.

Clemente XI cavou-lhes a sepultura; Clemente XVI, pelo breve de 21 de Julho de 1773, Dominus ac Redemptor, suprimiu a Companhia, atirando para a cova os fundadores e mantenedores das Missões da China.

E ambos eram Clementes!...

Assim, a Missão do P. Provana estava condenada ao fracasso que haveria de o matar.

Depois da morte de Barros e Beauvollier, Kang-Hi nomeou mais dois jesuítas para irem a Roma advogar a Questão dos Ritos: — o espanhol José Ramón Arxó (ou Arjó)8 e Provana.

Partiram de Macau a 14 de Janeiro de 1708,levando consigo o catequista chinês Luís Shou-i; este entrou no Noviciado da Companhia, em Roma, a 15-1-1709, vindo aí a ser ordenado sacerdote em 1717. Foi este humilde catequista o companheiro inseparável do P. Provana, visto que Arxó regressaria a Espanha e lá viria a morrer.

Sobre a Missão do P. Provana escrevia D. João V. ao seu vice-rei da Índia, D. Rodrigo da Costa, a 3 de Abril de 1709: "Em o navio que veio de Solor e Timor chegou o P. Provana, da Cå, de Jesus, mandado pelo Imperador da China para representar a Sua Santidade os justos motivos de queixa que lhe dera o Patriarca de Antioquia (Tournon) com os seus desordenados procedimentos naquele Império, pedindo uma pronta satisfação, pretendendo o mesmo Imperador que Eu me interessasse nela. E como pelos documentos que trouxe o dito Padre e os que remeteram o Bispo e o Governador de Macau 9, constava que o referido Patriarca não só mostrava ser inimigo da Nação Portuguesa, malquistando-a com o dito Imperador e seus Ministros, mas passou a violar os privilégios que competem ao meu Padroado Real...

Fui servido resolver passasse com a brevidade possível a Roma o Marquez de Fontes, Meu Embaixador Extraordinário, para representar a Sua Santidade o considerável prejuízo que causava à Religião Católica na China o dito Patriarca, com os decretos que expediu condenando os ritos sínicos, aprovados pelos Papas Gregório XIV e Alexandre VI, do que o Imperador recebeu tal desprazer que mandara sair dos seus domínios o dito Patriarca, mandando-o depositar em Macau e proibindo aos missionários pregarem a Religião Católica...

E que sendo tão grave esta matéria esperava que Sua Santidade lhe aplicasse o pronto remédio que era satisfazer ao dito Imperador e a esta Coroa. E porque o dito Padre Provana procurou apressar a sua jornada para Roma, antes de poder partir o dito Embaixador, ordenei ao meu Enviado naquela Cúria que, no entretando que o Embaixador não chegava, falasse neste importantíssimo negócio a Sua Santidade, junto as representações deste Padre."10

Que representações eram essas? Constam do "Catálogo dos Missionários", extraído dos Livros da Companhia de Jesus, impressos na China, onde se lê:

1. Enquanto esteve em Roma, apresentou à Stª. Sé pelo menos cinco Memórias sobre as questões disputadas dos ritos; responderam-lhe os defensores do Cardeal Tournon.

2. Libellus supplex P. Provana, nomine Patrum Societatis Clemente XI, anno 1709, oblatus.

CONTRADIÇÕES

É claro que o Papa nada disso leu.

Também de nada valeram as diligências feitas junto de Clemente XI pelo embaixador extraordinário de D. João V junto da Stª. Sé, D. Rodrigo Annes de Sá Almeida e Meneses (1712-1718).

E porquê? Porque o Papa deu ouvidos a dois inimigos acérrimos dos Ritos, do Padroado e dos Jesuítas, o bispo francês Charles Maigrot, M. E. P.11 e o bispo franciscano Fr. Giovanni Francesco Nicolai 12, que em Roma mexia os cordelinhos sugerindo ao papa a maneira de tratar o P. Provana. Quando este chegou a Roma, já se encontrava de antemão condenado por D. Nicolai, numa carta de 10 de Outubro de 1717 por ele enviada a Clemente XI, cujas directrizes este seguiu à risca, fazendo tábua rasa do privilégio de embaixador de que ia investido Provana.

Na carta, afirma que, por insistência do embaixador português, D. Rodrigo de Sá Almeida, Marquês de Fontes, Provana viria brevemente a Roma, devendo depois regressar à China. Nicolai condena-o com toda a severidade e insinua ao Papa a maneira de o receber13.

