Linguística

O Amor de Perdição e o Sonho do Pavilhão Vermelho coincidências de duas tragédias de amor

Wang Suo Ying*

Antes de mais nada, queria dizer que eu e meu marido gostámos imenso das 5.asJornadas Camilianas e agradecemos since-ramente aos seus organizadores por nos te-rem proporcionado uma boa oportunidade para conhecermos melhor a vida e a obra de Camilo Castelo Branco que, apesar de ser um escritor dum país tão distante e tão di-ferente da China, tem conquistado o cora-ção de cada vez mais leitores chineses com a sua obra-prima Amor de Perdição tradu-zida em chinês nos princípios desta década.

A afirmação não é sem fundamento. Para justificá-la, basta citar o seguinte exemplo, além de informar os senhores congressistas de que nos Cursos de Portu-guês das Universidades da China, Camilo Castelo Branco é muito falado nas aulas e o Amor de Perdição é sempre escolhido como livro de apoio no ensino.

Um aluno meu, ao ler nas aulas o ro-mance em português, ficou tão impressio-nado que contou a história à mãe, operária duma fábrica de papel de Xangai. Mais tar-de, saiu a versão chinesa do romance. O ra-paz quis comprar um exemplar, ´ mas como a primeira edição ficou logo esgotada, pe diu-me emprestado o livro que o tradutor me tinha oferecido e a meu marido, para que a mãe lesse. Ao terminar a leitura, disse ao filho: “É uma história muito comoven-te, como o nosso Sonho do Pavilhão Ver-melho”.

Cabe, então, perguntar: o que é o So-nho do Pavilhão Vermelho? Trata-se de um romance clássico, considerado a maior e também a mais complicado obra da his-tória da literatura chinesa, da autoria de Cao Xue Qin, o maior e também o mais complicado escritor chinês. O romance tem como tema principal não só as vicissi-tudes e decadência duma família nobre, como também a tragédia amorosa de dois jovens aristocratas rebeldes. Aparecem mais de cem personagens de todas as cama-das sociais, cada qual com a sua maneira de ser e temperamento próprios, de modo que a obra consta de três volumes e totaliza mais de um milhão de caracteres chineses.

O que aconteceu à mãe do meu alu-no, tinha-o experimentado eu também. Quando li pela primeira vez o Amor de Perdição, escolhido dentre os títulos da bi-blioteca básica de literatura portuguesa oferecida pela Fundação Calouste Gulben-kian e pelo Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, senti-me tão fortemente co-movida que passei a esforçar-me por co-nhecer a vida e a obra desse “primeiro ro-mancista da Península”. Limitada, porém, pelas condições, só consegui ler alguns, poucos, livros dele e sobre ele, entre os quais Camilo Castelo Branco, de autoria do Dr. Ale-xandre Cabral. O livro é ópti-mo para quem queira conhe-cer Camilo. Embora muito limitadas, estas leituras basta-ram para eu nutrir uma grande admiração pelo romancista, cuja família da nobreza rural decaída, cuja vida particular cheia de desgra-ças, cujo espírito rebelde contra a so-ciedade sua contemporânea, cujo enge-nho incomparável como abnegado “operário” das letras portuguesas e cu-jas obras, sobretudo o Amor de Perdição, me faziam lembrar sempre Cao Xue Qin e a sua obra. Fiz então, em 1982, um trabalho que foi uma tentativa de estudo comparativo entre as duas tragédias amorosas - So-nho do Pavilhão Vermelho e Amor de Perdição. Hoje, quando apresento aqui o essencial do meu tra-balho, preciso esclarecer que “não sou camilianista no sentido restrito do termo (...). Julgo que não posso invocar outra qualidade que não seja a de leitor”, usando as palavras do Dr. Bigotte Chorão no seu li-vro Camilo, a obra e o homem que li recentemente com grande interesse. Mas o Dr. Bigotte Chorão é um leitor inteligente e sensível, como disse ontem o Dr. Manuel Simões, e é um grande camilianista, como me indicava o senhor Faria quando visitámos a casa de Camilo em S. Miguel de Ceide. E eu sou apenas uma leitora muito vulgar e simples e, como leitora es-trangeira, li pouco - pois na China não consegui en-contrar muitos livros de Camilo, por motivos óbvios.

