Intervenção

OS PRIMEIROS CONTACTOS DOS JAPONESES COM A MÚSICA OCIDENTAL

David Waterhouse*

Aprimeira menção do Japão em fontes ocidentais encontra-se na Descrição do Mundo (Divisament du Monde) do viajante veneziano Marco Polo (c. 1253-1324), que chama àquele país Cipangu e fala dele como sendo rico em ouro e pérolas. Além disso, conta como, incitados pelos relatos da sua riqueza, os Mongóis invadiram o Japão em 1268, e foram expulsos pelos camicazes originais, "vento divino" que destruiu a maior parte da sua frota. Em 1492 Cristóvão Colombo, ao alcançar a ilha do Haiti, concluiu ter chegado ao Japão. No entanto, o primeiro contacto entre o mundo ocidental e estas ilhas lendárias realmente ocorreu em 1542 ou 1543, quando marinheiros portugueses que andavam à deriva atingiram a costa sul de Quiuxu.

A este primeiro encontro sucederam outros. Durante cem anos, vieram regularmente ao Japão comerciantes que procuravam ouro e outras mercadorias apetecíveis, e missionários à procura de almas para salvar. No princípio, todos os comerciantes eram portugueses, e os missionários eram jesuítas. Mas, com o desenrolar do tempo, comerciantes ingleses, holandeses e espanhóis, e missionários franciscanos, dominicanos e agostinianos também desembarcaram. Desta forma, asautoridades japonesas ficaram desconfiadas, perseguiram e depois expulsaram os missionários, banindo todos, menos um punhado de comerciantes holandeses que foram mantidos sob prisão domiciliária em Nagasáqui. Esta situação durou até à abertura do Japão ao exterior em meados do século XIX.

Hoje o resto do mundo ainda pensa no Japão como uma fonte de riqueza em ienes, se não em ouro real, e nos seus produtos manufacturados que não são menos estimados do que nos séculos anteriores. Além disso, nós pensamos no Japão como o país mais ocidentalizado de toda a Ásia, um lugar onde podemos gozar de tudo, desde o basebol à mais fina cozinha francesa, dos computadores a Beethoven. De facto, as influências exteriores são superficiais, mas a aceitação da música ocidental, quer ligeira quer erudita, parece ser total. Apesar de muitos géneros de música tradicional sobreviverem, e alguns terem um largo espectro de seguidores, todas as pessoas parecem preferir o que é importado, e estão mais prontas a compreendê-lo do que a música do Cotô, dos teatros Nô e Cabúqui. Só Tóquio tem seis grandes orquestras sinfónicas, e uma vida musical rica sob todos os aspectos. Ao mesmo tempo, alguns dos melhores solistas internacionais vêm do Japão. Poucas cidades e países podem oferecer ao apreciador da música ocidental erudita o que o Japão tem para oferecer, e certamente nenhum outro país asiático se lhe aproxima.

"Missionários Jesuítas no Japão." Pormenor de um biombo de 6 faces de princípios do século XVII. Colecção do Instituto de Artes de Chicago.

Esta submersão da identidade musical do Japão ocorreu principalmente durante os últimos 125 anos. Não cabe no âmbito deste ensaio descrever como isso aconteceu, nem explicar porquê. No entanto, uma parte da explicação surge-nos quando examinamos dois períodos anteriores da história da música japonesa. O primeiro foi o século VIII, quando vários tipos de música estrangeira de corte, oriunda da Coreia, de Champa (o moderno Vietname), da Manchúria, e sobretudo da China dos Tangs, foram adoptados entusiasticamente em Nara, a capital japonesa de então, na corte do Imperador Xomu (701-756; que reinou de 724 a 749). Uma boa parte dessa música deve ter soado tão estranha aos ouvidos japoneses de então, como a música das cortes dos contemporâneos de Xomu, Leão III de Constantinopla (que reinou de 717 a 741) ou Carlos Martel em França (que governou de 719 a 741). No entanto, várias peças do repertório da corte de Nara ainda se conservam, se bem que em forma alterada.

O segundo período que vai ser examinado com mais pormenor aqui, é o século XVI e o princípio do século XVII, quando a música ocidental foi apresentada pela primeira vez. Mesmo no Japão esta história é pouco conhecida, mas ela permite aprender muito sobre a natureza e as possibilidades da interacção cultural. As suas implicações estendem-se, para além da música, às artes visuais, à língua, à religião, ao comércio e a outras áreas da comunicação humana. Macau, cuja fundação em 1557 foi uma consequência directa dos primeiros contactos portugueses com o Japão, desempenhou também um papel importante como fonte e, ao mesmo tempo, veículo de informação sobre a música ocidental.

