Antropologia

Mal de susto ou subissalto
(A queda da alma)

Ana Maria Amaro*

A mortalidade infantil foi sempre um dos factores principais da auto-regulação populacio-nal no Império do Meio. Daí a explicação, quanto a nós, de que as mais variadas concepções que in-vadem o domínio do sobrenatural, relativamente às doenças das crianças, tenham perdurado entre o povo, encontrando-se ainda, de certo modo, bastante vivas entre os chineses de Macau. e tam-bém entre muitos euro-asiáticos de ascendência chinesa mais ou menos próxima.

Casca de toranja aberta em quadrifólio.

Um dos acidentes mais vulgares e também dos mais temidos relativamente às crianças é o susto provocado por queda, ou por intervenção de pessoa, coisa ou animal estranho ao seu mun-do, ou que, inopinadamente, surja no seu cami-nho.

Em consequência do susto a criança perde o apetite, chora sem se perceber porquê, apresenta sintomas de crescente agitação, dá gritos inespe-rados e sem causa aparente, padece de insónias e, por fim, sobrevêm-lhe vómitos e diarreia, o pulso enfraquece e torna-se mais rápido, acabando por morrer.

Este mal de susto resulta da queda da alma, ideia que se mantém ainda viva entre muitos chi-neses e também, curiosamente, entre os povos ameríndios (1).

Certos locais, tais como fontes, águas cor-rentes, poços, etc., onde se julga que residem maus espíritos porque ali se ouvem gritos ou ge-midos, são naturalmente muito temidos, tanto pelos ameríndios como pelos chineses e também pelos macaenses. Podem causar mal de ar ou pro-vocar a queda da alma.

O diagnóstico de mal de susto, em conse-quência da origem sobrenatural que se lhe atri- bui, é por isso mesmo precedido sempre por adi-vinhação.

Depois, o tratamento consiste em chamar ou reencontrar a alma que caiu e se perdeu ou em obter a sua libertação no caso de ter ficado prisio-neira.

É espantosa a coincidência da sintomatolo-gia dos ameríndios com a que registamos em Ma-cau e também da terapêutica empregada. A dife-rença consiste, apenas, em não termos encon-trado em Macau uma explicação tão completa das origens da doença, conhecida em “patois” local por mal de susto ou subissalto.

A concepção popular do mal de susto deve ser muito antiga porque, tanto entre os chineses como entre os povos andinos, é comum a cerimó-nia do chamamento da alma para o tratamento de doenças desta índole.

O chamamento da alma em Macau assume dois aspectos: utilização de uma peça de vestuário do paciente, peça que se agita à medida que se que se vai chamando por ele, pelo seu nome (2) e o balouçar do porquinho, defumação destinada ao tratamento de sustos infantis.

Relativamente aos adultos, usa-se na Bolí-via o banho de flores, que foi substituído em Ma-cau pelo banho com água da decocção de sete fo-lhas, sendo no entanto, ao que sabemos, exclu-siva da população deste último território a prática da defumação.

Os banhos de cheiro e as mezinhas de sete folhas são, porém, mais usados em Macau contra savan, mau olhado e vento sujo, doenças também de carácter mágico (que já foram estudadas nou-tra altura) (3).

Contra o mal de susto, a terapêutica mais popular usada pelos portugueses de Macau, tanto para crianças como para adultos, é sem dúvida a ingestão de pó de pedra cordial ou pedra de Gas-par António, preparação que se raspava com uma colher de prata e se tomava com um pouco de água (4). Além desta, eram vulgares algumas me-zinhas de beber, constituídas por ervas cozidas com coração de porco, usado homeopaticamente para evitar doenças cardíacas, resultantes de sus-to, além do famoso balouçar doporquinho, defu-mação já atrás referida.

As senhoras idosas macaenses, que conhe-cemos nos anos 70, acreditavam que o susto infan-til poderia provocar doenças cardíacas no futuro e daí darem a "chupar" às crianças pedra cordial ou deixarem que á más(5), ou parentes chinesas mais ou menos próximas, balouçassem o porqui-nho quando uma criança de pouca idade ficava morum ou tinhosa (chorona, birrenta e sem apeti-te), embora sem febre, ou com febrinha (febre li-geira) sem causa aparente. Admitia-se que tal es-tado resultava de susto provocado por animal ou pessoa, ou por outro agente, que a pedra-ume queimada no braseiro viria a indicar.

