Artes

Auguste Borget

Robin Hutcheon*

As pinturas de Auguste Borget - viajante, escritor e artista francês - estão expostas em al-guns, poucos, museus provinciais de França, em-bora constituam parte de um importante legado das primeiras manifestações de Arte Ocidental em Hong Kong, Macau, China, Filipinas e Índia.

Nunca foi considerado como um dos gran-des artistas da França. Viveu no tempo em que os grandes Mestres franceses eram Delacroix, In-gres, Gericault e Jacques-Louis David, que con-quistou a fama com o seu quadro As Sabinas. Mas apesar de Gericault ter morrido num acidente quando montava a cavalo, com 33 anos de idade, e de os Bourbons terem banido David por ter sido o pintor da corte de Napoleão, Borget nunca foi suficientemente dotado para caminhar pelos seus próprios pés e lhes arrebatar a paleta.

Borget nasceu em Issoudon, uma vila do centro da França. Foram os romanos que pri-meiro a colonizaram, parte de uma cadeia de pos-tos avançados espalhados pela Gália. Outro con-quistador, o rei inglês Ricardo Coração de Leão, construiu uma torre de vigia numa colina da vila (que é ainda hoje a principal atracção turística) e, na Idade Média, foi famosa pelo seu hospital, que é agora o seu Museu.

Hoje, é uma vila de província muito sossega-da, conservadora, arrumada e limpa, mas tam-bém monótona. Não é difícil compreender por que o inteligente e perspicaz Auguste Borget dela fugiu.

O pai era banqueiro e queria que o filho se-guisse as pisadas familiares. Mas Auguste tinha outras ideias, e tinha tido bons resultados no De-senho, na Escola provincial da vizinha cidade de Bourges.

Tendo tido um cheiro da vida numa grande cidade, quis viver em Paris e aí prosseguir a sua carreira.

O pai não gostou da ideia e insistiu para que ficasse no banco até aos 21 anos; mas percebeu então que não era para ali que se inclinava o cora-ção do rapaz e, com alguma relutância, mandou-o para Paris, para casa de uma família amiga.

Afortunadamente, os Borgets fizeram uma boa escolha na família Carraud. O Carraud mais velho tinha assinado o assento de baptismo de Auguste e o Major Carraud tinha uma esposa jo-vem e vivamente atraente, chamada Zulma.

Foi com Zulma que Auguste travou uma fir-me e duradoura amizade, que viria a desempe-nhar um papel importante na sua vida. Não há ne-nhum indício de que esta relação não tivesse sido puramente platónica, tendo a amizade do jovem Borget com a família durado muitos anos.

Foi pela mão da Senhora Zulma Carraud que Borget veio a conhecer Honoré de Balzac, o jovem escritor inquieto, exaltado e excêntrico, e os três estabeleceram uma relação de amizade muito estreita. De acordo com relatos da época parece que, além de dividirem um apartamento, Balzac e Borget tinham em comum a arte, a litera-tura e a boa vida de Paris. Balzac tinha admiração pelo seu jovem amigo e esse sentimento expres-sou-o em diversos escritos seus. Por essa altura, tinha muitos romances com senhoras da alta so-ciedade e estava muito ocupado com a publicação dos seus livros. A partir de 1829, Balzac começou a conceber a sua obra magna, “La Comédie Hu-maine”, programada para cento e quarenta e três volumes distintos. Em grande parte devido aos seus inúmeros devaneios, conseguiu completar somente noventa e um volumes, antes de morrer aos 51 anos.**

Balzac estava seguro da sua grandeza no mundo da literatura e acreditava que o seu jovem amigo estivesse calhado igualmente para grandes feitos, pelo que, juntamente com Zulma Carraud, encorajou-o a desenvolver as suas técnicas no campo das artes. Tal como muitos outros jovens desse tempo, Borget estudou e viajou por toda a Europa mas, a certa altura, cansou-se de Paris e da sua vida com o amigo Balzac e decidiu fazer uma pausa. Partiu então para uma viagem pelo mundo, decidido a pintar e a desenhar o que ia vendo.

É possível que tenha sentido que estava a progredir lentamente e que precisava de novas in-fluências, à semelhança de outros mestres france-ses, como Delacroix, que decidiram viajar. Era isto que muitos jovens franceses faziam na época e, ao decidir-se pela viagem, Borget estava a tri-lhar caminho já concorrido.

