Antropologia

Religião popular chinesa e povoamento de Macau

Jonathan Porter

Tradicionalmente, a China conheceu e foi moldada pelos princípios e deuses de três grandes ramos religiosos: o Tauísmo, o Confucionismo e o Budismo. Com o passar dos séculos, eles foram coexistindo na História e dentro da nação chinesa, mas sem estatuto de exclusividade, isto é, sem que os povos chineses, na sua maioria, tenham adoptado e seguido as leis de um só deles. O que se gerou historicamente foi um ecletismo com contributos de todos eles, num sincretismo designado por “religião popular chinesa”. Nesta estampa popular resume-se o panteão das principais figuras das três religiões. Ao centro, de cima para baixo, estão Yu Huang, o Imperador de Jade, Mestre dos tauístas, Guan Di (Kuan Tai em cantonense, o Deus da Guerra e da Literatura), encarnação das virtudes confucianas e Buda, ladeados dos seus principais discípulos. Á direita de Buda está, de túnica branca, Guan Yin, e à esquerda Tian xian niangniang, deusa tauísta da fecundidade. Guan Diestá, como sempre, acompanhada pelo seu guarda-costas Zhou Cang e pelo seu filho Guan Ping. À extrema esquerda do Imperador de Jade estão o Preceptor Celeste e Zhao Wang, o Deus do Fogão. À direita, na vertical, as divindades tauístas do Céu, da Terra e da Água. (Sanjiao, as três religiões. In “L’imagerie populaire chinoise”, col. do Museu do Ermitério, Leninegrado).

Segundo a lenda, um comerciante foi salvo por uma Dama Celestial que apareceu na proa do seu navio durante uma tempestade. Em agradeci-mento, o comerciante dedicou um templo a Má--Tsu (Á -Má)**, a Rainha do Céu, junto às rochas do promontório para onde tinha sido levado a sal-vo. Esta lenda é uma prova de que a ligação dos templos a Macau vem de longa data (1).

Dos santuários mais simples aos maiores e mais pomposos templos, a vertente chinesa da ci-dade reflecte uma complexa hierarquia de divin-dades e facções religiosas. Em contrapartida, a outra face da cidade é projecção da confissão ca-tólica, cristã. Embora o templo de Má-Tsu só te-nha sido formalmente fundado no reino de Wanli, dinastia Ming (1573-1621), cerca de vinte anos após o início do povoamento de Macau pelos por-tugueses, existia um santuário ou templo que era o edifício mais antigo de Macau (2) e que fora construído antes da chegada dos portugueses.

Não é clara a origem do culto de Má-Tsu, sendo também obscura a sua vida como figura his-tórica. Tratava-se de uma dama da família Lin, da Província de Fujian ou Zhe Jiang, nascida no sé-culo VIII, X ou XII, e o seu pai era um funcioná-rio subalterno, talvez tauísta. Diz-se que morreu muito jovem, sacrificando a vida a salvar mem-bros da sua família ou barqueiros. Foi, por isso, deificada (3). O seu culto tornou-se muito popu-lar entre marinheiros e pescadores, e espalhou-se por todas as regiões marítimas da China (4). Má-Tsu foi reconhecida pelo imperador nos primór-dios da dinastia Ming e a prova disso é que, em 1431 e 1432, foram erigidas placas em sua honra e o seu templo em Fujian foi restaurado pelo grande eunuco Zheng He, que pretendia a sua protecção porque, na altura, estava envolvido em expedições marítimas no Oceano Indico (5).

Santuários como este eram comuns nas coli-nas rochosas destas ilhas; as divindades a que eram dedicados eram veneradas pelos pescadores locais porque esperavam que lhes assegurassem pescarias abundantes e os salvassem das tempes-tades. Conforme se pode verificar pela lenda da origem do templo de Má-Tsu, os naufrágios devi-dos a tufões e tempestades tropicais eram fre-quentes. A perda de navios no mar era um perigo constante que os portugueses e holandeses ti-nham de enfrentar nos mares do Sul e do Leste da China. Paralelamente, a perda de mercadorias e provisões valiosas causava problemas às comuni-dades portuguesa e chinesa de Macau.

Actualmente, Má-Tsu não é a única divin-dade cultuada no santuário. Há uma outra figura, Guan Yin (Kun Yam)**, a “santa” budista modelo de misericórdia, cuja presença num templo mais pequeno, localizado na zona rochosa superior da colina, exemplifica o ecletismo típico da religião popular chinesa. O que torna maior o templo de Má-Tsu é, todavia, o número e disposição dos santuários a ela subordinados em edifícios mais pequenos. O aspecto actual é muito diferente do que tinha no século XIX porque, como é caracte-rístico dos templos chineses, foi periodicamente renovado e reconstruído.

Outro templo relacionado com Tian Hou (Tien Hau)**, a Rainha do Céu, está localizado numa zona inóspita conhecida por Ma Jiao Shi (“Rochas do Cavalo-Dragão”), na parte nordeste da península. Embora não se conheça a sua idade, é indubitavelmente um dos mais antigos templos de Macau. Foi em tempos um local muito agradá-vel, frequentado por pescadores de uma povoa-ção vizinha, mas actualmente está escondido por fábricas construídas em aterro.

Havia, espalhados por estas ilhas e costas, muitos templos dedicados ao modo de vida dos pescadores e outros homens do mar. Nem todos eram consagrados a Má-Tsu. Na ponta ocidental da ilha de Coloane, virado para o templo de Má-Tsu em Macau, na direcção da "Passagem do Cruzamento” (Shi Zi Men), está situado um mo-desto templo dedicado a Tan Gong, um deus dos pescadores. Tan Gong, "Senhor Tan", é tido como "imortal" (xian), mas a lenda sobre a sua origem refere que foi o último imperador da di-nastia Song, o mais novo de três irmãos. Morreu somente com oito anos, durante o exílio dos Song, na última fase da conquista da Província de Cantão pelos mongóis, em 1279. A população lo-cal começou a venerá-lo e o seu culto está limi-tado às zonas costeiras limítrofes de Macau e Hong Kong.

Sakyamuni, Amitabha e Maitreya, os três “budas preciosos” (câmara de entrada do templo de Kun Yam).

