A Missionação

REIVINDICAÇÃO DE S. PAULO DO MONTE PELOS JESUÍTAS

Benjamim Videira Pires*

INTRODUÇÃO

O Monte de S. Paulo (junto às Ruínas) era "casa de férias" do Colégio-Universidade. D. Fran-cisco de Mascarenhas, 1. º capitão-geral (Governador Militar) da cidade de Macau, apoderou-se do Monte, já quase totalmente fortificado (faltava construir o baluarte nor-nordeste).

Os Jesuítas, porém, protestaram contra o des-potismo, como se vai demonstrar pelo documento seguinte, entre outros, que se poderiam aduzir.

(Documento de três páginas com cerca de 40 linhas cada, numa letra muito recta e perfeita, acompanhado ao lado das notas numeradas A. B. C. D. E. F. G. I. J. K. O. Primeiro, transcrevemos o texto, em letra um pouco maior e não tão apagado como as notas ou comentário. Tudo vem assinado, no fim, pelo Visitador da China e Índia, ANDRÉ PALMEIRO).

«O Sor. Capitam Geral (D. Francisco de Mascarenhas, chegado em 1623) por a Cidade lhe não querer pagar as casas em que morava(,) se foi para o Monte de S. Paulo; mas não hé de crer que entendendo a rezam que há; antes a obrigação que della resulta, para não residir nelle, não desista de tal morada, e trate de tornar para as casas onde morava, ou para outras, que tratarmos se lhe paguem (A).

Primeiramente consta polla escritura, que se offerece, Certidois de officiais da Camara, que naquelle tempo governavão esta Cidade, que a Com-panhia lhe não largou o Monte e domínio que nelle tinha, para usar delle na forma e nas cousas que quizesse, mas só para o poder fortificar, e delle usar em tempo de necessidade da guerra, pois só para esse fim lhe podia ser necessário. Nem os Superiores em cazo que o quizessem fazer, tinham poder para o largar por outra forma, pois o não têm para alienar os bens Eclesiásticos, senão em conhecida utilidade da mesma Igreja, a qual aqui não havia; antes a tal concessão ou alienação muito a encontraria. Como pois a Companhia por vontade própria não alienasse esse Monte como consta dos papéis que se apontam nem ainda o pudesse fazer, como se tem referido, e hé cousa evidente em direito, só se pudera cuidar que não tem hoje o domínio delle, por o Príncipe lhe mandar tirar, julgando ser elle necessário para o bem comum desta Cidade, porque para este effeito têm os Príncipes poder para tirar e dispor dos bens dos par-ticulares, ainda que sejam de Igrejas, pois razão pede que o bem comum a todo o outro se anteponha.

Mas pergunto: por ordem de Sua Majestade, que authoridade de Príncipe, que mandado houve aqui pollo qual se nos tirasse o domínio do Monte? Consta a toda esta Cidade a violência com que nelle se entrou e a injustiça e desordem com que nelle se morou. E acrescento que neste presente caso e cir-cunstâncias que nelle concorrem nem poder havia ou há no Príncipe, porque como sejam bens Eclesiásti-cos, entanto poderia obrigar a se largarem, enquanto elles fossem necessários para o bem público da co-munidade, e como esta obrigação não possa servir ao bem público della antes seja em grande seu pre-juízo, como logo se mostraria, e para o que toca ao bem público a mesma Companhia lho conceda, bem se recolhe que o príncipe não só a não fez, mas nem a podia fazer.

