Com frequência um dos juncos de guerra que rodeiam Macau vem lançar âncora nesta baía deser-ta; em vão tenho tentado ir a bordo para conhecer o interior destas embarcações, os aposentos do man-darim e o lugar onde dormem os marinheiros; nunca quiseram conceder-me este favor e muitas vezes nem consegui encontrar um marinheiro que me con-duzisse a bordo. Tudo o que posso dizer é que sem-pre que o mandarim deixa o junco ou regressa, é saudado com três tiros de canhão, o navio é emban-deirado e faz-se ouvir o tantã: são os únicos momen-tos de glória. Para enganar a sua inacção, saem mui-tas vezes sem necessidade; mas quando um navio de guerra, seja qual for a nação a que pertença, vem an-corar na enseada de Macau, então o rumor é gran-de; os juncos agitam-se e vão, digamos assim, ins-peccioná-lo para fazerem o respectivo relatório; logo que chegam a certa distância, retiram-se des-crevendo círculos à volta do inimigo; mas, mal este partiu, vão todos até três ou quatro léguas ao largo, disparando numerosos tiros de canhão e voltam trêshoras depois anunciando que o inimigo se retirou perante as forças invencíveis do Grande Imperador. ... Por tortuosas que sejam as ruas da cidade portuguesa, não nos podem dar ideia do inextrincá-vel labirinto das que compõem a parte habitada pe-los chineses, sobretudo do lado do Porto Interior; há aí tantos cantos e recantos que, apesar das mi-nhas numerosas visitas a este bairro, ainda não sei reconhecer o caminho, eu que, ao fim de oito dias, andava sem hesitar nas ruas de Veneza. Mas é que aqui, as casas mudam de lugar como os homens; no sítio onde na véspera encontrara um beco, abre-se uma rua, e a rua onde antes havia passado torna-se um beco. Deste modo, quantos desenhos não perdi por ter deixado a sua conclusão para o dia seguinte. Quando se penetra na cidade chinesa, vão desapare-cendo gradualmente as lojas elegantes, depois as lo-jas que se podem considerar apenas limpas e onde as mercadorias estão dispostas com ordem; as lajes da. calçada são mais pequenas, muitas faltam, o que acaba por fazer poças aumentadas pelos porcos que nelas se vêm espojar, e sabe Deus que porcos! São esféricos e alcançam uma gordura fabulosa; o seu número incrível explica-se pela preferência que o povo dispensa à carne de porco; os ricos preferem o gato, o cão e, por vezes, o rato. Cada qual com seu gosto! Por maior que seja a miséria destes bairros, não se compara à miséria das ruas aquáticas e das habitações empoleiradas em estacas. É impossível a um europeu, mesmo depois de ver, imaginar como é que tanta gente pode viver num espaço tão aperta-do. Ouvi-me bem e tentai fazer uma ideia justa do que vos vou contar. Os primeiros a chegar apodera-ram-se do solo e aí puseram os seus barcos velhos, que já não podiam ir para a água; os que vieram de-pois cravaram fortes prumos de pau a toda a volta e assim fizeram um andar por cima dos outros, quer içando os barcos, quer, não os tendo, estabelecendo um sobrado, que rodearam de esteiras, e com cober-tura semelhante. Outros vieram mais pobres ainda e, não tendo terreno, nem barco, nem sobrado, nem estacas, anicharam-se no intervalo deixado entre as duas outras habitações, suspenderam as suas camas de rede e, por pouco segura que seja tal moradia, chega contudo para uma família inteira. Por vezes uma só escada serve cinco ou seis habitações; não há nem direitos adquiridos para uns, nem sujeição para os outros; cada casa tem o seu pequeno terraço, de onde frequentemente pendem esteiras e trapos de toda a espécie, e que se atravessa sem a menor difi-culdade. Subi a grande número deles; por toda a parte há flores, apesar da exiguidade do espaço, e senti um prazer infinito por encontrar alguma poe-sia no meio de tantas privações. Vivem tão amon-toados que têm dificuldade em descobrir nos seus tugúrios lugar para o altar doméstico que, contudo, não falta em parte nenhuma; consiste muito sim-plesmente num pequeno armário com dois baten-tes, ocupado por uma estátua de cera ou de madei-ra, vestida do melhor que podem, e por todos os ob-jectos que guarnecem os altares dos templos, mas em proporções reduzidíssimas; de manhã à noite oferece-se chá a esta divindade e acende-se-lhe uma velinha vermelha. Não julgueis, meu caro amigo, que a miséria desta pobre gente tenha influência na sua alegria; não, nestes redutos de cinco pés de al-tura e de largura, e do dobro de comprimento, todas as caras são alegres e, sempre que têm um momento livre, jogam aos dados. Ao menor grito que se oiça, todas as casas que parecem desertas se animam num instante, vê-se formigar inumerável quantidade de cabeças e perguntamo-nos de onde saem e como tanta gente se pode alojar em tão pouco espaço.
