Diplomacy

O PROBLEMA JUR~'IDICO-POL~'ITICO DA INCORPORA~'C~~AO DE CEIL~~AO NA COROA DE PORTUGAL
As Doa~'c~~oes dos Reinos de Kotte, Kandy e Jaffna (1580-1633)

António Vasconcelos de Saldanha*

"... forão logo portodas as Ruas desta Cidade, pelas quais o ditto Dom Antão hia dizendo em vos alta, Real, Real, Real pello muito poderoso Senhor el Rey Dom Phelippe Rey de Portugal e de Ceilão..."

"Estromento de como em Ceilão os naturaes daquella Ilha e caza de El Rey de Ceilão Dom João Purapandar, por seu falecim.to jurarão por Rey e Sñor Dom Phelippe"

INTRODUÇÃO

Os historiadores da Expansão oriental dos Portugueses e, particularmente, os historiadores da presença lusitana na Ilha de Ceilão, não são, decerto, estranhos à doação que D. João Periya Bandara, Rei de Kotte, fêz dos seus estados à Coroa de Portugal e ao modo com que, por esta via e para usar as palavras do clássico Pieris, os Reis de Portugal assumiram "the Lion Throne of Ceylon", sucedendo "to the damnosa hereditas of Dharmapala's rights as suzerain."1

Consagrado num instrumento de doação mortis causa que este Príncipe fêz lavrar em Colombo aos 12 dias de Agosto do ano de 1580, e referida usualmente como a "doação de Ceilão" -dado o título de Rei de Ceilão normalmente atribuído aos Reis de Kotte mercê da sua preeminência tradicional de chakravarti2 - encontramos este acto invariavelmente citado nas mais diversas obras que se ocupam da história singalesa de Quinhentos. De facto, e para só citar os clássicos, nas páginas das Décadas de Diogo do Couto, nas da Conquista temporal e espiritual de Ceylão do Padre Femão de Queiroz, nas da Fatalidade Histórica da Ilha de Ceylão, de João Ribeiro, ou nas da Conquista Espiritual do Oriente, de Frei Paulo da Trindade, o investigador depara infalivelmente com referências à "doação de Ceilão".

Se bem que a historiografia possa eventualmente desmerecer o alcance real do acto de um rei sem reino encerrado numa fortaleza portuguesa, no campo específico da conturbada política singalesa dos finais de Quinhentos, nem por isso o acto do desventurado D. João deixa de justificar a maior atenção do historiador, quanto mais não seja pela especial atenção que lhe foi atribuída no tempo. O que é compreensível. Em primeiro lugar, pelo importantíssimo papel legitimador que lhe atribuíram os Portugueses - geralmente conduzidos a nível oficial por linhas de actuação profundamente vinculadas a princípios de ética e de legalidade - e pela oportuna coincidência com uma viragem fundamental da presença lusitana em Ceilão. Em segundo lugar, por constituir uma importante aplicação prática do nível de flexibilidade das correntes doutrinárias hispânicas presas à vexata quaestio dos títulos de aquisição territorial no Ultramar. É o que iremos analisar de seguida.

A DOAÇÃO COMO TÍTULO DE AQUISIÇÃO TERRITORIAL

Sem querermos entrar na discussão complexa das motivações políticas, ideológicas ou religiosas que subjazem à Expansão portuguesa no Oriente, é importante que se note que este termo expansão pressupõe aqui um predomínio, uma influência elevada a maior ou menor grau, mas sempre relativa ao controle político e económico de uma determinada zona geográfica ou área comercial, ou, pelo menos, à tentativa desse mesmo controle ou predomínio. Ao estudioso da disciplina das Relações Internacionais é familiar o enunciado das diferentes formas de auto-engrandecimento, onde se alinham a conquista territorial, o expansionismo ideológico de carácter sócio-económico e político ou puramente religioso e cultural, e o controle exclusivo de rotas, acessos ou escápulas, para usar de um termo que os nossos antigos escritores gostavam de aplicar a esses nós ou chaves de comércio.

