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DOCUMENTAÇÃO SOBRE MACAU E A CHINA EXISTENTE NA BIBLIOTECA PÚBLICA E ARQUIVO DISTRITAL DE ÉVORA

Isabel Cid*

Ao ser-me pedida uma comunicação so-bre a documentação manuscrita relativa a Macau e à China em geral existente na Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora procedi à catalogação, conferência ou recataloga-ção das espécies sobre este tema. Deste trabalho resultou um Catálogo de oitenta e oito páginas dactilografadas, estudo que, pelas suas caracterís-ticas e extensão, não pode, como é evidente, ser apresentado aqui, embora deva ser publicado proximamente.

Esta comunicação é, pois, um resumo do que foi possível encontrar, sistematizado por ca-tegorias temáticas, e procurando fazer incidir par-ticularmente a atenção sobre a documentação inédita e que se considerou mais significativa.

A maior parte das espécies encontrava-sereferida no tomo I do Catalogo dos Manuscriptos da Bibliotheca Publica Eborense de Joaquim He-liodoro da Cunha Rivara (Lisboa, Imprensa Na-cional, 1850). No entanto, alguma dela achava-se descrita nos macetes manuscritos do “Fundo Ri-vara”, no Catálogo intitulado Os Reservados da Bibliotheca Publica de Évora da autoria de An-tónio Joaquim Lopes da Silva Júnior (Coimbra, Imprensa da Universidade, 1905), no ficheiro ma-nuscrito de “Novos Reservados” e no inventário dactilografado do “Fundo da Manizola”, consti-tuído por espécies manuscritas compradas aos herdeiros do Visconde da Esperança. Além des-tes documentos, encontram-se ainda alguns ma-pas, até agora inéditos e não referidos em instru-mentos de descrição, que se apresentam e descre-vem pela primeira vez. Neste último caso, não se limitou o estudo a manuscritos, integrando-se também espécies impressas que, pela sua rarida-de ou interesse, o justificassem.

Os documentos estudados pertencem aos séculos XVI a XIX. No entanto, os acontecimen-tos referidos em muitos deles reportam-se a acon-tecimentos anteriores e mesmo, por vezes, às próprias origens de Macau e da penetração portu-guesa na China.

No caso dos mapas, encontraram-se espé-cies desde o século XVI ao século XX, sendo ob-jecto de estudo apenas as anteriores ao nosso sé-culo, por estas últimas já serem praticamente do conhecimento geral.

Após a análise dos manuscritos e mapas existentes, concluiu-se que diziam especialmente respeito às seguintes grandes categorias:

    1 - História da Cidade de Macau
        1.1-Geral
        1.2 - Fortificações e Artilharia
        1.3-População
        1.4 - Viagens e Comércio
        1.5 - Relações com a China
    
    2 - História do Cristianismo em Macau e na China
        2.1- Bispado de Macau
        2.2 - Colégio da Madre de Deus, da Compa-nhia de Jesus
        2.3 - Mitos e Costumes Chineses na óptica do Cristianismo
        2.4 - Missões na China
    
    3 - Personalidades conotadas com Macau e a China
    
    4 - Mapas    

A documentação sobre a História da Cidade de Macau em geral abrange escritos de História e diplomas referentes ao seu governo. Sobre a His-tória encontraram-se sete obras, referindo um acontecimento, descrevendo uma circunstância ou traçando um longo panorama, por vezes desde as origens.

Os diplomas que se acharam sobre o go-verno da Cidade foram inúmeros, referentes so-bretudo ao tempo do Capitão Geral D. Francisco de Mascarenhas. Encontram-se entre eles Cartas Régias e Alvarás, Regimentos, Cartas de Guia e documentos da Vereação de Macau.

O conflito entre a Cidade e a China quanto a fortificações e artilharia está bem patente em grande número de manuscritos. Pertencem quase todos eles aos anos de 1624 e 1625, altura em que a China obrigou à destruição das muralhas levan-tadas pelos portugueses, suscitando graves diver-gências entre a Câmara e o Capitão Geral. Há também documentos sobre a origem e a soma das verbas aplicadas às fortificações e presídio em di-versas épocas e um, muito curioso, sobre um con-trato para a fundição de peças de artilharia, cele-brado entre D. Francisco de Mascarenhas e Quin-quo e Hiaoxon, "chinas gentios de cabelo".