O balouçar do porquinho é considerado, em Macau, uma prática chinesa. Contudo, nem todos os informadores a interpretam da mesma manei-ra. Por vezes é interpretada como chamuscar o porquinho devido à homofonia das palavras tám (蕩 ) balouçar e t'ám ( 燂) chamuscar (6), tendo a reza ou cantilena que a acompanha diversas vari-antes. Este facto sugere-nos, pois, uma antiga prática trazida de algures e adoptada pela popula-ção chinesa de Macau. Aliás, balouçar o porqui-nho consiste na defumação da criança que se julga sofrer de mal de susto, prática que era e é ainda corrente em Portugal, quando se trata de afastar qualquer malefício por artes de magia.

Em Portugal, por exemplo, em certas al-deias beiroas, defumavam-se as crianças balou-çando-as em cruz sobre ervas aromáticas, que se faziam arder sobre brasas acesas, e usava-se tam-bém a defumação no tratamento de animais, pas-sando um caco com brasas ardentes por debaixo deles, três, cinco, sete ou nove vezes, em cruz (7). Às brasas juntava-se erva do ar (não identifica-da) (8).

O nome de erva do ar parece apontar para uma terapêutica contra mal de ar. E é muito cu-riosa a coincidência entre esta prática e a concep-ção que ainda vive entre os macaenses, e que su-pomos de origem portuguesa. A defumação era muito usada em Portugal ainda no séc. XVIII contra certas indisposições, geralmente contra dores de origem mal determinada (9). É possível que se supusesse que estas dores fossem devidas a ar.

Uma adaptação macaense simplificada da prática de balouçar o porquinho consiste em jun-tar n'gai héong (艾香 ) grãos de incenso macho (grãos de incenso que lembram grãos de areia) com grãos de alfazema (flores secas de alfazema) (10), e deitá-los sobre carvão em brasa, entoando a seguinte cantilena:

(蕩豬仔) Tám chüchái (balouça-se o porqui-nho)(11)

(蕩牛仔) Támnga u chai (balouça-se o boizi-nho)

(蕩羊) Tám chü (balouça-se o porco)

(蕩豬) Tám iéong (balouça-se o carneiro)

(蕩大肚腩) Tám tau tou néong (balouça-se o ventre da mulher) (12)

(豬驚) Chü kéang (o porco tem medo)

(狗驚) Kau kéang (o cão tem medo) (13) (Segue-se uma série de nomes de animais)

(F… 唔驚) Nome: F… m' kéang! (O menino F... não tem medo!).

Bate-se uma palmada no chão junto ao fogo, bate-se 2 a 3 vezes no peito da criança, puxa-se--lhe duas vezes pelo nariz e duas vezes pela ore-lha. Passa-se a mão sobre o fogo e depois sobre o rosto da criança.

Outra variante macaense consiste em juntar ao alúmen (pak fán 白矾), ngai héong (艾香 ) in-censo, po lôk pei ( 波碌皮) (14) cascas secas de to-ranja cortadas em estrelas (em 4 quartos) e/ou tai chiu pei ( 大蕉皮 ) casca seca de figo vilão (banana) e entoar uma das seguintes cantilenas:

(蕩豬仔) Tám chüchai (balouça-se o porqui-nho)

(蕩狗仔) Tám kau chai (balouça-se o cãozi-nho)

(蕩牛仔) Támnga u chai (balouça-se o boizi-nho)

(蕩大 ) Tám tai (a criança tornar-se-á adulta, i. é crescerá)

(聽亞媽使) Téangá má sai (e ouvirá os con-selhos da mãe)

(豬驚) Chü kéang (o porquinho tem medo) (狗驚) Kau kéang (o cãozinho tem medo)

(牛驚) Ngau kéang (o boizinho tem medo)

(人仔唔驚) Ian chái m'kéang (a criança não tem medo)

(亞媽叫返嚟)Á má kiu kôi fan lôi(a mãe chama-o e ele regressa) (15).

