Intervenção

A INFLUÊNCIA PORTUGUESA NA MÚSICA DA INDONÉSIA E DA MALÁSIA

Margaret Kartomi*

Conjunto de música folclórica das áreas de Biak e Serui, Irião. Consiste dos seguintes instrumentos: tifa (tambor), violas, cavaquinhos, e baixos dedilhados. Foto de H. Kartomi,1991.
Bordang

Na Indonésia e na Malásia persistem fascinantes vestígios culturais das feitorias estabelecidas pelos Portugueses entre o fim do século XV e o princípio do século XVII. As línguas indonésia e malaia, por exemplo, contêm várias palavras de origem portuguesa tais como jendela (janela) e bendera (bandeira). Existem ruínas de edifícios e fortalezas portuguesas espalhadas pelo Arquipélago, de leste a oeste. A influência portuguesa na cultura malaia do litoral ainda hoje é evidente.

No mundo de expressão malaia do litoral da Indonésia e da Malásia, coexistem três níveis de música ritual: a música pré-muçulmana, que se desenvolveu durante o primeiro milénio d. C. e que consiste principalmente em conjuntos de tambores e gongos; a música influenciada pelo Médio Oriente, que data do advento do Islão, sobretudo do século XV; e a música malaia de influência portuguesa, ligeiramente harmoniosa, que desenvolveu vários estilos desde o período de contacto do mundo malaio com os Portugueses no fim do século XV.

A música considerada de influência portuguesa é habitualmente executada porconjuntos que acompanham umintérprete de canções sentimentais, utilizando quadras na língua malaiadesignadas por pantun e syair. Co nj untos que contêm um violino (biola), violas, banjos, cavaquinhos, uma flauta, tambores, outros instrumentos depercussão e, por vezes, umou dois gongos, tocamacompanhamentosligeiramente harmonizadoscom a parte vocalmelodicamenteornamentada. Hoje, oequipamento electrónicomuitas vezes substitueesses instrumentos. Aqualidade principal que distingue essas canções é oseu acompanhamento estritamente métrico, utilizando cordofones beliscados ou de arco, que são ciclicamente pontuados pelo som deum cordofone de tom grave, de um tambor oude um gongo.

Como foi que se desenvolveram estas formas malaio-portuguesas sincréticas? Como não temos gravações ou outros meios para averiguar exactamente como elas eram nos séculos anteriores, o mistério do seu desenvolvimento criativo e da sua transformação nunca será completamente explicado. Assim, somos obrigados a propor hipóteses baseadas nos nossos conhecimentos dos estilos actuais e nas provas históricas disponíveis. Precisamos de regressar ao princípio do período colonial na Indonésia, no início do século XVI.

Os Espanhóis, Portugueses, Ingleses e Holandeses competiram para alcançar a supremacia no comércio da noz-moscada, do cravo-da-índia e de outras especiarias nas Molucas. No entanto, na tentativa de obter o monopólio do comércio lucrativo dessas especiarias, foram os Portugueses os primeiros a conseguir estabelecer uma rede de fortalezas e feitorias na região no século XVI, inicialmente nas ilhas de Ternate e Tidore, no Norte, mas também em Amboína e Céramo, no Centro, Flores e Timor, no Sueste das Molucas; Muar, na Península Malaia; Tugu, na actual Jacarta; Macáçar (hoje Ujungpandão), ao Sul das Celebes; e Timor Leste (cf. mapa, p.30). O lema dos Portuguesas era "Feitoria, Fortaleza e Igreja", i. e., Ouro, Glória, e Evangelho — o Ouro era verde, incluindo a noz-moscada, o cravo-da-índia e a canela; a Glória implicava êxito nas batalhas; e o Evangelho significava converter a população local ao catolicismo (em oposição ao islamismo, que era a religião dos reis comerciantes malaios).

Até 1511 tinham conquistado Malaca, a maior cidade do sultanato malaio, ali estabelecendo uma posição firme que também influenciou outras partes da Península Malaia e de Samatra. Em 1522 construíram a fortaleza de Ternate. Mantiveram o seu poder durante um século no decorrer do qual estabeleceram fortalezas e feitorias em muitas áreas costeiras do Arquipélago, como fizeram ao longo de outras rotas de comércio que incluíam o Sueste de África, o Leste e o Oeste da Índia e Macau.

