Artes

MACAU EM 1839 CRÓNICA E DESENHOS DE AUGUSTE BORGET

Macau, 3 de Janeiro de 1839. ... A Praia Grande é fechada ao sul por uma colina bastante alta, coroada de um convento rente às muralhas da cidade, as quais, descendo para o mar, chegam a uma fortaleza construída em cima do areal. Muitas vezes à noite, depois do trabalho, quando já não tenho tempo para empreender ne-nhuma longa excursão na península ou nas ilhas vizi-nhas, vou até ao terreiro do convento ou às colinas eriçadas de pedregulhos, que limitam a península a sudoeste; de todos os pontos o olhar mergulha em encantadoras paisagens; outras vezes desço do ou-tro lado do forte e dirijo-me para uma uma baía are-nosa em que se encontra uma fonte de água doce onde os chineses e os portugueses vêm lavar a rou-pa. Dir-se-ia estarmos a cem léguas do lugar de que falava há bocadinho. Toda esta parte da península é deserta: praias áridas, rochas isoladas, aluimentos causados pelo mar, que deixam a nu os esqueletos das sepulturas situadas nestas colinas; não se encon-tra aí vivalma, tirando alguns pobres esfomeados—e aqui há muitos - que vêm procurar mariscos, que são muitas vezes o seu único alimento, e não se vêem casas. Às vezes, contudo, infelizes pescadores que, vendo que tudo lhes corre mal, se julgam víti-mas de alguma fatalidade, vêm aqui implantar a sua cabana, esperando que, afastados de toda a concor-rência, a sorte lhes seja mais favorável; mas, pobres deles, depois de terem lançado inutilmente as suas redes, afastam-se deste lugar maldito e são substi-tuídos por outros que, do mesmo modo, se vão em-bora oito dias mais tarde. Triste pelo espectáculo desta miséria, volto os olhos para a cidade e encon-tro com prazer o convento, o forte e, na ponta este da Praia Grande, a Igreja e o Forte da Guia.

Com frequência um dos juncos de guerra que rodeiam Macau vem lançar âncora nesta baía deser-ta; em vão tenho tentado ir a bordo para conhecer o interior destas embarcações, os aposentos do man-darim e o lugar onde dormem os marinheiros; nunca quiseram conceder-me este favor e muitas vezes nem consegui encontrar um marinheiro que me con-duzisse a bordo. Tudo o que posso dizer é que sem-pre que o mandarim deixa o junco ou regressa, é saudado com três tiros de canhão, o navio é emban-deirado e faz-se ouvir o tantã: são os únicos momen-tos de glória. Para enganar a sua inacção, saem mui-tas vezes sem necessidade; mas quando um navio de guerra, seja qual for a nação a que pertença, vem an-corar na enseada de Macau, então o rumor é gran-de; os juncos agitam-se e vão, digamos assim, ins-peccioná-lo para fazerem o respectivo relatório; logo que chegam a certa distância, retiram-se des-crevendo círculos à volta do inimigo; mas, mal este partiu, vão todos até três ou quatro léguas ao largo, disparando numerosos tiros de canhão e voltam trêshoras depois anunciando que o inimigo se retirou perante as forças invencíveis do Grande Imperador. ... Por tortuosas que sejam as ruas da cidade portuguesa, não nos podem dar ideia do inextrincá-vel labirinto das que compõem a parte habitada pe-los chineses, sobretudo do lado do Porto Interior; há aí tantos cantos e recantos que, apesar das mi-nhas numerosas visitas a este bairro, ainda não sei reconhecer o caminho, eu que, ao fim de oito dias, andava sem hesitar nas ruas de Veneza. Mas é que aqui, as casas mudam de lugar como os homens; no sítio onde na véspera encontrara um beco, abre-se uma rua, e a rua onde antes havia passado torna-se um beco. Deste modo, quantos desenhos não perdi por ter deixado a sua conclusão para o dia seguinte. Quando se penetra na cidade chinesa, vão desapare-cendo gradualmente as lojas elegantes, depois as lo-jas que se podem considerar apenas limpas e onde as mercadorias estão dispostas com ordem; as lajes da. calçada são mais pequenas, muitas faltam, o que acaba por fazer poças aumentadas pelos porcos que nelas se vêm espojar, e sabe Deus que porcos! São esféricos e alcançam uma gordura fabulosa; o seu número incrível explica-se pela preferência que o povo dispensa à carne de porco; os ricos preferem o gato, o cão e, por vezes, o rato. Cada qual com seu gosto! Por maior que seja a miséria destes bairros, não se compara à miséria das ruas aquáticas e das habitações empoleiradas em estacas. É impossível a um europeu, mesmo depois de ver, imaginar como é que tanta gente pode viver num espaço tão aperta-do. Ouvi-me bem e tentai fazer uma ideia justa do que vos vou contar. Os primeiros a chegar apodera-ram-se do solo e aí puseram os seus barcos velhos, que já não podiam ir para a água; os que vieram de-pois cravaram fortes prumos de pau a toda a volta e assim fizeram um andar por cima dos outros, quer içando os barcos, quer, não os tendo, estabelecendo um sobrado, que rodearam de esteiras, e com cober-tura semelhante. Outros vieram mais pobres ainda e, não tendo terreno, nem barco, nem sobrado, nem estacas, anicharam-se no intervalo deixado entre as duas outras habitações, suspenderam as suas camas de rede e, por pouco segura que seja tal moradia, chega contudo para uma família inteira. Por vezes uma só escada serve cinco ou seis habitações; não há nem direitos adquiridos para uns, nem sujeição para os outros; cada casa tem o seu pequeno terraço, de onde frequentemente pendem esteiras e trapos de toda a espécie, e que se atravessa sem a menor difi-culdade. Subi a grande número deles; por toda a parte há flores, apesar da exiguidade do espaço, e senti um prazer infinito por encontrar alguma poe-sia no meio de tantas privações. Vivem tão amon-toados que têm dificuldade em descobrir nos seus tugúrios lugar para o altar doméstico que, contudo, não falta em parte nenhuma; consiste muito sim-plesmente num pequeno armário com dois baten-tes, ocupado por uma estátua de cera ou de madei-ra, vestida do melhor que podem, e por todos os ob-jectos que guarnecem os altares dos templos, mas em proporções reduzidíssimas; de manhã à noite oferece-se chá a esta divindade e acende-se-lhe uma velinha vermelha. Não julgueis, meu caro amigo, que a miséria desta pobre gente tenha influência na sua alegria; não, nestes redutos de cinco pés de al-tura e de largura, e do dobro de comprimento, todas as caras são alegres e, sempre que têm um momento livre, jogam aos dados. Ao menor grito que se oiça, todas as casas que parecem desertas se animam num instante, vê-se formigar inumerável quantidade de cabeças e perguntamo-nos de onde saem e como tanta gente se pode alojar em tão pouco espaço.

Macau, 10 de Janeiro de 1839

… A Península de Macau faz parte da grande Ilha do mesmo nome, à qual se liga por um istmo de trezentos a quatrocentos metros de largura, inteira-mente atravessado por uma muralha pouco elevada, no meio da qual deixaram uma porta que nenhum europeu pode atravessar, porque do outro lado é um posto de mandarins. A certa distância desta bar-reira, do lado da península, fica um templo bastante bonito, no meio de um espaço murado. Em frente, e do lado do Porto Interior, entra-se num pátio cer-cado por uma bela balaustrada aberta em dois lados, de modo a deixar uma passagem, a qual é muito fre-quentada. Nunca consegui entrar no templo, apesar de vários esforços que fiz para tal, pois o mistério deste lugar tinha para mim forte atracção. Cada vez que atravesso o pátio ouço o ladrar de cães que não deixam nunca sair e que vejo através das grades. Este templo encosta-se à esquerda a uma colina guarnecida de alguns pinheiros e na qual há um ou-tro templozinho, tão perfeitamente dissimulado sob as árvores magníficas que o rodeiam que, a primeira vez que vim desenhar ali muito perto, não suspeitei da sua existência. Chega-se lá por uma escada em mau estado; depois de entrar a porta, sobre a qual ainda se vêem distintamente as inscrições de que es-tava coberta outrora, apenas vi um telhado susten-tado por quatro colunas de madeira, debaixo do qual não resta nem altar, nem ornamentos de qual- quer espécie. Nunca encontrei, nesta ruína, senão chineses miseráveis, sem rabicho, o que me fez sa-ber que era um lugar de asilo onde os culpados estão em segurança; isto explica a deterioração e o aban-dono do templo que nada mais conservou da antiga personalidade e serve agora de cozinha aos malfei-tores que nele se vêm refugiar.