Muitos puseram e põem-me dúvidas, ao sabe-rem que fiz uma comparação entre uma obra chinesa e outra portuguesa. “Serão comparáveis? ”, “Serão parecidas? ”, perguntaram e perguntam. Mas eu sem-pre entendi que o campo em que o estudo compara-tivo se aplica é muito vasto e multifacetado, e vai desde o conteúdo, a expressão e a criação até aos efei-tos sociais provocados pelas obras submetidas à com-paração; e que, além do mais, ele visa, simultanea-mente, as afinidades e as disparidades. Considerando que cada país (neste caso a China e Portugal) tem a sua história, a sua cultura, o seu tipo de sociedade e a sua economia próprias, e as experiências pessoais de cada escritor se diferenciam, não podemos pretender encontrar duas obras literárias gémeas; mas também, visto que a história universal apresenta frequente-mente desenvolvimentos surpreendentemente afins e existem intercâmbios e contactos entre os vários paí ses, não é absurdo que surjam al-gumas obras literárias revelando pontos muito ou relativa-mente semelhantes, neste ou naquele aspecto, quer por in-tenção, quer acaso. O amor é um tema mundial e eterno na pena dos escritores, e é curioso verificar que as duas tragédias amorosas, narradas no Amor de Perdição e no Sonho do Pavilhão Vermelho, são consideradas as mais notáveis e as mais comoventes das his-tórias literárias dos dois países, a China e Portugal, cujos protagonistas, jovens e ingénuos amantes, foram submetidos à fatalidade do amor irrealizável, vendo-o destruído e estrangu-lado pelas mãos implacáveis dos entes queridos. Por-tanto o meu trabalho implica a análise de três aspec-tos: 1. do conteúdo concreto dos dois amores; 2. das motivações sociais que determinam o comporta-mento dos heróis; 3. das influências das vidas dos au-tores na suas obras.

É-me difícil condensar um trabalho de cerca de 50 páginas numa intervenção de meia hora. Vou omitir algumas partes para tentar ser mais concisa e explícita. Entro logo no resumo da tragédia amo-rosa de Bao Yu e Dai Yu descrita pelo romance chi-nês.

A família Jia é fidalga. O herói, Jia Bao Yu, nasce com um jade precioso dentro da boca, motivo por que lhe dão o nome de Bao Yu, que quer dizer Jade Precioso. Com ele vivem, na casa dos Jia, uma prima chamada Lin Dai Yu e outra chamada Xue Bao Chai. Desde a chegada de Xue Bao Chai, espalha-se a notícia de que ela tem uma jóia de ouro, presente de um monge que predissera que a menina só poderia ca-sar-se com um homem que tivesse jade. Mas à medida que o tempo passa, na convivência com as duas pri-mas, entre outras raparigas, Bao Yu sente-se cada vez mais apaixonado por Dai Yu, enquanto os pais e a avó falam do casamento de ouro e jade, e decidem casar Bao Yu com Bao Chai e separar os dois apaixonados. Aproveitando-se de Bao Yu estar doente, dizem-lhe que vão casá-lo com Dai Yu. Só depois de terminar a cerimónia matrimonial, quando retira o pano verme-lho que, segundo o costume chinês da época, cobre a cabeça da noiva, Bao Yu descobre que foi enganado. Enquanto se realiza a cerimónia, Dai Yu morre deses-perada e indignada. Destruído o seu sonho bonito, Bao Yu foge de casa para ser monge, deixando a mu-lher como viúva.

Camilo Castelo Branco cujo centenário da morte se comemora este ano (+1.6.1890)

A propósito deste enredo, gostaria de explicar dois aspectos muito importantes:

1. Nota-se muito bem no romance a combina-ção da realidade com a fantasia e a interpenetração de dois mundos, o real e o imaginário, facto esse que o autor logo declara no começo do primeiro capítulo, confessando que esconde coisas verdadeiras roman-ceando uma história falsa. Por isso, a família que serve de palco ao desenrolar da trama chama-se Jia, que é o homónimo do carácter chinês “falsidade”, e os heróis têm origens fantásticas.