Os seus conselhos foram seguidos.

Numa Relação que ele escreveu acerca do acontecido nas audiências do Papa, Nicolai afirma que S. Santidade recebeu o embaixador D. Rodrigo de Sá a 14 de Janeiro de 1718. No mesmo dia, recebeu os padres Provana e Fan, estando presente Nicolai, inimigo declarado dos Jesuítas. Os dois sacerdotes tiveram de prestar ali mesmo obediência plena e incondicional à Constituição Ex illa die, de 19 de Março de 1715, que condenava os Ritos.

A seguir, por ordem do Papa, foram imediatamente avistar-se com o Card. Pedro Luís Carafa, arcebispo titular de Larissa e secretário da Congregação da Propaganda (1717-1724) tendo prestado juramento contra os Ritos (prescrito pela constituição Ex illa die) no oratório superior do Colégio da Propaganda,diante dum notário e testemunhas. Não lhes deram qualquer ocasião para abrir a boca e expor a missão de que estavam incumbidos. Assim, com o coração amargurado, Provana e Fan saíram de Roma para Portugal.

No entanto, aquele juramento ainda não bastava. Numa audiência concedida a Nicolai a 30 de Janeiro, Clemente XI declarou que os dois jesuítas teriam de renovar o juramento em Lisboa perante o Provincial da Companhia e que dele deveriam remeter cópia, quanto antes, à Cúria Romana14.

MORRE NA VIAGEM DE REGRESSO

Pobre Provana! Partira de Macau a 14 de Janeiro de 1708 para ter uma entrevista com o Papa na qualidade de embaixador de Kang-Hi, no entanto, nada pôde fazer nessa audiência, e só 8 anos mais tarde lhe foi dado regressar. Deviam ser tremendos os seus sofrimentos morais; foram provavelmente estes, mais do que os físicos, os responsáveis pela sua morte.

O seu companheiro, o P. Fan, sem responsabilidade de maior, regressaria a Macau acompanhado pelo cadáver do mestre.

Tinham ambos embarcado em Lisboa, a 15 de Maio de 1719, na nau do reino S. Francisco Xavier, de que era Cap. João Larivière. O P. Provana viria a falecer a 15 de Março de 1720, perto do cabo da Boa Esperança.

A nau aportou a Macau a 30 de Junho de 1720. O Senado de Macau, em Dezembro desse ano informava o vice-rei da Índia, de que havia chegado de Lisboa, em Julho, a nau S. Francisco Xavier, que gastara 14 meses na viagem e trouxera o cadáver do P. Provana. E acrescentava: "não deu pequeno aballo a esta Cidê. a sua morte pelos particulares que o levarão à curia."

A nau transportara ainda para Macau 300 barris de pólvora, 120 espingardas e 50 soldados.

UM JESUÍTA, DELEGADO IMPERIAL EM CANTÃO

O P. João Mourão, S. J.15, havia acompanhado o imperador Kang-Hi Jehol em 1721; mas essa estadia na Manchúria causou-lhe uma espécie de paralisia nos braços, pelo que pediu licença ao imperador para se vir tratar a Macau. Kang-Hi aproveitou essa viagem para o encarregar dos funerais e da sepultura do P. Provana.

Mourão considerava-se como um representan-te do rei de Portugal junto de Kang-Hi, de quem era amigo íntimo. Vindo agora a Cantão como legado do Imperador, trouxe consigo um séquito pomposo: "um mandarim, que era o seu secretário tártaro para a correspondência com o imperador; o cirurgião italiano Dionísio Gagliardi, que o legado pontifício Carolo Ambrogio Melchior Mezzabarba trouxera consigo e deixara em Pequim ao serviço do imperador, e um séquito dumas cem pessoas."

Partiu de Pequim a 18 de Maio de 1722 e chegou a Cantão a 30 de Julho, tendo a viagem demorado mais de dois meses; em Cantão demorou-se ainda um mês e meio para as exéquias.

Passámos palavra ao P. Arcangelo Miralta, em carta de Cantão, a 29 de Novembro de 1722, para o P. Giuseppe Céru: "No dia 30 do dito mês chegaram a Cantão 3 Tojin16 provenientes de Pequim, um tártaro e dous europeus, o P. Moraon e o Senhor Gagliardi, cirurgião, tratados à grande. O P. Moraon e Gagliardi foram morar e habitar juntamente comigo num kun kuon17. Quando saem de casa, vai cada um com acompanhamento dos grandes mandarins18, com gritos de aviso, grandes ventarolas, azorragues, cadeias, bastões, bandeirolas, cavalgaduras, grandes cadeiras com 4 carregadores, etc...