Esta operação deve realizar-se durante três dias seguidos. Quando o alúmen, no fim deste pe-ríodo, toma a forma do ser ou coisa que provocou o susto e portanto a indisposição da criança, parte-se um pequeno pedaço, mói-se e, com este pó, esfrega-se em forma de cruz o peito do doen-te. O restante deita-se fora. Supunham as antigas senhoras de Macau que, se a criança sofresse de mal de susto, a pedra aderiria às brasas, o que não sucederia no caso contrário. Se o susto tivesse sido provocado por uma pessoa, a pedra-ume aderiria simplesmente às brasas, mas não tomaria qualquer forma especial; se o susto tivesse sido provocado por um animal ou coisa, a forma do causador do mal ficaria representada na pedra, por acção do calor.

Entre a população chinesa de Macau, era também considerado muito eficaz, contra mal de susto, colocar debaixo do travesseiro da criança (ou adulto) um parão de lenha (ch'ái tou) (柴刀) embrulhado numa cabaia previamente defumada sobre papéis de culto (papéis ouro-prata) e pive-tes a arder, entoando-se enquanto se defumava a cabaia da pessoa que sofreu o mal de susto, a se-guinte cantilena:

F… (nome da criança ou da pessoa em ques-tão:

(快點返嚟) Fai ti fan lôi (volta depressa)

(唔使驚) M'sai kéang (não tenhas medo)

(豬唔驚) Chüm'kéang (não receies o porco)

(牛唔驚) N'gau m'kéang (não receies oboi)

(狗唔驚) Kau m' kéang (não receies o cão)

(猫唔驚) Mau m'kéang (não receies o gato)

(摩羅差唔驚) Mo lo chai m' kéang (não re-ceies o mouro)

(黑鬼唔驚) Hak kwai m' kéang (não receies o-negro)

(乖乖地) Kwaikwái tei (aquieta-te, torna-te dócil)

(聽亞爸亞媽話) Téang á pá, á má, wá (ouve o que diz o teu pai e a tua mãe)

(十二個精神) Sap i có cheng san (os 12 bem--estares)

(攞番) Ló fan (traz contigo) (16).

Os papéis votivos devem ser queimados no próprio local onde a pessoa sofreu o susto, princi-palmente no caso de queda ou de atropelamento. É por isso que esta cerimónia pode realizar-se em plena rua. Depois de finda a cantilena embrulha--se o parão na cabaia ou peça de roupa que aca-bou de ser defumada e entrega-se à mãe (no caso de ser uma criança) a qual deve colocá-la sob o travesseiro da cama onde o doente repousa. É de notar que nestas defumações a operadora nunca deverá ser a mãe da criança que sofreu o susto (17).

Quando se defuma, a pessoa que realizou a cerimónia, ao entregá-la à mãe ou ao pai, deve di-zer: Kwai kwai tei fan m'sai kéang (乖乖地唔使驚) sossega, não tenhas medo, Iat kau fan tau tin kong (一覺瞓到天光) dorme um sono descansado até de manhã.

Nunca recolhemos esta versão entre os fi-lhos-da-terra de ascendência portuguesa, mas apenas entre alguns e muito poucos de ascendên-cia chinesa próxima.

De notar, nesta cantilena, é a referência aos mouros (antigos guardas da polícia de Macau) e aos negros, muito temidos noutros tempos (18), terror que perdurou aliás entre muitos chineses e antigos portugueses de Macau.

Porém, qualquer que seja a variante da can-tilena, esta cerimónia é um mero chamamento da alma de cunho puramente chinês, embora a defu-mação seja de carácter popular nitidamente por-tuguês.

Outra variante, que nos foi transmitida não em chinês mas em tradução portuguesa, para além das frases introdutórias é a seguinte:

"T"âm chü châm chü châi (…).

"Chamusquemos o leitão, a fim de tirar o susto, que lhe foi causado numa rua ou travessa, por voz alta ou baixinha; qualquer fenómeno na-tural; areia ou pedra volante; gongo ou tambor; panchões; cobra, rato ou gato; aranha ou barata; coisa do mundo invisível ou visível; sâingán (mu-lher grávida, ou mulher ou homem que usa ócu-los, ou insecto de 4 olhos que chegou a voar ou apareceu às duas por três; sâi ngán(19) que está longe ou perto; sâi ngán conhecido ou desconhe-cido; sâi ngán que está de luto; velho ou novo; maior ou menor e, consequentemente, para que ele tenha apetite formidável, pense sempre em comer e beber, pense em comer durante o dia e em dormir quando anoitecer.

