Artes

A ÓPERA CHINESA

Ramón Lay Mazo*

Cena de um drama poético, 1324 (Fresco do palácio Ying Wang da Dinastia Ming, em Hong dong, Província de Shanxi).

Aópera chinesa, desde a sua forma rudimen-tar, conta com mais de 4.000 anos de existência, pois os seus começos remontam aos primeiros tempos da dinastia Hsia, fundada cerca de 2.200 antes de Cristo. Tinha, então, a forma de um ritual mágico-religioso de cantos e danças, sempre com alto sentido sagrado. Estas shen-hsi, ou “represen-tações sagradas”, eram executadas por “dançari-nos-feiticeiros” chamados wu, ou “militares”. Com o correr do tempo estas representações sagra-das foram-se secularizando, ao serem nelas interca-ladas as façanhas e sucessos heróicos dos antepas-sados dos governantes no poder, como póstuma homenagem às suas memórias. Posteriormente, es-tas. obras semi-religiosas assumiram, também, um papel inteiramente histórico ou dramático, pelo que começaram a ser classificadas em wu e wen, ou seja, em “militares” e “civis”, respectivamente. As wu ou “militares”, incluíam cenas agitadas, com fe-rozes combates e acções violentas de todos os gé-neros, as wen ou “civis”, pelo contrário, eram cal-mas e pacíficas, tratando quase sempre aspectos da vida social, com felizes ou desafortunados enredos amorosos.

Para apreciar devidamente a ópera chinesa, o espectador que a não conhece deverá ignorar tudo o que sabe da ópera europeia, pois assistir a uma re-presentação é aceder a um outro mundo, jamais imaginado.

Começando pela cena e os bastidores teatrais: a ópera chinesa não procura dar a sugestão da reali-dade através de variados e múltiplos cenários, como na ocidental. Despreza a ilusão da realidade material e cria, por sua vez, um ambiente imaginá-rio muito próprio.

Comediante (terracota da Dinastia Yuan).
Dança Dian da Pluma dos Han Ocidentais. (In “The History of Chinese Dance”, Foreign Languages Press, Pequim, China).

Os adereços de cena estão rigorosamente es-tabelecidos, sendo o principal mobiliário uma mesa coberta com uma toalha vermelha bordada e uma cadeira, as quais, conjugadas de formas dife-rentes, podem representar muitas coisas: o trono de um imperador, o estrado de um juiz, o mostra-dor de uma venda, o altar de um templo, a sala de uma residência aristocrática ou simplesmente o cu-bículo de uma humilde cabana. Mas, isto não é tudo. Dois bancos sobrepostos, poderão ser uma torre ou um pagode; um banco em cima de uma mesa, uma montanha; um pedaço de pano preto com riscas brancas fixado em dois paus de bambu é a muralha de uma cidade; duas bandeiras amare-las com uma roda pintada no centro, e levadas hori-zontalmente por dois criados, indicam que a pes-soa que caminha no meio vai de carro; um ou mais indivíduos de uniforme com o ideograma ping (soldado) pintado no peito ou nas costas, desfi-lando pelo palco com bandeiras, representam mi-lhares de homens, o exército completo de um gene-ral. Um barco é geralmente representado por um velho e um jovem empunhando remos, e moven-do-se e girando a uma distância fixa um do outro. Bandeiras com ondas pintadas horizontalmente re-presentam o mar, ou anunciam procela, mar bravo ou inundações. Uma tempestade de neve é repre-sentada por um homem empunhando um guarda--chuva vermelho, de cujas pregas, ao rodá-lo, sal-tam pequenos pedaços de papel branco. Os estan-dartes oficiais e os leques, de cabo comprido ou desdobráveis, são símbolos de posição elevada na administração imperial. A personagem que agita uma "vassoura de núvens"(uma espécie de espana-dor de fitas compridas) simboliza uma fada ou um ser imortal. Quando alguém leva uma vela acesa na mão, significa que há demónios vagueando nos ares; e quando um fantasma aparece, reconhece-se pela pintura da cara ou pelos pedaços de papel branco que leva atrás das orelhas, pois o branco é a cor do luto e da morte. Todavia, um mortoé repre-sentado por alguém que leva a cabeça e o rosto co-bertos por um pano preto e vermelho. Reconhece--se um cavaleiro na personagem que entra em cena manejando uma varinha adornada com borlas de várias cores, que simboliza o “cavalo”. Se o cava-leiro a usa na mão direita, quer dizer que vem mon-tado; se a traz na esquerda, quer dizer que já des-montou a cavalgadura. Com gestos hábeis sugere como o animal se empina ou galopa a toda a brida; quando entrega a varinha a um servente ou a atira ao chão, é porque terminou a corrida e abandona a montada. Este mesmo cavaleiro, vestido de militar, pode inculcar uma tremenda carga da cavalaria.