A primeira referência portuguesa à música do Japão está contida num relatório de Jorge Álvares, feito em Goa em 1547. Álvares (a não confundir com um outro Jorge Álvares que em 1514 foi o primeiro português a visitar a China) foi um capitão de navios, um bom observador, que forneceu a S. Francisco Xavier pormenores úteis do terreno, agricultura e costumes do feudo do Sul de Satisuma (a moderna prefeitura de Cagoxima) e descreveu o que evidentemente foi um desempenho de Cagura, o ritual de purificação, num santuário xintoísta, que incluía uma dança da sacerdotisa, empunhando um sino (suzu) e acompanhada pela percussão e pelo canto.

O próprio S. Francisco Xavier chegou a Cagoxima em 15 de Agosto de 1549, e embora as pessoas que o acompanhavam tivessem sido obrigadas a abandonar a maior parte da sua bagagem durante a viagem, conseguiram salvar alguns dos presentes que levavam, incluindo um relógio de campanhia e uma espécie de instrumento musical. Passaram-se quase dois anos até terem a oportunidade de apresentar estes objectos a Ouchi Ioxitaca (1507-1561), o Dáimio de Iamaguchi, um acontecimento que ficou registado nas crónicas japonesas da sua vida. Já foi proposto que o instrumento musical em questão seria um monocórdio, isto é, um pequeno cravo, espineta ou virginal. No entanto, o texto sugere que seria antes um clavicódio portátil, com cordas marteladas e não beliscadas. Em todo o caso, aparentemente, podia tocar "os cinco acordes e os doze tons" (da teoria modal chinesa).

Infelizmente, estas prendas foram destruí as pouco tempo depois, quando Ouchi Ioxitaca foi derrotado pelo seu vassalo. Sue Harucata (1521-1555), e se suicidou. No entanto, Ioxitaca foi um receptor apropriado, porque era amável para os visitantes da Europa, e també tinha cultivado boas relações com a Coreia, onde tinha obtido uma colecção do Cânone Budista e outras obras impressas em chinês. S. Francisco Xavier faleceu em 1552, quando regressava do Japão. Mas a sua iniciativa em matéria musical e religiosa foi continuada por outros missionários que trabalharam sobretudo em Quiuxu.

O encontro entre a música ocidental e a japonesa não foi sempre harmonioso. Luís Fróis (1532-1597), que documenta muitos pormenores musicais, foi pouco lisonjeiro para com a mú ica japonesa. O seu compatriota Lourenço Mixa (1540-1599), que também a achou penosa, acrescenta que os Japoneses olhavam a mú ica ocidental com repugnância. No entanto, a reacção mais comum dos Japoneses parece ter sido de genuína curiosidade e, se aceitarmos a tendência dos bons padres para exagerar as proezas dos seus alunos japoneses, todos de tenra idade, alguns êxitos notáveis foram alcançados.

O nome japonês mais habitual para os Europeus foi Namban, "Bárbaros do Sul", reflectindo a imagem xenofóbica que os Chineses tinham do mundo, para quem a China é ainda o "País Central Florido". Mas geralmente os Japoneses foram mais abertos a novas maneiras de pensar e, na mú ica, podiam talvez adquirir o que o Dr. Mantle Hood habilmente designou por "bimusicalidade".

"Tipos de estrangeiros." Pormenor de um biombo de 8 faces, de finais do sé ulo XVI, princíios do século XVII, onde figura um mapa-múndi, acompanhado da representaçã de 42 tipos de estrangeiros. Colecçã Imperial. Tóquio.

A maior parte da música ocidental que foi ensinada e executada no Japão era apropriada para o uso da Igreja. O latim era a lí gua oficial da liturgia romana e do seu canto. Mas também foram feitas versões da missa e outros actos religiosos em lí gua japonesa. Presumivelmente, alguns desses actos eram cantados. No entanto, não possuímos provas inteiramente claras. Contudo, a primeira referência concreta ao desempenho da música ocidental no Japão foi da mú ica instrumental, e não num contexto religioso. Quando o amigo de S. Francisco Xavier, Duarte da Gama, chegou ao porto de Funai em Setembro de 1551, desembarcou acompanhado pelo som da flauta e da charamela.

No tim da década de 1550, foram criados coros regulares, por vezes acompanhados pela flauta e pela charamela. Os primeiros professores de música ocidental conhecidos foram os missionários portugueses Aires Sanches e Guilherme Pereira numa escola primária fundada em Funai em 1561. Esta foi a primeira de uma cadeia de 200 escolas criadas durante os vinte anos seguintes em Quiuxu e na parte ocidental do Japão. Nestas escolas, a música, uma parte do quadrívio na educação medieval, foi regularmente incluí a no currí ulo.