O trato do P. Moraon é muito galante e gentil. E a sua vinda a Cantão foi muito favorável aos europeus."19

Matteo Ripa aproveita a ocasião para dar uma ferroada no P. Mourão, dizendo que o jesuíta português celebrou as exéquias "com a mais solene pompa supersticiosa", desrespeitando a Constituição Apostólica de Clemente XI Ex illa die de 1715 e a carta pastoral de Mezzabarba20.

EM MACAU

Após os funerais, fez uma visita a Macau com o seu séquito. O P. D'Elia refere: "A 29 de Setembro o P. Mourão, com o tártaro e com o Dr. Gagliardi, acompanhado do seu próprio séquito, dirigiu-se a Macau, onde os portugueses, seus patrícios, o quiseram honrar recebendo-o com grande magnificência. Foram-lhe oferecidos magníficos presentes, tanto pela autoridade da colónia21, como pelos particulares."22

Note-se que Mourão não saiu de Cantão a 29 de Setembro, mas vários dias mais cedo.

Com efeito, a 17 de Setembro, o vereador do mês, do Senado, Leandro Tomé, diz que "se acham nesta cidade 3 Tayens, sendo um deles o Rdo. P. João Mourão, da Comp. ª de Jesus; propõe se ofereça um presente ao Imperador e outro aos Tayens; que o Senado designe 2 ou 3 pessoas para tratar com o P. Mourão para este levar ao conhecimento do Imperador o que respeita à navegação Sínica e outras particulares, que poderão ser de utilidade a Macau."23

Sobre esse assunto, Arthur Ley Gomes escreve o seguinte: "Aguardando-se a chegada do padre João Mourão, superior dos jesuitas em Pequim, que devia vir em companhia de alguns mandarins, resolveu a Câmara, em sessão de 13 de Agosto, que se lhe preparasse ostentosa recepção em sinal de agradecimento pelos muitos serviços que, devido ao seu valimento junto do imperador, prestara à Cidade."24

Frei José de Jesus Maria, ao ler nos Arquivos de Macau a parte referente à vinda de 3 tayens, e desconhecendo do que se tratava, atribui-lhes sinistras intenções, o que é perfeitamente infundado: "Neste anno (1722) vierão tres tayens por ordem do Imperador a ver, e observar as forças desta cidade, e o estado das couzas: cuidou o Procurador do Senado em lhe preparar saguates ou presentes, como hera costume, e por determinação do mesmo Senado se compôs com particularidade hum mimo, que por eles foi remettido ao Imperador, confome a possibildade da terra, que este anno tinha experimentado grandes perdas nas fazendas, e nos navios."25

Como podemos verificar, quem propos a oferta do presente foi o vereador do mês, Leandro Tomé Pereira, e não o procurador António Oliveira Paiva.

A 3 de Outubro, o P. Mourão e comitiva estava de regresso a Cantão.

Mourão partiu de Cantão a 1 de Janeiro de 1723 e só teve notícia da morte de Kang-Hi em finais desse mês ou princípios do seguinte, tendo chegado a Pequim a 10 de Março.

RELAÇÃO DE MGR. GUILLEMIN

Mgr. Zéphyrin Guillemin, bispo de Cybista e prefeito apostólico de Cantão, escreveu em 1875 sobre o túmulo do P. Provana o seguinte relato, que enviou aos superiores da Companhia de Jesus:

"A uma légua a Noroeste da cidade de Cantão, encontra-se um antigo túmulo, notável a um tempo pela singularidade das suas formas e pelas gloriosas recordações que evoca. É o túmulo do P. Provana, jesuíta italiano, da família dos marqueses de Provana, de Turim, e enviado outrora pelo imperador Kiang-Hi como seu embaixador junto do papa Clemente XI e de Luís XIV26.

Depois de ter cumprido a sua missão, regressou à China e havia já passado o cabo da Boa Esperança quando, assaltado por furiosas tempestades, minado pela doença e pelos sofrimentos, teve a sorte comum de todos os homens e terminou a sua carreira mortal.