Macau, 22 de Fevereiro de 1839.

… O Largo do Senado, que é o maior de Ma-cau, separa a cidade chinesa da portuguesa e é aí onde os estrangeiros mais se misturam com os lo-cais. O Senado ocupa uma das suas extremidades; na outra, e num recanto, encontra-se a Igreja de São Domingos, junto da qual desemboca uma rua chine-sa. É precisamente aqui que venho de manhã para desenhar os grupos chineses, porque estou mais à vontade que no bazar onde há sempre multidão, o que me tira a possibilidade de trabalhar, enquanto que neste canto assisto ao espectáculo que quero pintar, e vejo os meus actores agitarem-se sem ser incomodado pelo seu movimento. Uns não mudam de lugar; são os serralheiros, os barbeiros, os sapa-teiros, os vendedores de comestíveis e os de comida feita; mas os fregueses vão e vêm sem cessar, aos en-contrões e acotovelando-se; algumas senhoras por-tuguesas, cabeça embiocada num xaile de algodão colorido e seguidas de um moleque que transporta a sombrinha aberta, vêm diversificar esta multidão. Os serralheiros batem o ferro, enquanto o fogo é ati-çado pelo fole cilíndrico, cujo êmbolo se move hori-zontalmente; ao lado faz-se bicha à volta do bar-beiro que rejuvenesce todo o que lhe passa pelas mãos: nada mais curioso de ver que um chinês a quem se acaba de rapar a cabeça, se entrançou o ra-bicho cuidadosamente e se limpou tudo o que ele próprio negligencia; ainda todo húmido da com-pleta ablução a que foi submetido, põe-se ao sol e estende-se aos seus raios ardentes com uma volúpia que nós não saberíamos compreender, nós europeus a quem tais delícias trariam uma terrível cons-tipação ou mesmo uma congestão ce-rebral; mas têm o crânio para o sol que têm. Será mais espesso do que o nosso, ou o hábito ter-lhe-á tirado a susceptibilidade? Não saberei dizê-lo; mas decerto que a Providên-cia nunca se descuida.

Ao lado, o sapateiro deixa o sapato que faz, para atender a um trabalho mais premente: calçado levemente avariado que pede reparação imediata; mas é à volta dos vendedores de comestí-veis e sobretudo dos de comidas que há o maior mo-vimento. É aqui que se deve estudar a fisionomia chinesa, observando os compradores e os vendedo-res, a vigiarem com atenção a balança romana que serve para pesar os artigos, uns para terem melhor peso, os outros para tentarem dar o menos possível, e todos discutindo os preços com vivacidade. Um pouco mais longe, uma figurinha bem alimentada, sentada à vontade, saboreia o cheiro das especiali-dades que o cozinheiro acaba de pôr na sua frente em pratinhos pequenos, enquanto o seu vizinho po-bre calcula, antes de pedir o jantar, se lhe restará di-nheiro para o dia seguinte; num canto, um outro homem disputa, e muitas vezes em vão, algumas fo-lhas, alguns pedaços desdenhados, aos enormes porcos que formigam por toda a parte. Assim, sem-pre o antagonismo do pobre e do rico, e o triunfo das instituições que imprime em cada um o respeito da propriedade.

Macau, 2 de Maio de 1839.

Meu caro amigo, é tão difícil descrever os ob-jectos chineses em língua europeia, que ainda não ousei falar-vos do Grande Templo de Macau, a mais bela maravilha, sem dúvida, que vi nesta terra. Ser--me-ia necessário inventar uma língua para vos pin-tar objectos que não têm correspondência entre nós e para os quais apenas tenho comparações imperfei-tas. Venho quase todos os dias a este lugar, cujo nome chinês, Neang-Má-Kó, significa o Velho Templo da Senhora, quer de manhã, quando a som-bra ali é completa, ou à tarde quando as árvores, as pedras e os telhados azuis rebrilham ao sol, quer ainda a meio do dia quando o calor extremo me faz procurar uma sombra para proteger os meus traba-lhos. A toda a hora, sob todos os efeitos, o aspecto é surpreendente; e, contudo, longe de se impor pela sua grandeza, ele chama a atenção, pe-lo contrário, pela exiguidade das suas proporções e sobretudo pelo seu carácter eminentemente chinês; nunca lá fui que não descobrisse algumas cenas interessantes, al-guns pormenores novos e excitan-tes que em visitas precedentes ha-viam escapado à minha atenção, e de todas as vezes senti as alegrias do explorador. Qualquer que seja o lugar escolhido, tenho sempre um desenho novo, sempre uma vista pito-resca e na verdade podia fazer-se um álbum muito curioso só do recinto do templo e do terreiro onde está construído. Do ponto de vista da arte chinesa, tudo é admirável na disposição deste conjunto: a harmonia das construções, a sua situação no meio de rochas e árvores seculares, tal como a quantidade de ornamentos de que estão cobertas. É geralmente o tema de estudo mais interessante que um europeu possa escolher. Asseguram-me que em nenhuma das grandes cidades da China existe templo mais no-tável; assim o creio, tão superior ele é a tudo o que pude ver noutros sítios.
Macau do lado do alto mar.

Eis, de resto, a lenda do Templo de Macau tal como é contada e que a consagração do lugar parece atestar, o qual, como vos disse, se chama Templo da Senhora.

Durante não sei que dinastia, uma princesa da família imperial, filha única, foi criada com um cui-dado muito particular e, da instrução que recebeu, nasceu-lhe um desejo imoderado de conhecer o mundo, de se libertar da reclusão à qual os costumes do país condenam todas as mulheres. Guardou o se-gredo desta paixão durante muito tempo, pois foi--lhe necessário vencer muitos preconceitos antes de ousar confessá-lo a si própria. Por fim falou ao Im-perador, que nada lhe recusou: imagine-se a sua fe-licidade quando pôde sair do palácio onde deviam decorrer os seus dias, ela cujo espírito inquieto tinha sonhado o mundo sob mil formas diferentes, e quan-do pela primeira vez mergulhou o olhar nas profun-dezas de um horizonte infinito! Embarcou, portan-to; o céu e o mar sorriram-lhe a princípio, tudo o que via lhe excitava o entusiasmo e revelava poesias de-liciosas. Mas estas alegrias tão profundamente sen-tidas foram de curta duração, pois toda a falta quer expiação; ela havia infringido a lei e não temera mostrar-se e desafiar assim as proibições expressas de todos os legisladores do seu país, ela que, como princesa, devia dar o bom exemplo às outras mulhe-res! Em breve o céu se cobriu, um terrível tufão se desencadeou e vinte vezes a ia engolindo. Vivamen-te assustada com o perigo que corria, invoca adeusa do mar e jura erguer-lhe um templo, precisamente no lugar onde acostasse, se ela conseguisse arrancá--la ao perigo. O mar acalma-se e o junco é suave-mente conduzido à costa por uma onda que imedia-tamente se retira. A princesa salva manteve a sua palavra e um templo foi erigido sobre a colina esté-ril, no sítio onde ela desembarcara. Antes, não ha-via no lugar mais do que pequenas árvores fracas e agora vê-se poderosa vegetação que me não canso de admirar e que, com a sua sombra, protege o solo e o próprio templo, dando assim uma frescura des-conhecida à terra antes queimada por um sol arden-te; ao sítio onde as cabras vinham tosar a erva rara, chegam os homens em multidão, trazendo as suas oferendas, e sobre este canto de terra esquecido ele-vam-se agora eflúvios de incenso que transportam aos Céus as orações dos fiéis.