TEMPLOS "OFICIAIS"E CRESCIMENTO DA CIDADE

A história dos templos de Macau reflecte o desenvolvimento do seu povoamento. Antes de os portugueses povoarem a península e esta se ex-pandir com o comércio, não havia zonas cons-truídas. Os templos mais antigos relacionavam-se com as preocupações práticas dos escassos ocu-pantes e pescadores, localizando-se todos em zo-nas rurais. A excepção era aquele que deve ser o templo mais antigo de Macau, o Guan Yin Tang (Kun Yam Tóng)**, erigido na então vila de Wang Xia (Mong Há), na parte norte da península, nos campos entre as colinas de Wang Xia e da Guia. A vila de Wang Xia era a única área povoada antes de os portugueses chegarem e o seu templo pare-ce ter sido construído pelos ocupantes de Fujian, durante a dinastia Yuan (1279-1368). Contudo, era muito mais pequeno do que é actualmente (6). Após reconstruções e alargamentos sucessi-vos, especialmente na dinastia Ming (1627), atin-giu as dimensões e relevo actuais, sendo o mais importante, interessante e significativo templo de Macau.

O edifício central compreende três salões sucessivos com altares, sendo o último, e também o maior, consagrado a Guan Yin (Kun Yam). Os escritórios, residências de guardas e monges, e sa-las de reunião encontram-se em alas separadas. Na ala esquerda há vários compartimentos com placas evocativas de paroquianos falecidos fixa-das nas paredes. As capelas fúnebres estão na ala direita, em salas e câmaras.

No primeiro salão do edifício principal, logo a seguir às portas de entrada, encontram-se os três budas preciosos do “Reino Puro do Céu Oci-dental” (na realidade, trata-se das três represen-tações do Buda: Sakyamuni, o Buda histórico, no centro; Amitabha, o Buda do Paraíso Ocidental, à esquerda; e Maitreya, o Buda do futuro, à direi-ta). No segundo salão há outro buda, muitas ve-zes conhecido por Buda Eterno ou o “Deus da Longevidade”. Na parte posterior do terceiro, atrás de grandes placas de altar, está a figura de Guan Yin, deusa da “Compaixão e Piedade Su-premas”. Coberta de cabaias bordadas e com um manto na cabeça, torna-se impossível distinguir as suas feições Guan Yin é objecto de um dos cul-tos chineses mais difundidos, já distante das suas origens budistas indianas, como transposição fe-minina do bodhisattva A valokitesvara, o “Sobe-rano Compassivo”. Quase todos os templos de Macau, independentemente do seu grau de im-portância, têm esta deusa. Talvez seja por isso que os seus devotos tenham dificuldade em distin-gui-la de Tian Hou, a Rainha do Céu, ou mesmo até da Virgem Maria.

Salão e altar do templo de Bao Gong.

Antigamente, havia um mosteiro adjacente ao templo, que era também sede de actividades sociais e administrativas. As autoridades chinesas que visitavam Macau ficavam instaladas neste mosteiro porque consideravam que era o lugar com mais dignidade, pois não estava ainda com-prometido com o povoamento levado a efeito por estrangeiros, a sul de Wang Xia, para além dos campos e da colina do Monte. Em 1731, o templo tornou-se na sede de um juiz assistente (xian cheng), nomeado para supervisionar e adminis-trar a justiça junto da população chinesa, que também estava a crescer, e para tratar de assuntos relacionados com os estrangeiros (7). Assim, templos como este tinham e têm funções religio-sas e seculares. Ao contrário de muitos templos chineses, este está de-votado exclusivamente ao budismo. Todavia, o papel importante que tem nas cerimó-nias fúnebres chi-nesas demonstra uma forte mis-tura de confucio-nismo ancestral com budismo chi-nês.

Quando Macau cau se aproximava do apogeu da sua prosperidade, resul-tante do comércio com o Ja-pão, no fim do Século XVI (1592), construiu-se o Lian Feng Miu (“Templo do Pi-co do Loto”), no sopé norte da colina de Wang Xia, próximo do Porto Interior. Mais tarde, foi várias vezes chamado de “Templo Novo” para o distinguir do templo antigo de Guan Yin, em Wang Xia. Ficava virado para a passagem que ligava a península ao continente. Os chineses achavam que Macau tinha a forma de uma flor de loto, sendo o ist-mo o caule e a península o botão ou a flor. Ao estreito chamavam “Caule do Loto” e ao cume da colina de Wang Xia, ime-diatamente atrás do templo, "Pico do Loto"; daí o nome do templo.