Os dirigentes deste movimento para instruir os Japoneses na música ocidental foram os padres italianos Organtino Gnecchi-Soldo (1533-1609) e Alexandre Valignano (1539-1636). Acreditavam na música como meio de conversão. Em 1577, Fr. Organtino escrevera para Roma a dizer que, se tivessem órgãos, instrumentos musicais e cantores, toda a população das cidades de Quioto e Sacai se converteriam no prazo de um ano.

Já durante a década de 1560, os alunos de Funai usavam a viola, que ou era um alaúde beliscado como uma moderna guitarra portuguesa ou, em certas ocasiões, uma viola de arco, arco este que deve ter sido uma novidade para os Japoneses. Estes instrumentos eram usados nas igrejas e nos concertos, e também existia uma espécie de instrumento de tecla, geralmente descrito como um cravo. A música coral incluí não só canto gregoriano e cantigas (canções monofónicas da Galiza), mas também motetos polifónicos, uma outra novidade para os Japoneses.

"Seminá io Jesuí ico de Arima (na margem leste do lago Biva)." Xilogravura italiana de finais do sé ulo XVI. CIAPPI. Antonio. Compendio. Rome, 1596.

Alexandre Valignano chegou ao Japão em 1579, como Visitante das Missões Jesuítas na Província da Ídia (que era considerado incluir a China e o Japão). Em resposta ao pedido de Fr. Organtino, trouxe com ele de Goa pelo menos dois órgãos, e estes instrumentos, indubitavelmente portáteis com um ou dois bujões, causaram um grande espanto. Em 1580, celebrou a missa com órgãs na capela privada do Dáimio Otomo loxixige (Otomo Sorim, 1530-1587), um grande apoiante dos missionáios cristãos. Também instalou um órgão no seminário que fundou em Azuchi, fora de Quioto, e nó o tivemos conhecimento de outras ocasiões em que os órgãos foram usados com grande efeito. Um outro seminário existiu em várias localidades de Quiuxu, mas sobretudo em Arima, na província de Mizem.

"Os Quatro Jovens Dámios Japoneses e o seu Escolta." Xilogravura alem Augsburgo, 1586. Colecçã da Universidade de Quioto. SHOGAKKAN. Tenho Duikoktii Jnliii no Nihon. 1978-1979. vol. 2.

Em ambos os seminários, grande 阯fase foi dada à música. Certa ocasião, o general japonês Oda Nobunaga (1534-1582), então no poder, visitou inesperadamente o Seminário de Azuchi e foi festejado com um concerto improvisado de viola e cravo. Um outro entretenimento nos seminários e nas escolas missionárias eram os mistérios, versões dramatizadas das histórias da Bíblia, que incorporavam a música vocal e provavelmente també a dança. Foram todos desempenhados sobretudo no Natal e na Páscoa e, baseando-nos na evidência fragmentária que sobreviveu, parece provável que a componente musical nos mistérios era mais japonesa, no seu carácter, do que litúrgica.

Os seminários de Azuchi e de Arima foram fundidos em 1587, e o Seminário Conjunto de Arima continuou a florescer durante mais de vinte anos. Um dos seus mais célebres finalistas foi Luís Xiozuca (1576-1637), natural de Nagasáqui, que era conhecido como artista e músico, e tornou-se membro da Companhia de Jesus. Mais tarde, depois de ter sido exilado primeiro para Macau e depois para Manila, juntou-se à ordem dominicana; e, quando regressava ilegalmente ao Japão com frades espanhóis, foi torturado e morto. Em 1981, ele e os seus companheiros foram beatificados. Estão registados os nomes de muitos outros estudantes e professores de música do Seminário de Arima. Alguns deles tiveram também vidas aventurosas.

A aventura mais extraordinária de todas foi a de quatro rapazes de origem social elevada, samurais do Seminário de Arima, que Valignano preparou para os mandar a Roma para uma audiência com o Papa. Os quatro eram: Ito Suquemasu (Dom Mâncio) com 12 anos (contados à japonesa), Chijiva Naocazu (Dom Miguel) com 14 anos, Hara Nacatisucasa (Dom Martinho) com 13 anos, e Nacaú oa Jingoro (Dom Julião) com 12 anos. A pequena embaixada também incluiu o jesuíta português Diogo de Mesquita (1553-1614) como tutor e intérprete, dois criados japoneses que eram de facto catecistas leigos (em japonês, dojuku), que tinham os nomes cristãos de Agostinho e Constantino. O último, que também tinha o apelido Durado, estudou as té nicas de impressão na Europa, e tinha ido para fazer carreira de professor de teclas e latim, e de tipógrafo. Mais tarde, ordenado Jesuíta, foi director do seminário e, a seguir, foi exilado para Macau onde faleceu em 1620.