A orquestra consta de poucos elementos, que tocam vários “estranhos” instrumentos musicais (instrumentos de sopro parecidos com clarinetes, gongos, pratos grandes e pequenos, sinos, alaúdes e outros de corda parecidos, no som, a violinos e bandolins). Fica à direita no palco, separada algu-mas vezes apenas por um biombo.

À música que esta orquestra executa não é polifónica quanto à sua forma. É algo estridente e barulhenta, e escapa às normas melódicas comuns no Ocidente. Exprime-se por meio de escalas mu-sicais muito diferentes das europeias. O seu en-canto reside em subtis cadências e variações da mesma melodia, numa toada simples e monótona. Não possui a forma arrevesada da música sinfónica ocidental, adornada de ressonâncias e intercalada de mil arranjos, que descrevem sentimentos, ac-ções e paisagens. A música da ópera chinesa não possui essa linguagem descritiva. Compõe apenas um mosaico de sons dentro de um limitado nú-mero de arranjos; possui mais intensidade que har-monia e elasticidade de forma, pelo que fere ou ir-rita o ouvido não acostumado.

Alguns instrumentos musicais da ópera chinesa 1 - Pai-shiao (flauta de Pan)
2 - Thon ku (bombo)
3 - Tao ku (tambor manejável)
4 - Tau pei ku (tambor de 1 pele)
5 - Po Fu (tambor de 2 peles)
6 - Ch'in (cítara)
7 - Suo-ńa (obué chinês)
8 - Yu (tigre musical)

Esta música divide-se em wu e wen, “militar” e “civil”, como nas obras teatrais. Na wen ou "ci-vil" usam-se, principalmente, os instrumentos de corda e de sopro, que produzem uma música doce e comovente, acompanhamento do canto nas cenas tristes ou românticas da vida quotidiana. Na wu, música marcial, empregam-se instrumentos de percussão, de metal ou de madeira, de sons roufe-nhos e cheios, que sublinham os saltos, os rodo- pios, as corridas e as lutas. Parecendo uma cacofonia desvairada, na realidade segue uma ordem rigorosa e dirige a acção dos movimentos acrobáticos e o furor dos en-contros armados com mortes violentas de todo o tipo.

Como as notas musicais são sinais de diferentes movimentos, o executante do instrumento que dirige a acção está sen-tado à frente, na zona da direita baixa cha-mada chiu-lung-heu ou “boca dos nove dragões”. Não se pode fazer soar nenhum instrumento até que o músico do tamboril, que ocupa este lugar de honra, dê o primeiro toque. O tã-tã do tan-p’i-ku (tambor de uma só pele) marca o tempo aos músi-cos e o movimento aos actores, e indica o momento em que o som dos instrumentos de corda, de metal, de sopro ou de percussão, deve subir ou baixar.