Não eram raros os artistas viajantes nesses dias; todos os barcos que se deslocavam ao Ex-tremo Oriente levavam a bordo alguém para re-tratar ou desenhar porque nessa altura, anterior ao advento da fotografia, o desenho era a única forma de registar as impressões visuais.

Assim, a nossa história dessa época tem um vasto espólio de imagens, desenhadas ou pintadas por homens como William Alexander, que acom-panhou a expedição de MacCartney à China em 1782, John Webber, que acompanhou o Capitão Cook nas suas viagens de descobertas, e John Gould e Conrad Martens que acompanharam Charles Darwin na sua viagem no “Beagle”, que veio a dar origem à sua teoria da evolução das es-pécies.

Havia centenas que desenhavam ou pinta vam nas suas viagens, mas cuja produção era parca de originalidade ou de interesse específico pois as suas obras desapareceram ou não merece-ram atenção especial. Todavia, Borget tinha uma habilidade que o faz respeitado e foi, por certo, um dos doze principais artistas ocidentais a visitar o Extremo Oriente há mais de cento e quarenta anos.

Primeiramente, decidiu atravessar o Atlân-tico e, com um jovem amigo chamado Guillon, viajou do Havre, em 25 de Outubro de 1836, para Nova Iorque. Aparentemente, os seus conheci-mentos de inglês na altura limitavam-se ao que aprendera no liceu, mas tal não o impediu de di-vagar por terras americanas, tendo deixado algu-mas belas imagens do Rio Hudson, com moinhos nas suas margens, e algumas vívidas descrições da cidade. Trabalhava durante a semana e aos do-mingos dedicava-se aos desenhos.

Escreveu a sua mãe afirmando que Nova Iorque era “certamente uma das mais bonitas, mais bem construídas, mais ricas e mais industrio-sas cidades do mundo. O seu crescimento fabu-loso e a sua riqueza esplendorosa fazem-na um dos mais interessantes pontos de estudo do glo-bo”.

No entanto, com a chegada do Inverno, o seu fascínio por Nova Iorque, Hoboken, Nova Jersey e o Rio Hudson começou a dissipar-se e de- cidiu ir para o Rio, para fruir o sol. Embarcou em Janeiro de 1837 e, com o seu amigo Guillon, levou dois meses para chegar ao Rio de Janeiro, em Março. Maravilhado com a cidade, o seu sol es-caldante, pássaros exóticos, flores coloridas e ve-getação luxuriante, enviou inúmeros postais para a sua mãe e amigos, Zulma Carraud e Balzac.

Ficou impressionado igualmente com a es-cravatura e a forma como os negros eram tratados e com o contraste entre a opulência e a pobreza. Seguidamente, dirigiu-se para Montevideo e Buenos Aires onde deparou com o governo de terror do tirano xenófobo Juan de Rosas, um ca-valeiro gaúcho difícil, bêbedo e duro. Decidiu atravessar o continente e foi assim que testemu-nhou a verdadeira extensão do horror do governo de Juan de Rosas, pois os índios eram perseguidos por bandos de gaúchos.

Fez uma viagem de cerca de 650 quilóme-tros, a cavalo, através das pampas. A coragem de Borget era de espantar. Viajar na época não era bem uma excursão turística. A certa altura do seu itinerário subiu os Andes, à altitude de três mil e trezentos metros, em pleno Inverno. Através das suas descrições da paisagem fica a saber-se que era geografia muito agreste.

Apresenta-se a seguir o que Borget escreveu depois de deixar Córdoba, na Argentina, e du-rante a sua viagem para Mendoza: “Oito dias de-pois de partir, a nossa caravana avançava lenta-mente em direcção a uma região desconhecida, levada às apalpadelas pelos guias. Atingimos o cimo de um imenso planalto, triste e deplorável, onde desaparecíamos entre o capim, muito alto, que nos tapava o sol”.

Mais tarde escreveu: “Subitamente, depa-rou-se-nos um abrupto precipício, tão extenso que o perdíamos de vista. Só após uma longa pes-quisa levada a cabo pelos nossos guias é que en-contrámos uma passagem através da qual as nos-sas mulas poderiam descer. Contudo, no sopé do declive tudo piorou. A vegetação era tão densa, tão emaranhada por trepadeiras que se enrola-vam à volta das árvores, que foi necessário abrir caminho com machados e facas até que encontrá-mos uma clareira, n uma zona de poucas árvores”.