Fachada do Grande Templo de Macau.
Mas torna-se necessário deixar a tradição poética para voltar à descrição árida que, contudo, me apraz continuar, pois gostaria de vos dar uma ideia justa deste edifício. Oito pés à frente do terreiro, e sem dúvida para o preservar, puseram uma grade muito cerrada para que não fosse possível passar através dela. Na mesma linha da balaustrada fica a fachada do san-tuário principal, e por santuário não se deve enten-der aqui um lugar coberto e ao abrigo das injúrias do tempo, pois é muito simplesmente um pátio, nos dois lados do qual há uma galeria aberta, tendo ao fundo um recinto inteiramente aberto, onde se en-contra o lugar das oferendas e colocado frente à fa-chada, que não é mais do que uma parede, muito or-namentada, na verdade, e coberta de um telhado magnífico. O meio desta parede é ocupado por uma imensa janela circular, talhada numa só pedra. Esta fachada divide-se em cinco partes desiguais, ficando a mais elevada no centro das outras quatro, que des-cem gradualmente dos lados. A cornija que sustém o telhado é composta de lindas folhas bem recorta das e este, todo de porcelana azul, é encimado por uma barca, nos flancos da qual estão gravadas en-cantadoras figurinhas, mostrando todas as cenas da vida chinesa e casas de todos os modelos. Por baixo desta cornija, um baixo-relevo colorido, emoldu-rado de pedras vermelhas, representa animais fabu-losos; a seguir, e sempre a descer, um enquadra-mento semelhante contém quatro grandes caracte-res pretos, alguma máxima importante, sem dúvida; vem então a janela redonda de que falei. As duas di-visões médias da parede, que são definidas por pi-lastras cobertas de caracteres, têm também a sua cornija, o seu telhado azul e a sua barca, como a do centro, e ainda uma janela quadrada, tão artistica-mente recortada que dir-se-ia feita a saca-bocados. Por fim, as mais baixas, que são igualmente separa-das das outras por pilastras, têm uma cornija menos bela e menos saliente e o telhado azul, em vez de barca, tem apenas um baixo-relevo recortado a toda a volta. Confesse-se que isto se parece um pouco com uma decoração. Vêm a seguir as habitações dos, padres, de que um corpo de edifício quadrado, so-brepujado de recortes, de baixo-relevos e ornado de pinturas, sobressai para o terreiro. Á esquerda da rocha encontra-se a porta de entrada, no mesmo estilo da fachada de que acabo de falar, mas mais baixa. Acede-se-lhe por uma bela escada cuja base é ornada de dois elegantes pedes-tais, em cada um dos quais repousa um animal fabu-loso, tendo uma bola na boca, maior que a respec- tiva abertura e separada com uma arte infinita. En-trando, em frente desta porta encontra-se, a cerca de dois metros, um arco de triunfo com três vãos, cujos quatro pilares têm um leão no cimo. Mais lon-ge, a igual distância e sempre em frente, chega-se a um santuário aberto do lado do arco de triunfo; é sustentado à frente por dois pilares, cujas bases são admiráveis, ao meio por duas colunas e não chega a dez pés de lado. O altar é ornado de vasos, de ouro-péis, e do tecto pendem inúmeras lanternas; duas câmaras obscuras, apenas iluminadas por uma lâm-pada, estão ao fundo do santuário. À esquerda des-ta fila de construções, a caminho da cintura exterior, encontra-se um espaço muito estreito, cheio de ro-chedos. À direita, um pátio lajeado conduz à porta do templo principal; neste pátio, uma árvore gigan-tesca tem o tronco rodeado de um muro de suporte, sobre o qual se colocaram vasos cheios de pivetes, e várias pedras cada qual com sua inscrição apoiam-se ao próprio tronco. A porta do santuário, recoberta de frases, dá para uma das galerias abertas para o pátio interior. O altar fica num recinto inteiramente aberto dum lado, como todos os que vos descrevi; em frente da janela circular da fachada, por trás deste altar, há estátuas e bugigangas, depois, nas pa-redes laterais, alabardas, um tambor muito alto, um gongo e uma quantidade de papelinhos vermelhos nos quais foram escritas orações e votos já formula-dos que o padre vende aos fiéis, que os vão queimar para chegarem à divindade aos pés da qual oferecem este singular incenso. Lanternas, fitas vermelhas e amarelas reunidas por lâminas de metal, descem das traves do madeiramento enegrecido pelo tempo e, na outra galeria coberta, em frente daquela por onde se entra, uma porta gradeada conduz à parte do tempo afectada ao alojamento dos padres, lugar interdito a chineses tal como a estrangeiros. Contu-do, um dia em que a porta estava aberta, passei o li-miar e encontrei-me num corredor metade a céu aberto e ornado de vasos de flores; ia avançar quan-do um bonzo me deteve, com ar zombeteiro e miste-rioso, o que me fez presumir que estes felizes da terra tinham diversas razões para se subtraírem à in-vestigação de olhos profanos. Ao lado e atrás do primeiro templo ou santuá-rio que fica em frente da porta de entrada, há uma escada que sobe a um terreiro mais pequeno, ro-deado também de uma balaustrada no género da primeira. Daqui, alguns degraus entre rochas con-duzem a outro templozinho; a seguir passa-se uma porta circular para chegar a uma escada, ora larga, ora estreita, segundo as exigências do terreno, pois tudo foi respeitado, árvores e pedras. Subindo-a, vê-se à esquerda, mais ou menos a meio, um pe-queno monumento hexagonal de apenas alguns pés de altura, e que nada tem de chinês; aqui vêm quei-mar perfumes e papéis. A escada, continuando, contorna a colina e, dando a volta, termina num ter-reiro semicircular, o mais elevado de todos, também cercado de uma balaustrada; este estende-se diante de mais um pequeno templo, sustentado por colu-nas de madeira castanha, que de notável apenas tem as grades de metal colocadas de ambos os lados da porta. São baixo-relevos vazados, representando reis e rainhas, deuses e deusas transportados em nu-vens de ouro. Uns sustentam uma bola que se pode-ria tomar pelo símbolo do Mundo, se não se conhe-cessem as noções geográficas dos chineses; outros, de braços erguidos e armados de uma espada, assu-mem a atitude de exterminadores. Todas estas figu-ras têm o selo que se conhece na Europa, porque os chineses imprimem-no em todas as suas obras. Este último templo fica, tal como todos os outros, à som-bra de grandes árvores e cercado de rochedos cober-tos de inscrições, tanta é a necessidade deles de ver a lei escrita por toda a parte! Quer se suba, quer se desça, pela escada ou por um pequeno atalho que dela se afasta, têm-se abertas deliciosas perspectivas de sonho, que ganham ainda mais em serem vistas assim enquadradas por estes troncos ramalhudos e estas massas de pedra. Tudo isto é tão harmonioso de tom que nada parece medíocre e cada coisa dobra o seu valor; além disso, estas construções originais estão tão bem colocadas, tão bem assentes no solo, tão bem postas entre as rochas e as árvores que ser--se-ia tentado a crer, na verdade, que alguma mão possante, alguma fada talvez, as tivesse feito surgir de repente, porque nada do que antes havia foi per-turbado e a Natureza foi respeitada com um escrú-pulo inusitado noutra qualquer parte. Assim, por vezes, a parede do templo termina numa rocha e é retomada à frente, incorporando-a de modo que uma metade se encontra no interior enquanto a ou-tra fica de fora. Só aqui reside o carácter religioso destes pequenos edifícios disseminados, que se po-deriam comparar às estações dos conventos nas montanhas de Itália, pois nada têm de grande nem de severo. Ao ver o templo de Macau, perguntei--me: será ele concepção, pensamento único de um artista, ou resultado de um capricho que lançou ao acaso esta quantidade de pequenas construções? E terão chamado os necromantes para determinarem o lugar feliz ou infeliz? A estas interrogações res-pondi de maneiras muito diferentes; primeiro acre- ditei no acaso e na decisão do feiticeiro que aqui se invoca nas circunstâncias graves; depois de mais amadurecido exame, admiti a existência do arqui-tecto, que teria construído sem qualquer plano pré-vio, sem estudos, aproveitando muito simplesmente as vantagens da posição e coordenando os pequenos edifícios à medida que iam sendo erguidos, si-tuando-os a seu capricho. Agora, que estudei todas as partes e também o conjunto desta singular cons-trução, inclino-me para um trabalho longo e profun-do. Em nenhum outro lugar este monumento teria produzido o mesmo efeito; não seria certamente tão feliz junto de outra pedra ou de uma árvore lançada de outra forma; aqui a arte parece tão pouca que deve ser infinita, pois o seu triunfo consiste em es-quivar-se a um exame superficial e alcançar efeitos tão naturais que não parecem procurados. Acredito portanto no artista, porque tenho muitas provas do talento chinês; e, de resto, mesmo que nada tivesse visto, continuaria a acreditar nisso. Não admito que o acaso produza qualquer combinação inteligente, e é injustamente que somos levados a dar este nome a um concurso de circunstâncias que não podemos adivinhar nem apreciar. Ao ver o trabalho do ho-mem, quero crer na sua inteligência, como creio em Deus perante a Natureza. Este lugar corresponde aos seus fins. Os chine-ses, que não puderam chegar à severidade dos nos-sos edifícios religiosos, sentiram contudo que os seus ornatos eram impotentes para elevar a alma a Deus e puseram as suas frágeis obras sob a protec-ção da Sua criação; assim, todos os seus templos do-minam uma vasta extensão, ou então ficam retira-dos à sombra de árvores arquisseculares. Apesar desta harmonia da situação dos lugares de oração, não posso acreditar no espírito religioso deste povo ao qual não faltam, contudo, as práticas de culto. Estudei-os com cuidado, assisto todos os dias às suas orações; vi-os sempre desatentos, obedecendo mais a uma fórmula do que ao impulso de um sentimento interior. Daí esta tolerância que não se encontra se-não aqui e a que devo a livre entrada nos seus tem-plos, nos quais de resto se comportam como em to-do e qualquer sítio. São talvez os únicos asiáticos que permitem assim a um infiel o livre acesso aos lu-gares consagrados ao culto. Deixam de bom grado assobiar, cantar e fumar lá dentro; e mesmo, se o ci-garro se apaga, não lhes custa pegar, para o voltar a acender, num pivete dos que ardem diante da divin-dade do lugar, nos vasos sagrados. Uma só vez me impediram de entrar porque havia lá mulheres da categoria das invisíveis, como pude comprovar pe las duas cadeirinhas que acompanhavam a dum mandarim. Fiquei a desenhar no terreiro à espera da sua partida e na esperança, confesso-o, de divisar enfim essas criaturas privilegiadas das quais não ti-nha podido fazer ideia senão a partir de algumas pinturas; mas as cadeirinhas foram transportadas até ao interior do templo e, quando voltaram a pas-sar, apenas pude ver uma mão que afastava a cortina azul da portinhola e um só olho; e desde as minhas decepções de Lima, não me arrisco mais a construir uma mulher com a ponta de um dedo e um olho pre-to. Mas, se estou privado de ver os rostos aristo-cráticos, vejo muitos outros que talvez os valham bem. Cada dia traz mulheres que vêm, ora sós ora com as suas companheiras, ou criadas que transpor-tam crianças; ajoelham e oram diante de cada altar, rico ou modesto. Não seria fácil dizer o que me inte-ressa mais, se os seus rostos, vestes, ou orações. A ignorância, que as faz crer que os seus pedidos serão satisfeitos em função da posição que tomem os dois bocadinhos de madeira que deixam cair durante a oração, lembra-me a superstição das nossas jovens ao desfolharem um malmequer; fiz várias reflexões tristes, asseguro-vos, ao ver a confiança com que es-tas pobres mulheres compravam amuletos, orações e desejos escritos em papel vermelho que se deve queimar para beber em infusão, os quais lhes eram vendidos por bonzos matreiros e muitas vezes idio-tas. Observei uma sobretudo, ainda jovem, que vi-nha com a criada e trazia o filhito às costas; parava em toda a parte para rezar. Chegasse junto de um templo, junto de um destes vasos, quer de pedra, quer de bronze, onde se queimam papéis votivos, a criança era cuidadosamente posta nas lajes e a mãe, ajoelhando-se junto dela, consultava a sorte com os bocadinhos de madeira e rezava com fervor pela saúde do filho, pois a pobre criaturinha sofria, ama-relinha e sem nunca sorrir. Quando o augúrio era adverso e novas tentativas não levavam a melhor re-sultado, parecia perder a coragem e por vezes os olhos enchiam-se-lhe de lágrimas; mas também quando os pauzinhos tomavam posição favorável, o olhar animava-se, os gestos, a atitude, tudo traía a sua alegria que durava até que, chegada diante de outro altar, se apagava em nova incerteza. Como em todos os países do mundo, são as mulheres que povoam os templos; os homens vão lá mais raramente porque são menos supersticiosos, mais fortes e ainda por cima mais ocupados com as coisas temporais; deixam às mulheres, mais desocu-padas, os cuidados com as coisas da religião; contu- do, acontece frequentemente que um mandarim com o seu cortejo venha também rezar; e que um ca-pitão de junco, seguido de estandartes e tantãs, con-voque os bonzos e seus acólitos que vêm vestidos das suas longas indumentárias cinzentas, cingidas por uma faixa de seda amarela presa no ombro por um fecho de prata e que, caindo, cobre uma das lar-gas mangas da túnica; cantam alternadamente, en-quanto o mandarim, resguardado por uma grande umbrela vermelha, bate com a testa no chão. Por mais ocupados que estejam todos com as suas ora-ções, não há um único, incluindo o superior, que não se dê ao incómodo de vir ver o meu desenho, mas sem ruído nem qualquer precipitação. Um dia, no momento em que eu chegava com Durran, um mandarim de categoria inferior, acompanhado dos seus criados, trazia as suas oferendas que consistiam numa enorme quantidade de carnes e de bolos. Tal como a jovem, parava ao pé de cada altar e deixava o seu tributo; mas, mal ele se afastava, uma nuvem de crianças, vindas de todos os cantos da aldeia que encosta ao templo, abatia-se sobre as oferendas e o quinhão do deus era devorado num instante; o doa-dor, longe de se perturbar, não deixava de continuar as suas devoções às outras divindades; pelo contrá-rio, olhava-as a rir e reprimia as censuras que tinha o direito de lhes dirigir, pensando que o ídolo se sen-tia mais feliz por ver tais convivas chamados ao seu festim do que se ele fosse presa dos bonzos. Ao sair do templo entrou na aldeia, onde se encontrava ain-da uma quantidade de pequenos altares descober tos, diante dos quais continuou as suas devoções; então foi uma verdadeira pilhagem e nela se mistu-raram cães e homens. Eu achava-me bastante pró-ximo desta cena para nela tomar parte; agarrei num bolo e dei-o a uma criança pequenina que, presa às costas da mães, agitava os braços e as mãozinhas no vazio. De resto, encontrei sempre a maior benevo-lência em todos os que vinham ao templo. Cada um adoptava uma postura de modo a não me perturbar nem os braços nem o olhar e um deles até me ofere-ceu as costas à maneira de carteira, o que muito di-vertiu a assistência. Os bonzos são como todos os padres da Ásia: abusam da superstição dos fiéis e ex-ploram-na sem vergonha; pouco lhes importa o voto de castidade e, se a devoção abranda um pouco e os seus proventos diminuem, de tudo fazem dinheiro. Eis a base da minha acusação: eu já lançara vários olhares de cobiça a um grande quadro que se encon-trava na parede do santuário principal; parecia-me precioso pela antiguidade. Durran um dia deu conta do meu desejo ao bonzo, que durante todo o coló-quio eu olhava atentamente; precisou de muito tem-po para compreender do que se tratava, mas quando vi o seu olhar iluminar-se subitamente, senti que o quadro era meu. A venda depressa foi concluída por cinco piastras e, como não tinha dinheiro comigo e temia que ele voltasse atrás, propus pagar a impor-tância aos transportadores; mas ele era demasiado desconfiado para consentir nesta proposta e Durran ficou como refém até que eu voltasse com a soma combinada. Vereis na parede do meu atelier esta pintura a tinta da China, ligeiramente tingida de vermelho nalguns sítios; oferece-me muito mais in-teresse desde que um missionário ma explicou: o as-sunto é tirado de Branca e Azul, romance chinês tra-duzido em francês por Stanislas Julien e que li em Cantão. Como pôde um tema de fábula encontrar lugar no templo deles? Ou esta tradição remonta a tão longe que se tornou consagrada pela sua antigui-dade?