Apesar da falta de qualidade descritiva da sua música, a ópera chinesa tem uma linguagem riquís-sima de gestos e movimentos, com os quais se pode expressar tudo quanto se queira. Não há outro tipo de ópera que requeira tão pouco uso da expressão musical como a chinesa. A sua mímica é tão cabal e perfeita que quase não necessita dela. Unicamente com gestos, cria tudo o que é necessário para o am-biente adequado às suas acções. Assim, fazer es-voaçar e flutuar as compridas e largas mangas du-plas, não é gesto acidental ou ocasional do execu-tante; é sim um movimento estudado e intencional, que permite ao actor exprimir com a linguagem muda das mãos e das mangas o que sente, dando também realce ao que diz ou canta. Através do seu uso adequado e expressivo, mostrará o actor a sua habilidade, classe e categoria. Por exem-plo, o esfregar levemente as pálpebras com a ponta da manga, significa chorar. Existem 107 diferentes movimentos de mãos que possibilitam transmitir uma grande variedade de sentimentos, e todo o actor sabe como expressar-se com este complicado léxico de sinais e gestos. Dei-xar cair as mangas, agitá-las para a frente e para trás, fazê-las ondular e estremecer, ou movê-las à roda ou horizontalmente, todos e cada um destes movimentos denotam uma disposição de alma, um sentimento, uma ideia íntima do pro-tagonista. Também com eles descreve a paisagem e o ambiente que o rodeia, o lugar onde está, o rumo a seguir, de onde sai ou entra, etc.. Contudo, existem algumas activida-des quotidianas que os chineses consideram dema-siado vulgares para se representarem em cena, e al-teram-nas adequadamente. Por exemplo, o acto de dormir; o chinês sempre o considerou rude e pouco refinado, de maneira que nunca o representa em posição natural. Um intérprete pode fingir de “adormecido” apoiando a cabeça sobre um braço, mas nunca deitando-se no chão ou sobre as cadei-ras ou a mesa. O canto na ópera chinesa é algo mais que música vocal. Nenhuma personagem se exprime na sua voz natural, excepto o palhaço que diverte o público com as suas cabriolas e chalaças. As canções chinesas, especialmente na ópera clássica, são uma espécie de canção-relato de al-guma façanha heróica, de um acontecimento notá-vel ou então de um enredo amoroso, mas posto em acção pela dança (à maneira dos “corridos” mexi-canos). Por isso a personagem, geralmente, inicia o seu papel com um pai ou “introdução”, onde fala de si mesma, da sua situação e, às vezes, da sua fa-mília. Esclarece assim o público sobre o episódio que se dispõe a ver. Estes pai repetem-se ao longo da cena, umas vezes em fala rimada, outras em can-to, para explicar as acções que a seguir se desenro-larão. Os actores, em regra, entram através duma porta tapada com uma cortina, si-tuada à direita do palco, que se chama sheng-men (porta superior), e saem pela hsia-men (porta inferior), situada à es-querda, e pela sua maneirade entrar devem indicar onde se desenrola a acção, seja no palácio dum imperador, nos aposentos de uma dama, num campo de batalha ou na coberta de um barco. Quanto às personagens que representam, existem quatro tipos distintos: o sheng, o actor principal; a tán, a primeira actriz; o ching, o “cara pintada”; e o ch'ou, o cómico. Os sheng ou actores principais subdividem--se em quatro grupos: os guerreiros são wu-sheng; os intelectuais wen-sheng; os jovens shiao-sheng; e os velhos lao-sheng. Há duas classes de guerreiros: os ch'ang-k'ao ou “guerreiros-cantores” e os tuan-tá, que lutam sem cantar. (1736-1796 d. C.) da dinastia Ching ou Manchu, foi proibida a presença da mulher no palco por considerar-se “não decoroso que as mulheres actuassem em cena ao lado dos homens” e por ser “a sua influência prejudicial e imoral para a comunidade”.

A designação de “máscaras”, da ópera tradicional chinesa, refere-se mais exactamente às pinturas faciais com que alguns dos protagonistas aparecem caracterizados (protagonistas principais, jing ou ching e palhaços, chou). A tradição da “máscara” tem origem nas pinturas faciais que começaram nas Dinastias Tang e Song. Utilizadas primeiro nos palhaços, foram aplicadas depois a um outro tipo de personagens da ópera, os jing ou ching. As “máscaras” têm diversos modelos ou tipos bem definidos e classificados, com as suas variantes, e destinam-se a salientar a identidade, temperamento, carácter e destino dos seus protagonistas. No geral, a pintura da cara ou “máscara” identifica personagens invulgares com características extremas ou radicais: personalidades caprichosas, negativas, nefastas ou exemplares. Protótipos de maldade ou da virtude. Também o carácter sobrehumano ou subhumano de alguns figurantes requer a “máscara”, como nos deuses e nos monstros, para expressar a sua qualidade ou ferocidade. No geral, a técnica da pintura divide o rosto em seis zonas: testa, sobrolhos, globos oculares, cavas laterais do nariz, bochechas e boca. As primeiras três são as mais importantes e decisivas para estabelecer as diferenças entre protagonistas. As cores das pinturas têm também significados bem distintos: a cor vermelha significa fidelidade e rectidão; a violeta, serenidade e tenacidade; o negro, grosseria, bruteza, falta de discernimento; o azul, bravura e truculência; o verde, quase sempre acompanha o azul, e nesta combinação caracteriza as figuras monstruosas; o amarelo caracteriza a valentia e a fortaleza; o tom creme expressa altivez e obsessão; o branco insinua astúcia e crueldade; os púrpuras e os cinzentos indicam velhice e doença; o dourado e o prateado distinguem os deuses, budas e espectros. As combinações de várias cores nos desenhos variados das inúmeras “máscaras” representam as riquíssimas potencialidades deste modo de expressão teatral e são um dos grandes polos de atracção da Ópera chinesa, pelo constante desafio às capacidades de argúcia e decifração do espectador iniciado.