De Mendoza atravessaram os Andes e, fi-nalmente, através da passagem de Uspallata, diri-giram-se para o vale de Santa Rosa de Los Andes, até chegarem ao Chile. Ficou tão aliviado e feliz por se encontrar no Chile que escreveu o seguin-te: “Se existisse um lugar na Terra, um mundo onde a minha viagem pudesse ter terminado, esse lugar é o Chile”. Aí encontrou um céu maravilho-so, ar puro, vales de grande beleza e gente hospi-taleira.

Foi no Perú que conheceu o artista alemão Maurice Rugendas com quem aprendeu muito, o que lhe veio a ser útil na sua carreira de artista. Nesta atmosfera agradável e calma, Borget esteve prestes a dar finda a sua viagem e a permanecer ali. Todavia, passados alguns meses, começou uma vez mais a ficar impaciente, e apanhou um barco para o Extremo Oriente, via Honolulu.

Também aqui nos deixou algumas cativan-tes cenas da vida nas ilhas. Criticando os missio-nários ocidentais que se encontravam a trabalhar no Havai, escreveu: “Que Deus permita que aqueles que estão incumbidos de educar esta gente sub-desenvolvida levem a bom termo a sua missão. Mas espero que estes seres simples e pri-mitivos, que vivem junto deste mar maravilhoso nas suas modestas habitações, à sombra dos co-queiros, não padeçam consequências graves com a sua rápida iniciação à forma de viver europeia e que a nossa civilização não os mate como matou os índios da América do Sul”.

Deixou as Ilhas Sanduíche (nome dado ao Havai na altura) no dia 14 de Julho de 1838 e diri-giu-se para a costa chinesa, viajando para norte até Amoy, antes de regressar ao estuário do Rio das Pérolas e Hong Kong.

Visitou Hong Kong, e não só desenhou co-mo escreveu sobre o território. As suas faculda-des de escritor e correspondente, provavelmente estimuladas pelo contacto com Balzac, deram ori-gem à publicação de dois livros e de muitos arti-gos, depois do seu regresso a França, em 1840.

E que escreveu Borget sobre Hong Kong? Vagueou pelas colinas estéreis e campos, atrain-do a atenção de muita gente quando se sentava a pintar a paisagem. Um artista atrai sempre muita gente e a população de Hong Kong sentia curiosi-dade de ver este jovem estrangeiro a trabalhar. Possivelmente em Shaukiwan ou Causeway Bay, encontrou um grande aqueduto de bambu; desco-briu que havia uma pujante indústria de constru-ção naval que construía juncos, lorchas e peque-nas embarcações à vela para os comerciantes es-trangeiros que viviam em Cantão e Macau.

Borget escreveu: “Vi algumas belas escunas em construção e os engenheiros que fazem os pro-jectos e supervisionam os trabalhos contam com a técnica dos carpinteiros chineses. À volta do esta-leiro, estabeleceu-se uma pequena aldeia flu-tuante e uma densa população habita no incrível número de barcos que a conformam. Inicialmen-te, só havia jogo, outras casas de perdição e um teatro. Crescentemente, mais barcos se foram congregando, até que a povoação atingiu as for-midáveis dimensões actuais.

“Infelizmente, a libertinagem e a imorali-dade têm proporções assustadores... Por vezes, um junco de guerra ou um barco do mandarim vêm investigar as condições da população, mas satisfazem-se com meras formalidades de inspecção, partindo em seguida e deixando tudo tão mal como estava”.

Em Hong Kong, um funeral a que assistiu valeu-lhe os seguintes comentários: “Um dos membros da povoação morreu e prestavam-se--Ihe as últimas homenagens; sentado a pouca distância, num barco miserável escorado por blocos de rocha, um velho observava a cerimónia, talvez pensando que a sua vez estava próxima e que a morte viria pôr fim à sua miséria. Parecia estar só no mundo; em sua volta, não havia sinais de família, nenhuma criança para alegrar a sua habita ção solitária, ou para receber o seu último suspiro e fechar-lhe os olhos.