O seu corpo, transportado para Cantão, foi depositado na capela dita das Nuvens Brancas27, onde permaneceu até que se pôde consultar o imperador e receber ordens com respeito à sua sepultura.

Tocado pelo devotamento do seu fiel legado, Sua Majestade enviou a Cantão um delegado28, encarregado de escolher, nos arredores da cidade, um terreno para a sua sepultura e de elevar um mausoléu à custa do tesouro imperial.

Foi tudo executado imediatamente com a diligência e sumptuosidade que a vontade do Soberano exigia29. Escolheu-se a alguma distância da cidade um espaço elevado, donde a vista se estende, dum lado, sobre as montanhas vizinhas, e do outro, sobre as tolhas de água que banham as vizinhanças.

Circundou-se de uma cintura de belas árvores e no meio deste vasto recinto, construiu-se um belo mausoléu de granito, em forma de ómega, com três degraus que se elevam em anfiteatro, sendo tudo cercado de colunas e de esculturas representando diferentes símbolos.

Enfim, para conservar ao monumento o seu carácter de autenticidade, colocaram-se ao lado do túmulo duas grandes placas de mármore com duas inscrições: uma em latim, indicando o nome, a pátria e a época da morte do missionário; a outra em caracteres chineses, com o seu elogio e lembrando o que o próprio Imperador havia feito para honrar a sua memória.

Era, evidentemente, um dos monumentos mais curiosos do país, respeitado ao mesmo tempo pelos mandarins e pela população; e não havia estrangeiro nenhum que vindo a Cantão, não se sentisse obrigado a visitá-lo.

Infelizmente, quando nos anos de 1852 e 1853 os rebeldes devastaram a cidade, tomando um prazer bárbaro em arrasar tudo o que encontravam, o túmulo não escapou ao seu furor. As belas árvores que o rodeavam foram cortadas, as colunas derrubadas, as pedras e as cornichas quebradas, uma parte da avenida, que levava até lá, vendida ou transformada em terreno de cultura. De todo este belo monumento não restaram senão as duas inscrições, nas quais os rebeldes não ousaram locar, devido a um certo receio que existe sempre entre o povo em relação aos mortos.

Por muito triste que fosse tal devastação, o monumento era demasiado notável em si mesmo, demasiado honroso para o nome cristão, não só aos olhos dos chineses, mas também dos europeus que chegam a estas regiões, para que eu não envidasse todos os meus esforços com vista a obter a sua concessão e a fazê-lo voltar ao estado primitivo.

Quando da guerra da China, em 1858, fiz com os nossos comandantes franceses uma visita ao Vice--Rei e, como a conversa recaisse sobre o nosso ilustre defunto, achei a ocasião favorável para exprimir a sua Excelência a satisfação profunda que eu teria se o mausoléu, elevado à memória deste compatriota30, deste doutor da nossa santa religião, deste homem que eu podia considerar como um irmão e um mestre, fosse deixado ao nosso cuidado, coisa tanto mais simples e natural quanto nesse momento era uma comunidade de bonzos que dele estava encarregada.

Sua Excelência louvou o meu respeito pelos mortos, e disse-me graciosamente que, após a consulta ao seu conselho, se nenhuma razão se opusesse ao meu pedido, logo no dia seguinte me enviaria dois mandarins para me acompanharem ao local e colocarem entre as minhas mãos o terreno, objecto dum desejo tão justo e tão natural da minha parte.

De facto, no dia seguinte vi chegar dois mandarins em palanquim, seguidos de outros dois a cavalo, os quais me entregaram da parte do Vice-Rei um largo envelope anunciando que Sua Excelência fazia jus ao meu pedido enviando-me dois comissários para me entregarem o monumento em questão, de que daqui em diante eu podia considerar-me o legítimo e único possuidor.

Deus sabe que alegria constitui para o coração do missionário poder assim arrancar ao paganismo um dos seus locais de interesse para fazer dele como que uma base e um santuário da religião cristã.

Depois de ter fixado os limites do terreno, o meu primeiro cuidado foi nivelar as diferentes partes, cercá-lo duma boa sebe, substituir as árvores cortadas, levantar as colunas partidas e dar a todo o recinto do túmulo um ar de limpeza e de decência, que mostrasse o nosso cuidado religioso. Precisei de despender imediatamente 200 francos, fornecidos em parte pelos missionários da província e em parte pelos europeus de Cantão, todos ciosos em mostrar a parte e a alegria que tomavam nesta feliz concessão.