Diz o autor que, no mundo divino, cresce uma erva que se transforma em fada por ter sido regada to-dos os dias por um criado dum palácio celestial. A fada decide acompanhar o criado na sua descida até ao mundo humano para, com as suas lágrimas de toda a vida, que é a vida da heroína, pagar a dívida de água que tem para com o criado, que é o herói. O criado traz consigo um jade precioso, ou seja uma pedra que tem espírito, na qual está escrita toda a viagem que mais tarde fará ao mundo humano. Por isso o ro-mance é também conhecido por História duma Pe-dra. É absurdo tudo isso? Vamos responder com um poema do próprio autor no primeiro capítulo:

“Palavras absurdas por todo o papel.

E lágrimas tristes e dolorosas!

Todos dizem que o autor é tolo.

Mas quem conhece o sabor disso? ”

2. O romance chinês conta actualmente com 120 capítulos, sendo os primeiros 80 escritos por Cao Xue Qin, e o resto por Gao E. Dizem que Cao já ter-minara toda a obra, mas perdeu a sua última parte por motivos até hoje desconhecidos ou não confirmados. Felizmente, no 5° capítulo, cujo conteúdo é um so-nho do herói, o autor já nos prediz de modo vago o fim trágico das personagens mais importantes do ro-mance, especialmente a tragédia amorosa dos heróis Bao Yu e Dai Yu, o que constitui a base da continua-ção da história para os escritores posteriores. O facto de podermos hoje ler a tragédia completa de Bao Yu e Dai Yu deve-se a Gao E, que foi o único que conse-guiu com êxito reconstituir a obra, descrevendo a rea-lização do casamento de jade e ouro, a morte de Dai Yu e a fuga de Bao Yu. Mas, para falar verdade, atri-buir-lhe esse êxito não significa negar que ele também modificou, em certo grau, a ideia original de Cao Xue Qin quanto à tragédia amorosa, sem falar ainda do destino das outras personagens, a quem ele quase sempre deu um fim um pouco cor-de-rosa. Quanto à linguagem, o último terço também se mostra bastante inferior aos dois primeiros e por isso os leitores chi-neses, apesar de aceitarem a conclusão que Gao E dá ao Sonho do Pavilhão Vermelho, nunca o vêem com os mesmos olhos com que vêem a parte escrita por Cao Xue Qin e nunca colocam os dois autores no mesmo nível. Se se indaga quem é o autor do Sonho do Pavilhão Vermelho, quase toda a gente responde que é Cao Xue Qin, o maior escritor-chinês.

À primeira vista, ou (eu invento uma expressão portuguesa) ao primeiro ouvido, as duas histórias são muito diferentes; mas, penetrando-nos delas, pode-mos verificar que existem muitos pormenores seme-lhantes, entre os quais se salientam a pureza, a fideli-dade e a fatalidade do amor irrealizável, e a atitude dos pais quanto ao amor.

A meu ver, as duas tragédias amorosas em con-fronto implicam cada uma três pessoas, todas jovens aristocratas, dentre as quais: os dois amantes, Simão e Teresa, com Bao Yu e Dai Yu, de um lado; Baltasar e Bao Chai, do outro. Os primeiros são indomáveis e rebeldes, mal-vistos pela família e a sociedade; os se-gundos, modelos de bom comportamento e bem-vis-tos por elas. Podemos dividir essas seis personagens em três pares, segundo a sua posição frente ao amor e desenvolver a análise par a par.

Existem muitas coisas comparáveis entre Simão e Bao Yu.

Em primeiro lugar, ambos são muito jovens, tendo mais ou menos a mesma idade.

Em segundo lugar, ambos são de grande inteli-gência, facto que tem muita importância no desenvol-vimento do enredo, pois faz com que os dois pensem, meditem e procurem a sua própria saída, sem obede-cer cegamente às imposições da família e da sociedade.