Como é óbvio, a ópera chinesa enfrentou, pois, uma grave crise. A proibição de actrizes para os papéis femininos tinha de solucionar-se para que a ópera pudesse subsistir como entretenimento popular. Desta premente necessidade surgiu a substituição da mulher pelo homem, o qual desem-penhou o seu papel perfeitamente e a contento do público, uma vez que quase sempre era mais ex-pressivamente feminino do que a própria mulher.

Tempos depois permitiu-se a presença da mulher nos palcos, mas sem a companhia do ho-mem, de maneira que para os finais do século XIX havia duas modalidades de companhias operáticas: uma composta só por homens e outra inteiramente por mulheres. Nas escassas companhias femininas, inclusivé os papéis dos acrobatas e guerreiros eram interpretados por mulheres, com o mesmo vigor, destreza e perfeição que os homens.

Desde a implantação da República em 1911, e com a abolição dos antigos éditos imperiais, as mulheres acrescentaram a sua beleza e voz à ce-na, representando os papéis que lhes corres-pondiam ao lado dos homens; parece que, sem dúvida, o continuarão a fazer por mui-to mais tempo, já que assim o está demons-trando a sua actuação num quadro tão puritano como o da China dos últimos decénios.

Pois bem, existem seis espécies de tán ou papéis femininos na ópera chinesa: a hua-tán, “actriz-flor” ou protagonista do drama; cativa o público com os seus olhos bri-lhantes e atraentes movimentos. Em contraste com os tipos de mulheres virtuosas, esta for-mosa donzela ostenta os seus encantos com pícara sensuali-dade e sedutora graça. Usa mag-níficos vestidos de cores alegres e um penteado complicado, adornado com resplandecentes lantejoulas e pérolas.

A ch'ing-yi, a jovem reservada e modesta, o modelo do ideal confuciano, faz a sua entrada em cena com passos miudinhos e tremelicantes, olhos baixos, e manejando com notável graça as compri-das mangas brancas.

A kuei-men-tán, a jovem ingénua ou inocen-te, veste um simples casaco e calças.

A lao-tán, anciã digna, rica ou pobre, veste seda escura e apoia-se num forte bastão.

A t'sai-tán, mulher má e ruim, por vezes có-mica, envolve as outras personagens numa rede de intrigas para conseguir os seus próprios fins.

A tao-ma-tán, é a jovem que sabe manejar a espada ou a lança e realiza proezas acrobáticas como se fosse um jovem.

Todas as personagens femininas, com excep-ção da lao-tán, a anciã venerável, usam a mesma maquilhagem. Uma camada de cor branca, sem brilho, sobre o rosto e o pescoço, sobrepondo ver-melho de vários matizes para realçar certas partes da face: encarnado intenso debaixo dos olhos, cor--de-rosa pálido na maxila. Os olhos sombreiam-se e alargam-se, prolongando-se para cima, mediante uma faixa que reduz a testa.

Os ching, ou “caras-pintadas”, caracterizam--se pelas máscaras pintadas na pele da cara e desem-penham um papel preponderante na ópera chine-sa. Estes actores encarnam as mais variadas perso-nagens: valentes guerreiros, bandidos lendários, ministros perversos, implacáveis juízes, mandarins abnegados e estimados impera-dores. Poderão também personificar deu-ses, demónios ou outros seres sobrenatu-rais.

Quanto à cor, as máscaras podem ser vermelhas, brancas, azuis, pretas, amarelas, verdes, púrpura, às pintas e douradas. As cores identificam o carácter ou o temperamento, as qualidades ou defeitos das per-sonagens. Assim, o vermelho indica uma personagem va-lente e leal, ou um grande imperador; o branco in-dica astúcia, traição e lu-xúria; o azul, valentia e ferocidade; o amarelo, sabedoria; o preto, recti- dão e incorruptibilidade; o verde é comummente empregado na caracterização de demónios e espíri-tos malignos; e o dourado é a cor preferida para identificar os deuses e os seres sobrenaturais bené-ficos. Porém, as máscaras combinam usualmente várias cores, para expressarem as diversas qualida-des e defeitos das personagens que caracterizam.

Os actores que encarnam as personagens mascaradas têm que ter a cara grande e a testa am-pla, para que a pintura, de cores fortes, tenha mais campo de expressão. Além disso, devem ser altos e de compleição robusta, a fim de poder sobressair com personalidade e dignidade; devem também ter uma voz forte, que os habilite a desempenhar-se de cantos e diálogos de grande volume e fôlego, carac-terísticas especiais destas personagens.