“A pouca distância daquele lugar que aca-bava de ser visitado pela morte, mas onde não vi lágrimas, havia grupos de pessoas sentadas; algu-mas estavam a cozinhar, outras a jogar; aqui pra-zer, ali morte, ou mesmo luto. De onde vem esta insensibilidade: Será carência de afecto, ou será que para eles a vida é mais um peso do que uma bênção? Será que pensam que depois da partida desta vida não haverá mais motivo para o pesar? Ao ver esta gente pobre, não é efectivamente di-fícil compreender-se por que não chora quando algum troca o difícil destino, a que o seu nasci-mento e civilização o condenam, pelo asilo do eterno descanso.

“Esta morte sem lágrimas confrangeu-me”.

Borget surpreendeu-se com a indústria de plantas dos habitantes de Hong Kong e Kowloon e gostou das hortas omnipresentes e campos de arroz. Escreveu também muito detalhadamente sobre o que viu em Macau e no interior do estuá-rio do Rio das Pérolas, tendo deixado agradáveis comentários sobre as pessoas e os locais que visi-tou.

Feitorias europeias em Cantão.

Em Cantão, foi a um “restaurante onde os jovens da moda se empertigavam, alguns fuman- do compridos cachimbos, outros abanando-se com leques, nas mais grotescas e divertidas atitu-des. O estabelecimento é famoso e é frequentado pelos que têm prazer em comer e beber, sabo-reando todas as iguarias do país, sentados em pe-quenas mesas isoladas”.

Mas Borget não simpatizou com a comida chinesa. “Tenho de admitir que o aroma que nos chegava não nos fazia invejar o seu prazer. O cheiro de gordura e óleo de resina queimada, que constantemente saía das cozinhas, afastaria qual-quer europeu que tentasse aproximar-se das me-sas para provar as delícias”. Numa zona de Ma-cau, Borget descobriu uma povoação composta de velhos juncos e sampanas, ao largo. “É impos-sível a um europeu, mesmo depois de ver, imagi-nar como é que tanta gente pode viver num es-paço tão apertado. Ouvi-me bem e tentai fazer uma ideia justa do que vos vou contar. Os primeiros a chegar apoderaram-se do solo e aí puseram os seus barcos velhos, que já não podiam ir para a água; os que vieram depois cravaram fortes pru-mos de pau a toda a volta e assim fizeram um an-dar por cima dos outros, quer içando os barcos, quer, não os tendo, estabelecendo um sobrado, que rodearam de esteiras, e com cobertura seme-lhante. Outros vieram mais pobres ainda e, não tendo terreno, nem barco, nem sobrado, nem es-tacas, anicharam-se no intervalo deixado entre as duas outras habitações, suspenderam as suas ca mas de rede e, por pouco segura que seja tal mo-radia, chega contudo para uma família inteira. Por vezes uma só escada serve cinco ou seis habi-tações; não há nem direitos adquiridos para uns, nem sujeição para os outros”.

Posteriormente, Borget teve a oportuni-dade de subir essas escadas, tendo descoberto que, apesar da escassez do espaço, a varanda im-provisada estava repleta de flores. “Senti um pra-zer infinito por encontrar alguma poesia no meio de tantas privações. Vivem tão amontoados que têm dificuldade em descobrir nos seus tugúrios lu-gar para o altar doméstico que, contudo, não falta em parte nenhuma (…)... de manhã à noite ofe-rece-se chá a esta divindade e acende-se-lhe uma velinha vermelha”. Todas as faces que viu espe-lhavam alegria e “sempre que têm um momento livre, jogam aos dados. Ao menor grito que se oiça, todas as casas que parecem desertas se ani-mam num instante, vê-se formigar inumerável quantidade de cabeças e perguntamo-nos de onde saem e como tanta gente se pode alojar em tão pouco espaço”.

Baía e llha de Hong Kong.

Em Cantão, escreveu sobre "o fabuloso la-birinto de ruas muito estreitas, movimentadas e barulhentas; os peões são numerosos, atarefados, e os vendedores ambulantes não se incomodam de embater contra nós, com o seu carregamento. É, por isso, muito difícil encontrar um espaço va- zio onde nos possamos sentar com um álbum”.