O templo de Lian Feng foi sempre mais eclético do que o Guan Yin Tang, com salões para Guan Yin, Tian Hou e outras duas deusas de me-nor relevo que aparecem sempre juntas, a “Deusa da Varíola” e a “Protectora das Mulheres” (8). O seu salão da entrada principal, uma espécie de átrio com uma plataforma empedrada e balaus-trada de pedra rodeada de colunas altas, é o me-lhor exemplo de arquitectura formal de templos em Macau. Desde o início, o templo de Lian Feng era importante devido à sua localiza-ção, na estrada de Xiang Shan, uma ci-dade provincial do continente, que passava por Qian Shan, atravessava o "Caule do Loto" e estendia-se para além de Wang Xia, ao longo da Praia do Patane, até Macau. O templo fi-cava num dos lados da estrada, na passagem que ligava a colina à costa, estando, por isso, estrategi-camente locahzado para vigiar as entradase as saídas da penínsu-la. Por aqui passava inevitavelmente todo otráfego por terra, de epara a península, es-pecialmente o tráfe-go chinês (que rara-mente utilizava asvias marítimas). Ficava muitoperto doportão que os chinesestinham mandado instalar no istmo, cerca de vinte anos antes, em 1573. Deste modo, o templo funcionava como uma estação oficial e residência temporária dos dignitários que visitavam a península. Em 1839, no início da Guerra do Ópio, era um ponto de en-contro das forças militares chinesas e, quando o comissário imperial Lin Zexu se deslocou ao terri-tório, em Setembro, para passar em revista as operações, o templo foi cenário de uma cerimónia e conferência complexas entre chineses e portu-gueses, que eram neutros relativamente a esta guerra. A seguir a esta visita, em Janeiro de 1840, foi indicado para Macau um intendente militar (daotai), que fez do templo de Lian Fenga sua re-sidência (9). A sul do “Pico do Loto” e da colina de Wang Xia, havia um canal, o “Riacho do Loto”, que vindo dos campos desaguava no Porto Interior, a ocidente da estrada que passava pelo templo de Lian Feng e que seguia a costa, para sul, até atin-gir a cidade. Não muito longe da ponte que atra-vessava o riacho, construiu-se o Lian Qi Xin Mi (“Templo Novo do Riacho do Loto”) provavel-mente no século XVII. Trata-se de um edifício complexo com quatro divisões dispostas lado a lado mas tendo somente uma entrada. Cada uma tem uma ante-câmara e uma sala maior atrás. É um dos templos mais curiosos e interessantes de Macau, um exemplo magnífico do ecletismo da religião popular chinesa. Inclui quase todas as di-vindades imagináveis, um padroeiro para todas as necessidades e funções: fertilidade, riqueza e prosperidade, protecção contra doenças è aciden-tes. Há um altar para as vítimas de mordedelas de cão, outro para solucionar casamentos desfeitos, uma divindade para assegurar o nascimento de varões, outra para garantir muitos descendentes. Muito logicamente, os donativos entregues ao templo ajudam a sustentar um hospital que lhe está adstrito. No salão central está Bei Di, o “Deus do Norte” tauista ou a Estrela Polar, que é conhecido mais formalmente por Xuan Tien Shang Di, o “Deus Supremo do Céu Misterioso”. Por vezes, associam-no a Má-Tsu e, tal como ela, é um protector dos pescadores e o seu culto está espalhado pelos mares do Sul da China. É tam-bém um protector contra os incêndios (10). Ironi-camente, Hua Guang, o “Deus do Fogão”, en-contra-se noutro compartimento. Em várias zo-nas deste templo, figuram também Huá-Tó, um médico do século III que foi deificado como o pa-droeiro dos médicos; Cai Shen, o “Deus da Ri-queza”; deuses para cada ano de vida; Guan Di, o “Deus da Guerra” e padroeiro da literatura e dos sábios, uma figura deificada que remonta igual-mente ao século III; e Guan Yin, a"Deusa da Mi-sericórdia" budista. A ante-câmara do salão, à esquerda, é parti-cularmente interessante, pois inclui outra figura quase histórica e os seus companheiros míticos. Encontram-se cobertos por uma bandeira borda-da, que contém a seguinte inscrição: “O Buda Sa-grado Tripitaka da Dinastia Tang”. Xuan Zang, um monge da dinastia Tang que fez uma peregri-nação à Índia em 629 d. c., e os seus míticos com-panheiros são objecto de um romance satírico e extravagante chamado Xiyu Ji (“Viagem ao Oci-dente”). No romance, Xuan Zang é conhecido por Tripitaka, os três tesouros sagrados do budis-mo; fazia-se acompanhar de um macaco com po-deres sobrenaturais, um porco palhaço e uma pes-soa. Todas estas figuras se encontram no altar, com relevância para Tripitaka. Todavia, o maca-co, que adquiriu o papel de uma divindade popu-lar menor, ocupa a posição de honra, no centro. A popularidade do macaco pode ser explicada pelo seu poder de vencer qualquer obstáculo em nome das pessoas que representa, assim como pela sua irreverância verbal ou espiritual em rela-ção ao sistema. À esquerda do altar está Guan Di e à direita Bai Ma JiangJun (“Cavalo Branco Ge-neral”), que se diz ser filho do “Rei Dragão dos Mares Ocidentais” e que se transformou em ca-valo para levar Tripitaka. Esta figura aparece se-paradamente em muitos outros templos (11). A identificação dos templos chineses ou a di-ferenciação dos seus objectivos é difícil. Por exemplo, as oito salas ou capelas independentes do templo do "Riacho do Loto" podem conside-rar-se distintas, sendo o edificio um condomínio de divindades. Apesar disso, uma sala pode ser partilhada por duas ou mais divindades, por vezes no mesmo altar. Guan Yin, que tem uma posição de relevo no templo de Wang Xia, neste ocupa uma posição subalterna em relação a BeiDi: à sua frente, no mesmo altar, mas muito mais pequena. Todavia, neste caso, está vestida como Má-Tsu com a qual é muitas vezes confundida. Ao todo, estão representadas neste templo pelo menos de-zanove divindades diferentes; se se levar em conta as de menor im-portância, haverá umas cento e vinte e três divindades. Algu-mas aparecem em mais do que um local em zo-nas diferentes do tem-plo. Em termos gerais, o templo do “Riacho do Loto” pode-se clas-sificar de tauista (da mesma forma que o templo de Wang Xia Guan Yin é budista) porque as suas divin-dades se associam ge-ralmente ao tauismo popular. Contudo, pa-ra além da presença de Guan Yin, este templo tem muitos sinais de bu-dismo. Se não se adoptar uma definição panteísta do tauismo, há muitos outros deuses e deusas, nem tauistas nem budistas, que podem ser identi-ficados com o vasto substrato espiritual da reli-gião popular chinesa: o “Deus da Terra” local, o “Deus da Riqueza”, os “Deuses do Ano”, etc.. Pode-se também afirmar que o templo do “Ria-cho do Loto” exibe actualmente uma composição espiritual diferente daquela com que foi construí-do. As placas honoríficas e os quadros remontam aos finais do século XIX e princípios do século XX. O que se vê presentemente é resultado de um lento crescimento, originado por um século ou mais de alterações e modificações que reflectem as diferentes crenças e interesses dos chineses que foram povoando Macau, particularmente os re-cém-chegados. Era frequente a reconstrução de templos, muitas vezes com uma nova concepção, algumas vezes devido a incêndios. O cenário rús-tico original do templo alterou-se completamen-te; actualmente, encontra-se rodeado por um bairro, tendo sido construído um cinema muito próximo. O riacho e a ponte há já muito que desa-pareceram. ^^A BUROCRACIA ESPIRITUAL Os templos maiores são somente o topo de uma hierarquia, ou melhor, de várias hierarquias, incluindo santuários e templos mais pequenos e as divindades que neles se encontram repre-sentadas. As casas e lojas chinesas, assim como outros estabele-cimentos, têm peque-nos altares na zona posterior da sala prin-cipal, virados para a porta de entrada. Es-tes altares são maiori-tariamente dedicados a Guan Di ou a Má--Tsu. Guan Di é co-nhecido pelo “Deus da Guerra”, mas o seu nome dá azo a inter-pretações erradas. Se o seu significado não fosse muito mais vas to, o seu culto, como pa-droeiro de numerosos grupos e profissões, não te-ria a importância que tem. Tal como muitas ou-tras divindades chinesas, Guan Dicomeçou como uma individualidade histórica, Guan Yu, um dos grandes heróis da “Idade da Coragem”, a era dos Três Reinos do século III. Foi traído e executado pelos seus inimigos no ano de 220 d. C. Pouco tempo depois, iniciou-se um longo processo de deificação sob o patrocínio imperial de dinastias sucessivas. Em 1594, na dinastia Ming, foi-lhe conferido o título de Di ou “Deus”. Na dinastia Qing, durante a rebelião de Taiping, foi-lhe atri-buído o título supremo de Guan Dafuzi, “Guan, o Grande Sábio e Professor”, igual ao de Confúcio (12). A sua figura é sempre representada por uma personagem enorme de cara vermelha com uma grande barba preta, sentada numa pele de tigre e tendo à sua esquerda o filho adoptivo, Guan Ping, um jovem gentil com um saco de dinheiro na mão, e à direita o seu guarda-costas, Zhou Cang, um homem de aspecto feroz com um machado (13). Dependendo muito da complexidade do santuá-rio, esta cena pode ser pintada, ou representada por uma figura esculpida. Está normalmente co-locado num altar em forma de caixa, com uma prateleira à sua frente para receber as oferendas, um local para queima de incenso e suportes para velas. Em substituição das velas de cera, que se consumiam rapidamente, usam-se agora, como “velas”, lâmpadas eléctricas vermelhas.
Salão de Lin Cai Mui. Em primeiro plano, Ló Hón de Kun Yam Tong.