Se o terreiro se apresentava cheio de gente de todas as profissões e de curiosos, o templo estava deserto; apenas de manhã raros devotos vinham fa-zer o seu tchin-tchin diante de alguns altares; mas durante o dia não havia absolutamente ninguém; o espectáculo absorvia toda a gente; os outros deuses foram momentaneamente destronados para cede-rem o seu império à alegria, esse deusa do povo. Apoiado na balaustrada, eu observava esta multi-dão que formigava na minha frente; todos os graus da escala social ali se mostravam confundidos: men-digos, cegos, marinheiros, peregrinos, até aos dân-dis; porque aqui há janotas como em Londres ou Pa-ris, mas só no masculino; todos se agitavam desor-denadamente neste pequeno espaço em que mal ca-biam. Não é que os ricos não afectassem ares alta-neiros, passeando-se despreocupadamente, vesti-dos de roupas compridas cingidas ao corpo por um cinto de onde pendem uma bolsa de tabaco e um ca-chimbo, de que continuamente se usam, e abrigan-do-se por trás dos seus resguardos que, além do mais, servem para os abanar e secar o suor que lhes escorre das frontes. O que faz destas reuniões qual-quer coisa de completamente à parte, em minha opi-nião, é a ausência de qualquer tipo de querela, de qualquer rixa. Ouve-se por vezes as vozes elevarem--se, mas nunca se chega à pancada; e isto impressio-nou-me tanto mais quanto o mesmo facto me havia impressionado quando cheguei a Cantão, porque nestas multidões que vivem à borda de água, cada um, pelo menos, está no seu domínio, e não teme que o adversário lhe tire o lugar. É isto um efeito da mansidão deste povo ou da sua boa disciplina? Mais de uma vez deixei o meu posto de observação para ir ver o espectáculo. Primeiro, foi o bonzo que veio ao meu encontro e me deu o lugar de honra, mesmo a meio da janela redonda. Nada vos posso dizer da peça, da qual nada percebi, a não ser que interes-sava vivamente os espectadores e não foram os aplausos nem as manifestações ruidosas que mo fi-zeram compreender; mas a sua atenção, a sua imo-bilidade eram tais que se ouviria uma mosca, não fosse o barulho que havia à volta do teatro, de onde não se viam os actores. Os chineses são tão ávidos de espectáculo que, os que não podiam arranjar lugar nos bancos montados no recinto, trepavam aos bambus que sustinham o tecto; depois chegavam outros que pediam àqueles que trepassem mais alto, de tal modo que a armação acabava por ficar co-berta de espectadores tão apertados como os da pla-teia e do mesmo modo atentos, embora precisassem de um rude esforço para se manterem no lugar peri-goso que haviam escolhido. Admirei ainda, e com mais razão que nunca, a solidez do bambu. Num ou-tro lugar do terreno vê-se um arco de triunfo provi-sório, erguido para receber o grande mandarim Lin, que deve chegar em breve, diz-se, e parar no templo primeiro, para ali fazer as suas orações e depor ofe- rendas. Enquanto se espera, uma quantidade de crianças ocupou o andaime e, esforçando-se por imitar os actores do outro teatro, tenta arrancar ri-sos aos espectadores que se amontoam à volta.