Embora as paisagens pintadas e desenhadas por Auguste Borget sejam bem conhecidas, tomei conhecimento da sua visita à China somente en-quanto escrevia sobre outro artista, mais famoso e muito mais profissional. Trata-se de George Chinnery, que chegou a Macau, vindo da Índia, em 1825 e que aí permaneceu até morrer, em 1852. Chinnery conheceu Borget durante a visita que este efectuou a Macau de 1838 a 1839, pare-cendo que não foi um encontro esporádico uma vez que passaram algum tempo juntos. É óbvio que Borget viu os álbuns de Chinnery, e que apre-ciou a sua pintura.

Não se sabe se o jovem Borget (na altura com 30 anos) teve lições de Chinnery, que tinha então 64 anos; mas sabe-se que trocaram quadros e que a obra de Borget revelou grandes melhorias depois da sua estadia em Macau. Assim, somos tentados a acreditar, na ausência de provas con-cretas, que estudou a forma de trabalhar de Chin-nery, particularmente com o lápis, e que foi gran-demente influenciado por ele. De facto, alguns dos quadros de Borget sobre Macau são tão pare-cidos com os de Chinnery que, por vezes, é neces-sária uma observação cuidadosa para os conse-guir distinguir.

Mas há uma diferença. Borget não se limi-tou a copiar os quadros de Chinnery, desenvolveu o seu próprio estilo de trabalho. Por exemplo, an-tes de visitar Macau, a pintura ou o desenho de fi-guras humanas e particularmente das fisionomias nunca foram o seu forte, mas melhorou muito du-rante e depois da sua estadia neste território. Aprendeu igualmente a virtude da simplicidade porque as figuras de Chinnery eram quase carica-turas, esboçadas com escassos e simples traços. Depois de visitar Macau, Borget nunca se deteve muito nas fisionomias das suas figuras, mas ten-deu a seguir o estilo de Chinnery. Contudo, foi sempre um bom desenhador e os seus desenhos têm qualidade pela clareza e equilíbrio de linhas, assim como pela sua vivacidade; incluem cenas de Cantão, Rio das Pérolas, Macau e Hong Kong.

As viagens de Borget podem parecer monó-tonas, mas ele era o tipo do aventureiro que gos-tava de desafios e que por vezes corria riscos para os satisfazer. Por vezes, surgiam-lhe naturalmen-te. Já se fez referência ao regime de Rosas e aos seus terríveis gaúchos, na Argentina. A travessia dos Andes em pleno Inverno, assim como os ter-ramotos que passou no Perú, foram outros desa-fios que teve de enfrentar. Foi apanhado por uma tempestade quando atravessava o Oceano Atlân-tico e, no Mar da China, viu-se no meio de um tu-fão. Em Macau, e apesar da xenofobia que gras-sava, visitou o acampamento das tropas do Co-missário do Ópio, Lin Tse-shu, nas vizinhanças, uma aventura muito arriscada. No entanto, deci-diu não ficar durante a Guerra do Ópio. Partiu, então, para Manila, onde executou mais algumas pinturas; depois foi para Singapura (não se co-nhecendo até à data nenhuns quadros nem dese-nhos desta cidade); seguidamente dirigiu-se para Calcutá, onde permaneceu breve período, ao longo do Ganges, até que regressou finalmente a França.

Portanto, pode afirmar-se que ao regressar a Paris, em 1840, se tinha tornado num pintor e ar-tista mais refinado, mas também tinha mudado radicalmente a sua visão do mundo, indubitavel-mente devido às experiências e encontros que teve nas suas viagens. Retomou a amizade com a Sra. Zulma Carraud e com Balzac, que se man-teve até à morte do grande escritor. Balzac escre-veu uma crítica sobre o primeiro livro de Borget, que não foram nem três colunas nem três páginas, mas que se estendeu por três edições.

Mas, nessa altura, Balzac já se apercebera de que o seu amigo, apesar de ter progredido e amadurecido, nunca chegaria a ter a estatura de um grande artista. Em 1845, um renomado crítico de arte francês, Beaudelaire, escreveu o seguinte acerca de Borget, cinco anos depois do seu regres-so: “Sem dúvida que os seus quadros são muito bem concebidos; porém, eles são infelizmente os registos demasiado formais de uma viagem ou um relatório de costumes”. Muito embora Borget ti-vesse sido galardoado ocasionalmente com meda-lhas de ouro em salões de província; tivesse publi-cado dois livros e ilustrado as obras de outros; e conhecesse a honra de ter sido copiado por um ar-tista britânico, Thomas Allom - faltava-lhe o gé-nio que dá a grandeza e a fama. Todavia, de acor-do com os padrões de quase todas as obras de arte ocidentais, no século passado, os desenhos, agua-relas e até algumas pinturas a óleo de Borget atin-giram alta cotação, tendo até conseguido vender uma obra ao Rei Luís Filipe por mil francos de ouro.