No que diz respeito à população de Macau, reuniram-se documentos sobre a que existia na Cidade em 1625, sobre a escravatura e sobre a re-belião de 1624. Pelo documento encontrado sabe--se terem existido, em 1625,840 habitantes, de que 437 eram “visinhos e extravagantes” e 403 “curubaças” (ou “jurubassas”, chineses cristãos). A escravatura é referida indirectamente, sa-bendo-se que um mandado do Capitão Geral or-denava que "nenhuma pessoa compre atais nem amais a pessoas cristãs, sem ordem ou mandado do ouvidor para se saber o modo do seu cativeiro" (1625), que um atai china de nome Achon, de seis anos de idade, que estava "depositado" em Ma-cau fora entregue ao Mandarim da terra da 2.a Ca-deira (1626) e que, por uma representação a Sua Majestade do Padre Caetano Lopes, da Compa-nhia de Jesus, Missionário da China e Procurador a Roma pela Província do Japão, assistente então em Lisboa, se pugnava em 1730 a favor da liber-dade dos Chinas "que injustamente tomavam por escravos". De um modo geral, verifica-se que nem sempre reinava o maior sossego entre a po-pulação nos anos de 1623 a 1625, como o compro-vam diversos alvarás, relações e outros diplomas.

No capítulo relativo a viagens e comércio in-clui-se documentação sobre a diversa problemá-tica relativa a este assunto: proibição dos caste-lhanos se dirigirem “às partes […] onde os portu-gueses tem seu trato e navegações”, a controvér-sia entre o Capitão Geral e a Cidade sobre a via-gem a Manila, a interdição do trato com os japo-neses, as limitações do comércio de certos produ-tos, como a seda e a prata, e a situação do comér-cio do Oriente em geral. As espécies abrangem os séculos XVI a XVIII.

No que diz respeito às relações com a China se, de um modo geral, não se detectam grandes conflitos, e tal se deve certamente a uma tácita aceitação do enorme poderio do imponente vizi-nho, algumas vezes pequenas coisas surgiam, co-mo a “satisfação” que deveria ser dada ao Manda-rim do Porto por os “cafres” lhe terem derrubado a casa e furtado a madeira e a reacção susceptibi-lizada contra a ideia de um “tributo” inculcada pelo Vice-Rei chinês.

O segundo grande grupo documental diz respeito ao cristianismo em Macau e na China. Este é o sector em que se integra o maior número de documentos inventariado. Aqui se incluem manuscritos respeitantes ao governo do Bispado de Macau, ao Colégio da Madre de Deus da Com-panhia de Jesus, a mitos e costumes chineses na sua relação com as novas cultura e religião e, so-bretudo, às Missões na China.

A documentação sobre o Bispado de Macau relaciona-se com D. Diogo Valente (anterior Bispo do Japão), com a polémica levantada quanto às pretensões a Governador do Bispado do padre Frei António do Rosário e com a eleição do Padre Adriano da Cunha para Governador do Bispado.

Sobre o Colégio da Madre de Deus da Com-panhia de Jesus existe apenas um caderno, de fins de setecentos, que tem no entanto o interesse de relatar a história desta instituição desde a sua fun-dação e também de historiar a acção dos Padres Jesuítas na China, no Japão, no Camboja, no Laos, na Cochinchina e no Sião.

Detectaram-se apenas três peças sobre mi-tos e costumes chineses, vistos na sua relação com os usos portugueses e a religião cristã.

Tem a ver com as Missões na China a maior parte da documentação estudada. A variedade documental é bastante grande, relacionando-se no entanto, de um modo geral, com as tentativas de implantação da Fé na China, com a visita que à China fez o Patriarca de Alexandria em 1720, com a situação em que se encontravam as diversas cristandades, com as perseguições sofridas pelos sacerdotes e pelos convertidos e com considera-ções sobre as tácticas a adoptar para melhor im-plantação do cristianismo nas diversas zonas.