A hierarquia vai desde este nível mais baixo, dos santuários de bairro e pequenos templos, até grandes templos, que se tornam tanto mais com-plexos quanto mais importante fôr a circunscri-ção. Os templos de bairro (fang), dedicados ao "Deus da Terra" e "Deus da Riqueza e Prosperi-dade", localizam-se em vielas estreitas, na en-trada de pátios e becos sem saída, ou no cruza-mento de travessas. Podem ser formados somente por um altar tipo banco e uma reentrância na pa-rede, sendo pintados a vermelho. Os mais sofisti-cados têm a figura do deus enquadrada por um templo em miniatura. No entanto, alguns têm so-mente o nome inscrito numa ou duas pedras lisas ovais, pintadas a vermelho, que representam o deus. Relativamente aos de maior dimensão, os santuários para o "Deus da Terra" são quase sempre denominados por Fu De Di, “Santuário de Prosperidade e Virtude”. Wang Ding She identi-fica um altar do “Deus da Riqueza”.

Senhor Bao Gong e divindades tauístas (templo de Bao Gong). Senhoras Jin Hua e Dou Mu, deusas tauístas da maternidade (templo de Bao Gong).

Por vezes, um altar dedicado a Tai Shan, ou-tro “Deus da Terra” e o “Deus Tauista da Monta-nha Sagrada do Oriente” (no norte da China, próxima da terra natal de Confúcio), protege a entrada de um bairro contra influências más.

Um pouco mais acima nesta hierarquia es-tão os primeiros santuários dedicados ao “Deus da Cidade”, o protector das muralhas e dos fos-sos, Cheng Huang(15). Sendo inicialmente o “Deus da Terra” local, foi posterior e oficial-mente colocado no topo do sistema do império de Tu Di (16). O seu altar pode encontrar-se nalguns dos maiores templos; o seu próprio templo foi em tempos característico de todas as cidades tradicionais chinesas. Todavia, nesta cidade de Macau, onde não teria tido apoio oficial directo, nunca foi tão importante. A presença mais importante de Cheng Huang em Macau está no templo velho de Guan Yin (Guan Yin Gu Miao), localizado próximo do Guan Yin Tang maior, em Wang Xia, onde um salão lhe é dedicado exclusivamente.

Na China, o Estado apadrinhava muitas vezes cultos religiosos populares como forma de manter a ordem.

Esta atitude tinha em vista favorecer o Estado em detrimento da sociedade local, pois esta podia desafiar a autoridade oficial. Contudo, em Macau, o apadrinhamento oficial da religião popular por parte dos portugueses ficou muito aquém do praticado pelos chineses locais. Ele foi feito em relação à Igreja Católica. Apesar disso, o apadrinhamento oficial chinês, sempre que conseguiu atravessar a fronteira entre a península e o continente, ajudou a reforçar o controle chinês relativamente à actividade da população chinesa. Independentemente do apadrinhamento oficial, divindades importadas como Má-Tsu proporcionaram aos ocupantes vindos de zonas distantes um foco contínuo de identidade, definindo uma comunidade no espaço e no tempo (17).

Na China os templos e santuários faziam parte do quotidiano de qualquer cidade, e as suas funções eram parcialmente religiosas e seculares, parcialmente oficiais e particulares. Os templos maiores tinham um estatuto oficial distinto, traduzido por mastros colocados nos seus adros e placas honoríficas conferidas por imperadores e funcionários. Toda a hierarquia de espíritos, imortais, divindades, deuses e deusas, do nível inferior ao superior, era semelhante à hierarquia burocrática da sociedade secular chinesa tradicional. Era uma forma de burocracia espiritual que espelhava a civil, podendo assim afirmar-se que a vida das pessoas era governada por duas burocra-. cias paralelas (18). A burocracia civil do império chinês tinha um sistema complexo de postos, funções, áreas de competência, títulos e rituais que era comparável à ordem complexa da hierarquia espiritual (19). Os deuses e espíritos locais, tal como os funcionários locais, presidiam aos assuntos locais e assumiam a responsabilidade imediata pelo bem-estar da comunidade local em matérias específicas, especialmente nos aspectos sobre os quais a hierarquia civil não tinha poder, tais como boas colheitas e êxito nos negócios, ou protecção contra desastres naturais. Regularmente, as pessoas informavam os deuses locais de acontecimentos importantes ocorridos na sua vida (nascimentos, matrimónios, falecimentos, azares), ou o departamento oficial responsável pelas estatísticas mais significativas, à semelhança dos católicos na relação com o pároco local (20).

Em paralelo com os funcionários superiores do mundo burocrático, as divindades superiores da hierarquia religiosa tinham, na crença dos chineses, maiores poderes sobre o bem-estar geral, da sociedade. Todavia, a hierarquia espiritual tem também uma definição e organização muito menos precisas do que a civil, e tem poderes mais vastos: assegura a fertilidade ou o nascimento de crianças do sexo masculino, ou dá protecção contra doenças e todos os tipos de azar. Preenche, por isso, o vazio deixado pela burocracia civil, não se tratando de uma mera estrutura paralela alternativa, mas sendo dela complementar. A acção dos "funcionários" espirituais começava quando acabava a dos funcionários humanos.