Portugal manteve o seu Império com poucos meios,1 não só através dos lucros do comércio de especiarias, mas também em parte através do comércio de escravos. Foram capturados Bantus e outros "não crentes" (chamados cafres)2 de África, Índia, Ceilão, Malásia, Indonésia; vendidos como escravos para casas portuguesas em África, Ásia do Sul e Sueste, e em Macau. Alguns falavam um idioma baseado no português e aprenderam dos seus proprietários uma música de raiz portuguesa. Após a sua conversão ao cristianismo, foram autorizados a adquirir a nacionalidade portuguesa e assim ficaram livres.

Tocador de biola num conjunto do teatro bangsawan, Kayuagung, Sul de Samatra. Foto de Margaret Kartomi, 1988.

Desde os primórdios do Império, os Portugueses devem ter trazido para Malaca e outros centros coloniais quantidades de instrumentos musicais tais como violas, tambores de caixilho e cordofones de arco — possivelmente violinos altos, que eram chamados "viola" em português e, na língua malaia, biola.3 As biolas ainda são tocadas em muitas zonas costeiras do Arquipélago. O violino a quatro cordas, que se desenvolveu na Itália cerca de 1550 e se tornou uma parte familiar da cena musical, foi utilizado na Península Ibérica no princípio do século XVII, e provavelmente terá substituído o violino alto no Sueste Asiático a partir do século XVII. Deste modo, na sua obra de 1783, Marsden4 refere-se ao violino na costa Oeste do Norte de Samatra, e Anderson5 menciona o violino e a viola na costa Leste de Samatra em 1823. A biola, cujos vários espécimes são de fabrico caseiro e têm uma afinação grave semelhante à da viola, tem sido considerada desde longa data um "autêntico" instrumento malaio (asli).

Os instrumentos europeus foram tocados de uma maneira europeia por escravos de várias origens nas grandes casas dos Portugueses e, mais tarde, dos Holandeses. Por exemplo, em 1637, em Macau, um jantar sumptuoso foi preparado pela mão-de-obra escrava e foi acompanhado por "boa música, incluindo voz, harpa e viola".6 Em 1689, uma noiva em Batávia (agora Jacarta), que tinha 59 escravos, referiu-se, numa carta, a "uma orquestra de escravos que tocavam a harpa, violas e fagote durante as refeições".7 Boxer comenta: "As casas holandesas eram desnecessariamente grandes e mantidas para ostentação e busca de estatuto". Da mesma maneira, na África do Sul, "uma das características da vida no Cabo que deixaram uma boa impressão sobre muitos visitantes era o talento dos escravos malaios e a habilidade com que tocavam inteiramente por ouvido instrumentos tais como a flauta, o violino e o violoncelo".8

Conjunto tradicional, composto de biola, tambores, gongos, gambus (instrumento de corda beliscada), numa das actuações do teatro mamanda em Banjarmasin, Sul de Kalimanlan. Foto de H. Kartomi, 1991.

Na aldeia piscatória de Malaca, kampung Serani, os descendentes dos Portugueses ainda têm nomes portugueses e executam danças e canções com títulos portugueses e um estilo de influência portuguesa, e ainda falam um dialecto malaio-português, lá como também em Tugu, Jacarta. Estes portugueses não eram brancos mas sim na maioria pretos. Como explica Abdurachman,9 os chamados portugueses pretos eram na maioria escravos de sangue puramente africano ou asiático que se juntaram às grandes casas portuguesas, tornaram-se cristãos, e ficaram assim com o direito de adoptar a nacionalidade portuguesa. Muitas vezes tinham nomes portugueses e praticavam costumes portugueses. Abdurachman escreve que "ao fim de oitenta anos de contacto português com as ilhas do Sueste, uma população extremamente híbrida emergiu" cuja cultura combinava "formas étnicas locais e elementos de origem africana, indiana, malaia e portuguesa, como ainda é aparente no folclore, nas canções, na música e nas danças.10 Dos poderes coloniais, só os Portugueses encorajavam os seus homens a casarem-se com mulheres locais e a instalarem-se nos seus novos países, porque ao "criarem raízesnos seus países novos, também plantariam raízes para os interesses portugueses".11