Geralmente, há perto do terreiro uma quanti-dade de pequenos barcos de travessia chamados tancás que, por muito modesta retribuição, levam à outra margem quem lá quer ir, ou nos conduzem a qualquer parte da cidade onde só se conseguiria che-gar depois de voltas infinitas. Mas, na altura do sing--song, este lugar é o ponto de encontro geral de to-das as embarcações; é na verdade um aprazível es-pectáculo o que oferecem todas estas raparigas e mulheres jovens empoleiradas na cobertura de es-teira dos seus barcos. Disputam entre si para atrair o negócio. Creio-as boas e caridosas; são muito no-vas, muito felizes na sua liberdade, demasiado cui-dadas, na limpeza das suas fatiotas, para não serem bondosas. Mais de uma vez vi estas pobres raparigas partilharem o salário que acabava de lhes dar um eu-ropeu com algum infeliz que lhes inspirava piedade. Deixai-me agora contar-vos um facto que apoia a minha asserção.

Muito perto do terreiro e à beira-mar, vê-se um velho barco todo partido, entalado entre dois blocos de pedra, à sombra de uma velha árvore defi-nhada; um pouco de palha e esteiras esfarrapadas recobrem esta pobre habitação sem defender o seu habitante, mais miserável ainda do que ela. É um chinês tão velho que não se saberia dizer qual é o mais decrépito, a habitação ou ele. Este pobre ho-mem, cujo crânio era mais desenvolvido que o dos seus compatriotas, estava tão magro e tão pálido que, ao vê-lo, duvidava-se de que ainda estivesse vivo. Nunca o vi estender a mão, se bem que a sua velhice o tornasse incapaz de prover às suas necessi-dades, e muitas vezes comia a pele dos animais que haviam saciado a fome dos mais felizes do que ele. Vi-o sempre impassível e resignado. Era um ser de-caído, ou teria ele bebido esta resignação na miséria de toda a sua vida? Como quer que fosse, interessa-va-me profundamente. As barqueiras haviam-no adoptado, de certo modo. Vi-as muitas vezes (e não as mesmas, pois os barcos mudam de estação) traze-rem-lhe a sua ração de arroz, de peixe e de chá, que ele recebia com toda a naturalidade, com uma gran-de simplicidade; mas, por sua vez, o pobre velho que não tinha cobertura no seu barco e, por assim dizer, qualquer roupa que vestir, dava a estas jovens benfeitoras a esmola que um europeu havia deixado cair na embarcação sem que ele visse. Um dia en-contrei o barco rodeado de muita gente; o infeliz não acordara; de manhã haviam-no encontrado morto no seu leito de miséria. Foram as barqueiras que lhe prestaram os últimos cuidados, e foi enter-rado na colina junto da qual se tinha escoado o resto dos seus dias. Quantas pessoas passavam junto des-te infeliz sem lhe conceder nem a esmola de um olhar! Só nestas pobres raparigas que se haviam as-sociado para o alimentar havia encontrado piedade. Não é triste pensar que a generosidade está na razão inversa da fortuna e que o pobre está sempre pronto a partilhar o seu necessário, enquanto os ricos nunca têm suficiente supérfluo?