"Ponhamos aqui a toranja, pedra-ume e casca de banana, que servem para lhe tirar o sus-to. Depois de chamuscado, o "leitão" ficará sem-pre bem de saúde, crescerá rapidamente e trará boa sorte aos pais.

"Chamusquemos-lhe o períneo, para que se torne avó; chamusquemos-lhe o ânus, para que se torne avô” (20).

Nesta variante há a particularidade de se empregar o termo sâi ngan (四眼) quatro olhos ou seóng ngan ( 雙眼) duplo olhar, concepção muito próxima da do quebranto português, que tem aliás, em Macau, diversos significados.

É curioso notar, porém, que os processos da Inquisição Portuguesa registaram uma prática que lembra a fusão do alúmen, mas que se reali-zava com chumbo e servia para benzer os ende-moninhados. Os estalos que dava o chumbo, ao derreter, davam a conhecer a rebeldia do espírito que atormentava a criança ou o possesso, o que nos leva, de facto, a interrogar-nos quanto à ori-gem mágica de tal prática de Macau.

Para defumar ou balouçar o porquinho usa-va-se um fogareiro de barro de estilo chinês, com brasas acesas (21).

Porém, para defumação das casas, as senho-ras macaenses possuíam dantes uma caçoleta ou defumador, geralmente de latão, com tampa tra-balhada e perfurada, dentro do qual se colocavam os aromas. Punha-se sobre cinzas quentes, que os faziam evolar-se, perfumando-se assim os quar-tos, a roupa, etc..

Perfumar consistia pois, nos tempos antigos, em queimar substâncias aromáticas tais como in-censo, pastilhas (22), pevides, alfazema, folhas e gálbulas de eucalipto, etc., que comunicavam a sua fragrância ao ambiente. Contra o mofo e como defensivo contra males de susto, savan e vento sujo, não havia casa portuguesa em Macau, noutros tempos, onde se não queimasse pelo me-nos bisbim, incenso e/ou alfazema (23).

Aliás, a tradição popular do uso da defuma-ção contra certas doenças, principalmente contra cefaleias, foi no Ocidente uma velha prática da medicina erudita que o povo conservou. Já Plínio aconselhava as defumações, afirmando que "o perfume da erva doce alivia as dores de cabeça”.

Contra a própria peste, durante a Idade Média e já muito posteriormente em plena Re-nascença, eram indicados perfumes e defumações como profilaxia. Contra traças e outros insectos, as defumações são, ainda hoje, consideradas muito úteis, não só em Macau como noutros pon-tos da Terra, constituindo nítidos vestígios de antigos rituais de purificação.

Em caso de mal de susto, tratando-se de uma criança de colo era também costume em Ma-cau colocar-se-lhe sobre o peito uma almofada para o coração não saltar e assim não vir a pade-cer, no futuro, de doenças cardíacas.

É ainda frequente entre a população chine-sa, no caso de queda, bater-se no chão, no local onde a criança tiver caído, para castigar o espírito que poderia tê-la assustado penetrando no seu corpo (24). Os portugueses de Macau, tal como os portugueses europeus, costumam fazer o mesmo, mas com objectivo diferente: apenas para sosse-gar a criança, mostrando-lhe que o local que a ma-goara fora prontamente castigado. É natural que ambas as práticas tenham uma origem comum. Aliás, esta segunda é muito frequente entre nós em Portugal.

São várias as mezinhas usadas em Macau para defumação, quer de crianças durante a ceri-mónia de balouçar oporquinho, quer contra mau ar, mofo, traças, moscas e outros insectos.

Seguem-se algumas das mais características usadas com carácter mágico contra sustos ou in-disposições de crianças.

Mezinha para defumação contra susto (receita de tradição oral)

É frequente verem-se, em Macau, cascas de banana (figo vilão) cortadas em quatro quartos, a secar sobre peneiras de bambu ou suspensas nas portas, tal como as cascas de tangerina ou de to-ranja. São destinadas a ser queimadas com alú-men, em lugar das cascas de toranja, nas popula-res defumações de balouçar o porquinho para ti-rar susto às crianças.

Defumação ou fomentação para criança (receita de tradição oral)

Mistura-se azeite verde (óleo de amendoim) com eucalipto num tacho de barro ou numa caço-leta própria para incenso. Coloca-se sobre cinzas quentes e deixa-se evolar o aroma.