INDONÉSIA

A MÚSICA DO KRONCONG

A síntese da música e dança portuguesas e locais manifesta-se no conjunto kroncong, que consiste principalmente de cordofones beliscados e de arco, actualmente muito espalhado no Sueste Asiático. Kroncong é ao mesmo tempo um conjunto e um repertório musical, caracterizado principalmente por um estilo vocal em que se canta de uma maneira sentimental, com um acompanhamento instrumental em que são utilizadas harmonias europeias. Alguns instrumentos mantêm a pulsação através de uma execução métrica, produzindo uma corrente constante de tempos regulares. Outros, tais como o cantor ou cantores a solo, avançam com um grau de independência linear e com liberdade métrica.

Uma parte do conjunto dondang sayang: violino e tambores rebana, em Malaca. Foto de H. kartomi, 1979.

Num desempenho tradicional do kroncong, tal como em Tugu (uma aldeia perto do porto de Tanjung Priok, na Jacarta de hoje, que reflecte influências portuguesas), os tempos e contratempos eram tocados nas violas do kroncong. Um tom grave, designado pelo nome onomatopaico de cuk, era tocado no tempo forte; e um tom agudo, designado por cak, era tocado no contratempo. As violas kroncong que estão hoje quase obsoletas têm um corpo de madeira ou de casca de coco e têm três tamanhos: o macina (o maior e o mais grave), o bordang (com um tom e um tamanho médios) e o prounga (o mais pequeno e agudo; pp. 27, 32, 34). Em conjunto, produzem padrões rítmicos baseados no cuk, tom mais grave (que ocorre no tempo forte), e no cak, tom mais agudo (sobre o contratempo).

Hoje, as violas kroncong foram substituídas pelos cavaquinhos, ou mesmo por bandolins eléctricos e vibrafones. Na maior parte da música kroncong, a secção rítmica consiste em cavaquinhos que tocam as partes do cuk e do cak, além de um banjo ou bandolim, viola, violoncelo, rebana e, possivelmente, ferrinhos. As violas tocam um acompa-nhamento melódico produzindo um fluxo constante de colcheias, enquanto os instrumentos cuk produzem acordes em cada tempo forte ou tempo alternado, assim adoptando a função harmónica. Os outros instrumentos básicos são o violino e a flauta; cada um toca uma linha melódica parecida com a do violino. Muitas vezes o violinista e o flautista acrescentam ornamentação à linha relativamente livre ritmicamente, incluindo tremolos, apogiaturas, glissandos e outros ornamentos, ou tocam versões elaboradas ou simplificadas da melodia vocal.

Uma canção kroncong de forte influência portuguesa intitulada Lagu Cafrinyo, cujo texto descreve uma rapariga goesa, ainda é cantada em Tugu e em outras partes. O título da canção pode ter sido derivado da dança "à cafre (negro), com muitos saltos e figuras coreográficas complexas",12 ou da dança e música capriol europeia, que era popular na Europa no período da colonização portuguesa de Malaca. Uma variante da mesma canção intitulada Kaparinyo é também o nome de uma canção popular na costa Oeste de Samatra. Em décadas recentes, esta canção ganhou grande popularidade como canção folclórica indonésia.

A instrumentação das canções kroncong mudou com os tempos. Por exemplo, a antiga canção kroncong Jauh Dimata, que pertence ao repertório do teatro stambul, era tocada em 1974 pelo seguinte conjunto: uma flauta em substituição do violino na execução da contramelodia principal à parte vocal, um bandolim eléctrico e um vibrafone tocando a parte cak, um cavaquinho e um banjo tocando a parte cuk, uma guitarra eléctrica e um violoncelo tocando um fluxo de colcheias, e um contrabaixo que fornece a linha do baixo.

Existem várias teorias sobre a origem do nome kroncong. Segundo De Haan, a palavra significa "anéis metálicos que produzem um tinido" (semelhante ao som de uma campainha).