Muitos pormenores fascinantes da expedição à Europa foram conservados em fontes contemporâneas. Deixando Nagasáqui em 20 de Fevereiro de 1582, os viajantes partiram primeiro para Macau, onde tiveram de esperar nove meses por um outro barco para os levar para Cochim, na costa sudoeste da Índia. Oito meses depois, durante os quais visitaram Goa, foram entregues para um novo escolta, Nuno Rodrigues, para os acompanhar durante a longa viagem à volta da ponta de África e no oceano Atlântico para Lisboa. Chegando no dia 11 de Agosto, foram bem acolhidos em várias recepções oficiais. Os jovens japoneses impressionaram os seus anfitriões portugueses quando cantaram e tocaram vários instrumentos musicais.

De Lisboa foram levados para Évora, onde foram recebidos no Colégio Jesuíta, e aí ficaram por oito dias. Quando chegaram, foram entretidos por um coro que cantou "diversos motetos, cantigas, chançnetas, etc." e, alguns dias mais tarde, o Arcebispo levou-os velha Sé, onde Dom Mâ cio e Dom Miguel tiveram oportunidade de tocar o novo órgão italiano, naquela altura o único instrumento com três teclados em Portugal (este órgão, que foi restaurado há alguns anos, ainda está funcional). Os jovens japoneses também actuaram com os quinze meninos do coro do Coléio Jesuíta.

Pergaminho onde vem a nomeação de Alessandre Valignano. como Superior da Proví cia da Í dia, oferecido a Toiotomi Hideió i. Colecção Myohoin, Quiolo. AKIO, Okada. Kirishitan no Seiki, 1975.

De Évora foram para Vila Viçosa, sede dos Duques de Bragança, onde foram bem acolhidos pela família "com grande muzica, e missa solemne". Na capela ducal, ouviram uma missa "com excelentes órgãos" e, no dia seguinte, depois de uma outra missa, o novo Duque, Teodósio II, que tinha a mesma idade dos rapazes japoneses, deixou-os tocar cravos e violas nas suas câmaras privadas.

Continuando a sua viagem através da Espanha, onde tiveram audiências com Filipe II, os viajantes japoneses dali partiram para a Itália. Visitaram Veneza em Junho-Julho de 1585, onde o organista de S. Marcos, Giovanni Gabrielli, tocou um Te Deum Laudamus em sua honra. Intermezzi sobre tópicos bì licos foram também compostos para eles em Veneza, e tem sido sugerido que o tio de Gabrielli, Andrea (c. 1510-1586), escreveu a sua Missa para quatro coros (publicada em 1587) em comemoração à sua visita. Os jovens também tiveram os seus retratos pintados por Jacopo Tintoretto (1518-1594), ele próprio um músico entusiasta, e desenhos anónimos copiados daqueles retratos sobreviveram, bem como uma xilografia alemã mostrando-os vestidos com fatos europeus.

A entrada triunfal do pequeno grupo em Roma foi representada numa pintura mural no Vaticano. Tiveram uma audiência com o Papa Gregório XIII (Papa de 1572 a 1585), que estava doente e, algumas semanas mais tarde, assistiram à entronização do seu sucessor, Sixto V (Papa de 1585 a 1590). Pouco tempo depois, começaram a viagem de regresso a Lisboa, de novo passando em Évora para tocar órgão. De Lisboa, fizeram uma excursão por Coimbra, Batalha e Alcobaça. E em 15 de Abril de 1586 iniciaram a sua longa viagem de regresso ao Japão, carregados de prendas e, supomos, de memórias vivas.

A embaixada japonesa, como é habitualmente designada, atraiu muita atenção na Europa da altura. Quatro ou cinco livros foram publicados sobre o acontecimento, alguns ilustrados com xilogravuras ou gravuras. Valignano tinha a esperança de dara Roma uma prova tangível do êxito da missão jesuíta no Japão. Além disso, esperava educar e impressionar os Japoneses e, consequentemente, os jovens foram peões no grande xadrez que estava a jogar com os seus governantes.

Pouco depois da partida da embaixada para a Europa, Oda Nobunaga foi atraiçoado e assassinado por um dos seus oficiais. Foi substituído por Toiotomi Hideióxi (1536-1598), um homem de temperamento imprevisível, mas sempre inclinado a suspeitar das missões católicas. Tendo os jovens japoneses chegado a Macau a salvo, em Abril de 1588, julgou-se sensato aí permanecerem durante algum tempo, e sabemos que foram mantidos ocupados praticando mú ica e estudando latim.