Na pesquisa levada a efeito surgiram docu-mentos referentes a diversas personalidades rela-cionadas com o tema, como o Bispo de Macau D. Frei Marcelino José da Silva, o Bispo de Pequim D. Frei Alexandre de Gouveia, o Padre Frei An-tónio da Purificação, o Embaixador Alexandre Metelo de Sousa e Meneses e o Governador D. Francisco de Mascarenhas.

No caso dos eclesiásticos, os seus papéis di-ziam sobretudo respeito à situação do cristia-nismo na China e não à sua própria biografia, pelo que foram integrados no local a que os seus temas diziam respeito.

Quanto aos dois últimos, além de haver do-cumentos integráveis nas grandes categorias já in-dicadas, havia também os que diziam respeito so-bretudo às suas próprias actividades.

No caso de Alexandre Metelo de Sousa e Meneses, encontraram-se espécies relacionadas com a embaixada que chefiou ao Imperador da China, em 1726 e 1727. Sobre D. Francisco de Mascarenhas existe um grosso volume, que con-tém papéis originais relacionados com a sua vida, bastante movimentada. Este fidalgo e militar do século XVII, filho de D. Nuno de Mascarenhas, serviu na Flandres e na Alemanha, tendo poste-riormente partido para o Oriente, onde foi gover-nador e Capitão Geral de Macau. Tendo regres-sado ao Reino, foi em 1628 nomeado Vice-Rei da Índia, para onde embarcou. No entanto, a viagem foi péssima e o navio forçado a arribar, tendo en-tão D. Francisco desistido de ir ocupar o seu alto posto. Mais tarde, irá residir em Madrid, onde o rei o nomeará membro do Conselho de Portugal e do Conselho de Estado.

Encontraram-se ainda dois pequenos nú-cleos, com papéis pertencentes a José Maria de Sequeira e João Ferreira Pinto, ambos funcioná-rios em Macau no século XIX. No primeiro caso incluem-se sobretudo espécies relacionadas com o governo do Território e, no segundo, cartas es-critas a Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, com apontamentos do quotidiano.

Tendo-se em consideração a importância da cartografia e igualmente o facto de que, em rela-ção a Macau, o material conhecido não é muito abundante, procedeu-se ao inventário de todos os mapas e plantas existentes na Biblioteca, mesmo impressos e mesmo relativamente recentes, já ca-talogados ou apenas agora estudados pela pri-meira vez. Excluíram-se apenas, como já se disse, as espécies impressas no século XX, sobejamente conhecidas por todos.

Dada a importância desta documentação, e a grande qualidade e interesse de algumas peças, observemo-las uma a uma.

Mapa 1

Sobre a China em geral existem os seguintes cinco mapas:

1 - Mapa impresso, datado de 1595, com as ins-crições "Henricus F. ab Langren Sculpsit” e "Arnoldus F. à Langren delineavit”.

Curiosamente, este mapa, holandês, ba-seou-se patentemente em mapa anterior, português, não identificado, como o com-provam os inúmeros to pónimos e até anota-ções em português mais ou menos correcto (veja-se o mapa 1).

2 - Mapa impresso, com o título Indiae Orienta-lis Nova Descriptio e com a inscrição "Ams-telodami Ioannes Ianssonius excudebat”.

Há topónimos em holandês, em português e em espanhol. Várias orlas marítimas foram coloridas a sépia e rosa. Representa apenas uma pequena faixa do sul da China. Curiosa-mente, não inclui a indicação de Macau (veja-se o mapa 2).

3 - Mapa manuscrito, português, sem título, data ou indicação de autor.

Muito minucioso, com a indicação das pro-víncias chinesas e de muitos topónimos.

Refere "Macao dos portugueses”.

Possui orlas marítimas coloridas de verde e fronteiras de rosa (veja-se o mapa 3).