Por último o ch'ou, o cómico ou bobo, é uma personagem que entra normalmente nos entreactos das cenas dramáticas para dar tempo a que os acto-res se preparem para a cena seguinte. Reconhecem--se facilmente pela simplicidade do vestuário e por terem, quase sempre, a ponta do nariz pintada de branco.

Os actores masculinos, com excepção dos shiao-sheng, usam barbas. Existem 18 classes de barbas, por exemplo: a barba forte e espessa que vai até à cintura, de um homem de idade; a barba de três extremidades, do letrado; a barba comprida dos cinco chefes de Kuan-yu, o deus da guerra, etc..

Para além das barbas ordinárias, negras ou brancas, existem barbas vermelhas, reservadas para os tipos ameaçadores, e barbas púrpura, para os generais famosos. Usam-se todos os tamanhos e formatos de barbas: compridas, curtas, largas, es-treitas, ralas, espessas, apartadas, e uma barba pouco comum de duas longas madeixas, cujos extremos se enrolam à volta das orelhas. E em todos os papéis que o actor de-sempenha, os diversos modos de mexer na barba têm também o seu simbo-lismo: afagar a barba, apertá-la fortemente, co-fiá-la, deitá-la sobre os ombros, são movimen-tos clássicos que têm de ser executados exactamente, pois todos e cada um de-les têm o seu significado.

Além do mais porque, como a ópera tem sido sempre o divertimento preferido do povo chinês, os movimentos e gestos convencionais e o seu res-pectivo significado simbólico são. conhecidos por todos os espectadores. Desde o momento em que o actor entra em cena, a personagem é reconhecida pela pintura, pelo vestuário ou pelo modo de cami-nhar.

Quanto ao guarda-roupa, a ópera chinesa é uma festa para os olhos. Os luxuosos enfeites e a gama fascinante de cores que animam as pe-ças são tão deslumbrantes, que raramente o es-pectador principiante tem tempo para descobrir o seu significado. Os trajes são uma mistura de esti-los usados em diversas dinastias e em várias regiões do país. A exactidão histórica tem sido sacrificada ao impacto dramático, à beleza da cena e à deslum-brante e fascinadora gala de cores que dão vida ao ambiente.

A tradição confuciana, que proibia a exibição do corpo e exigia que fosse coberto desde o pes-coço à ponta dos pés, explica muitos dos estilos, es-pecialmente as túnicas compridas e as longas man-gas, tão úteis para dar significado a gestos e atitudes dramáticas.

Certas personagens usam sempre trajes de cores específicas: amarelo, a família imperial; os anciãos, cinzento ou cor de incenso; um homem honrado, encarnado ou azul; e o preto é a cor pró-pria dos temperamentos imprevisíveis.

Em resumo, tudo quanto se vê e ouve na ópera chinesa tem o seu respectivo significado. Nada há nela de supérfluo, nada desnecessário, nada a mais. Tudo o que aparece em cena é requerido, é ne-cessário, é indispensável. A sua aparente simplici-dade de forma não provém de uma primitiva ingenui-dade folclórica, mas sim de um alto grau de evolução técnica, produto duma procura febril e constante ao longo de vários milé-nios.

Com origem nas ci-dades capitais do império, onde reis absolutos e cortes luxuosas favoreciam o florescimento de todas as artes, a ópera chinesa -especialmente a Ópera de Pequim — assimilou o melhor das modas, músicas e danças das representações teatrais de todo o país. É, por assim dizer, um mostruário das modas dos vários períodos dinásticos, uma síntese de dança, canto, música, acrobacia e mímica de toda a China.

O embrião que deu origem à sua presente forma, foi a música e a dança coral que se desenvolveram durante a dinastia Han (206 a. C. - 221 a. C.), quando o sistema feudal dos Chou desapareceu e foi substituído por uma classe média desejosa de cultura. Quando a China acrescentou ao seu território imensas regiões confinantes, importou parte da música e danças, assim como vários instrumentos musicais usados pelos bárbaros da Ásia Central e pelos aborígenes do sul, que vieram juntar-se ao gosto simples da música e da dança da velha China, para o divertimento da nobreza.

O local corrente do teatro não eram os salões reais ou aristocráticos, mas as casas de chá, onde a gente comum ia entreter-se e falar, comendo sementes torradas de melão ou melancia e bebendo chá com pastéis, enquanto a música e a representação decorriam. A admissão a essas casas de chá era gratuita; o preço do consumo incluía as atracções. Por isso, na sua origem, os teatros eram conhecidos pelos nomes dessas casas de chá, em cujos modestos e simples palcos se representavam pequenas peças cómico-satíricas, sobre personalidades políticas ou cenas da vida social coetânea.