Quero citar-vos ainda um facto singular de que acabo de ser testemunha e que vos dará alguma ideia das noções morais deste povo. Uma manhã, quando cheguei ao Grande Templo, tudo era movi-mento: as portas estavam abertas; haviam levan-tado as esteiras, que recobrem os barcos-habitação e também as embarcações que ainda não estão fora de serviço, para que o ar e o sol neles penetrassem; algumas tancareiras lavavam os seus barcos, cujas partes são desmontáveis, para que os passageiros fossem atraídos pela limpeza. Sentado numa pedra, ocupava-me a desenhar alguns deles, quando um es-pertalhão, julgando não ser visto, se baixou e rou-bou um lenço que rapidamente escondeu debaixo da túnica; mas uma das raparigas viu-o e pôs-se a gritar antes que ele tivesse tempo de fugir; todas fi-zeram coro, depois deitaram-se a ele e detiveram--no. Em breve havia ajuntamento à volta delas, a multidão cresceu e todos falavam ao mesmo tempo, cada um dando seu parecer, cada um querendo le-var o ladrão. Por fim, depois de longo debate, três jovens fortes acabaram por ficar com ele e aproxi-maram-se de uma pequena plataforma feita de tá-buas sustentadas por alguns bambus, provisoria-mente construída à beira do cais; um quarto indiví-duo subiu e, tomando o paciente pelo rabicho que lhe estenderam, assim o conduziu até à água e amar-rou-o aos bambus. Mas a multidão, para ver me-lhor, precipitou-se sobre a plataforma que, dema-siado fraca para tal peso, cedeu; e pouco faltou para que o culpado escapasse, graças à desordem. Mas voltaram a apanhá-lo e desta vez foi conduzido ao pé de um dos mastros que precedem o templo; dois ou três miúdos lançaram-se a ele imediatamente e ataram o rabicho do ladrão ao pau; depois foi amal-diçoado, apupado, e duas horas depois, quando vol-tei a passar, ele já lá não estava. Como eu não conse-guia perceber esta singular maneira de fazer justiça, um velho residente explicou-me que, quando um chinês comete uma falta demasiado pequena para merecer o correctivo do mandarim, os presentes, es-tabelecendo-se em tribunal, condenam-no a uma pena que é executada imediatamente. Neste caso, se o malandrim tivesse sido conduzido à presença da autoridade, ter-lhe-ia sido certamente aplicada a pena infamante da canga e ter-lhe-ia sido cortado o rabicho; assim marcado para o resto da vida, o des-graçado não mais conseguiria arranjar trabalho para viver e não teria outro remédio senão voltar a rou-bar. Sem dúvida ele merecia a indulgência, pelo que foi tratado tão brandamente pela população; nisso a achei sensata e consciente dos seus próprios interes-ses. Esta cena fez-me lembrar o que vos ouvi dizer muitas vezes: que ao tornar pública a infâmia do cul-pado, contribuímos para o desenvolvimento do cri-me e fechamos as portas ao arrependimento. O maior criminoso poderia tornar-se honesto, talvez, se no início a caridade o tivesse coberto com o seu manto, e se lhe tivessem estendido a mão para o ar-rancar do atoleiro onde apenas tinha ainda os pés. Vi pessoas purificadas pelo fogo desta caridade, su-perior em muito à que consola as misérias vulgares.

Macau, 21 de Maio de 1839

... Trabalhava sozinho no meu atelier e felici-tava-me pela calma desusada que reinava na ensea-da exterior, em frente da Praia Grande; os juncos de guerra, que dali vigiam, por assim dizer, a cidade, não me atordoavam com o barulho dos seus gongos e canhões, parecendo adormecidos. Contudo, como ouvisse regularmente três pancadas de tantã batidas a curtos intervalos, acorri ao meu terraço para ver se não anunciavam a chegada de algum grande manda-rim e se a armada chinesa não ia embandeirar-se e prestar-lhe honras; porque aqui nada me é indife-rente e sinto avidez por tudo. Mas, como não visse nada de novo e todavia o tantã tocasse sempre da mesma forma, chamei o criado e fiquei a saber que um chinês muito rico, falecido havia alguns dias, ia ser enterrado e que o cortejo não tardaria a pôr-se em marcha; vesti-me imediatamente e saí, cheio de curiosidade de ver o que se ia passar.

Cheguei diante da casa do morto, que estava coberta de branco, antes que o corpo fosse retirado. Este ocupava o meio da rua, num caixão feito de quatro semitroncos de árvore trabalhados com uma arte notável e cujas partes planas formavam o inte-rior. Recobria-o um pano de seda vermelha com franjas de ouro. Alguns criados, segurando lanter-nas e bandeiras, estendiam-se uns à sombra, outros ao sol, fumando e rindo sem se preocuparem com o motivo que os fazia estar ali; o que me fez pensar nas nossas pompas fúnebres. Em breve vi sair da casa mortuária os familiares, os amigos, as mulheres e os filhos do defunto, todos vestidos de branco, que é aqui a cor do luto. O tecido das suas vestes era tanto mais tosco e grosseiro quanto aquele que as usava era mais próximo do falecido; as mulheres, que lan-çavam gritos lancinantes, tinham pés pequeninos e mantinham-se em feixe para se ampararem mutua-mente; eu seguia todos os seus movimentos com re-ceio e interesse, pois se uma fosse retirada do grupo todas as outras·cairiam; perguntava-me a mim pró-prio como fariam elas para irem até ao Campo e su-bir em seguida a colina. Mas quando pegaram no caixão e o cortejo devia pôr-se em marcha, cada criada agarrou e transportou às costas, não sem ex-trema fadiga, cada uma destas pobres estropiadas, até ao lugar da sepultura; e ainda foram obrigadas a parar várias vezes pelo caminho. Os porta-lanternas e estandartes abriam o cortejo, seguidos de vários músicos que tocavam uma espécie de clarinete de sons agudos; a seguir vinha o féretro, precedido de uma longa bandeira de seda vermelha com os títulos e qualidades do defunto em letras de ouro, e na qual o filho mais velho, que dirigia o luto, apoiava a cabe-ça; depois, à frente do resto da família, iam as mu-lheres transportadas como acabei de vos contar. Fi-nalmente, depois de toda a gente, três mesas fecha-vam a marcha, carregadas uma de fruta, outra de carnes trinchadas e a terceira de um enorme porco assado.

Chegado ao Campo (1), o cortejo subiu peno-samente as encostas da colina onde o esperava o bonzo com os coveiros, que acabaram de abrir a se-pultura durante a cerimónia. Logo que o caixão foi posto sobre uma padiola, todos os parentes ajoelha-dos à volta batiam com a testa no chão e respondiam aos versículos que o bonzo, ao lado do qual estava um músico, cantava, enquanto as mulheres e as car-pideiras lançavam gritos de lamento. Durante esta cerimónia, que durou duas horas, ou criados manti-veram-se sentados à distância e não abandonaram a sua despreocupação senão quando o cortejo reto-mou o caminho da cidade e eles tiveram de retomar as mesas ainda carregadas, pois não deixaram junto da sepultura mais do que algumas migalhas com al-gumas velas e pivetes a arder. Embora bastante in-comodado pelo sol, que era ardente, não deixei o lu-gar antes de terminar o meu desenho. A posição era magnífica: à minha esquerda tinha o forte da Guia; à direita e num plano mais afastado o Monte; em frente, a cidade banhada pelo mar de dois lados; de- pois, como perspectiva, a Lapa e as outras ilhas que fecham o horizonte... ... Era no fim de Abril; nessa altura os chine-ses levam oferendas e vão rezar aos túmulos dos an-tepassados. O Campo e as vertentes das colinas es-tavam extremamente animados; por toda a parte havia multidão, cada um renovando a cerimónia das exéquias. Cada sepultura se distinguia por uma de-coração particular; as mais modestas, tal como as mais sumptuosas, tinham sido enfeitadas. A relva havia sido renovada e a terra à volta remexida. Viam-se recortes de papel de cor, dourado, verme-lho e branco sobretudo, figurando ramos carrega-dos de folhas e de flores, ou então vasos e lanternas; outros representavam bandeiras e caracteres chine-ses; outros ainda imitavam com perfeição pássaros e insectos, sendo a habilidade e a paciência dos chine-ses para estas coisas verdadeiramente admiráveis. Tudo se fixava a hastes de bambu espetadas na ter-ra. As sepulturas mais humildes apenas tinham qua-drados de papel de cor que uma pedra impedia de serem levados pelo vento; precaução muitas vezes inútil! Algumas, contudo, mostravam-se solitárias: as honras prestadas às outras salientavam ainda mais esta ausência de qualquer cuidado; tratava-se de defuntos cuja família se extinguira ou dispersara nas outras províncias do Império, pois nenhum chi-nês ousaria negligenciar este aniversário sagrado. O culto à memória dos antepassados, que faz parte da sua educação religiosa, de tal modo penetrou nos seus costumes, que este povo, para quem a forma e a letra são tudo, lhe dá maior importância que à sin-ceridade do desgosto; poder-se-ia mesmo dizer que ele o dispensa. De resto, as leis contribuíram para tal, obrigando a esta quantidade de cerimónias, e um chinês que as negligenciasse seria punido severa-mente. Talvez a miséria tivesse obrigado os descen-dentes do morto abandonado a exilarem-se para ir tentar fortuna no estrangeiro, desafiando assim a lei que proíbe aos chineses de sair do Império e ex-pondo-se, à volta, a fazer-se despojar, pela avidez dos mandarins, da maior parte dos seus bens, no caso de terem sido favorecidos pela sorte.