4 - Mapa impresso com o título Le Royaume de la Chine Diviseé en Provinces ou sont mar-qué dune + les Androis ou il y a des Eglises Chrestien des Misions et des Residances des R. P. Jesuiste.

Possui a divisão das províncias chinesas e in-dicação de muito topónimos.

Pelo texto parece do século XVII.

Topónimos em latim e texto explicativo em latim e francês.

Orlas marítimas e divisões territoriais colo-ridas a verde, rosa e amarelo (veja-se o ma-pa 4).

Mapa 2

5 - Mapa impresso intitulado Il Regno della China detto presentemente Catay é Mangin diviso sopra le Carte piu esatte nelle sue Principali Provincie da Guglielmo Sansone data in Luce da Paolo Petrini in Napoli… l'anno1717.

Possui a indicação das províncias chinesas e menciona muitos topónimos.

Está colorido em tons de verde, amarelo, castanho e vermelho na zona iconográfica junto do título, nas orlas marítimas, na divi-são das províncias e nas fronteiras (veja-se o mapa 5).

Sobre Macau em particular encontraram-se as plantas que se seguem:

1 - Planta impressa (xilogravura) com a legenda “Macao”.

Representa a península, com as muralhas e edificações. Possivelmente é folha de atlas ou colecção, como o prova o número 362 colocado no canto superior esquerdo.

Provavelmente de finais do século XVI, de-vido a características iconográficas, como a não representação do Colégio de S. Paulo (veja-se a planta 1).

2 -Planta manuscrita da península de Macau, com desenhos de fortificações, monumen-tos, casas e navios.

Colorida em tons de azul (mar), rosa (fortifi-cações), amarelo (solo), verde (zonas com vegetação) e castanho (rochas). Tem o título "Macao" na zona superior direita.

Planta da autoria de Pedro Barreto de Re-sende, integrada no códice Livro das Plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da India Oriental de António Bo-carro. Datável de cerca de 1634 (veja-se a planta 2).

Mapa 3 Mapa 5

3 - Plano Hydrografico e em parte Topografico da Cidade de Macao levantado por ordem superior por Joaquim Bento da Fonseca em 1808 acompanhado por Plantas extriores de Fortificações.

Manuscrito, colorido em tons de verde e ver-melho.

Legenda muito pormenorizada (veja-se a planta3).

4 - Planta da Península de Macau datada de Ma-cau, 15 de Março de 1889.

Reduzida e desenhada por António Heitor. Colorida mecanicamente (veja-se a plan-ta 4).

Apesar do apreciável número de docu-mentos encontrados e dos grandes te-mas relacionados com Macau que con-tribuem para esclarecer, muito pouco do que foi descrito tem significado tomado isoladamente. Como é óbvio, estes elementos só adquirem o seu autêntico significado quando confrontados com a totalidade da documentação de que fazem parte, actualmente dispersa por arquivos e bibliotecas nacionais e estrangeiras.

No trabalho que agora se oferece não se de-seja, portanto, apresentar qualquer visão defini-tiva da História de Macau. Deseja-se, para além de tudo o mais e principalmente, apresentar um acervo documental pouco divulgado, sugerir aos estudiosos zonas de investigação e proporcionar aos investigadores instrumentos de pesquisa.

No entanto, encontraram-se alguns docu-mentos interessantíssimos, que infelizmente não é possível ler na totalidade aqui, e, apesar do que ficou dito, não se resiste a apresentar a transcri-ção de alguns trechos da “Descrição da Cidade do Nome de Deos da China” integrada no Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e povoa-ções do Estado da India Oriental… de António Bocarro, acompanhados pela planta que lhes diz respeito (planta 2), da autoria de Pedro Barreto de Resende, síntese magnífica da História de Ma-cau até cerca de 1634. Apreciemo-los, respei-tando o modo como foram escritos:

“Descripção da Cidade do Nome de Deos da China”