Pouco a pouco, estas representações foram desenvolvendo-se, integrando novos elementos e inovações, durante os 360 anos que se seguiram à queda dos Han, período de contínuas lutas e invasões por parte das aguerridas hordas turcas e mon-góis, que finalmente se apoderaram do poder e fraccionaram o império em vários reinos.

Com a ascenção da dinastia Tangno ano 619 a. C., e com o império outra vez unificado, o teatro recebeu grande impulso, especialmente durante o reinado do imperador Hsuan-Tsung (falecido em 762 a. C.), um dos monarcas mais cultos e famosos que a China teve, cognominado Ming-Huang, o Brilhante Imperador.

Amante das letras e das belas artes, Ming- -Husng fundou um colégio chamado Li-Yuan- -Chiao-Fang, “Academia do Jardim das Pereiras”, onde centenas de jovens de ambos os sexos eram submetidas à sua directa supervisão; recebiam uma esmerada educação, não só em canto, música, dança e representação teatral, mas também em poesia e no profundo conhecimento dos mitos e lendas religiosas e históricas. Esta formação artística e cultural era indispensável, pois sem ela não saberiam interpretar os dramas-bailados que o divertimento e prazer da corte requeriam. Ainda que a actuação desses artistas não pertença à categoria dramática que nos ocupa, contudo, os actores de ópera continuaram a ser chamados li-yuan-chi-ti, isto é, "alunos do Jardim das Pereiras".

Como tudo o que se refere à China, a origem da ópera não podia deixar de ter a sua lenda. Na noite de 15, da oitava Lua do seu primeiro ano de reinado - ano 713 da nossa era - Ming-Husng passeava pelos amplos e magníficos jardins do seu palácio imperial em Chuang-An, capital do seu vasto império, na companhia de um sábio e velho bonzo, divagando sobre as vicissitudes e misérias deste mundo. De repente, ocorreu-lhe perguntar ao bonzo como seria a Lua. Este, ao ouvir a pergunta, parou e com ar reflexivo levantou o olhar. Nesse momento a Lua brilhava, esplêndida, era a Lua-Cheia. Então, com gesto desprendido, lançou ao céu o seu bastão. Imediatamente este se desdobrou numa colossal ponte suspensa que ligava a Terra com a Lua. Tomando então pelo braço Sua Real Majestade, o bonzo levou-o até ao luminoso astro.

Ao chegar, os olhos do monarca deslumbraram-se perante tão maravilhoso cenário. Ali, à sombra da Acácia Sagrada, estava a Libra esmagando no almofariz a sua poção mágica. A formosíssima Chang-O deu-lhes as boas vindas, rodeada de um grupo de fadas, que com vozes celestiais entoavam melodias de transcendental beleza.

Os palácios e pavilhões lunares eram verdadeiras jóias de arquitectura, jamais vistas na Terra. Eram de múltiplos andares e construídos com pedras preciosas. Os interiores eram de madeiras aromáticas, ligados por escadarias de ágata e jade a ter-raços, onde flores exóticas exalavam perfumes suaves. Nas árvores, carregadas de belos e perfumados frutos, saltavam, de ramo em ramo, pássaros de belas plumagens e cantos harmoniosos. Os lagos estavam bordejados por abundantes árvores, cujos ramos beijavam as claras e calmas águas, sulcadas por barquitos com donzelas de vaporosos vestidos.

O monarca estava espantado com tudo o que via, pois não havia lugar onde melhor poisar os olhos. Para mais, a deusa Chang-O, para o entre-ter, brindou-o com esplêndidos espectáculos de teatro, encenados nos jardins do seu imponente pa-lácio de jade. Depois convidou o imperador a plan-tar uma cerejeira florida num lugar de onde pu-desse ser avistada da Terra. Infelizmente, a sua vi-sita foi interrompida de maneira abrupta pela apa-rição de um gigantesco tigre branco, o qual soltou tão horrendo bramido que toda a Lua estremeceu. Ao despertar do seu assombro, Ming-Huang as-sustou-se ao ver o iminente perigo que corria, e pe-diu ao bonzo que, imediatamente, o trouxesse de volta à Terra.

Ao regressar, o imperador, ansioso por fazer mais feliz o seu povo, quis imediatamente imitar tudo quanto de bom e belo tinha visto na Lua. Co-meçou por mandar construir magníficos palácios e pavilhões de mármore “ao estilo lunar”, rodeados de esplêndidos jardins e de lagos entrecortados por arqueadas pontes de alabastro, cujas águas eram sulcadas por embarcações cheias de flores, com as damas da sua corte.