Em terceiro lugar, ambos são insatisfeitos com a família e a sociedade, e rebeldes em relação a elas.

Teresa e Dai Yu revelam pontos comuns em muitos aspectos:

Têm quase a mesma idade.

Ambas são filhas únicas e órfãs desde pequenas, o que contribui para formar o seu temperamento e es-pírito rebelde.

Fisicamente, ambas são frágeis e morrem de tí-sica, doença crónica que as faz sofrer por longos me-ses e com que os escritores costumam vitimar as he-roínas das tragédias amorosas, na minha opinião, para tirar efeito do seu sofrimento.

E sobre Baltasar e Bao Chai:

Embora um seja homem e a outra mulher, am-bos desempenham papel semelhante, o de substituir--se a um dos amantes, impedindo-lhes a união matri-monial.

Por que razão conseguem eles vencer os respec-tivos adversários e ser escolhidos pelos chefes de fa-mília? Porque o seu comportamento corresponde às exigências das sociedades em que vivem. Mas, afinal, os dois não saem vencedores e têm um fim também triste: Baltasar é morto a tiro e Bao Chai é abando-nada como viúva, pois na China antiga as mulheres só podiam casar-se uma vez na vida.

Como já disse atrás, nos dois amores em con-fronto destacam-se a pureza, a fidelidade e a fatalida-de. Então onde está expressa essa ingenuidade e a que ponto consegue chegar? Durante vários anos, desde o dia em que Simão e Teresa se enamoram à primeira vista até ao das suas mortes, os dois quase nunca con-seguem ver-se nem falar muito de perto, cara a cara. O que os dois pretendem e procuram antes do casa-mento, através das cartas, é a união dos corações e a fidelidade espiritual e não contactos carnais nem rela-ções corporais. Bao Yu e Dai Yu, morando sempre sob o mesmo tecto, não conhecem a intimidade e o contacto físico. Esforçam-se pela conquista espiritual e a união dos corações, sem se impacientarem com a consumação carnal. Esperam observar a honra da fa-mília num casamento oficial e assim alcançar o seu objectivo, como nas outras histórias amorosas da China antiga. Em comparação com Manuel, irmão de Simão, que fugiu com a mulher dum companheiro, e com os tios e os primos de Bao Yu, que violam as mu-lheres, os amores dos nossos protagonistas são tão puros e sublimes como os belos lotos sem mácula, que crescem na lama imunda.

A fidelidade do amor manifesta-se em que os heróis nunca desviam a atenção do amante idolatra-do, nem mudam de atitude sob qualquer pressão ou situação. Simão é amado também por Mariana mas, mesmo sendo ela mais bonita, mais saudável e mais li-vre que Teresa, ele sempre a trata como a uma irmã e nunca abusa dela. Porquê? Porque a única mulher a quem ama é Teresa. Bao Yu também se concentra na paixão por Dai Yu, ainda que Bao Chai seja mais bo-nita, mais saudável e mais rica que ela. Ele é um se-nhor nobre que gosta de todas as raparigas bonitas mas, em termos de amor, só ama Dai Yu. Uma vez, jura à sua amada que, se ela morrer, ele se fará monge; e mais tarde cumpre de facto o juramento.

E as duas mulheres, são também fiéis ao amor? É curioso lembrar aqui alguns episódios semelhantes que mostram o poder do seu amor, senhor das suas vidas e das suas mortes.

Ao saber que Simão é condenado à forca, Te-resa entra em agonia mantendo só um fio de vida. Mas quando chega a notícia de que é anulada a pena capi-tal, ela restabelece-se; para finalmente, ciente de não poder realizar neste mundo o seu amor, com a partida de Simão para a Índia, acabar por recair e morrer. Este processo de agonia, restabelecimento e morte de Teresa é prova eloquente da sua fidelidade ao amor, pelo qual abandona os bens, a liberdade e até a vida. O mesmo processo experimenta Dai Yu que, ao ouvir que determinam casar Bao Yu com outra, fica doente e, dias depois, entra em agonia esperando a morte; e só se restabelece quando sabe que afinal está engana-da. Mas meses depois, ao saber que a notícia do casa-mento de ouro e jade é exacta, morre finalmente.