O próprio Valignano compôs uma cró ica da viagem à Europa, e uma tradução desta para latim, De Missione Legatorum Japonensium ad Romanam Curiam, foi publicada em Macau em 1590, utilizando a máquina impressora que tinham trazido consigo. Inclui um diálogo imaginado no qual Dom Miguel d explicações sobre música europeia a dois japoneses convertidos, citando os nomes dos instrumentos mencionados no Velho Testamento, e fazendo comparações com a música japonesa.

Os viajantes finalmente desembarcaram em Nagasáqui em 28 de Julho de 1590, mas não conseguiram audiência com Hideióxi até 3 de Març do ano seguinte. Ofereceram várias prendas ao ditador, incluindo um pergaminho iluminado dando o novo título a Valignano de Superior da Província da Índia. Hideiói, em boa disposição, pediu para ouvir música, e foi-lhe feita uma serenata com harpa, cravo, alaúde, rabeca e canto. Aparentemente gostou tanto que tiveram de repetir a sua actuação três vezes.

Apesar dos custos da missão, Valignano tinha razão em pensar que foi um êxito, e os próximos quinze anos marcaram o ponto mais alto da missão jesuíta no Japão. Hideióxi virou-se entretanto contra os missionários, parcialmente por causa do aparecimento dos Dominicanos (1592) e dos Franciscanos de Manila (1593), mas ele morreu em 1598, e sucedeu-lhe Tocugava leiasu (1542-1616, Xógum desde 1603), que inicialmente parecia ter mais simpatia. Desde 1601, os artesãos da Igreja no Japão fabricavam de facto órgãos com tubos de bambu, pinturas de temas cristãos e ocidentais eram feitas por convertidos japoneses, e as máquimas impressoras em Amacuça ou Nagasáqui produziam textos sobre língua, liturgia e outros assuntos. Um sacramentário em latim, Manuale ad Sacramenta Ecclesiae Ministrandum (Nagasáqui, 1605), tem páginas de notação musical a preto e vermelho, e antecede mais de um século a primeira notação de música ocidental da China.

Toiotomi Hideiói (1536-1598). SHOGAKKAN, Tenbo Daikokai Jidai no Nihon, 1978-1979, vol. 1.

Apesar destes sinais de êxito, havia nuvens no horizonte. Em 1597, Hideióxi tinha crucificado 26 franciscanos e, no ano seguinte, 137 igrejas foram demolidas em Cuxu. Em 1600, um navio holandês, o Liefde, tinha chegado ao Japão e Ieiasu deu-se conta de que se podia ter comércio com os Europeus sem se envolver na sua religião. Além disso, vinha cada vez mais a contar com o conselho de um inglês, William Adams (1564-1620), que gradualmente veio a substituir o jesuí a português João Rodrigues (c. 1561-1634). Em 1610, Rodrigues foi exilado para Macau, e nunca voltou ao Japão.

Uma série de edictos contra os cristãos entre 1612 e 1614 culminaram na ordem geral datada do 12ō mês do 18ō ano da era de Queicho (Janeiro de 1614), banindo a actividade missionária em todo o Japão. O Seminário de Arima foi evacuado para Macau. Durante os anos de 1620 e 1630, a perseguição dos cristãos no Japão intensificou-se, e existem histórias dolorosas de tortura e martírio. Os edictos mais severos foram os de 1633 e 1639, afectando mesmo os japoneses que viviam no estrangeiro, e as mulheres e filhos de casamentos mistos.

Noções de um iminente destino lúgubre estavam na mente dos missionários e dos seus convertidos desde o edicto contra eles ordenado por Hideióxi em 1587. Além disso, o Papa Gregório XIII tinha recentemente imposto a lista romana de mártires sobre toda a Igreja, tendo aprovado a sua terceira edição em 1587. luz disso, um grupo de telas e pinturas individuais de mú icos japoneses e outras figuras em paisagens pastoris vêm a assumir um novo significado. Estas pinturas foram feitas por artistas japoneses instruídos no Seminário de Arima, aparantemente na viragem do século, por conta do Dáimio cristão em Quiuxu. A análise dos seus tópicos mostram que devem ser intepretados como alegorias do ano sagrado e profano, lembranças do caminho para o Paraíso e as recompensas para os que praticam a música eclesiástica. Pormenores das pinturas teriam que ser combinados com professores jesuítas, e eram baseados pictorialmente nas gravuras importadas europeias, na roupa e nos instrumentos musicais levados para o Japão pela embaixada em 1590.