… A Península de Macau faz parte da grande Ilha do mesmo nome, à qual se liga por um istmo de trezentos a quatrocentos metros de largura, inteira-mente atravessado por uma muralha pouco elevada, no meio da qual deixaram uma porta que nenhum europeu pode atravessar, porque do outro lado é um posto de mandarins. A certa distância desta bar-reira, do lado da península, fica um templo bastante bonito, no meio de um espaço murado. Em frente, e do lado do Porto Interior, entra-se num pátio cer-cado por uma bela balaustrada aberta em dois lados, de modo a deixar uma passagem, a qual é muito fre-quentada. Nunca consegui entrar no templo, apesar de vários esforços que fiz para tal, pois o mistério deste lugar tinha para mim forte atracção. Cada vez que atravesso o pátio ouço o ladrar de cães que não deixam nunca sair e que vejo através das grades. Este templo encosta-se à esquerda a uma colina guarnecida de alguns pinheiros e na qual há um ou-tro templozinho, tão perfeitamente dissimulado sob as árvores magníficas que o rodeiam que, a primeira vez que vim desenhar ali muito perto, não suspeitei da sua existência. Chega-se lá por uma escada em mau estado; depois de entrar a porta, sobre a qual ainda se vêem distintamente as inscrições de que es-tava coberta outrora, apenas vi um telhado susten-tado por quatro colunas de madeira, debaixo do qual não resta nem altar, nem ornamentos de qual- quer espécie. Nunca encontrei, nesta ruína, senão chineses miseráveis, sem rabicho, o que me fez sa-ber que era um lugar de asilo onde os culpados estão em segurança; isto explica a deterioração e o aban-dono do templo que nada mais conservou da antiga personalidade e serve agora de cozinha aos malfei-tores que nele se vêm refugiar.
… O Largo do Senado, que é o maior de Ma-cau, separa a cidade chinesa da portuguesa e é aí onde os estrangeiros mais se misturam com os lo-cais. O Senado ocupa uma das suas extremidades; na outra, e num recanto, encontra-se a Igreja de São Domingos, junto da qual desemboca uma rua chine-sa. É precisamente aqui que venho de manhã para desenhar os grupos chineses, porque estou mais à vontade que no bazar onde há sempre multidão, o que me tira a possibilidade de trabalhar, enquanto que neste canto assisto ao espectáculo que quero pintar, e vejo os meus actores agitarem-se sem ser incomodado pelo seu movimento. Uns não mudam de lugar; são os serralheiros, os barbeiros, os sapa-teiros, os vendedores de comestíveis e os de comida feita; mas os fregueses vão e vêm sem cessar, aos en-contrões e acotovelando-se; algumas senhoras por-tuguesas, cabeça embiocada num xaile de algodão colorido e seguidas de um moleque que transporta a sombrinha aberta, vêm diversificar esta multidão. Os serralheiros batem o ferro, enquanto o fogo é ati-çado pelo fole cilíndrico, cujo êmbolo se move hori-zontalmente; ao lado faz-se bicha à volta do bar-beiro que rejuvenesce todo o que lhe passa pelas mãos: nada mais curioso de ver que um chinês a quem se acaba de rapar a cabeça, se entrançou o ra-bicho cuidadosamente e se limpou tudo o que ele próprio negligencia; ainda todo húmido da com-pleta ablução a que foi submetido, põe-se ao sol e estende-se aos seus raios ardentes com uma volúpia que nós não saberíamos compreender, nós europeus a quem tais delícias trariam uma terrível cons-tipação ou mesmo uma congestão ce-rebral; mas têm o crânio para o sol que têm. Será mais espesso do que o nosso, ou o hábito ter-lhe-á tirado a susceptibilidade? Não saberei dizê-lo; mas decerto que a Providên-cia nunca se descuida.