De Haan sugere que o instrumento original do kroncong era uma pandeireta com soalhas metálicas, e que era tocado com a viola para acompanhar danças provavelmente de origem portuguesa.13 Mas os músicos que inicialmente desenvolveram o kroncong provavelmente não eram naturais de Portugal; incluíam mestizos, ou seja, portugueses-indonésios cristãos locais convertidos, e mardijkers (ou seja, escravos africanos, indianos ou malaios cristãos que obtiveram dos Portugueses a sua liberdade), que também eram conhecidos como "portugueses negros". Geralmente as pessoas e os objectos culturais eram chamados portugis, se as suas origens eram associadas com Portugal e tinham mudado sob a influência cultural malaia e indonésia (e provavelmente indiana e africana).

O Império Português não sobreviveu muito tempo. Os Holandeses assumiram ocontrolo da área por volta de 1602, e os habitantes portugis começaram a ficar assimilados à população indo-holandesa. No entanto, em 1661, a "Dutch East India Company" doou algum terreno no Nordeste de Batávia a vinte e três portugis mardijkers naturais de Bengala e Coromandel. A sua colónia foi designada por Tugu, e ainda hoje é conhecida pela sua igreja portuguesa, os nomes portugueses dos seus habitantes, e a sua música kroncong. Em 1884, dois séculos após a fundação de Tugu, cantavam-se canções no dialecto portugis local, incluindo Nina Bobo e Cafrinyo, segundo uma carta citada por Schuchardt. 14 Tugu detém um lugar importante na história do kroncong, porque é uma prova vivado património portugis-indonésio desta música. O kroncong "tem sido tocado neste kampung durante os últimos 315 anos e nas grandes cidades da Ilha durante pelo menos um século". 15

Na sua forma textual e musical e no seu contexto predominantemente urbano, o kroncong é parecido com o fado; de facto, talvez os dois géneros tenham tido algumas raízes comuns.16 O fado, que provavelmente se desenvolveu de modelos mouriscos, espanhóis e africanos, tem uma história social semelhante à do kroncong. O fado surgiu nas zonas mais pobres de Lisboa, sobretudo no meio de pessoas de ascendência mista africana e portuguesa, enquanto o kroncong se desenvolveu nas áreas mais pobres de Batávia, sobretudo no meio de euro-asiáticos. As violas são essenciais nos conjuntos do fado e do kroncong. Ambos os géneros musicais focam secções que alternam os acordes do tónico e do dominante, com o subdominante a ocorrer em certos pontos. Em ambos os géneros, a parte do cantor é relativamente livre na utilização do metro, de síncopas e ornamentação, enquanto que o acompanhamento na secção rítmica é no tempo comum estrito e num metro regular. Os textos de ambos são muitas vezes improvisados e agrupados em versos quaternários. No entanto, a parte vocal do fado é menos livre que a do kroncong, e a influência oeste-africana sobre o fado resulta num som diferente.17

Prounga

Outros géneros que combinam instrumentos europeus e uma forma derivada da harmonia europeia com instrumentos malaios, textos e ciclos musicais, são chamados langgam melayu (literalmente, canções malaias), langgamjawa (canções javanesas), e canções de dança chamadas ronggeng, joget, lagu dua e sinandung, que são especialmente populares na costa da Samatra Oriental. Um outro género é o lagu kapri (o nome deriva de cafre, kafir, que quer dizer negro, homem negro18 ou pagão19). A palavra cafre pertencia à agora extinta língua provençal chamada sabir que era falada por marinheiros à volta do Mediterrâneo, ganhando ímpeto na altura das Cruzadas.20 Outros géneros são o lagu stambul (stambul, canções de teatro), lagu bangsawan (bangsawan, canções de teatro; p. 28), lagu mendu (canções de teatro mendu de Riau e Pontianak), lagu dul muluk (a música do teatro dul muluk de Jambi e Palembang) e lagu mamanda (as canções do teatro mamanda no Sul de Kalimantan; p. 29). Além disso, há o lagu orkes gamat, música tocada num conjunto malaio de instrumentos de corda e de percussão para os casais dançarem, na Samatra Ocidental e Bengkulu (p. 36), e lagu asli pasisir melayu (música autêntica da costa malaia) que se encontra em muitas áreas costeiras de Samatra, Malásia e em outras partes. Não só na parte ocidental mas também na parte oriental da Indonésia, como em Amboína e Irião(sobretudo as áreas de Biak e Serui), as canções folclóricas com acompanhamento harmónico de origem supostamente portuguesa são cantadas com o seguimento de um conjunto que consiste em instrumentos de corda beliscada, incluindo cavaquinhos, violas e um baixo grande beliscado (p. 26), juntamente com um tambor local chamado tifa.