Regressando a França no fim do Concílio (Vaticano I), e passando pela cidade de Turim, tive então a boa oportunidade de conhecer a ilustre família dos marqueses de Provana, cujos membros, felizes pela restauração que lhes propus, a ela se associaram com alegria, entregando-me imediatamente a soma de 1 000 francos para esse fim.

Eis, pois, um novo auxílio que a divina Providência nos envia; e para a sua restauração teremos o necessário, se não para restituir a este monumento o seu antigo esplendor, ao menos para o tornar digno do seu primeiro destino, e para o cercar da honra e da consideração que merece.

Assim, de é boa vontade e com toda a confiança que eu envio esta circular às pessoas e comunidades a quem possa interessar, na esperança de que o seu concurso reunido, ainda que seja fraco, nos possa levar a concluir a reparação de um monumento que, colocado na extremidade do mundo, é uma verdadeira honra não só para o missionário que aí repousa à sombra da Cruz e para a ilustre Companhia à qual pertencia, mas também para o nome francês31, e em particular para a nossa santa religião, de que ele é uma glória, que ganhará enormemente em ser assim sustentada e patrocinada aos olhos dos pagãos, tanto mais que este testemunho de respeito, longe de ofuscar qualquer pessoa, despertará certamente entre os nossos chineses a mais profunda reverência e a mais cordial simpatia."32

NOTAS

1 Clemente XI (1700-1721).

2 Antiga medida agrária, usada pelos gauleses e adoptada pelos romanos, que ía de 30 a 50 ares, conforme as regiões.

3 O reino de Kang-Hi estendeu-se de 1661 a 1722, ano em que faleceu, a 20 de Dezembro. O mausoléu do P. Provana foi erecto a 17-12-1722.

4 Boero, Menologio della Compagnia de Gesu,7de Fevereiro.

5 Fó ou Fat designa Buda. Os três FAT ou três Preciosos são Sek Ká Mau Lei Fat (Saquiamuni): Ó Mei Tó Fat (Amida) e Mei La Fat (Maitreia). São os três Fat ou três Fó.

6 António de Barros, n. a 21-10-1664 em Arcos de Valdevez, diocese de Braga; ingressou na Companhia a 12-6-1681; embarcou em 1694, aportando a Goa no mesmo ano; em Outubro de 1697 chegou a Pequim.

7 Antoine de Beauvollier n. a 3 de Junho de 1657 em Blaye, França; ingressou na Companhia a 7 de Setembro de 1672; chegou a Cantão num navio inglês em Novembro de 1699 e daí partiu para Pequim. Saiu de Pequim com o P. Barros em 17 de Outubro de 1706, chegando a Cantão a 4 de Janeiro de 1707; foram ambos via Rio de Janeiro, mas não chegaram ao seu destino, morrendo num naufrágio nas costas de Portugal, a 2 de Janeiro de 1708 (Joseph Dehergne, S. J., Repertoire de Jésuites de Chine de 1552 à 1800, Roma, 1973.

8 Arxó n. a 6-6-1663 em Benasque (Huesca); ingressou na Companhia em Saragoça a 15-11-1677; embarcou em 1684 com o seu compatriota Juan Antonio Amedo, S. J. Missionou em Cantão, em Shansi, Hukwang e Kweilin; foi visitador da China e do Japão (1706-1708), sendo enviado a Roma por Kang-Hi em 1707. Regressou a Espanha, tendo falecido a 29 de Julho de 1711 em Alicante, Aragão, no convento franciscano de N. Sr. ª do Loreto. Antes assim, pois não teve que suportar em Roma as contradições e vexames por que passou o seu companheiro P. Provana.

9 ObispoeraD. JoãodeCasal(1690-1735); ogovernador, Diogo do Pinho Teixeira (1706-1710). Note-se a diferença entre o eclesiástico e o civil: o bispo governou 45 anos; o governador 4!

10 Vid. P. Manuel Teixeira, Macau e a Sua Diocese, vol XIII, pp. 206-207.

11 Charles Maigrot, M. E. P., nasceu em Paris em 1652 e partiu para as Missões do Extremo Oriente em 1680. Foi nomeado administrador das Missões da China pelo Bispo François Pallu, M. E. P. Em 1687, foi nomeado vigário apostólico de Fukien e, alguns anos depois, promulgou o famoso decreto contra os Ritos Chineses. Em 1707, foi expulso da China poor Kang-Hi e dirigiu-se a Roma, onde continuou a lutar contra os Ritos até à morte, ocorrida a 28 de Fevereiro de 1730.