Defumação com alfazema (receita de tradição oral)

Em vez de se usar o azeite verde e as folhas de eucalipto, podia usar-se apenas alfazema, que era adquirida nas boticas portuguesas.

A alfazema é a Lavandula spica L., originá-ria da Pérsia e do sul da Europa. Usa-se em defu-madoiros de norte a sul de Portugal, em benzedu-ras e em sortilégios contra malefícios.

Em várias aldeias de Portugal é ainda cos-tume defumarem-se as crianças sobre a lareira, onde se deitam ramos de alecrim (25) sobre as cin-zas quentes, balouçando-se em cruz. A corres-pondência é perfeita.

Chá de polopé (receita de tradição oral).

Esta palavra aparece, por vezes, nos velhos cadernos de receitas culinárias e de mezinhas das senhoras de Macau, sem significado expresso. Ouvimos, às senhoras macaenses, chamar polopé e polopei à casca de toranja, talvez por deturpa-ção de pó lôk pei ( 波碌皮 ), nome chinês da casca de jamboa(26). O chá de polopé, tal como o chá de casca de toranja, são usados contra sustos, o que nos leva a crer que polopé (27) é, realmente, casca de toranja.

Mezinha suzo-barata

Suzo-barata é o nome de Macau para as pe-quenas bolas pretas que se vendem nas farmácias chinesas, geralmente envolvidas por bastilhas fi-nas de bambu e que não são nem mais nem menos do que excrementos esféricos de escaravelho.

Segundo informadores chineses, na China do Norte é costume enterrarem-se em pequenos covachos bolas do diâmetro de 3 a 5 cm, feitas com bosta de búfalo. Aí desenvolvem-se rapida-mente os escaravelhos que depositarão nas bor-das dos seus ninhos os excrementos esféricos com valor medicinal (28).

Tanto contra susto como contra mal de ar esta mezinha é muito estimada, tanto na China como em Macau.

O escaravelho chinês é o Xylotrupes dicho-tomus L.

Alguns informadores macaenses conside-ram que o chamado chá de sete folhas, usado em lavagens contra mal de ar também surtia efeito no caso de mal de susto. Contudo, ao que parece, reinava entre as senhoras portuguesas de Macau uma certa confusão entre o chá de sete folhas e o chá de sete estrelas (chat seng chá 七星茶), espe-cífico para crianças, mas usado contra doenças gastro-intestinais (29).

Além da pedra cordial atrás citada, havia quem usasse, em Macau, pó de aljofre (pérola moída no sápun 沙盤 ) aberto com água ao qual se juntava, por influência chinesa, uma pitada de pó de carimbos (cinábrio) (30). Este pó, cozido com coração de porco (usado homeopaticamente), é também considerado muito eficaz contra sustos e futuros males cardíacos.

Conclusões

Da análise das práticas não terapêuticas da medicina popular de Macau relativas ao mal de susto, parece ser possível tirar algumas conclu-sões interessantes:

- A plasmação das crenças nas influências sobrenaturais, levadas provavelmente de Portu-gal, com as que são próprias da mentalidade do Oriente.

- A semelhança cultural esboçada no campo de interpretação das doenças de carácter mágico e da respectiva terapêutica entre os chineses e os sulameríndios, o que parece ir em apoio das teses que defendem antigas migrações de povos asiáti-cos para o Continente Americano, por via marí-tima ou através das Aleutas.

- Uma possível influência portuguesa nas práticas de defumação (fumigação) realizadas pe-los chineses de Macau.

- A ausência da crença no mal de lua, tão di-fundida em Portugal e relativa às crianças, entre os portugueses de Macau.

Apenas encontrámos a ideia, também vul-gar entre nós, de que a Lua produz manchas nos corpos das crianças quando as futuras mães pas-seiam ao luar com objectos metálicos sobre o ven-tre. No entanto é de assinalar que, no Sul de Por-tugal, é usada a cânfora, que lembra o alúmen e também a “cor da lua”, nas práticas de carácter mágico contra as convulsões infantis de causa des-conhecida e por alguns informadores (31) compa-radas com o mal de lua.

- O paralelismo entre as defumações de Ma-cau e as que se realizam nas aldeias portuguesas, "balouçando-se em cruz" as crianças sobre ervas aromáticas que ardem nas brasas de um pequeno fogareiro, contra quebranto, mal de lua e outras indisposições consideradas de origem sobrenatu-ral.