Dança da vela (tari lilin), Oeste de Samatra, usualmente acompanhada por música executada em violino e conjunto de tambores. Foto de Brian Carr, 1991.

Estas formas musicais sincréticas acompanham uma larga gama de danças, na maior parte executadas por grupos de casais, que respondem uns aos outros cantando os versos improvisados do pantun. Em Samatra e na Malásia estas danças incluem a tari saputangan (a dança do lenço), tari payung (a dança do guarda-chuva), tari lilin (a dança da vela; abaixo), tarijoget ou tari ronggeng (casais a dançar com saltos rápidos, lincah, e outros movimentos do pé), e tari dondang sayang (literalmente, canção/dança de amor; p. 31), lagu dua (duas canções dançadas num ritmo ternário alternando 3/4 e 6/8), e as danças sinandung, tristes.

Agora iremos examinar em pormenor um dos géneros acima mencionados: lagu kapri, executado no litoral Noroeste de Samatra. Esta música malaia de influência portuguesa acompanha os rituais executados nas cerimónias das crises de vida.

Macina

MÚSICA DE ESTILO KAPRI

O estilo musical kapri é executado por um conjunto constituído por um cantor, um violino (biola) e dois ou mais tambores de caixilho (gandang; p. 35). Normalmente acompanha danças, como a tari saputangan (a dança do lenço). Os textos, estilo musical e contextos de execução são semelhantes em muitos aspectos ao dondang sayang e outras canções harmonizadas que se encontram através do mundo de expressão malaia. No entanto, tem a sua identidade pasisir (litoral) única, baseada no facto de incorporar elementos do estilo musical local pré-muçulmano de lendas, canções de berço ou de encantamento (sikambang).

Durante o último milénio, os Malaios do litoral, que são predominantemente muçulmanos, salientaram-se pelo seu interesse pelo mar e pelo comércio marítimo. A este respeito, formam um contraste com os seus vizinhos Bataques, que têm um estilo de vida agrícola, são culturalmente mais fechados, na maioria são cristãos, falam idiomas ou dialectos diferentes e têm tradições musicais distintas, incluindo os conjuntos ceremoniais gondang que consistem em tambores, gongos e flautas de cana. Durante séculos, os Malaios do litoral, noLeste e no Oeste de Samatra, têm considerado as pessoas de montante do rio como menos civilizadas. Na verdade, a sua música do litoral (lagu pasisir) tem pouco em comum com a música do interior (lagu dalem). Ao contrário dos Bataques, os Malaios do litoral não têm rituais agrícolas, mas têm duas cerimónias significativas de crise de vida, nomeadamente as graças pelo nascimento dos bebés e pelos casamentos.

Surpreendentemente, apesar do facto dos habitantes da costa oeste terem tido apenas contactos periféricos com os Portugueses há vários séculos, não é a antiga música e dança malaia não-muçulmana que domina estas duas cerimónias significativas no litoral, tão pouco a música muçulmana tem um papel nessas cerimónias. Antes, é a música e a dança de influência portuguesa designada por kapri que se considera apropriada nos casamentos e nas graças pelo nascimento dos bebés.