Capela do Grande Templo de Macau.

O solo estava juncado de detritos destes frá-geis ornamentos, agitados continuamente pela brisa que, por mais leve que seja, levanta sempre alguma parcela. À hora a que cheguei, havia ainda três gru-pos que realizavam esta cerimónia, cada um segun-do as suas posses. O grupo que desenhei era com-posto por cinco ou seis indivíduos que já haviam fi-xado no solo uma quantidade de velinhas de cera vermelha acesas, assim como vários pauzinhos a que os europeus chamam joss'sticks (2), e que se ven-dem em Paris como fósforos perfumados. Depois, pratinhos contendo diferentes iguarias eram dispos-tos simetricamente diante de cada vela, ao lado de algumas chávenas de chá e de cham-chow (3). Cada um dos assistentes tomava, por sua vez, alguns pe-daços de papel que acendia nas velas; a seguir agi-tava-os de cima para baixo, fazendo frequentes ge-nuflexões ou inclinando-se simplesmente diante da sepultura e murmurava alguma oração, pelo morto ou por si mesmo. Outros, mais ricos sem dúvida, ti-nham um padre que executava os cânticos, ao som dum pequeno tantã que segurava na mão esquerda e no qual, com um instrumento de ferro, batia com a direita, cujo dedo mínimo, metido na argola de uma sineta, a agitava continuamente. Assim, por toda a parte, o rico se faz substituir por um merce-nário, mesmo no cumprimento dos deveres mais sa-grados! Entre nós, o povo do campo amortalha e vela os mortos: o homem de posses descarrega esta obrigação sobre qualquer criado; o opulento dis-pensa-se dos cuidados a prestar ao doente e, quando este deixa de existir, um padre ou qualquer irmã de caridade reza por ele, enquanto o sobrevivente veste de luto a sua dor. Ao lado do bonzo um músico tocava, numa espécie de oboé, a mesma música que eu ouvira nos dias de festa e as carpideiras ajoelha-das lançavam gritos estridentes, batendo com a testa no chão. O que me impressionou mais do que tudo foi o ar de indiferença com que executavam estes ac-tos de devoção e a ausência de sentimento religioso. Cada um, ao mesmo tempo que continuava as suas orações, afastava-se sucessivamente do seu grupo e, a rir, vinha ver o que eu estava a fazer; vários deles chamaram os companheiros para apreciarem a cara do bonzo que eu tinha conseguido transmitir bem ao papel. Tudo isto durou uma meia hora e ao partir deixaram os pratos cheios de iguarias. Ainda eles não haviam descido a colina quando vi acorrer de to-dos os lados uma quantidade de cães que, adverti-dos pelo fumo dos papéis acabados de queimar, se precipitaram para comer a parte do morto ou ape-nas lamber o chão impregnado de gordura e de algu-mas gotas de óleo de rícino, com que nesta terra se prepara a cozinha. Tudo foi devorado num ápice. A voracidade destes pobres bichos, a alegria de uns e o desapontamento de outros, eram um espectáculo singular e interessante. Os felizes, os que a sorte ha-via favorecido, mesmo em graus diferentes, distin-guiam-se facilmente dos que, menos ágeis, haviam chegado mais tarde; a atitude de cada um indicava perfeitamente em que categoria devia ser classifica-do. Os primeiros tinham a cabeça direita, o pêlo eri-çado, as orelhas esticadas e o olhar provocador; lambiam-se deliciados e, tal como os homens, não pediam perdão pela sua felicidade. Os outros, pelo contrário, caminhavam de cabeça baixa e orelha murcha, rabo tristemente entre as pernas, enquanto que os primeiros o abanavam e mantinham insolen-temente esticado; alguns, para quem tal contra-tempo não era novidade, afectavam certa resigna-ção, quer por filosofia, quer por amor-próprio. Che-gados últimos entre os últimos, nada haviam encon-trado, nem mesmo chão que lamber; mas apresenta-vam-se com bom aspecto, mostrando-se entre os fe-lizardos e afivelando o maior desinterese. Dir-se-ia que olhavam o céu e a paisagem, enquanto escruti-navam cuidadosamente o horizonte à procura de novos sinais de fumo. Vi um muito magro, velho e feio, de lombo meio pelado e cauda desprovida de penacho; separou-se a pouco e pouco do grupo, an-dando de um lado para o outro com indiferença e zi-guezagueando como se fosse cego. Dava mil e uma voltas mas avançando, contudo, em linha recta. Re-tirava-se tão tranquilamente que poder-se-ia crer que apenas o acaso o havia trazido até junto do tú-mulo. Segui-o com o olhar, curioso de ver o que ele queria fazer; chegado a uma certa distância, voltou--se lentamente, mediu o espaço que o separava do resto da matilha e, certo de ser o primeiro, partiu como uma seta; foi imediatamente seguido de al-guns que o observavam, depois todo o grupo aba-lou. Ele chegou em primeiro lugar, mas coitadito! Depois de tantos esforços e cálculos, apenas encon-trou chão para lamber; os pobres cujo fumo fraco ele avistara tinham voltado a levar as suas oferendas para se alimentarem, compreendendo instintiva-mente que o cuidado com os vivos deve sobrepor-se ao cuidado com os mortos. Não pude negar a minha simpatia a este animal, cujas privações habituais de-viam ser bastante grandes, pois empregara tanta in-teligência para obter tão fraco resultado.

Continuando o meu passeio, o acaso condu-ziu-me a um lugar onde presenciei uma cena bas-tante estranha. Vi um cova aberta tendo sobre um dos bordos um monte de terra removida de fresco. Do outro lado estava um homem cujas vestes, a barba grande e a cabeça por rapar, acusavam misé-ria. Perto dele estava uma imensa talha na qual pu-nha com cuidado qualquer coisa que não pude dis-tinguir de longe; aproximei-me: um outro homem mais novo, seu filho talvez, procurava na cova e, cada vez que encontrava um osso de um cadáver, que sem dúvida não tivera as honras de um caixão, estendia-o ao seu companheiro, que imediatamente o metia na talha. Acabado este trabalho, puseram às costas com a ajuda de um bambu este esquife de nova espécie. Segui-os, impaciente por saber o que iam eles fazer do seu fardo e da caveira que o mais jovem transportava na mão, por não a ter conse-guido fazer entrar na talha, cuja abertura era dema-siado pequena. Após meia hora de marcha, para-ram junto de outra cova acabada de abrir, onde se encontrava um caixão bastante toscamente feito, que um terceiro chinês havia trazido. Nele dispuse-ram a ossada, na posição respectiva, voltando a for-mar o esqueleto; uma vez fechado o caixão, depuse-ram-no com cuidado no fundo desta nova sepultura e recobriram-no de terra. Não deixaram, antes de se retirar, de fazer algumas oferendas de papéis quei-mados.

