Intervenção

ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE AS INFLUÊNCIAS PORTUGUESAS NAS TRADIÇÕES MUSICAIS DO MUNDO

Salwa El-Shawan Castelo Branco*

INTRODUÇÃO

Nesta década de comemoração da passagem de 500 anos sobre os "Descobrimentos" dos Portugueses e de outros Europeus em África, na Ásia e no Novo Mundo, os etnomusicólogos têm tido o desafio de documentar e interpretar os processos e produtos musicais que resultaram desses contactos históricos.

Portugal foi pioneiro em estabelecer os primeiros encontros entre a Europa e muitas partes do mundo extra-europeu. Os explo-radores portugueses, seguidos de missionários, comerciantes, colonos e funcionários do governo colonial foram, em muitos casos, os primeiros a introduzir o cristianismo e a cultura europeia, incluindo a música. Em muitas partes do mundo formaram-se novas comunidades constituídas por portugueses, mulatos e várias outras etnias que contribuíram para a preservação de alguns elementos culturais portugueses e para o surgimento de novas sínteses culturais.

Há amplas provas da existência de vários géneros e níveis de síntese multiculturais e musicais, incluindo uma importante componente portuguesa, mesmo quando a presença portuguesa foi curta e seguida pelo domínio de outras forças coloniais ocidentais. Os Portugueses também trouxeram para Portugal e outros países europeus alguns aspectos das culturas e músicas com as quais tinham contacto. Alguns destes elementos foram integrados nas tradições locais.

Apesar da importância dos processos musicais catalizados pela presença portuguesa, bem como do interesse que tem havido no domínio da Etnomusicologia pelo estudo das sínteses interculturais na música, até muito recentemente, tem havido uma notável falta de estudos quer sobre a influência portuguesa nas tradições musicais do mundo, quer sobre as múltiplas influências extra-europeias nas tradições musicais da Península Ibérica. Um punhado de investigadores que têm trabalhado em áreas marcadas pela influência portuguesa descreveu os rituais, instrumentos, conjuntos, e géneros musicais de influência portuguesa como parte de um estudo mais lato de uma área. Exemplos incluem o trabalho de Gerhard Kubik sobre Angola, Margaret Kartomi sobre a Indonésia, Wolfgang Laade sobre o Sri Lanka, e Gerhard Behague sobre o Brasil. Além disso, vários licenciados da Universidade Nova de Lisboa estão a investigar, no âmbito da pós-graduação, tradições musicais de influência portuguesa (Susana Sardo em Goa, João Soeiro em Moçambique, Rosa-Clara Neves em São Tomé e Príncipe). No entanto, existem ainda muitas áreas onde pouco ou nenhum trabalho tem sido feito. Macau e Timor são apenas dois exemplos entre muitos. Efectivamente as questões fundamentais que surgem dos processos históricos que envolveram Portugal e muitos outros países ainda estão por estudar.

Mais uma vez, o Conselho Internacional de Música Tradicional (da UNESCO) desempenhou um papel crucial no estímulo da investigação e intercâmbio de ideias sobre um tópico importante mas pouco explorado. Em Dezembro de 1986, um colóquio internacional foi organizado pelo referido Conselho em cooperação com a Universidade Nova de Lisboa, e a Fundação Gulbenkian. Teve lugar em Lisboa onde 25 estudiosos apresentaram comunicações e compararam as suas conclusões. Um livro bilingue (inglês e português) reunindo as comunicações está a ser preparado e irá ser publicado pelo Serviço de Música da Fundação Calouste Gulbenkian.1 Esperamos também que esta sessão vá contribuir para preencher algumas das lacunas nos nossos conhecimentos e estimular mais investigações sobre este tópico.

QUESTÕES FUNDAMENTAIS

Como primeiro passo, talvez seja útil delinear algumas das questões fundamentais levantadas pelo tópico da nossa sessão. Por exemplo, qual a natureza do impacto da presença portuguesa sobre as várias tradições musicais da Ásia e de outras partes do mundo? Quais as características das tradições musicais portuguesas que foram levadas para os vários contextos? Quais as outras tradições que foram levadas através de escravos africanos e outros convertidos? Que sínteses multiculturais e musicais tiveram lugar? Como é que as culturas com as quais Portugal tem tido contactos durante os últimos quinhentos anos têm influenciado a sua própria vida musical no passado e no presente? Como é que a cultura musical portuguesa foi introduzida e integrada?

Dadas as divergências no. enqua-dramento político e social no qual a presença portuguesa tem funcionado e a variedade na duração da estadia dos Portugueses em algumas partes do mundo, quais as diferenças que podemos observar nos processos e resultados musicais da presença portuguesa em vários contextos? Claramente, não propomos abordar estas questões numa única sessão de trabalho. No entanto, parece-nos que podem fornecer um enquadramento para a nossa reflexão e discussão. De facto, qualquer tentativa para abordar uma dessas perguntas tem de começar por delinear um enquadramento metodológico, integrando fontes históricas (escritas e iconográficas) e o testemunho etnográfico contemporâneo. Para completarmos esta tarefa complexa e, na verdade, gigantesca, precisamos de muitas vidas de trabalho por muitas equipas de investigadores, com proficiência linguística múltipla, utilizando uma abordagem interdisciplinar, reunindo fontes históricas e contemporâneas, e comparando observações e conclusões de várias partes do mundo. O colóquio de Lisboa e a sessão de hoje representam passos positivos para este objectivo final.