Dois amores tão puros, tão fiéis e profundos, estão predestinados, porém, a ser esmagados. Os he-róis sacrificaram tudo por amor, mas não conseguem conquistar o direito ao casamento, e o amor inocente acaba num fim trágico. Eis o fatalismo que os dois ro-mances revelam, o qual tinge as histórias de um am-biente sumamente trágico, pois na verdade ele é im-posto aos amantes por mãos humanas. Os pais obri-gam os filhos a aceitar o casamento que não querem, abandonando o homem ou a mulher a quem amam, o que impõe a fatalidade às tragédias. Portanto, pode-mos concluir que o fatalismo expresso nesses dois amores não é realmente sobrenatural, é imposto pela família, pela sociedade, pela época, que os jovens ino-centes não têm força para vencer só podendo escolher a morte ou a fuga.

Já que as interferências dos pais são os directos causadores das tragédias, não podemos deixar de ana-lisar a sua reacção ou a sua atitude quase idêntica, ante filhos tão rebeldes e amores tão puros, mesmo sendo uns portugueses e outros chineses.

Ambos querem esmagar a rebeldia dos filhos.

Ambos não deixam que os filhos sejam donos do seu amor e casamento, e preferem condená-los à morte a conceder-lhes a liberdade. Tadeu, ao ouvir que a filha recusa o amor do primo, diz irado: “Hás--de casar! (…) Quando não, (...) Morrerás num con-vento! ”A avó de Dai Yu, ao saber que a neta entra em agonia por motivo do casamento de ouro e jade, diz abertamente que se a causa da doença dela não fôr essa, está disposta a gastar todo o dinheiro para que se trate, mas se é por isso, não tentará salvá-la.

E porque é que os chefes de família, entes queri-dos dos heróis, agem dessa maneira, mesmo sabendo claramente que a destruição do amor dos jovens equi-vale à destruição das suas próprias vidas? Vejamos o que eles dizem, para compreender essa atitude cruel e desumana.

Quando sabe que a ciência condena Teresa à morte próxima, o pai diz: “Que a não desejava morta, mas, se Deus a levasse morreria mais tranquila e com a sua honra sem mancha”. A avó de Dai Yu confessa que é ela mesma a culpada da morte da neta, mas diz que “as crianças, como brincavam juntas desde pe-quenas, podiam ser amigas, mas agora, que já são grandes e percebem as coisas, devem manter-se afas-tadas. Eis os deveres e obrigações das raparigas ”. Por-tanto os amores, mesmo puros, parecem ilegais, man-chas na honra e infracções, aos olhos dos chefes de fa-mília.

Para defender a chamada honra dos aristocratas e as ditas obrigações, os chefes de família matam com as próprias mãos o amor e a vida dos filhos. Vale a pena falar aqui um pouco sobre Romeu e Julieta.

Alguém me disse que o Amor de Perdição se aproxima mais de Romeu e Julieta que do Sonho do Pavilhão Vermelho. É bem verdade que a história portuguesa e a história inglesa têm por tema comum o amor dos filhos de famílias inimigas, mas acho que os factores imediatos que desencadeiam a tragédia não são de forma nenhuma os mesmos. Em Romeu e Julieta, as duas famílias ignoram o amor dos jovens, não intervêm nele, não o impedem ou estrangulam directamente e também não é pouca a gente que se dispõe a ajudá-los. O motivo que desencadeia a tra-gédia amorosa é puro resultado duma confusão, alheia às intenções dos protagonistas. Além disso, a morte dos jovens promove no final a reconciliação entre as duas famílias, o que faz com que todos os lei-tores sintam, pelo menos, um sabor doce dentro da amargura, que funciona como uma espécie de recom-pensa, ao lerem o fim da história. Mas no Amor de Perdição, com excepção do amor acontecido entre duas famílias que se o deiam uma à outra, o desenro-lar das peripécias romanescas toma rumos completa-mente diferentes. A implacabilidade dos entes queri-dos, os sacrifícios dos namorados e a perdição no amor lembram-me sempre as várias cenas do ro-mance chinês. Neste aspecto parece-me que estas duas obras são muito mais próximas.