Mas porque parece que o Sor. Vizo-Rey no Regimento que deu ao Sor. Capitam Geral, e em huma carta deste presente anno, significa que o Monte hé da Cidade ou de El Rey, por a Compa-nhia na ocasião da Guerra o ter dado à Cidade. E sendo tal, como tal se deve vigiar e nella devem assistir soldados que o defendam; digo primeira-mente que em caso que isto se dissesse e nesta conformidade ordenasse alguma coisa sobre o Monte, se não pode ou deve deferir a tal ordem, pois consta ser fundada em falsa informação, por-que como se tem dito a Companhia não deu à Ci-dade o tal Monte: mas só para o tempo de guerra o uso delle. E as ordens dos príncipes, que se fundam em informações erradas, nem se podem nem devem dar à execução, principalmente sendo em prejuízo de terceira pessoa, como esta o hé; E hé isto coisa tão certa e conforme à boa razão que não tem ne-cessidade de largas provas que todos os dd (direi-tos) trazem muy copiosas; E sobeja para isto o que diz a Ordenação no lib. 2, tt. o 43 que quando se manda alguma coisa ou provisam do Rey fundada em falsidade, que se diga, ou verdade que se cale, o julgador ou Comissário, a quem for apresentada a não cumprirá nem fará por ela obra alguma. Por/.../onde em caso de que do Sor. Vizo-Rey viesse alguma ordem sobre este negócio, como toda ella se fundava em dizer, ou lhe terem dito a elle que a Companhia dera absolutamente este Monte à Cidade, largando-lhe o domínio que nelle tinha, porque assim o informavam: E isto como já dissemos conste com tanta clareza ser falso, também consta com a mesma, que de tal ordem se não deve nem pode uzar.

E hé este discurso tão fundado em justiça e razão, que chegando a Sua Majestade a queixa que sobre esta matéria tinha a Companhia de D. Fran-cisco Mascarenhas lhe estranhava por carta sua os termos que nesta prestemente teve e referindo o P. António Colaço (Procurador em Madrid) em suma o que Suja Majestade lhe escrevia, dizia as-sim em carta de 26 de Junho de 1626, escrita emMadrid que se mostrou ao Sor. Capitam Geral. A. D. Francisco escreve Sua Majestade que se accomode com a Cidade e com todos e não haja estrondos de guerra, que inquietem aos Chinas e os metta em sospeitas e que os muros que. El Rey da China mandava se ouveram de derribar logo; E não pôr soldados no Monge, que se accomodem com a escritura que a Cidade fez com esse Colégio (De S. Paulo dos Jesuítas). Até aqui a carta do Pe. An-tónio Colaço que como escrevia da Corte e tem tanta entrada com os Conselheiros de Portugal, deve-se de presumir que saberia bem destas coisas. Escreveria o que lá se julgava, que é o que ainda (agora) a razão pede.

Daqui se recolhe como neste caso tem lugar o privilégio da Companhia Verbo Bona Societatis & 2o. (ou 50.) que diz assim: Quicumque ausus fuerit occupare res quascumque etiamsi sit pecunia quae ad personas Societatis, seu domos aut collegia pertinent, nisi a nostris monitus per tridui, spatium omnia integre restituerit, excomunicationis setentiam incurret, a qua nisi a Sede Apostolica et in mortis articulo absolvi non potest. Quer dizer em Português: quem quer que for ousado occupar quaisquer coisas ainda que seja dinheiro que per-tence às pessoas da Companhia ou as suas casas ou colégios, se avisado de algum da Companhia não restituir tudo por inteiro por espaço de três dias, incorrerá em sentença de excomunhão, da qual só pela Sé Apostólica e no artigo da morte poderá ser absolto.

Como pois consta do que temos dito ser o Monte da Companhia e ter-se-lhe tomado contra sua vontade, não se pode negar que incorre esta excomunhão quem faz esta força à Companhia, pois já está advertido della, por escrito e por pa-lavra. E só poderá ter até hoje alguma escusa o Sr. Capitam Geral de não ter incorrido nesta, por não ter plenária notícia desta matéria, o que já (da-qui em diante) não poderá ser assim allegar e as-sim poderá cuidar que não tem isto muita força que cuidar que a não tem o braço e poder do Sumo Pontífice que tal privilégio deu: E daqui entenderá o Sor. Capitam Geral a obrigação que têm os da Companhia de usar deste privilégio: por elles por non usum se costumam perder e os Superiores te-mos obrigação de consciência de ter mão nelles e trabalhar que se nos guardem, ainda que sentirmos a faltar-se nesta parte.