- Resta encontrar uma explicação para a fór-mula tám chü chai (baloucemos o porquinho) uti-lizada como fórmula introdutória de todas as re-zas ou cantilenas que acompanhavam em Macau as defumações infantis. Chü porco é uma palavra homófona de chü (鑄)fundir metais, (誅) pu-nir, (侏 )anão, (珠)pérola, ( 住 )morar(32) (硃) cinábrio, (炷) pavio de vela, (主) se-nhor, (貯) acumular, (株) tronco de árvore. Por outro lado, o porco é um símbolo de prosperi-dade e de abastança. Será usada a palavra com va-lor simbólico ou será simples corruptela, fruto de transmissão de outiva? (33)

Ponto de encontro de diferentes etnias, her-deiras de diferentes tradições, Macau é de facto um exemplo flagrante de convergência cultural, que está na base da identidade dos macaenses (portugueses euro-asiáticos) como grupo, alcan-çada no decurso de quatro séculos de história.

BIBLIOGRAFIA

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AMARO, Ana Maria - Medicina popular de Ma-cau, Ed. do I. C. M. (no prelo).

BATALHA, Graciete Nogueira - Glossário do Dialecto Macaense, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1977.

GOMES, L. Gonzaga- Chinesices, Ed. Notícias de Macau, Macau, 1952.

VASCONCELLOS, J. Leite de- Etnografia Portu-guesa Vol. VII, Lisboa, 1980.

VELLARD, J. - Une éthnie de guérisseurs Andins, les Kallawaya de Bolivia, in "Terra Ameriga" Rev. da A. I. S. A., n°41, Génova, Dezem-bro, 1980. ., n° 41, Génova, Dezembro, 1980.

NOTAS

(1) Entre os kallawayas da Bolívia esta concepção e até o nome da doença são exactamente iguais aos dos chineses. (J. Vellard- Une ethnie de guérisseurs Andins, les kallawaya de Bolívia, in "Terra Ameri-ga” Rev. A. I. S. A. n°41, Génova, Dezembro, 1980, p. 28).

(2) No Norte da China, era esta cerimónia do chama-mento da alma a mais vulgarmente praticada, não sendo comum, de acordo com os nossos informado-res, qualquer prática de defumação para este fim. A mãe, ou mais frequentemente a avó, colocava uma peça de roupa da criança na ponta de um pau e, com ele na mão, dirigia-se ao local onde a criança caíra ou vira algo que a assustara, no caso de o co-nhecerem, e aí, agitando a roupa, gritava chamando a criança pelo nome e dirigia-se para casa, ao mesmo tempo que pedia à alma da criança que a seguisse. No caso de não saberem o local exacto onde se regis-tara o acidente, colocavam a roupa (sempre na ponta do pau) à porta de casa ou na encruzilhada da aldeia, gritando em altos brados a chamarem a alma da criança e ordenando-lhe que seguisse a mãe (ou a avó) para casa.

Os camponeses mais crédulos, quando a criança con-tinuava a chorar sem que conseguissem aquietá--la, admitiam que não se tratava de queda da alma mas de um demónio (um Kwâi 鬼) ou de um mau ar ou mau espirito (Ché h'ei 邪氣) que lhe entrara no corpo. Nesse caso, escreviam num papel amarelo os seguintes dizeres:

"O céu e a terra são imensos. A nossa casa tem um mau espírito que chora toda a noite. Todos os que passarem por aqui leiam este papel por três vezes e assim a nossa criança cessará de chorar”.

Admitiam os camponeses que, denunciando à popu-lação da aldeia que havia ali um demónio ou mau es-pírito este, uma vez descoberto, fugiria. O papel po-dia ser colado numa parede ou numa árvore, pró-ximo da casa da criança afectada.

(3) Cf. "Revista de Cultura”, n° 9,1990, pp. 37-47.

(4) Cf. "Revista de Cultura”, n° 7 e 8,1989, pp. 87-108.

(5) Amas ou criadas de crianças.

(6) É também possível que t’ám corresponda a aquietar (燂) o que está plenamente de acordo com o objec-tivo desta prática.

(7) É de notar o número ímpar indicado.

(8) Leite de Vasconcelos. Etnografia Portuguesa, Vol. VII, 1980, p. 41.