Um par de telas da colecção da famí ia Hosocava foi provavelmente executado para Tadaóqui (1563-1645), cuja esposa, Grácia (1563-1600), era uma cristã devota. Uma outra relí uia musical associada a Tadaóqui é o sino de estilo europeu que traz o monograma cristão distintivo (Mon) dos Hosocavas, datado de 1616 ou mais cedo. Dois outros sinos japoneses do período sobreviveram. Um é o sino do Nambanji, o "Templo dos Barbaros do Sul" em Quioto, que tem inscrito "IHS" e "1577" e está guardado no mosteiro zem Mioxinji, na mesma localidade. O outro, agora guardado num pequeno santuário xintoísta na cidade de Taqueda, no Quiuxu Central, tem a inscrição "Hospital Santiago 1612", e provavelmente pertenceu a um Hospital de Caridade em Nagasáqui, fundado em 1583 e destruído em 1620.

Os quatro enviados japoneses entraram para a ordem jesuíta após o seu regresso ao Japão. Mâncio Ito morreu de doença em 1612 no Seminá io de Arima. Miguel Chijiva apostatou em 1607, e o seu nome desaparece dos registos. Martinho Hara, que se tornou muito amigo de João Rodrigues, morreu no exílio em 1629, e Julião Nacaúra foi martirizado em 1633.

Durante a rebelião de Ximabara, entre 1637 e 1638, milhares de japoneses cristãos e suas famílias, guiados pelo jovem Amacusa Xiro, ocuparam o castelo de Hara, num promontório perto de Nagasáqui, e aguentaram durante dois meses e meio antes de serem mortos à espada. Uma entrada no diário de Matisudaira Teratisuna (1620-1671), o filho do general que dirigiu o assalto ao castelo, descreve como os cativos tocaram o tambor grande, taiko, e dançaram, batendo o pé no chão com palavras rítmicas. A data japonesa corresponde ao dia 25 de Març de 1638, que marcava a festa da Anunciação e o princípio do Novo Ano Cristão no calendário pré-gregoriano.

Após 1639, a Igreja no Japão entrou na clandestinidade e poucos missionários estrangeiros se aventuraram a permanecer ou a tentar entrar no Japão. Em Julho de 1640, quase todos os membros de uma delegação pormguesa, enviada de Macau para tentar o restabelecimento do comércio, foram executados. Uma segunda delegação, que chegou em Julho de 1647 levando uma carta do Rei D. João IV de Portugal, foi obrigada a regressar por uma força que diziam exceder os 50.000 homens.

Após a Restauração Meiji, foi descoberto que a prática do cristianismo, como foi introduzida pelos Portugueses e outros missionários no século XVI, tinha sobrevivido em várias partes do Sul do Japão. Os aspectos musicais desta sobrevivência foram estudados por Minacava Tasuo e outros estudiosos japoneses, embora possivelmente as melhores fontes se tenham perdido em 1945, quando a bomba atómica que caiu em Nagasáqui destruiu o bairro de Urcami, onde muitas famíias cristã tinham vivido.

Transmitida na clandestinidade, a música cristã no Japão sofreu três tipos de transformação: ajaponização, a simplificação e a distorção. Esta última resultou da necessidade de manter as práticas cristãs secretas, ou de um simples equívoco.

Entretanto, o Seminário, transferido para Macau, continuou a treinar cristãos japoneses, alguns dos quais foram mandados para as comunidades japonesas exiladas nas Filipinas. Um deles foi Luís Xiozuca, anteriormente mencionado. Em Novembro de 1614, um navio de Nagasáqui foi directamente a Manila, levando o Dáimio cristão Tacaiama Ucom (1552-1614) e outros convertidos distintos, incluindo Júlia Naíto, que tinha fundado um convento em Quioto e tentou fazer o mesmo após sua chegada a Manila. Foi-nos dito que Tacaiama e o seu partido foram acolhidos ao som dos sinos das igrejas e da música solene do órgão e que, quando pouco tempo depois morreu, toda a Manila vestiu-se de luto.

Sino cristã de finais do séulo XVI, princí ios do sé ulo XVII, que ostenta as "Nove Esferas", emblema da famíia Hosocava. Colecção Namban Bunkakan, Cobe. SHOGAKKAN, Tenbo Daikokai Jidai no Nihon. 1978-1979, vol. 7.

A Igreja japonesa nas Filipinas sobreviveu pelo menos até ao princípio do século XVIII num subúrbio de Manila chamado Dilao, onde o jesuíta italiano Giovanni Battista Sidotti (1668-1715) foi, em 1703, para aprender a língua e os costumes japoneses antes de entrar secretamente em Nagasáqui. Preso um ano mais tarde, foi interrogado pelo famoso estudioso Arai Hacuséqui (1657-1725), que representava o Governo, sobre astronomia, geografia e outros assuntos científicos, além do cristianismo. Hacuséqui escreveu vários livros baseados nestas conversas, mas Sidotti, confinado num complexo para cristãos, morreu de fome.