“A cidade no Nome de Deos está(1) em al-tura de vinte e dous graos e meyo da banda do norte, sita na ponta austral duma pininsula(2), na costa do reino da China, à(3) fralda do mar, na provincia de Quantão, húa das(4) quinze em que se divide este grande reino do estado de Noanxan. Esta ponta da dita pininsula he chamada pellos nossos e pellos naturais Machao. Tem a pininsula hũa legoa de comprido e, no mais largo, quatro-centos paços. A cidade fica tendo meya legoa de comprimento e, onde mais estreita, sincoenta pa-ços e, onde mais larga, trezentos e sincoenta. Fica participando de dous mares, do levante e ponen-te. He hũa das mais nobres cidades do Oriente, por seu rico e noblicimo trato pera todas as partes de toda a sorte de riquezas e couzas preciozas em grande abundancia, e de mais número de caza-dos(36) e mais ricos que nenhuns que aja neste Esta-do.

POSTER RC Planta de Macau (Séc. XVII)de Pedro Barreto de Resende. In. "Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoaçȯes do Estado da Índia Oriental". (1634, António Bocarro).

“Do anno de mil quinhentos e dezoito, em que os portuguezes a primeira ves vierão a China, com hũa embaixada do serenissimo rey Dom Ma-noel, contratarão em varios portos deste reino e finalmente no porto e ilha de Sancheu, onde(5) esta cidade tomou seu primeiro principio e onde, no anno de mil quinhentos sincoenta e dous, fale-ceo Sam Francisco Xavier, segundo Apostolo da India e padroeiro desta cidade. E, no anno de mil quinhentos sincoenta e sinco, se passou o trato a ilha de Lampacao. E, no de mil quinhentos sin-coenta e sete, se passou pera este porto de Ma-chao onde, com o trato e comercio, se foi fazendo hũa populoza povoação. E, no de mil quinhentos oitanta e sinco, sendo Vizo-Rey da India Dom Francisco Mascarenhas, foi feita cidade por Sua Magestade, com titolo do Nome de Deos, dando--lhe por armas a Crus de Christo e outras liberda-des, de que goza com previlegios da cidade de Evora. He porta por onde veyo da India à(6) China por mar o Apostolo Sam Thome e por onde, nes-tes tempos, o Sancto Evangelho, levado pellos re-legiozos da Companhia de Jezu, entrou nestes rei-nos e no de Japão e Cochimchina, com grande gloria sua e aumento de sua Igreja.

“Os cazados que tem esta cidade são oito-centos sincoenta portuguezes e seus filhos, que são muito mais bem despostos e robustos que ne-nhuns que aja neste Oriente, os quaes todos tem, huns por outros, seis escravos d'armas, de que os mais e milhores são cafres e outras nações, com que se concidera que, assim como tem balões que elles remão, pequenos, em que vão a recrear-ce por aquellas ilhas, seus amos poderão também ter manchuas mayores, que lhe sirvarão pera muitas couzas de sua concervação e serviço de Sua Ma-gestade.

“Alem deste numero de cazados portugue-zes tem mais esta cidade outros tantos cazados, entre naturais da terra, chinas christãos, que cha-mão Jurubassas, de que são os mais, e outras na-ções, todos christãos. E, assy os portuguezes como estes, tem suas armas muy boas, de espin-gardas, lanças e outras sortes dellas, e raro he o portuguzes que não tem hum cabide de seis ou doze mosquetes e pederneiras e outras tantas lan-ças, porque os fazem dourados, que juntamente lhe servem de ornamento das cazas. (f.155v).

“Tem alem disto esta cidade muitos mari-nheiros, pilotos e mestres portuguezes (os mais delles cazados no reino, outros solteiros), que an-dão nas viagens de Japão, Manilha, Solor, Macas-sa, Cochimchina. Destes, mais de cento e sin-coenta (e alguns são de groços cabedais, de mais de sincoenta mil xerafins), que por nenhum modo querem passar a Goa, por não lançarem mão delles ou as justiças por algum crime ou os Vizo-Reys pera serviço de Sua Magestade. E assy tambem muitos mercadores solteiros, muito ricos, em que militão as mesmas razões.