Como é que um estilo de influência portuguesa veio substituir os estilos de dança e música indígenas pré-muçulmanas executadas nas cerimónias, numa área que não teve uma história de contacto prolongado com os Portugueses? Como é que estas ceremónias não permitiram virtualmente nenhum espaço para as artes muçulmanas apesar de se tratar de uma área predominantemente muçulmana? O mistério só pode ser resolvido se olharmos além do Pasisir, para os centros do poder malaio através dos cinco séculos passados, e considerarmos o Pasisir na posição de periferia do mundo malaio, com a sua história de interacção entre os centros reais dentro e à volta do estreito de Malaca.

[...] Executadas por um conjunto incluindo um cantor, um violinista, uma viola opcional e dois tambores de caixilho (gandang), as obras musicais e danças kapri são uma síntese de elementos malaios e portugueses. São executadas durante as cerimónias de crise de vida tais como os casamentos e as graças pelo nascimento dos bebés.21 É notável que tenham em geral substituído a antiga música e dança malaia nestas cerimónias.

Biola e gandang (tambores), parte do conjunto kapri em Bottot (perto de Barus). na costa oeste do Norte de Samatra. Foto de H. Kartomi. 1981.

O papel musical mais activo numa peça kapri é o do violino, que toca uma melodia continuamente. Os únicos períodos de relativo descanso são os tons longamente sustentados. O violino desempenha um papel unificador importante, fornecendo a introdução, a contramelodia à linha vocal, interlúdios melódicos entre estrofes e frases vocais e o pós-lúdio incluindo um entre vários sinais melódicos aceites para membros do conjunto para acabarem a composição. Padrões melódicos sequenciais ocorrem frequentemente em pontos cadenciais ao longo da peça.

As características europeias da música kapri são derivadas da influência portuguesa, embora as influências inglesa ou holandesa as possam ter reforçado ou modificado mais tarde. Em termos de estilo musical a música kaprié parecida com a música folclórica portuguesa. Ambas utilizam as tonalidades maior e menor, uma alternação rigorosa entre as harmonias tónica e dominante, quadras que são muitas vezes divididas em coplas, conteúdo textual nostálgico, expressividade melódica, regularidade métrica nos acompanhamentos, transmissão oral, um grau de influência moura, e a utilização do violino, das violas e dos tambores de caixilho. Portugal é bem conhecido pela variedade dos seus tambores de caixilho. Os Pasisires também são conhecidos pelos seus tambores de caixilho que são preferidos a outros tambores. A estrutura formal global da canção é determinada pela natureza cíclica do padrão do tambor, que significa que a duração do desempenho pode variar segundo os requisitos da ocasião ritual, da quantidade de repetição desejada pelo cantor, ou do capricho do músico principal. Sequências melódicas, ligaduras, ornamentos parecidos com as acciaccaturas e cordas duplas, sobretudo na quarta, quinta e oitava, são traços da parte da biola (violino).

Orkes gamat em Benkulu, Samatra. Foto de H. Kartomi, 1983.

Finalmente, a presença portuguesa na Indonésia é parcialmente responsável pela criação das bandas chamadas tanjidor que ainda tocam em Jacarta, nos seus arredores, incluindo Bogot, Krawang e Bekasi22 e na área de Kayuagung, Samatra, a sul de Palembang. O termo tanjidor é derivado da palavra portuguesa tanger, que significa "tocar instrumentos musicais". Tangedores foram inicialmente instrumentistas de corda, mas a palavra veio a associar-se com a música ao ar livre, apropriada para as procissões e também para as exibições militares.23 Na área de Kayuagung, as bandas tanjidor, incluindo trombetas, tubas, trombones e tambores tocam em muitos casamentos e outras funções, ao passo que em Jacarta se apresentavam "em especial na altura do ano novo".24

CONCLUSÃO

Os estilos musicais sincréticos malaio-portugueses desenvolveram-se originalmente como resultado do contacto dos Portugueses, brancos e pretos, com as áreas do litoral malaio da Indonésia e da Península Malaia, sobretudo durante o período do governo português de Malaca entre 1511 e 1602. O povo do litoral promoveu esta música, e em certos casos promoveu-a como a forma musical principal para as cerimónias de crise de vida, tal como na área de Barus no litoral Noroeste de Samatra. As culturas musicais da maioria do povo do litoral através do Arquipélago são marcadas por uma atitude de abertura ao mundo exterior, pelo seu interesse no comércio com o estrangeiro e no mar, bem como pela sua prontidão em aceitar influências estrangeiras. No que diz respeito a estes aspectos, os povos do litoral contrastam com os seus vizinhos do interior, que continuam geralmente a praticar os seus conjuntos tradicionais, tais como os vários conjuntos de gamelan em Java e Bali, e os conjuntos de tambores e gongos gondang e gordang das áreas de Bataque no Norte de Samatra.