AS INFLUÊNCIAS MUSICAIS PORTUGUESAS

Os resultados da investigação existente apontam para a existência de vários tipos e níveis de influências musicais portuguesas em várias partes do mundo. Uma boa parte da investigação existente tem tratado do produto musical reflectindo a influência directa da presença portuguesa. Uma atenção especial tem sido dada aos instrumentos musicais, conjuntos, géneros, e elementos estilísticos. O papel das instituições religiosas tais como a Igreja, as escolas paroquiais, e as irmandades religiosas, no processo da transmissão da música e cultura, também tem sido tratada brevemente. Além disso, alguns estudos focaram géneros de música portuguesa e brasileira, tais como o vilancico e a modinha que reflectem claramente múltiplas influências musicais e culturais.2

É evidente que uma discussão dos resultados dessa investigação ultrapassa os limites desta introdução. Assim, limitar-nos-emos a exemplificar algumas constatações e conclusões sobretudo no que respeita às influências musicais na Ásia.

O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES: A IGREJA E AS ESCOLAS PAROQUIAIS

A Igreja teve um papel fundamental na introdução da música ocidental em várias partes do mundo. Pouco tempo depois da chegada dos exploradores portugueses, missões católicas foram estabelecidas em muitos locais. A música ocidental foi utilizada como um auxílio na propagação da doutrina. Em muitos contextos, a música ocidental foi ensinada na igreja e nas escolas paroquiais. Por exemplo, no Japão, missionários jesuítas, que foram activos durante cem anos (1549-1649), ensinaram sistematicamente a música ocidental aos seus convertidos, quer o canto gregoriano, quer instrumentos musicais.3 Segundo David Waterhouse, "na igreja de S. Francisco Xavier estabelecida em Iamaguchi, as primeiras missas foram cantadas antes de serem ditas. Detalhes sobre a música não são disponíveis, mas presumivelmente uma forma de canto gregoriano foi usada. Além disso, coros regulares começaram a existir em finais dos anos 1550, e eram às vezes acompanhados por flautas e charamelas."4

A tradição portuguesa dos autos de Natal e da Páscoa também foi levada para outras partes do mundo onde, em certos casos, continua viva.

INFLUÊNCIAS DIRECTAS: INSTRUMENTOS E CONJUNTOS MUSICAIS

Vários instrumentos musicais inicialmente trazidos pelos Portugueses foram adoptados em vários contextos. Em particular, os alaúdes beliscados ibéricos tornaram-se instrumentos básicos em várias partes da Ásia (por exemplo, no Leste da Indonésia, em Timor, no Sri Lanka, e em Goa), em África e no Novo Mundo. Um famoso exemplo é o do cavaquinho, um instrumento básico nos conjuntos tradicionais do Minho, que foi adoptado no Havai (ukelele) e no Brasil, e também forneceu o modelo para o kroncong indonésio.5

Os modelos portugueses também influenciaram os instrumentos locais. Por exemplo, Waterhouse demonstrou que o kokyu japonês, uma rabeca de três ou quatro cordas que originou no fim do século dezasseis, foi principalmente derivado da rabeca portuguesa.6

Há também evidência que os Portugueses trouxeram com eles outros instrumentos tais como órgãos, clavicórdios, vários tipos de alaúdes, harpas, sinos europeus, etc.7

Conjuntos musicais foram formados incluindo instrumentos portugueses e locais, em certos casos inspirados da composição instrumental dos conjuntos musicais portugueses. O conjunto kroncong da Indonésia fornece um exemplo que, segundo Tilmann Seebass, tipicamente inclui uma flauta transversal, o bandolim, dois violinos, duas guitarras, um cello beliscado, ferrinhos, um tambor de caixilho, e duas pequenas guitarras de cinco cordas.8 Este conjunto segue claramente o modelo dos conjuntos musicais tradicionais do Noroeste de Portugal.

A influência portuguesa também está evidente na terminologia de instrumentos musicais. Por exemplo, o termo biola, derivado do termo português viola, é utilizado em algumas partes da Ásia para designar violas ou violinos.9

NOVAS FORMAS MULTICULTURAIS

Novas formas multiculturais, incluindo elementos ocidentais ou especificamente portugueses, surgiram em muitas partes do mundo marcadas pela influência portuguesa. Algumas foram descritas e documentadas através de publicações e gravações sonoras. Exemplos incluem a baila do Sri Lanka, o mandó de Goa,10 o kroncong da Indonésia,11 e o kapri do Norte da Sumatra.12

CONCLUSÃO

O estudo dos processos interculturais na música tem sido um tópico de interesse na etnomusicologia há muito tempo. No entanto, precisamos de desenvolver as nossas metodologias e conceitos para podermos lidar com questões complexas de investigação que surgem do exame das sínteses culturais e sociais resultantes da interacção dos Portugueses e outros povos em diferentes contextos. É nossa esperança que os estudos que se seguem venham estimular os leitores e alguns investigadores a contribuir com novos estudos.