“Tem mais esta cidade capitão-geral, que governa as couzas de guerra, com cento e sin-coenta soldados, em que entrão dous capitães de infanteria e outros tantos alferes e sargentos e ca-bos de esquadra e hum ajudante, hum ouvidor e hum meirinho, que administra justiça. Vence o ouvidor cem mil res de ordenado, consinados na alfandiga de Malaca.

“E ministros ecleziasticos tem hum Bispo, que oje he morto e ainda não está(7) provido, que vence dous mil xerafins de ordenado, pagos n'al-fandiga de Malaca.

Forte de Sanctiaguo

Ver no final notas do autor (l,2,3…) e notas da redacção (*).

“No tocante às(8) fortificações, tem esta ci-dade logo na entrada da barra hum forte, que cha-mão o forte de S. Thiago, que tem cento e sin-coenta paços de comprido e sincoenta e sinco de largo, com que faz hũa fermoza plataforma, que fica alevantada do mar sinco braças, com hum muro fundado em vinte e oito palmos de largo e acabado em dezacete; e esta dita altura he ate os parapeitos, que levantão so três palmos da dita plataforma, com que não podem guardar a gente nem artelharia, fazendo conta de lhe porem ces-tões na occazião de brigua. Está(9) no meyo desta praça hũa cisterna, aberta no concavo da rocha, capas de tres mil pipas de aguoa, de que tem a mayor parte. As cazas que lhe ficão nas costas, pella banda de terra, são bastantes pera alojar hum capitão com secenta homens e, aqui, por baixo do chão, estão cazas de monições e manti-mentos. Na entrada que tem pella banda da va-rela(37) está(10) hũa caza de quatro aguoas, grande e fermoza. E tem esta praça outra que lhe fica por cima, peguado com ella, a que se tolhe por quinze degraos, onde também está(11) artelharia, e numa e noutra he groça, e no andar de cima estão as di- tas cazas de gazalhado pera capitão e soldados. Deste forte, que está(12) na praya, fica lançada hũa cortina de muro ao alto do monte, que acaba em hũa caza, onde, quando aqui vivia o capitão-ge-ral, fazia corpo de guarda.

pianta 1

Baluarte de Nossa Senhora do Bom Parto

“O outro baluarte he de Nossa Senhora do Bom Parto, hum baluarte pequeno, em forma (f. 156) de triangulo, capas de jugar(38) dez ou doze peças de artelharia […].

Baluarte de Nossa Senhora da Penha de França

“Em Nossa Senhora da Penha de França, que fica num monte superior a este, está(13)tam-bem feito hum baluarte pequeno, onde estão dous sagres(39) de metal, que tira cada hum com bala de sete libras de ferro.

Baluarte de Sam Francisco

“O baluarte de Sam Francisco, que está(14) em forma oval, tem seis peças de metal […] Ao pe deste baluarte de Sam Francisco está(15) hũa plata-forma onde está(16) hũa culebrina, que tira trinta e sinco libras de pilouro de ferro, a mayor peça que há nesta cidade.

“Na praya grande está(17) hũa plataforma, que tem hum terço de canhão de metal, que tira bala de dezoito libras de ferro.

Baluarte de Nossa Senhora da Guia

“O monte de Nossa Senhora da Guia he o mais alto que há nesta cidade, por cuja cauza se fas no cume delle hum baluarte, que tem sinco pe-ças […]. Estão em cima neste monte(18) cazas pera se poder alojar hũa companhia de soldados e tam-bém cisterna de aguoa mas, como fica cavaleiro(40) ao forte de Sam Paullo, tem-se por milhor arraza--lo, como se pos ja em preço com os chinas, que se obrigão a o fazer por sete mil taeis. (f. 156 v.).