Inspirado pelo que ouvira tanger às fadas lu-nares, compôs lindas melodias. Sendo um consu mado músico e hábil executante de alaúde, tocava diante dos mais destacados mestres de música do Império, para que os inspirados dessem a esta arte novos rumos. Levado pelo entusiasmo que lhe des-pertaram os bailes e as representações teatrais das belas selenitas, decidiu organizar espectáculos se-melhantes nos jardins do seu palácio imperial, es-colhendo para tal fim um sítio plantado de pereiras. Daqui o nome da sua escola: Li-Yuan-Chiao-Fang ou “Academia do Jardim das Pereiras”.

Por causa deste trecho lendário, Ming-Huang figura no panteão chinês como o deus do Teatro, e recebe culto como seu grande Mestre. Nos teatros venera-se a sua efígie e oferecem-se-lhe presentes. Diariamente durante a época de actuações, acen-dem-se-lhe pivetes de sândalo, para que assegure brilhantes desempenhos.

Página do argumento e ilustração da famosa tragédia de Guan Hanqiang, “A Injustiça (abate-se) sobre Dou E”, também referida no texto como “Dou E Yuan Inspira a Piedade do Céu e Terra”.

Guan Hanqing, (1230-1298), um dos “quatro grandes mestres” do Zaju (narrativa poética acompanhada por música, embrião da ópera chinesa) da Dinastia Yuan.

Até à chegada da dinastia Sung (960-1126 d. C.), não tinha nascido ainda realmente o drama chinês. No reinado do imperador Chen-Tsung (998-1012) começaram a representar-se breves his-tórias, intercaladas com música e outras diversões. Estas representações chamavam-se no início tsah- -chu ou “representações mistas”. Gradualmente, os artistas imperiais introduziram danças, corais e cânticos, alargando assim estas representações.

Quando os Sung perderam o norte da China, a corte imperial transferiu-se para sul do rio Yang-tzé, trazendo consigo todo o acervo da sua cultura milenária. As saudades do lar perdido, a memória de façanhas populares e trechos heróicos, fizeram surgir a ideia de contar uma história por meio de baile, combinando música e canto. Assim surgiu, quem sabe, a primeira ópera real, a que se chamou nan-ch'u ou “drama meridional”, porque floresceu e se popularizou em Linan, capital meridional Sung, actual Hangchow.

Enquanto isto sucedia no sul, no território do norte, dominado pelos mongóis, tinha subsistido um limitado número dos que poderíamos chamar “poemas-músicas-bailados”, criados quando os Sung governavam essa parte do império. Abunda-vam os narradores que cantavam as suas histórias em verso, com acompanhamento de música sim-ples.

Pouco a pouco, os mongóis começaram a perceber e a apreciar essas singelas manifestações artísticas, e os letrados chineses, cuja maioria tinha sido banida da administração imperial, não tarda-ram a dedicar-se a escrever novelas e relatos histó-ricos deste tipo, usando não um estilo literário mas uma linguagem comum, mais acessível aos con-quistadores mongóis. Com o tempo, estas novelas e relatos foram-se transformando em peças teatrais que se multiplicaram em quase todas as cidades e povos do norte da China, nascendo, assim, o pei--ch'u ou “drama setentrional”.

Uns 50 anos depois da conquista do norte da China, Kublai-Kan anexou ao seu império as pro-víncias meridionais em poder dos Sung, e procla-mou-se imperador do Celeste Império, dando iní-cio a uma nova dinastia, a Yuan, que governou de 1280 a 1367.

Durante este período de domínio mongol, a ópera chinesa dividiu-se em duas escolas: a nan--ch'u e a pei-ch'u, isto é, o “drama meridional” e o “drama setentrional”, predominando, como é ób-vio, este último, cujas obras se representavam todo o ano, excepto durante o período de luto pela morte de algum imperador.

Representavam-se ao ar livre e serviam de palco os mercados, as praças e os átrios dos tem-plos, bem como os sumptuosos salões dos palácios da nova aristocracia e nobreza. Os actores, vesti-dos com trajes magnificamente adornados, cativa-vam os espectadores com as suas notáveis habilida-des histriónicas.

Com a queda dos mongóis, o nan-ch'u ou “drama meridional” adquiriu preponderância sob a protecção da nativa dinastia Ming (1366-1643), e obteve uma enorme popularidade, impulsionada, quem sabe, por um sentimento nacionalista. Eclip-sou quase por completo o “drama setentrional”. Durante os 275 anos que durou a dinastia, o nan--ch'u foi o estilo operático de maior prestígio.