PROTECTORES E PADROEIROS DE INTERESSES ESPECIAIS: A NOVA CULTURA URBANA

As divindades tauistas originais estavam ge-ralmente associadas a forças e locais naturais, tais como montanhas, ou ocupações e temas rurais dos agricultores e pescadores. Muito poucas ti-nham origens históricas específicas. No tempo em que a península, com as suas colinas escarpadas,era muito mais selvagem, antes de todos os espa-ços livres terem sido ocupados, a sua presença aqui era natural. Posteriormente o fluxo da imi-gração urbana trouxe várias profissões, ofícios e actividades urbanas, juntamente com uma vida de cidade mais complexa, cujo interesse se dirigia para padroeiros populares especiais que tinham muitas vezes começado como figuras históricas e heróis populares.

Kun Yam Tong (interior).

A sul do templo do “Riacho do Loto”, para além dos campos e por baixo da Fortaleza do Monte, havia outro grupo de templos. Estavam li-gados lateralmente uns aos outros, dando a im-pressão de serem um só templo. Localizavam-se fora das muralhas da cidade antiga, não sendo clara a data de construção e desconhecendo-se se a área já estava povoada quando apareceram. É provável que tenham adquirido a sua forma ac-tual no final do século XIX (21). A zona não fica muito distante das Portas de Santo António, no muro que ia desde a Fortaleza do Monte à Igreja de Santo António. Por isso, a estrada que atra-vessa os campos, desde o “Riacho do Loto”, não deveria ter passado muito longe. Os primeiros po-voadores chineses, e à medida que a imigração ia aumentando durante o século XIX, agruparam-se na colina, superior aos campos e muito próxima das muralhas da cidade, cujo nome era o de “por-tas da cidade”.

Estes templos pertencem maioritariamente à tradição tauista, havendo também alguns tem-plos budistas. O salão principal de Bao Gong Miao. o templo à esquerda, alberga o deus tauista Senhor Bau (Bao Gong). Bao Gong é o “Deus da Justiça”, originalmente um magistrado famoso, Bao Cheng (também conhecido por Bao Long Tu) que viveu de 999 a 1062, durante a dinastia Song do Norte, na capital, Kaifeng. Famoso pela sua integridade e honradez, mas traído por fun-cionários corruptos e invejosos, tornou-se natu-ralmente num herói popular e no padroeiro da justiça (22). Está representado sentado e vestido como um funcionário superior, com a cara negra. Todavia, as pessoas dirigem-se a este conjunto es-pecialmente para visitarem Tái Sui, o “Deus do Ano”, que preside noutro salão a sessenta outras divindades inferiores, (o Dang Nian Tái Sui, “Tai Sui do Ano Corrente”), uma por cada ano do ci-clo de sessenta anos (23). Começando no nasci-mento e recomeçando aos sessenta anos, há um deus para cada ano de vida, havendo trinta figuras em fila de cada um dos lados opostos do salão. Noutro salão deste templo, encontram-se figuras especialmente dedicadas às mulheres. Guan Yin, a “Deusa da Misericórdia” e protectora das partu-rientes, está num altar na parte posterior. À fren-te, estão as duas deusas tauistas, Senhora Jin Hũa e Senhora Dou Mu, a “Deusa da Varíola”, ro-deada de dezoito figuras mais pequenas, na sua maioria Senhoras que propiciam fertilidade e crianças do sexo masculino, protegem as mulhe-res durante a gravidez e ajudam à criação dos fi-lhos. Algumas destas figuras têm várias crianças nos braços.

O templo central deste conjunto, o Tái Sui Dian, é dedicado quase exclusivamente ao “Deus do Ano” e seus sessenta deuses subalternos (do ciclo de sessenta anos), repetindo o templo da es-querda. Por cima da porta de entrada para o salão principal está uma imagem de Zhang Tao Ling, identificado pelo título póstumo Tianshi, “Mestre Celestial”, o primeiro “papa” tauista. Zhang vi-veu entre 34 e 156 d. C. (24). Leu os textos ele-mentares do tauismo em criança, com a idade de sete anos. Renunciando a uma carreira no funcio-nalismo, tornou-se eremita nas montanhas cen-trais da China, onde praticou alquimia. Tendo descoberto o elixir da imortalidade, ingeriu uma pílula e tornou-se imortal, sendo considerado um dos principais protectores humanos deifica-dos (25).

No fundo da primeira sala há uns degraus que nos levam a uma porta que dá acesso a outra sala com o altar de Lao Tái Sui, o deus principal do ano, uma espécie de “Pai do Tempo”. O corre-dor à esquerda leva-nos, através de umas escadas, a um templo localizado nas traseiras, num nível superior, onde se encontra uma figura do Buda reclinado. Atrás deste, e ainda mais acima, há ou-tro templo, mas actualmente não é utilizado.

O templo que fica à direita deste interes-sante grupo é formado por várias salas com um grande número de figuras, pequenas e grandes, quase todas identificadas com o tauismo. Por cima da entrada pode ler-se a seguinte inscrição:"Estalagem do General Shi. (Shi Jiang Jun Xing Tai), Salão do Antepassa-do Imortal Lu. À frente da Montanha". Lu Dong Bin, com quem este lo-cal se identifica, foi originalmente um sábio e fun-cionário do século XVIII, natural do centro da China, e que mais tarde se tornou eremita e feiti-ceiro. Fez muitos milagres com uma espada má-gica que lhe tinha sido dada pelo dragão de fogo. Posteriormente, tornou-se no padroeiro dos far-macêuticos (26).

O vestíbulo de entrada dá acesso à capela principal. No altar central está o Senhor Bao, la-deado por Guan Dieo “Deus da Cidade”, Cheng Huang. Todos eles estão rodeados por muitas fi-guras mais pequenas, a maioria das quais sem fun-ção específica. Só Guan Di tem vinte e uma figu-ras.

Altar de Má Tsu ou Á Má (Ma Kok Miu ou templo de Á Má).