A Expansão lusitana não foi estranha a qualquer destas formas, entendidas como de engrandecimento da Coroa de Portugal no Oriente, partindo, contudo, de ou para uma presença que, nessa área, se fundou em situações que têm muito menos a ver com o domínio territorial do que com aquela rede de comunicações que, no entendimento de Luís Filipe Thomaz, determinou a feição visível do que co-mummente se chama o Império Português do Oriente. 3

Se no plano dos factos quisermos aprofundar a origem dos próprios factos ou das situações que levaram à sua criação, a análise jurídica do processo de relacionamento ou estabelecimento do predomínio português no Oriente revela-se-nos do maior interesse, até por - já se disse - sabermos que os mecanismos govemativos ou administrativos dos Portugueses obedeceram estruturalmente a um enquadramento ético-legalista bem definido e perfeitamente sensível ao longo de todo o processo expansivo.

É conhecido, por exemplo, o recurso aos tratados como instrumentos de "comunicação jurídica" entre comunidades políticas distintas, a quem a Coroa portuguesa, através dos seus representantes no Ultramar, reconheceu a existência como tal, a personalidade jurídica e, inclusivamente, a capacidade contratual. Facto que nada tem de extraordinário, que remonta aos primórdios da rota da Índia e que ficou claramente consagrado no regimento do cargo dos Vice-Reis e Governadores desde o primeiro, entregue em 1505 a D. Francisco de Almeida. De facto, quando os Portugueses se viram confrontados com povos ou sociedades onde a possibilidade de exercer uma influência ou um domínio, pelo recurso à supremacia teórica que lhes concediam as Bulas pontifícias, era totalmente nula, tiveram forçosamente que se adaptar à realidade. E fizeram-no estabelecendo relações de amizade, paz ou trégua, de comércio e de aliança, aceitando doações ou, por sua vez, cedendo territórios. E ainda aqui entenderam fazê-lo segundo moldes de uma legitimidade, passível não só de ser aceita como tal por povos ou estados normalmente alheios à escala de valores da Cristandade, mas também no seio da comunidade donde provinham os próprios Portu-gueses, onde os títulos pontifícios diminuíam gradualmente de valor em termos de fundamento de expansão. As convenções firmadas com os potentados do Oriente são a face dessa legitimidade laicizada, considerada assim como o fundamento pacífico do império dos Portugueses no Oriente.

Independentemente das circunstâncias concretas que presidem ao estabelecimento de relações comerciais, de paz e amizade ou a simples prevenção das hostilidades, a acção expansiva dos Portugueses é desde cedo caracterizada pelo recurso a instrumentos convencionais que, com promiscuidade de nomina iuris, foram indistintamente apodados de contratos, pactos, acordos ou tratados. Recurso que acaba por constituir uma prática secular, insensível à variabilidade dos objectivos ou à flutuação dos índices do poder lusitano no Oriente.

Depois, sob o ângulo global da organização da paz, quem negará a esses contratos ou convenções -- para lá do carácter pontual de instrumentos subscritos entre comunidades políticas determinadas - a importante função de garantes do amortecimento de um estado de latente e generalizada hostilidade? Toma-se, pois, arriscado o acto de pôr liminarmente em causa a honestidade ou a boa-fé dos tratados concluídos pelos Portugueses no Oriente, subvertendo-lhes a relevância, o alcance ou o interesse. Não que não constituam um instrumento de expansão ou de império strictu sensu, a que presidisse o que Alexis de Tocqueville definiu um dia como "le plus pur amour des formes et de la légalité". Contudo, considerar os tratados firmados pelos Portugueses no Oriente como uma obra de fachada, sustento formal de uma política predatória, é passar um atestado de menoridade política e cultural a povos ou comunidades que nem os Portugueses alguma vez consideraram como tal. Tende--se a esquecer, assim, a existência de tantos e tão variados tratados concluídos numa posição paritária, preferindo-se notar o recurso ao protectorado ou à vassalagem para acentuar a incapacidade ou a deliberada falta de vontade dos Portugueses para reconhecer como iguais os povos com quem contactaram; esquece-se, todavia, que a existência dos segundos não corresponde a qualquer incapacidade orgânica para conceber os primeiros, mas tão somente às contingentes razões da realidade política. No Oriente, só a incapacidade de resistência ao poder dos Portugueses impunha um regime de desigualdade eminentemente política, de que são bons exemplos os régulos da costa oriental da África ou das Molucas e alguns dos soberanos de Ceilão ou de Ormuz, englobados na categoria de reinos vassalos ou protegidos, sem que alguma vêz fosse posta em causa a sua personalidade jurídica ou política. De resto, paridade absoluta encontramo-la facilmente em situações onde os Portugueses, deparando com potentados dotados de um real poder como o Mogol ou os soberanos do Sião, de Pegú, do Gujarat, Calicut, Bijahpur, Ahmadabad ou Achem, se viram forçados a contemporizar, numa atitude que passava precisamente pela adopção de uma política de igualdade e de uma prática diplomática tão sofisticada quanto a europeia.