Os três artigos que se seguem foram integrados numa sessão de trabalho que teve lugar na Casa Garden no dia 8 de Julho de 1991, no âmbito do 31° Congresso do Conselho Internacional de Música Tradicional (UNESCO), uma organização internacional que se dedica ao estudo e divulgação da música tradicional em várias partes do mundo.

A referida sessão foi dedicada ao tema "A Influência Portuguesa na Música da Ásia".

BIBLIOGRAFIA

BECKER, Judith O., Kroncong, Indonesian Popular Music, "Asian Music", 7(1) 1975, pp. 14-9.

BEHAGUE, Gerard, "Da Modinha ao Aboio: A Tradição Luso-Brasileira na Música Baiana", in CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

BEHAGUE, Gerard, "O Impacto Mundial da Música e das Instituições Musicais Portuguesas: Um Esboço Preliminar", in CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

KARTOMI, Margaret, A Influência Portuguesa na Música da Indonésia e da Malásia, "Revista de Cultura", Macau, 2 (26) Jan.-Mar. 1996, pp. 27-37.

KARTOMI, Margaret, "Kapri: A Synthesis of Malay and Portuguese Music on the West Coast of North Sumatra", in CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

KORNHAUSER, Bronia, "In Defence of Kroncong", in KARTOMI, Margaret, ed. lit., Studies in Indonesian Music, Clayton, 1978.

KORNHAUSER, Bronia, Kroncong Music in Urban Java, MA thesis, Monash University, 1976.

MORAIS, Domingos, Os Instrumentos Musicais e as Viagens dos Portugueses, Lisboa, Instituto de Investigação Científica e Tropical, 1986.

NERY, Rui Vieira, "The Portuguese 17th Century Vilancico: A Cross Cultural Phenomenon", in CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

SARDO, Susana, A Recepção da Música Europeia na Ásia: O Mandó de Goa, "Revista de Cultura", Macau, 2 (26) Jan.-Mar. 1996, pp. 51-6.

SEEBASS, Tilmann, "Presence and Absence of Portuguese Musical Elements in Indonesia", in CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

WATERHOUSE, David, "Southern Barbarian Music in Japan, 1542/3-1639", in CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, em preparação.

"Harpista". Pormenor de um biombo de 6 faces. Tinta sobre papel. 93 x 302 cm por painel. Colecção de Moritátisu Hosocava, Tóquio.

OKAMOTO, Yoshitomo. The Namban Art of Japan, New York, Tokyo, Weatherhill, Heibonsha, 1972.

NOTAS

1. CASTELO BRANCO, Salwa El-Shawan, ed. lit., O Encontro de Culturas na Música: Portugal e o Mundo.

2. BEHAGUE, Gerard, "Da Modinha ao Aboio: A Tradição Luso-Brasileira na Música Baiana"; BEHAGUE, Gerard, "O Impacto Mundial da Música e das Instituições Musicais Portuguesas: Um Esboço Preliminar"; NERY, Rui Vieira, "The Portuguese 17th Century Vilancico: A Cross Cultural Phenomenon".

3. WATERHOUSE, David, "Southern Barbarian Music inJapan, 1542/3-1639", p. 4.

4. Id., p. 7.

5. MORAIS, Domingos, Os Instrumentos Musicais e as Viagens dos Portugueses.

6. WATERHOUSE, David, op. cit., p. 9.

7. ld., p. 28.

8. SEEBASS, Tilmann, "Presence and Absence of Portuguese Musical Elements in Indonesia".

9. KARTOMI, Margaret, "Kapri: A Synthesis of Malay and Portuguese Music on the West Coast of North Sumatra".

10. SARDO, Susana, A Recepção da Música Europeia na Ásia: O Mandó de Goa, pp. 51-6.

11. BECKER, Judith O., Kroncong, Indonesian Popular Music; KARTOMI, Margaret, A Influência Portuguesa na Música da Indonésia e da Malásia, pp. 27-37; KORNHAUSER, Bronia, "In Defence of Kroncong"; KORNHAUSER, Bronia, Kroncong Music in Urban Java.

12. KARTOMI, Margaret, "Kapri: A Synthesis ofMalay and Portuguese Music...".

*Doutora em Ciências Musicais pela Universidade de Colúmbia, Nova Iorque. Professora Catedrática do Departamento de Ciências Musicais da Universidade Nova de Lisboa, onde fundou e dirige o Mestrado em Ciências Musicais, e onde também fundou e preside o Instituto de Etnomusicologia (INET) de sua Faculdade de Ciências Sociais e Humanas.

desde a p. 21
até a p.