Há outros templos tauistas espalhados pelo sopé das colinas, escondidos pelas casas dos anti-gos bairros chineses. Um destes é o pequeno “Templo Antigo de Ná Chá”, na encosta sul da colina do Monte, construído em 1850 abaixo da fortaleza. Posteriormente, em 1896, foi cons-truído outro templo de Ná Chá na colina locali-zada atrás da igreja de S. Paulo (27). Ná Chá, o “Terceiro Príncipe”, é talvez o deus mais bizarro e incerto do panteão tauista. Ná Chá não é um nome na realidade, é a imitação de um som, um grito ou uma exclamação involuntária. Pode ser a transliteração de um nome budista. Segundo a lenda, foi uma figura do fim do segundo milénio a. C., o terceiro filho de um rei. Nasceu em cir-cunstâncias sobrenaturais e, enquanto criança, era um monstro com seis pés de altura (1,80 m). Após muitos episódios horríveis, envolvendo várias divindades poderosas, pôs em perigo a vida de seus pais e suicidou-se com sete anos. A partir daí tornou-se num deus quase imprevisível. Con-duzindo bolas de fogo e brandindo uma lança, fez inimigos sem nenhuma causa ou propósito apa-rentes. Ainda hoje continua a ser representado como uma criança malvada.

Ná Chá é diferente. Como um macaco, é causador de distúrbios e de instabilidade. Talvez seja essa a razão por que nos templos maiores não se encontre frequentemente esta figura, na com-panhia de outras divindades. No entanto, não deixa de ser popular em Macau, mesmo não se en-quadrando bem na hierarquia estável de deuses e espíritos. Esta propensão para abanar o sistema pode parecer aos seus seguidores um aliado pode-roso que deve ser saciado, devendo o seu apoio ser reconhecido quando os outros deuses não res-pondem. Esta burocracia espiritual, tal como na ordem civil, era muitas vezes afectada pela pom-posidade e rigidez. Há, por certo, muita gente que aprecia a capacidade de Ná Chá para romper e ridicularizar o sistema.

Ao ritmo a que a população de Macau cres-cia, os primeiros templos iam sendo rodeados pela cidade, embora alguns tenham sido cons-truídos logo na estrutura urbana. O seu contexto arquitectónico e social alterou-se também. O nú-mero cada vez maior de veneradores aumentava os donativos o que, por seu turno, tornava possí-veis os trabalhos de renovação e alargamento que o sempre crescente número de visitantes exigia. Os trabalhos de restauro incluíam quase sempre melhorias e ampliações. Muitos dos templos de Macau foram reconstruídos sucessivamente nos últimos anos do século XIX e primeiros anos do século XX: o “Templo Antigo” de Guan Yin, em 1867, 1894 e 1908; o “Templo Antigo” de Guan Ti, em 1836 e 1893; e o “Templo Antigo” de Ná Chá, em 1898. Os trabalhos de decoração riquís-sima e os templos mais recentes são um sinal da prosperidade crescente e da importância da ci-dade chinesa. Embora alguns dos projectos de re-construção envolvessem simplesmente a manu-tenção de estruturas antigas, outros projectos mais ambiciosos podem reconhecer-se através da doação, por parte de funcionários e contribuintes chineses, de placas honoríficas esculpidas e fo-lheadas a ouro. Contendo inscrições piedosas, re-montam quase todas à segunda metade do século XIX, o auge da construção de templos.

Nem sempre o crescimento urbano trouxe benefícios. No Bairro do Patane, em tempos uma aldeia a norte da encosta formada pel-a Gruta de Camões e o jardim que a rodeia, há um templo antigo dedicado a Tu Di. Quando foi construído, no final do século XVIII, devia ter uma panorâ-mica sobre as águas do rio, na direcção da Ilha Verde, localizando-se numa zona com muito ar-voredo. Todavia, com o aumento da população chinesa e os aterros feitos na linha da costa onde se implantaram construções e ruas estreitas, foi perdendo as suas características iniciais. Este templo foi sendo menos utilizado e tornou-se par-cialmente numa residência particular.

Houve também alguns templos importantes construídos em zonas urbanas, ligados a merca-dos. O mais antigo é o templo velho de Guan Di no Mercado de S. Domingos, no centro da cida-de, vizinho do Leal Senado. Erigido em 1750, trata-se de um pequeno templo com duas salas. Foi logo de início um importante centro da área, servindo as pessoas que se dirigiam ou deixavam o mercado. Alberga também a “Associação das Três Ruas” (San Jie Hui Guan), uma instituição de beneficência de comerciantes e residentes lo-cais, incluindo a Rua das Estalagens, que é uma das principais, localizada no antigo bairro comer-cial chinês.

Na extremidade oeste da Rua das Estala-gens, que dá para uma praça usada como merca-do, encontra-se outro templo urbano, o Kang Zhen Jun Miu (“Templo de Kang, o Verdadeiro Soberano”) (28). É um templo modesto consti-tuído por um vestíbulo e um grande salão. No al-tar, ao centro, está Kang Da Zhen Jun, "Kang, o Grande soberano Verdadeiro"; à sua esquerda está Hong Sheng Long Wang, o"Rei Dragão Sa-grado", um deus do mar. Finalmente, à sua di-reita está Xi Shan Hou Wang, o “Rei Prometedor da Montanha do Oeste”. Estas divindades são obscuras, pois delas se conhece muito pouco. Os altares e a mesa à sua frente estão cheios de inú-meras figuras mais pequenas e de objectos. Tam-bém não é clara a data de construção deste tem-plo, mas a partir de inscrições parece ser possível afirmar que remonta a 1860. Em Macau, só há mais um templo dedicado a Kang, localizado em Wang Xia, mas encontra-se actualmente encerra-do.

Outros templos foram erigidos em zonas ur-banas na segunda metade do século XIX, tra-tando-se dos de construção mais recente. Ao con-trário dos seus predecessores, que não tinham tantas limitações devido aos poucos edifícios que os rodeavam, os novos templos são geralmente mais pequenos e mais simples.

Altar do templo de Ná Chá. Em primeiro plano vários meninos Ná Chá(sempre figurados de punho erguido).