A estas razões de justiça e verdade que nella (se) funda, se ajuntam outras do bom governo, por-que todo elle pede que se remontem as occasiões de se perder ou arriscar o que com trabalho e muito gasto se accomodou; E com a morada dos Capitães no Monte se arrisca toda a fortificação que nella há, porque he coisa sabida, que toda a China dá nos olhos e assombra muito em cabo este Monte de S. Paulo, e que hão os Chinas de buscar ocasi-ões para tirar deles o fruto para elles tão penoso; e terem sobre a cabeça Capitães que os assombram e soldados que em vizinhança tão chegada de força, senão hoje, amanhã se hão-de descomedir; se já a não têm tomado, cedo a descobrirão; E se os Chinas para este effeito puserem a esta Cidade o cerco/.../que os annos atrás lhe puseram, quando se derribaram os muros (do Forte da Palanchica, vol-tados para a Lapa), tudo há-de vir abaixo, porque toda a terra há-de concorrer para isso, se lhe tapa-rem a boca; E posta neste risco por coisa que não importa, nem serve para melhor sua defesa, nem a razão o pede, nem o bom governo o sofre.

Também encontra muito ao bom governo pôr neste Monte os soldados sem nelle serem ne-cessários, pois delle se devassam as casas e os quintais dos moradores desta Cidade e se podem tirar occasiões para solturas que com grande escân-dalo desta terra quando nella moravam se experi-mentaram. E a devassidão que causam a esse Collegio da Companhia hé tão notável que só a pode permitir quem folga de o desgostar. E quem nesta matéria toma conselho com pessoas que só trazem o gosto em o fazer. Nem se atalha a isto com se fazer parede por cima do peitoril de taipa, que vem sobre o Collegio, porque essa hoje se fará e amanhã com razão se desfará, pois desta parte só della se descobre às claras a barra e a entrada della. Como o Monte se fortificou para defensa da Cida-de, muito em particular se fez para a entrada princi-pal que ella tem: E mal poderão sofrer os Capitães e soldados que no Monte residirem taparem-se-lhe os olhos para ver o que mais lhes serve e os pode recrear, pois, com a capa de defensa da Cidade o podem fazer. E cuidar que poderão estar soldados no Monte sem muito empecerem e devassarem este Colégio, só pode ser de pessoa que ou se deixa a si enganar ou o pretende fazer a outros.

Ultimamente, o Sor. Vizo-Rey não manda ao Sor. Capitam Geral que more em o Monte, antes lhe significa que deve morar fora delle, avisando que os soldados que alli vigiarem sejam quietos e de que se não esperam escândalos, deferindo-lhe a fazer casas para os Capitães Gerais contanto que não sejam à custa de Sua Majestade, E não lhe dizendo que vá para o Monte, escrevendo-lhe elle que morava fora delle em casas que na Cidade tomara. Por onde se satisfaz bastantemente à ordem do Sor. Vizo-Rey, vigiando-se o Monte com a facilidade e largueza com que se fez até agora. Ordenando o Sor. Capitam Geral e a Cidade nelle tudo o que para a guerra hé necessário, como o recolher a pólvora, meter artilha-ria, fazer repairos e tudo o mais que se julga impor-tante para a sua fortificação. Tudo o mais que daqui passa, hé tomar o alheio, molestar a terra, desgostar os Religiosos que a ella e a todos servem e que em daram para effeito de sua defensão em tempos ne-cessários este Monte, cortaram muito por si, e enfim se sogeitaram a lhe poderem fazer os sem razões que já padeceram e agora se renovam.

E não deferindo o Sr. Capitão Geral a estas razões, que se lhe apontam, se deixará bem entender, que ir-se ao Monte não foi com o zelo de executar o que lhe mandavam, nem por lhe não pagarem as casas em que morava, mas por querer desgostar a quem lho não merece. E tenho por certo que vendo Sua Majestade e o Sor. Vizo-Rey estas razões por huma parte tão justas e por outra tam congruentes, se darão por mui satisfeitos de o Sor. Capitam Geral lhes deferir, vendo que cumpre bem o seu officio: mandando vigiar neste Monte tanta cópia de solda-dos quanta nestes tempos o fizeram, pois esta forma para tudo o necessário têm posto delle. Antes se pode presumir, que se darão por mal servidos se contra o que a razão pede e a justiça obriga quiser tomar o alheio e arriscar com esta morada a paz e quietação desta terra, tomando por capa deste erro, que por em outro se fundar, não hé bem que tenha lugar. »

(assinado)

André Palmeyro

*Lic. em Literatura Portuguesa e Filosofia, na Universidade de Lisboa. É orientalista e investigador da História Portuguesa no Oriente e da Missão Jesuítica na Ásia, com dezenas de títulos publicados. É governador da Associação Internacional dos Historiadores da Ásia e sócio da Academia Portuguesa de História.

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