Ao lado, o sapateiro deixa o sapato que faz, para atender a um trabalho mais premente: calçado levemente avariado que pede reparação imediata; mas é à volta dos vendedores de comestí-veis e sobretudo dos de comidas que há o maior mo-vimento. É aqui que se deve estudar a fisionomia chinesa, observando os compradores e os vendedo-res, a vigiarem com atenção a balança romana que serve para pesar os artigos, uns para terem melhor peso, os outros para tentarem dar o menos possível, e todos discutindo os preços com vivacidade. Um pouco mais longe, uma figurinha bem alimentada, sentada à vontade, saboreia o cheiro das especiali-dades que o cozinheiro acaba de pôr na sua frente em pratinhos pequenos, enquanto o seu vizinho po-bre calcula, antes de pedir o jantar, se lhe restará di-nheiro para o dia seguinte; num canto, um outro homem disputa, e muitas vezes em vão, algumas fo-lhas, alguns pedaços desdenhados, aos enormes porcos que formigam por toda a parte. Assim, sem-pre o antagonismo do pobre e do rico, e o triunfo das instituições que imprime em cada um o respeito da propriedade.
Eis, de resto, a lenda do Templo de Macau tal como é contada e que a consagração do lugar parece atestar, o qual, como vos disse, se chama Templo da Senhora.
Durante não sei que dinastia, uma princesa da família imperial, filha única, foi criada com um cui-dado muito particular e, da instrução que recebeu, nasceu-lhe um desejo imoderado de conhecer o mundo, de se libertar da reclusão à qual os costumes do país condenam todas as mulheres. Guardou o se-gredo desta paixão durante muito tempo, pois foi--lhe necessário vencer muitos preconceitos antes de ousar confessá-lo a si própria. Por fim falou ao Im-perador, que nada lhe recusou: imagine-se a sua fe-licidade quando pôde sair do palácio onde deviam decorrer os seus dias, ela cujo espírito inquieto tinha sonhado o mundo sob mil formas diferentes, e quan-do pela primeira vez mergulhou o olhar nas profun-dezas de um horizonte infinito! Embarcou, portan-to; o céu e o mar sorriram-lhe a princípio, tudo o que via lhe excitava o entusiasmo e revelava poesias de-liciosas. Mas estas alegrias tão profundamente sen-tidas foram de curta duração, pois toda a falta quer expiação; ela havia infringido a lei e não temera mostrar-se e desafiar assim as proibições expressas de todos os legisladores do seu país, ela que, como princesa, devia dar o bom exemplo às outras mulhe-res! Em breve o céu se cobriu, um terrível tufão se desencadeou e vinte vezes a ia engolindo. Vivamen-te assustada com o perigo que corria, invoca adeusa do mar e jura erguer-lhe um templo, precisamente no lugar onde acostasse, se ela conseguisse arrancá--la ao perigo. O mar acalma-se e o junco é suave-mente conduzido à costa por uma onda que imedia-tamente se retira. A princesa salva manteve a sua palavra e um templo foi erigido sobre a colina esté-ril, no sítio onde ela desembarcara. Antes, não ha-via no lugar mais do que pequenas árvores fracas e agora vê-se poderosa vegetação que me não canso de admirar e que, com a sua sombra, protege o solo e o próprio templo, dando assim uma frescura des-conhecida à terra antes queimada por um sol arden-te; ao sítio onde as cabras vinham tosar a erva rara, chegam os homens em multidão, trazendo as suas oferendas, e sobre este canto de terra esquecido ele-vam-se agora eflúvios de incenso que transportam aos Céus as orações dos fiéis.