TOPOGRAFIA CULTURAL

Se se fizer um levantamento dos santuários dedicados a Tu Di, “Deus da Terra”, e Tai San, “Deus da Riqueza”, espalhados pelas ruas e pá-tios de Macau, conclui-se que se encontram nas zonas populacionais chinesas mais antigas da ci-dade. Estas zonas incluem bairros constituídos por ruas irregulares e estreitas que vêm da perife-ria do Porto Interior, entre a Praia do Manduco e o cume da Colina da Penha, percorrendo o centro da cidade, a sul da Fortaleza do Monte, passando pelo Jardim Camões e dirigindo-se para o antigo bairro vizinho do templo do "Riacho do Loto", a norte da Colina do Monte. Estes bairros contêm basicamente casas antigas chinesas e casas híbri-das com traços portugueses e macaenses. No ou-tro lado das colinas, ao longo do Porto Exterior, atravessando os campos antigos até Wang Xia, contendo casas maiores de estilo macaense e eu-ropeu, igrejas e edifícios governamentais, dispos-tos em ruas mais alinhadas, não há santuários chi-neses.

A distribuição espacial dos templos e san-tuários chineses, juntamente com os seus diversos estilos e funções, definem o tipo de povoamento dos chineses em Macau. Os templos mais antigos e maiores estavam localizados na periferia, do templo de Má-Tsu, próximo da Fortaleza da Bar-ra, na extremidade da península, ao templo de Lian Feng, perto do istmo que dá acesso às Portas do Cerco. Outros, como o templo de Guan Yin, em Wang Xia, e o templo do "Riacho do Loto", estavam localizados em áreas abertas, nas proxi-midades das aldeias dos primeiros povoadores chineses. Serviam as necessidades dos primeiros habitantes chineses, pescadores, comerciantes, agricultores, povo e funcionários chineses que vi-sitavam a região. Posteriormente, os templos passaram a ficar no interior deste perímetro, sa-tisfazendo as necessidades de uma população crescente formada por serventes, comerciantes, lojistas, trabalhadores, barqueiros e artífices. Contudo, as dimensões eram limitadas por tudo o que os rodeava, população e construções. As di-vindades representadas nestes templos reflectiam a profusão de cultos e tradições populares trazi-das pelos novos povoadores, muitas vezes oriun-dos de zonas distantes das regiões costeiras da China.

O planeamento da cidade moderna, com as suas ruas largas e alamedas arborizadas que vão desde as zonas a norte e oriente da Fortaleza do Monte até Wang Xia e Colina da Guia, estava re-servado para as grandes casas dos portugueses, macaenses, europeus e chineses de grandes pos-ses. As suas formas regulares, de inspiração pre-dominantemente ocidental, entravam em conflito com a construção de templos e santuários tradi-cionais chineses. Foi, assim, construída em Ma-cau uma fronteira cultural visível e muito real. Mas, torna-se fácil detectar a mistura que foi feita através dessa fronteira; não só os mundos políti-cos e comerciais se encontraram aqui, como tam-bém as tradições culturais chinesas, portuguesas e ocidentais aqui se misturaram até um certo ponto, apesar de se terem mantido independentes nou-tros. Até as inscrições na fachada da igreja de S. Paulo, exortando o público em chinês, são senti-mentos cristãos genuínos.

Quase todas as igrejas portuguesas de Ma-cau ocuparam as zonas mais elevadas da penínsu-la, as encostas das colinas e os caminhos que as li-gavam. A sul, está a Igreja da Penha, localizada no cume da colina com o mesmo nome. A norte desta Igreja encontram-se as de S. Lourenço e de Santo Agostinho. Mais ao norte está a Sé, perto do centro da cidade, cerca do Leal Senado, mas num plano mais elevado. A única igreja que não se encontra num local elevado é a de S. Domin-gos. Continuando para norte, entre a Fortaleza do Monte e o Jardim Luís de Camões, encontram:-se as ruínas da Igreja da Madre de Deus e a Igreja de Santo António. Finalmente, na encosta oposta da Colina do Monte, na direcção da Colina da Guia, está a Igreja de S. Lázaro.

Dois mundos culturalmente muito diferen-tes encontraram-se numa linha imaginária e irre-gular, tal como a confluência de dois rios, ligando estas igrejas e divindo Macau em duas vertentes, a ocidental e a oriental (29). As tradições religio-sas da China e encontravam-se na parte ocidental. No que respeita às igrejas, pa-rece que estas tinham o objectivo de guardar uma fronteira cultural protectora.

Mas a fronteira era ao mesmo tempo uma entrada. Em Macau, havia lugar para um longo processo de infusão cultural originária do Ociden-te, através de elementos culturais como a religião, a arquitectura, a língua e a sociedade, mesmo à entrada da China, mas havia também aculturação chinesa. Os temas e práticas religiosas entravam de ambos os lados e o facto de Macau se encontrar mais próximo da China não diminuiu o seu signifi-cado. Macau era o limiar entre dois mundos que alguns portugueses e chineses conseguiram atra-vessar. Mesmo os que não o conseguiram fazer, lá encontraram pessoas que o tinham atravessado. Pode-se assim afirmar, de uma forma mais figura-tiva, que divindades como Má-Tsu, a “Deusa dos Barqueiros” e Rainha do Céu, Guan Yin, a “So-berana Piedosa e Misericordiosa”, e a Virgem Maria, Mãe de Deus, eram os representantes dos seus mundos e que também se encontraram neste limiar cultural que é Macau.

O original, em inglês, deste texto, virá incluído, como capítulo, no livro do autor “Macau: Culture and Society on the Edge of Two Worlds”, actualmente no prelo.

Buda Reclinado (templo de Bao Gong).

Todas as fotografias que ilustram o texto são de autoria de Mica Costa Grande e foram seleccionadas de uma reportagem documental sobre os templos chineses de Macau.

Recanto do salão principal do templo de Kun Yam.

NOTAS

** NR - À semelhança do que temos vindo a fazer, a mero título exemplificativo e preventivo do leitor, também neste texto in-serimos algumas transcrição fonéticas do Cantonense, corres-pondentes a expressões transcritas do Mandarim pelo autor, que segue a transliteração Pin Yin (sistema oficial chinês de uniformização da transcrição fonética para o estrangeiro). As-sim, assinalámos com asterisco essas expressões, referindo ape-nas algumas das mais conhecidas e correntes designações de deuses e templos no dialecto cantonense, sem o que seriam in-compreensíveis mesmo para o leitor comum de Macau: Má-Tsu (Á-Má); Guan-Yin (Kun Yam); Wang Xia (Mong Há); Tian Hou (Tien Hau); Guan Yin Tang (Kun Yam Tóng); Tu Di (TouTei).