Encontros unilaterais entre o Japão e o mundo exterior foram intervalados no período entre 1639 e 1868, o período do "país fechado" (em japonês, sakoku). Já tem sido argumentado que, apesar das aparências, o Japão não ficou completamente fechado. Havia missões diplomáticas regulares da Coreia, que foram recebidas pelo Governo com cerimónia, cujos músicos e arte de cavalaria acrobática muito impressionaram os Japoneses. Havia também comerciantes chineses, estudiosos e eclesiásticos, muitos dos quais tinham escapado da China quando a dinastia Ming caiu. Outros foram oficialmente convidados pelo governo japonês ou por dáimios proeminentes com interesses na cultura chinesa, e estes visitantes da China contribuíram com um novo elemento para a história da música japonesa. Vários géneros, tanto de música de corte como de música de entretenimento, eram conhecidos no Japão desde o século VIII e mesmo mais cedo. Mas a nova música chinesa conhecida colectivamente como Min Shin gaku, "música Ming e Qing", teve geralmente um carácter mais popular, utilizando uma versão simplificada do sistema clássico modal. Como música de câmara, floresceu em Nagasáqui, Ósaca e alguns outros lugares, até ao século presente, e ainda existem alguns praticantes. Além disso, a cítara chinesa de sete comas (qin) esteve em voga nos meios intelectuais e artísticos.

Ao longo do período, os Chineses mantiveram uma presença pequena mas significativa em Nagasáqui, e outros elementos da cultura chinesa contemporânea foram-se infiltrando. Esta influência pode ser vista na pintura e nas artes decorativas como a porcelana. Por sua vez, os artigos japoneses foram exportados, não só para a China, o Tibete e outras partes da Ásia, mas também para a Europa.

Tem sido calculado que, na altura da exclusão, dos edictos do princípio do séulo XVII, havia entre sete e dez mil japoneses a viver no estrangeiro, no Sueste Asiático, nas Filipinas, no Sul da China e em Java. Estes números incluem soldados mercenários (sobretudo na Tailândia), comerciantes e marinheiros, bem como cristãos de várias profissões que conseguiram escapar do Japão depois das proibições de 1614 e 1633. Evidentemente, uma destas comunidades estava em Macau. António Bocarro, escrevendo em 1635, dizia que os Chineses foram proibidos, sob o risco da pena de morte, de receber japoneses, mas que os comerciantes japoneses vindos a Macau e Fuquiém foram autorizados a desembarcar. A perseguição sofrida pelos cristãos japoneses era conhecida, e Bocarro ainda menciona as comunidades japonesas no Sião, Camboja, e Aracão (Birmânia do Norte). A descrição do marinheiro inglê Peter Mundy (1637) dá-nos a impressão de que muitas características da vida japonesa, costumes, vestuário, etc., foram mantidos em Macau, e não só pelos descendentes dos Japoneses.

Em relação ao nosso tema, algumas provas interessantes vêm de um documento compilado por D. João Marques Moreira, que fornece uma descrição minuciosa das festividades em Macau que celebraram a ascenção ao trono do Rei D. João IV. Estas tiveram lugar dois anos depois do acontecimento, entre Junho e Agosto de 1642, e incluíram cortejos sumptuosos, corridas de touros, missas e outras mostras de alegria em que a comunidade japonesa também participou. Os Japoneses apresentaram as suas danças tradicionais e organizaram um desfile com lanternas, sombrinhas, lamparinas brilhantes, quimonos festivos, chapéus de aba larga, bem como instrumentos musicais japoneses. O organizador principal foi João Rodrigues, "um japonês nativo", cujo nome português foi presumivelmente tirado do nome do famoso inté prete.

Um outro incidente notável teve lugar em 1685 quando, no dia da comemoração dos vinte e seis mártires franciscanos, um grupo de doze marinheiros japoneses naufragados chegou a Macau. As autoridades locais tomaram este incidente como um sinal de Deus. As mulheres japonesas idosas actuaram como intérpretes e houve uma missa especial na Igreja de S. Paulo (que tinha sido largamente decorada por artesãos japoneses). Quatro meses mais tarde foram autorizados a regressar a casa, depois de serem interrogados, e o navio português voltou para Macau.

Araqui Jogcn: "Heian Fukuju Zr, [Cena de Múica Europeia], 1816.

Colecção do Museu de Belas Artes da Prefeitura de Nagasáqui.

Nagasaki Zuroku. 1970.