Em 1644 a China caíu de novo nas mãos es-trangeiras. Com os manchús estabeleceu-se a di-nastia Ching(1644-1911). A meados desta dinastia aparece em cena um novo tipo de drama, o ching--hsi ou “ópera da capital”, a qual deve o seu nasci-mento espectacular ao imperador Ch'ien-Lung (1736-1795). Durante o seu longo reinado de ses-senta anos, Ch’ien-Lung fomentou os grupos tea-trais em todo o país. Para celebrar o seu aniversá-rio, o imperador chamava a Pequim, capital do im-pério, os melhores grupos de ópera de todas as pro-víncias. Depois das festividades, muitos grupos permaneciam e radicavam-se na grande cidade, que era então o centro de toda a actividade artística e cultural do império.

A ópera da capital ou Ópera de Pequim, como se lhe chamou posteriormente, está escrita num estilo literário simplificado, por vezes dema-siadamente familiar. Integra peças dos diferentes grupos dramáticos que migraram para Pequim, de todas as regiões do país.

Desde então, ou seja, durante os dois últimos séculos, por causa do decisivo apoio da corte man-chú, primeiro, e posteriormente dos governantes que lhe sucederam, e devido também à populari-dade dos actores, a ópera e, de um modo especial a de Pequim, teve um crescente florescimento, ocu-pando um lugar bem destacado na vida do povo chinês.

Como meio favorito de diversão de pobres è ricos, a ópera teve uma profunda influência no es-pírito chinês, pois foi um dos mais poderosos agen-tes da instrução popular. Os dramas históricos, por exemplo, foram um dos principais métodos usados para instruir o povo na história e geografia da sua nação.

O povo chinês, um dos mais amadores e assí-duos concorrentes às salas de teatro no Mundo, não diminuiu a sua paixão pela ópera, mesmo com a chegada do cinema a cores. Pode-se bem dizer que a ópera é um dos principais alimentos intelec-tuais do povo chinês, pela grande influência cultu-ral que sobre ele exerce. Ainda que saiba de cor e salteado o enredo das obras e reconheça as perso-nagens pelas suas máscaras e trajes convencionais, não deixa contudo de frequentar as óperas, uma e outra vez, sempre manifestando o gozo estético que lhe proporcionam. Para ele, o enredo, a lingua-gem dos diálogos e o tema são apenas o esqueleto da ópera, que convoca as jóias artísticas da música, do canto, do baile, do guarda-roupa e, sobretudo, da interpretação. E como na ópera chinesa não há recursos cenográficos que distraiam o público, o actor, para poder sobressair na sua actuação, neces-sita mais do seu grande talento artístico do que de dominar toda a técnica; de origem muito antiga, esta tem que ver não só com o acompanhamento musical, a dicção e a entoação da voz, como tam-bém com a linguagem dos gestos, o colorido e vari-edade do guarda-roupa e o simbolismo das caracte-rizações.

Existem, contudo, vários estilos de ópera re-gional, muito difundidos e de enorme popularida de, como os da Província de Cantão, de Fukien, o de Taiwan ou Formosa e muitos outros mais; mas a Ópera de Pequim é reconhecida como a “rainha” em todos os aspectos: música, dança, acrobacia, mímica, representação simbólica, diversidade e es-plendor dos enfeites e beleza estética, ou seja, toda. a arte teatral em si mesma. E ainda que no actual teatro de ópera chinesa exista um repertório de mais de 600 obras (há quem afirme serem mais de mil), muito poucas delas são conhecidas pelo Mun-do Ocidental.

Tudo o que referi, é só um breve e modesto esboço da história e estrutura da milenária arte tea-tral chinesa, com o qual procurei dar uma maior compreensão desta arte aos que se interessam pelas coisas chinesas, para que possam captar o sauve e exótico aroma do Jardim das Pereiras, símbolo da cultura tradicional chinesa.

(Texto da palestra apresentada pelo autor na Escola de Belas Artes da Universidade de Guadalajara (Jalisco, México) em Setembro de 1980, uma semana antes da actuação da Ópera de Pequim naquela cidade).

(Traduzido do Espanhol)

Exibição de artistas (Ji), grupo de músicos e bailarinos dos dois sexos.

Fresco da Dinastia Song (Túmulo de Zhao Daweng, Distrito Yu da Província Henan).

* Viveu 30 anos na China e 12 em Macau. Sinólogo, com várias traduções e ensaios publicados.

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até a p.