Depois da morte de Balzac, o jovem a quem o autor da “Comédia Humana” tinha cognomi-nado de “O Bom Borget”, afastou-se da vida so-cial para se dedicar à meditação, oração e carida-de. A sua figura está ligada à grande instituição francesa de caridade, a Obra de S. Vicente de Paulo. Vendeu os seus bens e ofereceu o produto aos pobres. Queimou a sua correspondência com Balzac e com a Sra. Carraud e, por isso, esta parte da sua vida ficou indocumentada. Em 1877, mor-reu na pobreza, tendo sido enterrado em Bour-ges, onde estudou, próximo da sua casa de Issou-dun.

Nos nossos dias, diz-se que Borget, sendo artista de pouca nomeada, é todavia quase desco-nhecido em França e que, com excepção do Mu-seu de La Roche, da sua terra natal e da vizinha Chateauroux, a sua obra é ignorada. Há alguns anos, um antigo cônsul-geral francês em Hong Kong, Sr. Yves Rodrigues, teve grande dificul-dade em organizar uma exposição sobre a sua obra. Todavia, é bom saber que os seus quadros são apreciados nesta parte do mundo e espero que a Câmara (Urban Council) ou o “Hong Kong and Shanghai Bank”, no novo edifício, reservem um espaço de exposição permanente das obras de Borget.

Foi um dos melhores artistas europeus a visi-tar esta parte do globo, tinha grande apreço pelos chineses e admirava o seu sentidode ordem e si-metria, uma simetria que ele procurou transmitir na sua própria arte e isto foi talvez o seu maior feito da viagem que fez pelo mundo.

Habitações de pobres - Porto Interior de Macau.

Certamente, cada vez mais óleos seus, agua-relas, têmperas e desenhos a lápis irão aparecer no mercado e os preços serão cada vez mais eleva-dos. Por certo Borget teria achado graça ao ouvir dizer que um exemplar original do seu livro bela-mente ilustrado “A China e os Chineses” foi re-centemente posto à licitação por 100.000 dólares de Hong Kong - provavelmente mais do que uma primeira edição de um romance de Balzac.

* Texto retirado do Bulletin of the Oriental Ceramic Society of Hong Kong N°5, 1980-1982, e publicado com autorização da “Oriental Ceramic Society of Hong Kong”.

(Traduzido do original em Inglês)

À esquerda Igreja portuguesa e rua chinesa de Macau.

**NR: Criador efervescente, Honoré de Balzac foi inse-rindo a partir de certa altura (“Le Père Goriot”, 1837), nos seus romances, personagens de obras anteriores. Assim foi amadurecendo a ideia de har-monizar um pequeno universo vivo de seres, “co-mo um mundo completo”. Em 1842, tendo como desejado modelo a Comédia divina do Dante, lem-bra-se de titular o seu ambicioso painel de “Comé-dia Humana”, - onde previa integrar 137 roman-ces. À sua morte, tinha escrito 85 (sem contar com mais seis, inicialmente não previstos) e esboçado 50, trabalho de 20 anos de actividade febril. De emotividade desbordante, inconstante, Balzac irá apaixonar-se sucessivamente por várias mulhe-res ao longo da sua vida. Depois de Laure de Ber-ny, seguem-se Zulma Carraud (1824), a duquesa de Abrantes (1827), a marquesa de Castries (1832) e a condessa Hanske (1833) que desposará em 1850.

A paixão e ligação íntima de Balzac com Zulma Carraud é um facto que lança alguma luz na biogra-fia parisiense de Auguste Borget.

* Nasceu em Xangai em 1928, e fez estudos naquela cidade e na Austrália. Ingressou no jornalismo, trabalhando no “Syd-ney Morning Herald” e depois no “China Mail”. De 1967 a 1986 foi director do “South China Morning Post”. Investiga-dor de temas de História do litoral chinês, interessou-se tam-bém pela arte, tendo colaborado em revistas e publicado um livro sobre Georges Chinnery. Vive actualmente na Austrália, onde prossegue as suas investigações de História da China.

desde a p. 97
até a p.