(1). Consultar Ao Men Jilue, de Yin Guangren e Zhang Ru-lin, coordenadores (Taipé: Ch'eng-wen Publishing Co., reedição 1968), pp 73-74; A História de Ma-Kok-Miu, de Padre Manuel Teixeira (Macau: Serviços de Informação e Turismo, 1979). A Rainha do Céu (Tien Hau) é conhe-cida por Má-Tsu (Mãe Antepassada), Á Má (o prefixo 'A' é honorífico), Tian Fei (Senhora Celestial) e Niang Má (Rainha Mãe ou somente Mãe). Esta não foi a pri-meira vez que Má-Tsu salvou marinheiros desta forma. Consultar China's Discovery o f Africa, de J. J. L. Duy-vendak (Londres: Arthur Probsthain, 1949), pp 29.

(2). Ao Men Jilue, pp 73-74; China in the Sixteenth Century: The Journal of Matthew Ricci: 1583-1610, de Nicola Tri-gault, tradução de Louis J. Gallagher (Nova Iorque: Random House, 1953), pp 129. Cf. China Landfall 1513. Jorge Alvares' Voyage to China, José Maria Braga (Ma-cau: Imprensa Nacional, 1955), pp 47.

(3). A Dictionary of Chinese Mythology, de E. T. C. Werner (Nova Iorque: Julian Press, Inc., 1961), pp 503; Chinese Peasant Cults, de Clarence Burton Day (2a edição; Tai-pé: Ch'eng-wen Publishing Co., 1969) pp 83-84.

(4). Actualmente, o culto é muito popular e activo na Formo-sa. Consultar “History and Rhetoric of Legitimacy: The Ma Tsu Cult of Taiwan”, Comparative Studies in Society and History, de P. Steven Sangren, vol. 30, n° 4 (Outubro de 1988), pp 674-697.

(5). Duyvendak, pp 28-30.

(6). China Landfall in, de Braga, pp 47; “Macau Pictoresca” de Braga em Renascimento. Revista Mensal, I, 2 (Feve-reiro de 1943), pp 221.

(7). Ao Men Jilue, pp 122-123. O Juiz Assistente estava sob o comando do Prefeito Assistente para a Defesa Costeira da Autoridade Militar e Civil (muitas vezes denominada Jun Min Fu), localizada logo a seguir à barreira do posto militar de Qian Shan (Casa Branca). A última foi criada em 1730. J. M. Braga, que aparentemente confunde o Juiz Assistente com o Prefeito Assistente, indica 1739 como o ano em que pela primeira vez um funcionário foi destacado para WangXia. “Macau Pictoresca”, pp 222--223. Consultar igualmente The Chinese Repository, de Lijah Coleman Bridgman e S. Wells Williams, Vol. IX, 4 (Agosto de 1840), pp 237-238.

(8). Dou-mu fu-ren ou Dou-mu niang-niang, a “Deusa da Varíola”; e Jin-hu fu-ren, literalmente a “Senhora Digni-ficada”, a Protectora das Senhoras.

(9). Chinese Repository, IX, 4 (Agosto de 1840), pp 238.

(10). Embora muitas vezes deixe dúvidas, Chinese Gods, de Jonathan Chamberlain (Hong Kong: Long Island Publi-shers, 1983) proporciona histórias e características dos vários deuses do panteão chinês.

(11). Consultar Dictionary ofChinese Mythology, de Werner, pp 462.

(12). The Mindof China, de Edwin D. Harvey, (New Harven: Yale University Press, 1933), pp 263-265.

(13). Day, 52-54. Muitos autores identificam erradamente os companheiros de Guan Di com os seus colegas da era dos Três Reinos, Zhang Fei e Liu Bei (consultar Chamber-lain, pp 62).

(14). Consultar Day, pp 59-67, sobre a origem e desenvolvi-mento do culto do "Deus da Terra".

(15). Consultar "School-Temple and City God" de Stephen Feuchtwang, em The City in Late Imperial China de G. William Skinner (Stanford: Stanford University Press, 1977), pp 581-608, sobre os usos e significado do culto do "Deus da Cidade".

(16). Day, pp 67-68.

(17). Sangren, pp687.

(18). Consultar Family, Field and Ancestors: Constancy and Change in China's Social and Economic History, 1550--1949, de Lloyd E. Eastman (Nova Iorque: Oxford Uni-versity Press, 1988), pp 43-44; Taoism: The Partingofthe Way, de Holmes Welch, (Boston: Beacon Press, 1957), pp 137-139; Feuchtwang, 583-592; Gods, Ghosts and An-cestors: The Folk Religion of a Taiwanese Village, de David K. Jordan, (Berkeley: University of California Press, 1872), pp 40-41.

(19). Day, pp 67-68.

(20). Harvey, pp 19-22.

(21). Consultar Pagodes de Macau, de Monsenhor Manuel Teixeira, (Macau: Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1982), pp 155.

(22). A Chinese Biographical Dictionary, de Herbert A. Gi-les, (2 volumes; Taipé: Literature House, 1962), vol. II, pp 618.

(23). Consultar Day, pp 77.

(24). Zhang Daoling é também conhecido por Zhang Ling. Consultar Welch, pp 115, para mais informações.

(25). Day, pp 49-52; Giles, I, pp 43.

(26). Day, pp 111.

(27). Pagodes de Macau, de Monsenhor Manuel Teixiera, pp 142-146.

(28). Coloquialmente, este templo é conhecido por Hong Kong Miu, mas o nome não está relacionado com o porto de Hong Kong, representado por caracteres diferentes na escrita chinesa.

(29). Descrições de viajantes dão uma imagem de Macau divi-dida em duas faces, através da linha das igrejas. Por exemplo, consultar “The Lotus Life of Macao”, de Rod-ney Gilbert, em The North China Herald, 6 de Maio de 1922, pp 408-409; “Land of Saints and Sinners”, de Michael Weber, em Geo, vol.6 (Setembro de 1984), pp 90-92.

**Actualmente Professor de História e “Chairman” do Departa-mento de História da Universidade do Novo México. Douto-rado em História pela Univ. da Califórnia (Berkeley), desem-penhou funções docentes em várias Universidades. Sinólogo e investigador da História da China, tem concentrado as suas investigações nos campos da História Moderna da China, in-fluências mútuas sino-ocidentais, expansão europeia na Ásia, Portugal e China, História de Macau. Entre os seus inú-meros artigos e títulos publicados sobressaem “Tsang Kuo Fan's Private Bureaucracy” (tese de doutoramento), “All un-der heaven: the chinese world” e “lceland”.

desde a p. 51
até a p.