Os chineses têm as suas superstições que, se bem que diferentes das nossas, são igualmente for-tes. Assim, quando não são felizes, quando o co-mércio lhes não prospera, atribuem esta adversi-dade ao facto de os ossos dos antepassados não te-rem sido colocados num lugar favorável. Por isso a escolha de um sepulcro é longa e confiam-na muita vezes a espertalhões que, explorando a estupidez dos outros, se tornam em descobridores de sepultu-ras, como outros se fazem sapateiros, serralheiros, etc.. Tive ocasião de observar a prática desta indús-tria de novo género.

O céu estava puro, o mar tranquilo: era um destes entardeceres dos trópicos em que a vida é doce e fácil, em que se sonha sem fim, um destes en-tardeceres que jamais se esquecem. Errava no meio das pedras e dos túmulos chineses no cimo das coli-nas que dominam o Campo e se avizinham do Forte da Guia. Procurava um lugar de onde pudesse cap-tar, sob nova perspectiva, Macau e a sua bela cin-tura de montanhas e de mar entrecortado de tantas ilhas; admirável panorama que tantas vezes dese-nhei. Havia já começado um desenho quando a mi-nha atenção foi desviada pela chegada de quatro chineses que se dirigiam para mim, parecendo preo-cupados com algum assunto importante. Caminha-vam ao acaso, não seguindo qualquer carreiro, como se não tivessem destino. Ora subiam a colina, ora a desciam, fazendo paragens frequentes. A se-guir, um deles olhava para a terra como se quisesse sondá-la, depois para o céu, parecendo interrogar os astros; contemplava a paisagem como um artista, parecia hesitar um instante e depois abanava a cabe-ça, afastando-se, e continuava o seu caminho sem fim aparente. Os outros seguiam-no em silêncio, es-piando com ansiedade os seus menores movimen-tos. Depressa esqueci o que fazia, para apenas me ocupar destas estranhas figuras, da sua solicitude in-quieta da qual nada compreendia, procurando uma ponta para este enigma. O acaso levou-os até à pe-dra em que me encontrava sentado; passaram muito perto de mim e, coisa singular que pela primeira vez observava, não só nenhum deles se voltou para ver o que eu estava a fazer, como nem sequer pararam, embora andassem à minha volta mais de cinco minu-tos. Julgando que tivessem perdido algum objecto precioso, levantei-me e aproximei-me para os aju-dar, se possível, na sua procura; mas não atraí a atenção de nenhum deles e continuei a examiná-los com todo o interesse de uma verdadeira curiosida-de. Dois deles mantinham-se constantemente al-guns passos atrás: eram os criados, dos quais um transportava uma pá e o outro um alvião, assim como um cesto em que havia pivetes e papéis. O ter-ceiro, mais bem vestido, parecia pertencer a uma classe mais desafogada.

Estava inquieto, absorto; os olhos dele não largavam por um só instante o companheiro, a quem seguia colado. Depressa compreendi que este era a personagem essencial do grupo. As suas roupas eram bastante miseráveis e nada o distinguia dos dois criados, a não ser os sapatos rotos e desguarne-cidos da espessa sola branca. O nariz largo e acha-tado era tão pouco saliente, sobretudo na base, que dir-se-ia que não lho tendo dado a Natureza, um ar-tista hábil lhe havia feito um com a ajuda de algumas suaves meia-tintas; os seus lábios, finos e pouco car-nudos, encavalitavam-se nuns dentes bastante com-pridos para impedirem que se juntassem. O bigode branco pendia em duas guias, caindo tão baixo quanto a barba; os dois olhos pequenos, cheios de malícia, pareciam ainda mais pequenos por via das pálpebras papudas e dos malares salientes; o con-junto era enquadrado por duas orelhas grandes e chatas, muito afastadas da cabeça; a testa era alta e o crânio resplandecente rodeado dum tufo de raros cabelos brancos, de que conseguia fazer uma pe-quena trança de um pé e meio; tinha, contudo, como todos os chineses velhos, um ar quase venerá-vel. Batia no chão de vez em quando com um pau que tinha na mão. Fez-me lembrar as pessoas que, em algumas das nossas províncias, pretendem des-cobrir fontes e metais enterrados, com o auxílio de uma vara de aveleira.

Apesar de não me darem qualquer atenção, afastei-me contudo para não os perturbar, conten-tando-me com segui-los de longe. O dia ia findar e eu receava que a noite viesse antes de poder encon-trar explicação para o mistério das andanças deles, e satisfazer a minha curiosidade tão vivamente excita-da. Segui-os portanto, subindo e descendo como eles, mas à distância. Sempre a andar, o velhote murmurava palavras que me eram ininteligíveis. Uma ocasião, tendo batido várias vezes no chão com o pau que trazia e olhado atentamente à volta, fez sinal aos criados; depois traçou no chão figuras em diferentes direcções e os dois moços puseram-se a cavar; mas ele pareceu reflectir, interrompeu-os e os quatro retomaram o seu caminho. Desta vez iam mais depressa e em linha recta; por um momento julguei que a operação terminara e cheguei mesmo a renunciar à perseguição, desolado por não haver percebido nada de tudo aquilo. Tinha-os perdido completamente de vista: estava no cimo da colina e caminhava em frente, perto do barranco onde ha-viam desaparecido; em breve os vi novamente, an-dando com precaução e em silêncio, como se temes-sem incomodar o repouso daqueles sobre cujas cam-pas passavam sem muita cerimónia. Alcancei-os no instante em que o velho chinês traçava um quadri-longo murmurando uma espécie de evocação; vol-tou-se em seguida para o seu companheiro, que deu ordens aos dois criados. Inclinaram-se todos diante do lugar indicado, ali queimaram alguns bocados de papel, depois os dois operários meteram mãos à obra: cavaram uma sepultura. O chinês perdera o pai e aquele que o acompanhava era um destes ne-cromantes finórios que têm a arte de fazer crer aos seus compatriotas que possuem faculdades sobrena-turais, criando assim uma indústria muito específi-ca, creio, do Celeste Império, tal como a de hospe-deiro da morte, de que qualquer dia vos falarei e que me parece mais singular ainda.

Macau, 20 de Junho de 1839. ... Disseram-me, há alguns dias, que os solda-dos tártaros enviados por Lin haviam montado as suas tendas do outro lado do muro que atravessa o istmo e mesmo na península. Como deveis imagi-nar, caro amigo, não queria perder esta ocasião, única talvez, de ver um acampamento chinês, em-bora me assegurassem que tinham maltratado os es-trangeiros que deles se aproximaram. As tendas, perfeitamente semelhantes à nossas, estão todas ali-nhadas, excepto a do chefe. Entrevi, nas únicas duas que estavam abertas, um sarilho de armas ornado de um escudo, em que havia sido pintada uma cabeça de tigre; os soldados exercitavam-se a atirar ao alvo com o arco, e devo dizer que davam provas de gran-de destreza. Num canto, uma sentinela guardava um pobre homem que estava na canga, junto de um chefe que tranquilamente fumava o seu cachimbo. Não há outra relação entre um acampamento chinês e um europeu, para além das tendas, que são limpas e bem armadas num e noutro. Mas que distância en-tre os nossos soldados - alerta, sempre em movi-mento, de roupas folgadas, ar marcial - e estes homens pacíficos, constrangidos nas suas longas vestes, armados de lanças, de chuços e de espingar-das de mecha! Que aconteceria a este império se en-trasse em luta com uma potência europeia? Feliz-mente para eles que tal é impossível, graças ao afas-tamento; de resto, quando se vê estes militares coze-rem o seu arroz e comê-lo, compreende-se que obe-decem então muito mais às tendências da sua orga-nização do que quando se ocupam do seu mister.

As gravuras que ilustram os dois textos anteriores (litografias de Eugène Cicéri segundo desenhos originais de Auguste Borget), foram seleccionadas, com as respectivas legen-das, do livro “A China e os Chineses”.

(1) Passeio de Macau

(2) Paus de Deus ou paus sagrados

(3) Aguardente de arroz

desde a p. 105
até a p.