Forte de Sam Paullo

“A força de mais concideração e importan-cia que ha nesta cidade he a de Sam Paullo, vi-venda dos capitães-gerais, chamada por outro nome a Madre de Deos,'que he hum monte natu-ral, eminente e cavaleiro a toda a cidade onde, no cume delle, está(19)feito hum muro, começado no alicerce em vinte palmos de largura, com pedra marmor, ate que saye em sima da terra em altura de seis palmos, donde comessa a ser só de terra e qual(20), misturada com algũa palha batida(21) com batedores tam fortemente que fica fortissimo, e pera a bateria muito melhor que se fora de pedra, porque não o abala tanto (sendo que fica tão dura a parede desta terra e qual, como se fazem todas as cazas nesta cidade, que, pera lhe abrirem as ja-nelas despois de feitas, o fazem com muitos picões de ferro, com grande força e trabalho). Vão os di-tos muros estreitando, pella medida de seu escar-pe, ate ficarem em quinze palmos de groçura em sima, no andaimo dos parapeitos. A altura deste muro he de sincoenta palmos, que he o mesmo que sinco braças. Está(22) feito o dito forte em quadro(41) perfeitamente, ficando-lhe em cima hũa praça de cem paços de cada lado, e tantos tem de comprimento cada lanço de muro, que vão a fazer nos quatro cantos quatro baluartes em forma de espigão(23) como da planta se vê. Fica mais em cima, no meyo da dita praça, a que sercão quatro renques de cazas, hũas em que morão os Gerais e as tres pera os soldados, hũa torre cavaleira de tres sobrados, que em cada hum tem artelharia, em a qual e nos ditos quatro baluartes(24) estão re-partidas dezoito peças de artelharia de metal, todagroça […].

“Tem este forte à(25) porta, da banda de den-tro, hum corpo de guarda. E por hũa e outra banda se sobe ao monte, que fica igual com o muro, e, no concavo delle, estão abertas cazas de munições, que tem bastantes pera qualquer guerra (mas não pera hum serco de mais de dous annos, a respeito da muita polvora que gasta esta artelharia groça, posto que podem ter materiais de que a vão fazendo, pellos muitos que há na ter-ra).

“De mantimentos não he tão provida esta ci-dade, com aver na terra dentro muitos e bons e baratos, porque, como os esperamos da mão dos chinas, em tendo qualquer sentimento(42) de nós(26) logo no-los tolhem, sem terem aquelles morado-res modo pera os irem buscar a outra parte, avendo-os em Cochimchina, que está(27) de Ma-chao cem legoas ao sudueste, e tambem algum nas muitas ilhas que sercão a pininsula onde está a cidade, de que as mais são abitadas, porem o que tem he so(28) gado, porquo, galinhas e marre-quas. (f. 157).

Planta 3

“Os muros que tem esta cidade estavão quazy acabados por Dom Francisco Mascare-nhas, o primeiro capitão-geral que teve e que lhe fez as mais destas obras, porem os chinas, como são tão desconfiados, fizerão derrubar grão parte delles, dos que estão pera a banda da terra, que hião correndo do dito forte de Sam Paullo, pare-cendo-lhes que contra elles he que se fazião; e assy ficarão só(29) as que correm em frente do mar e da banda do poente e hũa tranqueira(43) na praya de Cassilhas, onde dezembarcou o inimigo quan-do cometeo esta cidade. A altura destes muros he de duas braças ate os parapeitos e a largura fica sendo nelles de oito palmos, advertindo que, co-mo o chão por onde vay correndo não he todo igual senão em partes dece e sobe, tambem assy fica sendo o muro, hora mais alto ora mais me-nos(44), pera ficar por sima correndo todo ao nivel. He feito da mesma materia que temos dito, de terra e qual entresachada(45) algũa palha, e tudo muito acalcado, com que são muito fortes. Na plataforma que tem na praya grande está(30) hum terço de canhão de dezoito libras e, noutros dous baluartes, hum chamado Sam Pedro, dous sa-gres(46) cada hum, de bala de sete libras e, noutro chamado Sam João, hum terço de canhão de de-zoito libras e hũa meya culebrina(47) bastarda de oito, tudo pilouros de ferro.

“Em toda a dita artelharia referida tem mais quatro trabucos(48) de metal de vinte e sinco libras cada hum, tres peças de ferro de sete libras, sinco falcões(49) de bronze, tres berços(50) de bronze, dous falcões de ferro, hum trabuco de ferro, que estão pera se porem onde for necessario. Ha na dita ci-dade de Machao setenta e tres peças de artelharia (afora muitas de particulares e de Sua Magestade) de ferro, que está(31) feita.