Estes estilos são uma síntese criativa de elementos malaios e portugueses. Os elementos malaios incluem a ornamentação vocal e outra ornamentação melódica, os ritmos e os períodos cíclicos dos tambores e gongos, os textos poéticos dos pantun e syair, enquanto que os elementos portugueses incluem, entre outras coisas, a relação harmónica entre o violino e as partes vocais, um factor que tem uma forte influência na criação melódica.

Os instrumentos e elementos estilísticos portugueses entraram inicialmente nas áreas costeiras do Arquipélago através de regiões que tinham sofrido um intenso e prolongado contacto com os Portugueses. No entanto, na maior parte das áreas costeiras, as influências musicais espalharam-se através do contacto entre comerciantes e famílias malaias que habitavam áreas diferentes. Contactos através do comércio e casamentos entre famílias malaias reais e famílias do povo através dos séculos resultou na propagação da música malaia harmónica em muitas zonas costeiras. A síntese de elementos da música portuguesa e malaia designados por kroncong, kapri, dondang, sayang, etc., é estilisticamente única, e ao mesmo tempo é parte integrante da cultura musical variada na época pós-portuguesa no mundo extenso da costa malaia.

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NOTAS

1. BOXER, Charles Ralph, The Dutch Seaborne Empire: 1600-1800, p. XI.

2. Id., p.40.

3. GOLDSWORTHY, David J., Melayu Music ofNorth Sumatra, p. 421.

4. MARSDEN, William, The History of Sumatra, pp. 195-6.

5. ANDERSON, J., Mission to the East Coast of Sumatra in 1823, p. 292.

6. Peter Mundy, apud BOXER, Charles Ralph, op. cit., p. 307.

7. BOXER, Charles Ralph, The Portuguese Seaborne Empire: 1451-1825, p. 240.

8. Id., pp. 260-1.

9. ABDURACHMAN, Paramita R., Portuguese Presence and Christian Communities in Solor and Flores: 1556-1630, p. 4.

10. Id., p. 28.

11. Id., p. 1.

12. ABDURACHMAN, Paramita R., Portuguese Presence in Jakarta, p. 10.

13. KORNHAUSER, Bronia, Kroncong Music in Urban Java, pp. 108ss.

14. SCHUCHARDT, Hugo, Il Uber das Malaio-portugiesische von Batavia und Tugu.

15. KORNHAUSER, Bronia, op. cit., p. 176.

16. HEINS, Ernst, Kroncong and Tanjidor: Two Cases of Urban Folk Music in Jacarta, p. 24.

17. KORNHAUSER, Bronia, In Defence of Kroncong, p. 7.

18. SANTA MARIA, L., I Prestiti Portuguesi nel Maleise Indonesiano.

19. PIRES, Tomé, The 'Suma Oriental' of Tomé Pires.

20. KARTOMI, Margaret J., "Kapri: A Synthesis of Malay and Portuguese Music on the West Coast of North Sumatra", p. 371.

21. Id., ibid.

22. HEINS, Ernst, op. cit., p. 27.

23. ABDURACHMAN, Paramita R., Portuguese Presence in Jakarta.

24. Id.

*Professora Catedrática da Universidade de Monash, Austrália, onde dirige o Departamento de Música. Fruto de investigação científica que vem desenvolvendo nos últimos vinte anos. publicou cerca de oitenta artigos e livros sobre música autóctone australiana, música indonésia e teoria musical, de que se destaca On Concepts and Classifications of Musical Instruments (Universidade de Chicago, 1990). seu mais recente trabalho. Foi-lhe conferida a Ordem da Austrália por serviços prestados à música do Sueste Asiático.

desde a p. 27
até a p.