12 Giovanni Francesco Nicolai de Leonissa nasceu em Leonissa a 17 de Maio de 1671; ingressou nos Franciscanos em 1671; veio para a China em 1684 com o bispo Bemardino della Chiesa, O. F. M.; foi nomeado pelo bispo chinês D. Gregório Loh provigário das várias províncias que lhe estavam confiadas. Quando o bispo morreu, ficou ele a administrar essas províncias até 1697, ano em que foi para Roma. Em 1696 foi nomeado bispo de Berito e vig. apostólico de Hukuang; por volta de 1706, foi nomeado arcebispo de Mira e vigário perpétuo da Basílica de S. Pedro; faleceu em Roma em 27 de Dezembro de 1737 (Sínica Franciscana, III, 5777, nota 5).

13 Sínica Franciscana, VI, 363.

14 Sínica Franciscana, ib., 364—65.

15 O P. João Mourão n. em Chaves, a 2 de Dezembro de 1681; ingressou na companhia em Lisboa a 22 de Janeiro de 1698. Ainda escolástico, embarcou em 1699, chegando a Macau em 1700 e a Pequim em 1712. Em 1721, acompanhou Kang-Hi a Jehol; caindo doente, com o braço paralisado, veio tratar-se a Macau; voltou cá em 1722, vindo de Cantão. A 10 de Março de 1723 estava de volta a Pequim. A 5 do mês seguinte foi exilado para Sining pelo novo imperador Yong--tcheng e condenado à morte em 21 de Julho de 1726, sendo morto a 24 de Agosto em Si-ning, Tartária.

16 Tajin ou Tay-Yan (tai = grande; yan = pessoa) quer dizer pessoas importantes: tais eram Mourão, o seu secretário e o cirurgião.

17 Kun = oficial, kong = público; aqui Kun kuan significa sala pública ou albergue.

18 Mandarins de Cantão.

19 Cit. pelo P. Pasquale M. D'Elia, S. J., Il lontano confino e la tragica morte del P. João Mourão, S. J., missionario in Cina, Lisboa, 1963, pp. 296-98).

20 Cit. por Pasquale M. D'Elia, S. J., Il lontano confino e la tragica morte del P. João Mourão, S. J., missionario in Cina (1681-1726), Lisboa, 1963, p. 64.

21 Não se trata do governador D. Cristóvão de Severim Manuel (1722-1724).

22 D'Elia, ib., p. 66.

23 M. Teixeira, Macau no Séc. XVIII, Macau, 1984, p. 246.

24 Artur Ley Gomes, Esboço da História de Macau, p. 246. Note-se que o superior em Pequim era o P. José Soares, S. J., e não Mourão.

25 M. Teixeira, Macau no Séc. XVIII, p. 247.

26 Luís XIV nada teve a ver com essa embaixada; Provana foi enviado a Roma e passou por Lisboa, sendo recomendado ao Papa por D. João V, que mandou a Roma um embaixador extraordinário.

27 Tratava-se dum pagode ou templo budista chinês com esse nome, e não de uma capela católica.

28 O P. João Mourão, S. J.

29 O jesuíta Mourão nada omitiu para honrar um outro jesuíta.

30 Nice foi anexada à França em 1860. Provana nasceu em Nice, quando esta fazia parte de Piemonte, em 1662. Falando em 1865, o bispo podia chamar seu compatriota a Provana, que era, no entanto, italiano.

31 Provana era italiano. Em Roma, entre os vários adversários, que se lhe deparam, e que eram os conselheiros do Papa, um era francês, o bispo Charles Maigrot, M. E. P., expulso da China por Kang-Hi por se ter oposto aos Ritos Chineses, o qual muito o fez sofrer; o outro era o bispo italiano Giovanni Francesco Nicolai, O. F. M..

32 Eudore de Colomban, Mgr. Guillemin, pp. 274-78.

*Historiador de Macau, da Presença Portuguesa e da Igreja no Oriente, com mais de uma centena de títulos publicados. Membro de várias instituições internacionais, v. g. a Associação Internacional dos Historiadores da Ásia. Grande Colar e sócio da Academia Portuguesa de História.

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