No Amor de Perdição, após a morte de Balta-sar, Mariana desempenha um papel cada vez mais im-portante. E no romance chinês, a menina Qing Wen parece-me, em alguns aspectos, poder ser comparada com Mariana.

Qing Wen é uma criada muito bonita, muito audaciosa e muito independente, como Mariana, mas o que existe entre ela e Bao Yu é um amor desinteres-sado. Essa divergência, porém, não impede as duas raparigas de serem auxiliares no amor dos seus ami gos ou, mais concretamente, de serem duas mensagei-ras e fazerem por eles todos os sacrifícios. Qing Wen também morre por Bao Yu.

Passemos agora à vida de Cao Xue Qin.

Muito se tem discutido, durante várias dezenas de anos, sobre as datas de nascimento e falecimento deste grande homem que, segundo certa opinião, te-ria nascido em 1715 e outra, em 1724; e teria morrido em 1763, conforme alguns afirmam, e em 1764, con-forme outros declaram.

O trisavô do escritor ganhou honrarias por fa-çanhas nas guerras dos Qings contra a dinastia ante-rior (dos Mings) e tornou-se, daí por diante, cada vez mais rico e influente. A bisavó era aia do imperador Kang Xi e o seu marido, ou seja, o bisavô do escritor, foi encarregado de ser mandarim de tecelagem em Jiangning, cargo lucrativo dado sempre aos homens de confiança do imperador. Quando morreu o bisa-vô, o avô e depois o pai, foram sucessivamente her-deiros do cargo, segundo a ordem do Imperador Kang Xi. O avô ganhou especial confiança e admira-ção do Imperador que se serviu da casa dos Caos, como palácio provisório, 4 vezes durante as 6 pere-grinações que fez ao sul do país, facto que também aparece no romance.

Em 1722, o Imperador Kang Xi morreu e o seu 4ō filho conquistou o trono através de manobras e in-trigas. Para consolidar a sua posição, começou a eli-minar os partidários do pai e dos irmãos e mandou expropriar os bens da família Cao em 1727. Assim se extinguiu a riqueza e a influência dessa família, que ti-nha vivido por mais de 60 anos no sul do Rio Yangtsé e foi vítima das intrigas políticas da casa imperial, se-gundo a opinião da maioria dos estudiosos.

Cao Xue Qin nasceu na cidade de Nanquim e foi com toda a família para Pequim, após a expropria-ção. Onde morava e como passou a sua juventude nessa cidade são perguntas a que ninguém consegue responder, por nunca se terem encontrado documen-tos relativos a tal período. Tudo o que podemos saber através dos poemas dos seus amigos, é que na última parte da vida habitava nos subúrbios a oeste da Capi-tal e dedicou dez anos à sua obra Sonho do Pavilhão Vermelho. A vida era tão pobre que a família toda só podia comer arroz em sopa e ele, libertino e aprecia-dor de vinho, via-se obrigado a vender pinturas que fazia, para beber e sustentar os seus. Em 1763 ou 1764, morreu o seu único filho, facto que lhe provo-cou um grande choque e acelerou a morte desse gran-de homem, pobre e doente.

Conhecida a vida de Cao Xue Qin, gostaria de, relacionando as influências, nos romances, das expe- riências pessoais dos autores, estudar e comparar os seguintes aspectos:

1. Ambos os romances são combinações de ex-periências verdadeiras e inventadas, e portanto, têm um poder sumamente comovedor.

Sonho do Pavilhão Vermelho é um romance com certo carácter autobiográfico. Alguns estudiosos acham que o modelo de Bao Yu é o próprio Cao Xue Qin ou o tio dele, mas penso que o autor não está a descrever a sua genealogia e história, antes a fazer criação literária. Ele fundiu a própria família e vida no conteúdo da obra acrescentando-lhe o que observou, sentiu, experimentou, viu e ouviu.