“Porque tem esta terra hũa fundição das mi-lhores que ha no mundo, assy de bronze, que anti-gamente tinha, como de ferro, que o Conde de Li-nhares Vizo-Rey lhe mandou fazer, onde se es-tá(32)sempre fundindo artelharia pera todo este Estado, em preço muy acomodado, que he o de que tem mais necessidade, donde todo elle se pro-vera, a estar dezempedido o estreito de Sincapur, que continuamente nas monções está(33) sercado dos olandezes, como atrás(34) fica dito.

“Toda a dita artelharia que tem esta cidade e obras de muros e fortes fez ella à(35) sua custa, sem a Fazenda Real entrar nisso com couza algũa, em tempo que a viagem de Japão corria quazy por sua conta e particularmente os dereitos que cha-mavão o caldeirão, que são oje a oito por cento de todas as fazendas que vão pera Japão, e antigua-mente erão a tres e a quatro, e ainda assy lhe ren-dião muito. ”

A narração continua, com o encanto nostál-gico deste português do século XVII, cheio de força e de poder sugestivo, descrevendo a China, relatando as viagens que se faziam a partir de Ma-cau e retratando a barra da Cidade. O tempo, po-rém, não perdoa e não quero alongar-me para além do previsto. Assim, com os ecos de Macau nos ouvidos, termino.

Comunicação apresentada no Colóquio “V Centenário dos Des-cobrimentos”, realizado no Museu Nacional de Évora em 12 de Novembro de 1988, sob os auspícios do Instituto D. João de Cas-tro.

NOTAS

(1) - Acentuou-se.

(2) - Ms: pinunsula.

(3) - Acentuou-se.

(4) - Ms: da.

(5) -Ms: palavra muito emendada e esborratada.

(6) - Acentuou-se.

(7) - Acentuou-se.

(8) - Acentuou-se.

(9) - Acentuou-se.

(10) - Acentuou-se.

(11) - Acentuou-se.

(12) - Acentuou-se.

(13) - Acentuou-se.

(14) - Acentuou-se.

(15) - Acentuou-se.

(16) - Acentuou-se.

(17) - Acentuou-se.

(18) - Ms: m emendado sobre p.

(19) - Acentuou-se.

(20) - Qual = cal.

(21) - Ms: batido.

(22) - Acentuou-se.

(23) - Ms: gcorrigido.

(24) - Ms: r corrigido.

(25) - Acentuou-se.

(26) - Acentuou-se.

(27) - Acentuou-se.

(28) - Acentuou-se.

(29) - Acentuou-se.

(30) - Acentuou-se.

(31) - Acentuou-se.

(32) - Acentuou-se.

(33) - Acentuou-se.

(34) - Acentuou-se.

(35) - Acentuou-se.

NOTAS DA REDACÇÃO

(36) cazado - que tem casa (lar e família); morador.

(37) varela - pode estar no texto na acepção de lugar onde se vara, varadouro ou orla marítima; ou significando pagode, templo dos gentios (termo proveniente da Índia, seg. “Dicionário de Português - Tesouro da Língua Portuguesa” de Frei Domingos Vieira; Chardon, Porto).

(38) tolhe - atalha

(39) jugar-suportar; conter.

(40) sagres - variedade de peça de artilharia.

(41) cavaleiro-por cima; sobranceiro.

(42) quadro - esquadria; forma quadrada.

(43) sentimento-ressentimento; queixa.

(44) tranqueira - estacada; paliçada.

(45) menos - curto; baixo.

(46) entresachada- de mistura com.

(47) culebrina-colubrina - peça de artilharia comprida e de longo alcance.

(48) trabuco - variedade de peça de artilharia.

(49) falcão- variedade de peça de artilharia.

(50) berço- variedade de peça de artilharia.

* Directora da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Évora.

desde a p. 31
até a p.