(9) Uma receita registada num manuscrito dos Arq. da B. P. de Évora consiste em queimar o pau de azinho sobre brazas tomando-se o fumo pelos narizes e se defumarão no necessário fumo humas estopas juntas que se porão na parte da dor apertando-as com hum lenço.

(10) O uso de alfazema faz-nos, de facto, lembrar a in-fluência directa das defumações portuguesas.

(11) Tám, usado oralmente, tanto pode ser tám (蕩) ba-louçar, como t'ám (燂) chamuscar, como atrás já se disse.

(12) Alusão à má influência que se admite ter uma mu-lher grávida, à qual se atribui séong hon ou séong ngan (雙眼) duplo olhar, o que faz lembrar o univer-sal mal de olhado ou quebranto.

(13) Aqui deve tratar-se de corruptela de outiva e ser ngau (牛) boi e não kau (狗) cão.

(14) O nome original é lôk yâu pei (碌柚皮). Pó lôk pei ( 波碌皮) é o nome popular.

(15) O hibrismo desta prática é muito interessante, por-quanto a frase final evoca o chamamento da alma, de antiga tradição chinesa.

(16) "Regressa (trazendo contigo)” os 12 bem-estares, isto é, completamente bem de saúde e de boa dispo-sição. Aparece-nos, aqui, uma nova fórmula do cha-mamento da alma.

(17)É de assinalar que, no Norte da China, é a mãe ou a avó quem, geralmente, se encarrega do chama-mento da alma, cuja queda se verificou num deter-minado local.

(18) Noutros tempos, as crianças macaenses eram amea-çadas com o moço fuzido (escravo cafre fugido) à maneira do papão das crianças europeias.

(19) Sâi ngan (4 olhos) equivale ao duplo olhar (séong ngan ou séong hón), atrás referido.

(20) Versão de Luís Gonzaga Gomes, sinólogo e historia-dor macaense.

(21) É de notar que o uso de fogareiros de barro para de-fumação é muito semelhante ao das aldeias portu-guesas, nomeadamente na região saloia.

(22) Pastilha aromática à base de bisbim (benjoim).

(23) Parece-nos nítida a crença, de influência chinesa, no mau ar que impregna os velhos casarões pouco soa-lheiros, com cheiro a mofo e que pode causar, por isso, as mais variadas doenças ou incómodos aos seus moradores.

(24) Há aqui uma sobreposição nítida entre a queda da alma e o mal de ar.

(25) O alecrim é, de uma maneira geral, uma planta de carácter sobrenatural que não só é usada para defu-mação, mas também, no Domingo de Ramos, como espécie principal do ramo bento que, queimado, é considerado um bom protector por ocasião das tro-voadas.

(26) Jamboa é o nome dado em "patois" de Macau à to-ranja (Citrus grandis Osbeck., cujo nome clássico chinês é iau ( 柚 ).

(27) É possível, porém, que pelo-pé seja aqui o equiva-lente a pelo-do-pé, isto é, pêlos pubianos que se usa-vam no Brasil, sob esta designação, como "elixir de amor” e, portanto, como mezinha de carácter mági-co.

(28) É de registar que este simples, conhecido por châu keong (草薑) gengibre de mau cheiro em tradução li-teral, entre também nalgumas receitas de mezinha para lavar contra mal de ar ou savan.

(29) Esta composição é, aliás, constituída por 12 simples que se vendem em pacotinhos nos ervanários de Ma-cau, já triturados e prontos a serem fervidos no gargu (bule de barro que vai ao lume). Deve ministrar-se às crianças durante três dias consecutivos, contra in-disposições intestinais acompanhadas de febre ligei-ra.

(30) O cinábrio (HgS), é um produto tóxico, usado em medicina chinesa como antiespasmódico e sedativo em casos de taquicardia de natureza nervosa e ainda no tratamento de convulsões infantis. É, também, considerado pelos tauistas uma substância dotada de poderes sobrenaturais.

(31) Baixo Alentejo; Distrito de Beja.

(32) Verbo auxiliar para indicar continuidade de acção.

(33) É de registar que, em Macau, o termo chü chai (豬仔) (porquinho ou leitão) se usava, em sentido figurado, para designar "emigrante que se vende para traba-lhos forçados”.

*Professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (Depar-tamento de Antropologia); investigadora do Centro de Estudos Orien-tais da Fundação Oriente e bolseira do ICM, com vasta obra publicada, sobretudo de temas da Etnografia de Macau.

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