No pró rio Japão manteve-se viva uma consciência da música ocidental, não só pelas comunidades cripto-cristãs, mas também encorajada por encontros entre o Oriente e o Ocidente. Os comerciantes holandeses, restritos ao enclave de Dexima, no porto de Nagasáqui, foram uma presença estrangeira constante. Mas os japoneses comuns tinham poucas oportunidades para conviver com eles, e muito menos para ouvir a música ocidental. Suspeitamos também que a maioria dos visitantes holandeses tinha pouco interesse em fazer música, mas em 1642 Van der Meer, o superior da Missão Holandesa em Batávia, apresentou uma queixa ao Xó um japonê, sobre as restrições às confissões cristãs, dizendo que em Dexima não eram autorizados sequer a tocar trombeta. As proibições japonesas sobre as práticas religiosas holandesas, incluindo o canto dos hinos, foram renovadas em 1646. Apesar disso, ouvimos falar de excepções, nomeadamente do ano de 1661, quando ocorreu o primeiro registo de um matrimónio e baptismo protestantes no Japão. Uma pintura japonesa de pergaminho do fim do século XVII, representando a vida numa fábrica holandesa, inclui uma cena de desempenho musical numa sala superior, com um visitante japonês a ser entretido por um conjunto de viola de gamba, harpa e rabeca.

Por outro lado, alguns marinheiros holandeses naufragados em 1643 foram mandados para Edo para serem interrogados, e foram obrigados a cantar e a tocar os tambores. Por sua vez, os holandeses em Nagasáqui tinham de visitar os bacufus em Edo todos os anos para renovar as suas licenças. Em 1682, o Xógum Tisunaioxi perguntou sobre instrumentos musicais na Holanda, e mandou a delegação holandesa entoar canções para ele. Notícias desses episódios pouco dignos chegaram à Europa, onde não ajudaram a melhorar a reputação dos Holandeses, mas temos de simpatizar com a situação difícil dos comerciantes.

No fim do século XVIII, o movimento Rangacu (Estudos Holandeses) virou sua atenção intelectual para o Ocidente, e em Nagasáqui, pelo menos, instrumentos europeus como o órgão, a flauta, o alto, a trombeta e o cravo eram conhecidos. O médico e cientista alemão J. Filipe von Siebold (1796-1866) foi indicado como tendo um piano forte consigo durante sua estadia no Japão (de 1826 a 1830). Gravuras e desenhos feitos em Nagasá ui na primeira metade do século XIX mostram ainda outros instrumentos musicais, incluindo vários tipos de instrumentos de latão, tambores, etc. Por volta de 1830, Tacaxima Xuam, um estudante de ciência militar holandesa, foi capaz de formar um conjunto de pí aros e tambores naquela cidade.

Em 1782, um outro grupo de marinheiros japoneses naufragou no Continente, desta vez na Rússia, onde passaram dez anos e foram recebidos pela Imperatriz Catarina II (1729-1796). Foram acompanhados de volta para o Japão por um embaixador russo, tiveram uma audiência com o Xógum Ienari (1773-1841--Xó um de 1787-1837), e com Catisuragava Hoxu (1751-1809). Sob ordens do Bacufu, compilaram uma obra de catorze volumes sobre as suas experiê cias. Um outro grupo de marinheiros naufragados em 1793 foi mandado para casa em 1804. E num outro longo relatório, o estudioso Otisuqui Gentacu (1757-1827) documentou as suas descrições do canto, e dos sinos nas igrejas russas, da balalaica e de outros instrumentos.

Os vários testemunhos citados nesse ensaio mostram como a curiosidade japonesa acerca da música ocidental foi estimulada e, até certo ponto, satisfeita, muito antes da chegada dos "barcos negros" do Comodoro Perry em 1852 e 1853. O subsequente progresso da música ocidental no Japão é uma história mais conhecida, mas é justo dizer que, apesar do longo período de isolamento, o terreno foi preparado pelos missionários e comerciantes, sobretudo os de Portugal. Stamford Raffles (1781-1826), durante o período em que foi governador inglês de Java (de 1811 a 1815), tinha tido a esperança de abrir novas rotas comerciais com o Japão, e se não tivesse sido impedido pelos seus superiores na "British East India Company", que tinham uma visã estreita, a história do Japão no século XIX teria sido muito diferente. No entanto, a experiência dos missionários jesuítas sugere que na música o eventual resultado teria sido semelhante em muitos aspectos ao que efectivamente sucedeu mais tarde naquele século. A primeira execução japonesa da Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827) só teve lugar em 1924. Mas, dada à contí ua popularidade da música de Beethoven, é agradável imaginar que uma obra dele menos importante foi tocada no piano forte de Von Siebold no Japão, mesmo antes da morte do compositor.

*Professor Catedrático do Departamento de Estudos Orientais da Universidade de Toronto, Canadá. Investigador da música, história das artes visuais e religião japonesas.

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