Camilo nunca deixa de afirmar, ao longo do ro-mance, que o Amor de Perdição é a história amorosa do seu tio, mas na realidade a história parece-me muito semelhante em alguns aspectos aos amores do próprio autor com Ana Plácido. E podemos dedicar a Camilo muitos dos comentários feitos atrás a Cao Xue Qin. No fim de contas, tanto Simão como Bao Yu são personagens extraídas da vida (vida individual e vida social) e recriadas pelos autores, motivo pelo qual concentram um grande poder de comoção.

2. Ambos os romances descrevem a revolta dos jovens contra as injustiças, contra os pais tirânicos que escolhem a noiva do filho, ou seja, descrevem e condenam o velho mundo.

Os dois autores levam uma vida pobre e amar-ga, Cao Xue Qin caído do extremo luxo na extrema miséria e Camilo, perseguido toda a vida pela po-breza e desgraça, o que os torna mais sensíveis às in-justiças dos dois velhos mundos, e os faz escrever com sangue e lágrimas os amores ingénuos dos jovens inocentes.

3. Ambos os romances pintam a fatalidade e o poder sobrenatural de vidência.

4. Ambos usam uma linguagem rica e adequada, apropriada a cada personagem e situação.

A inteligência prematura, a instrução desde pe-quenos, o emprego hábil da língua materna e a meti-culosa observação do mundo exterior dos autores são, em minha opinião, os motivos principais que conduzem a tão grande êxito artístico.

5. Ambos os romances são muito apreciados pelos leitores, bem acolhidos por eles e têm repercus-sões profundas neles, de geração em geração.

Creio que sem a experiência e o talento combi-nados, de Camilo e Cao Xue Qin, não poderiam ter vindo à luz estas obras com forças vitais tão podero-sas e que os nomes dos autores, assim como as suas obras, ficarão eternamente no mundo como monta-nhas e rios, e brilharão como o Sol e a Lua.

Quase a terminar, gostaria ainda de referir os seguintes pontos:

1. Sempre achei que tanto a obra de Camilo Castelo Branco como a de Cao Xue Qin são miniatu-ras ou pinturas vívidas dos dois mundos em que vi-viam, próximos no tempo e no seu sistema social; portanto, muitas personagens, muitos hábitos e cos-tumes, muitos asssuntos descritos nas suas obras po-dem ser comparáveis. Por exemplo, Camilo estava sempre a favor das mulheres e Cao Xue Qin também. Vale a pena comparar as mulheres que eles põem em cena.

2. Como professora de português percebi, no exercício da minha profissão, que existem muitas ma-térias literárias susceptíveis de serem comparadas, en-tre a China e Portugal. Cite-se por exemplo a tragédia amorosa de D. Inês e D. Pedro I, que inspirou muitas obras literárias, das quais pretendo salientar a tragé-dia “Castro” de António Ferreira e as estrofes que Camões lhe consagra em Os Lusíadas. E, por coinci-dência, na história chinesa houve duas tragédias amo-rosas semelhantes: Uma foi a de Yang Tai Zhen, con-cubina favorita de Tang Ming Huang, um imperador da dinastia Tang, cantada pelo célebre poeta BaiJu Yi no seu famoso poema Ode ao Ódio Eterno e por muitos outros. A segunda foi a de Zhen Fei, concu-bina preferida do imperador Guang Xu da dinastia Qing, que se transformou num tema inesgotável de dramas, filmes, etc..

Virá a surgir alguma vez um estudo compara-tivo desses amores?

(Texto da conferência apresentada pela autora nas “Jornadas Ca-milianas”, em 21 de Julho de 1988, em Vila Real).

© Copyright Carlos Marreiros(desenho de 1990)

* Professora de Português da Universidade de Estudos In-ternacionais de Xangai (Departamento de Português); in-vestigadora de temas da Cultura portuguesa. Bolseira do ICALP, prepara neste momento a tradução de “A Queda de um Anjo” (Camilo Castelo Branco) para língua chine-sa.

desde a p. 123
até a p.