Mas se os tratados proporcionaram, assim, um diálogo entre comunidades humanas diversificadas e votadas ao destino de disjecta membra de uma teórica sociedade internacional, situações houve ao longo do processo expansivo português que passaram precisamente pela diminuição ou desaparecimento efectivo da contraparte, como entidade política e juridicamente autónoma. O caso mais extremo é o das situações decorrentes da conquista por meios violentos, mas conformes a uma previsão doutrinária que os legitima e sanciona os efeitos resultantes da sua aplicação. É o próprio caso da formação do Reino de Portugal e dos Algarves, com as suas extensões norte-africanas, territórios angariados a título de reconquista. É também o caso de Goa ou de Malaca, conquistadas manu militari, mas ao abrigo de bem definidos fundamentos doutrinários.

Noutras situações, o título aquisitivo tem um cunho essencialmente não bélico e, baseado na autoridade pontifícia ou em situações de posse, prescrição ou descobrimento, perfeitamente definidas à luz dos quadros jurídicos vigentes na christianitas, opera unilateralmente em proveito dos potentados cristãos que os invoquem.4

Casos há, todavia, que se fundam na solução peculiar dos actos voluntários dos outros sujeitos de Direito que não as Coroas europeias, i. e., actos que subentendendo aquisições derivadas da vontade de potentados indígenas, conduzem à incorporação pacífica de determinados reinos numa Coroa, considerada esta, não no rigor do seu sentido jurídico-político, mas nos termos latos de um símbolo unificador que corresponde ao conjunto de vários reinos e senhorios, diversos mas agrupados sob a forma da união pessoal, i. e., sob o mando de um mesmo soberano.5

Era, por exemplo, em conformidade com a letra da Bula Ineffabilis et Summi de 1497, o caso de todo e qualquer reino vassalo ou tributário da Coroa portuguesa. De facto, conhecem-se as circunstâncias e as motivações que justificaram a elaboração deste diploma pontifício: procurando contrabalançar os efeitos que a Bula Dudum siquidem (1493) provocou no equilíbrio luso-castelhano criado pelo Tratado de Tordesilhas - proporcionando aos Espanhóis a faculdade de recorrer à apreensão como título de aquisição de territórios descobertos ao navegar para Oriente - D. Manuel solicitou a confirmação dos efeitos já normalmente reconhecidos pelo Direito e pela Teologia às submissões voluntárias: "licitamente poder receber e reter as cidades, fortalezas, lugares, terras e senhorios" que se submetessem à sua autoridade e lhe pagassem tributo.6 Assim - escreve Garcia Gallo - "obteniendo la sumisión de los pueblos infieles y teniéndolos y gobernándolos el Rey de Portugal, como dice la bula, como sus otros reinos, tierras y señorios, el monarca português puede conseguir, en países que él no podría poblar con gentes idas desde la Península, una ocupación corporal y efectiva que de hecho invalide la concesión hecha a los Reyes de España por la bula Dudum siquidem."7 Razão por que em 1562, aquando das árduas discussões mantidas em Inglaterra sobre o "direito que tinha a Corôa às terras e regiões que os Portugueses haviam descoberto e como a mesma Corôa tinha soberania sobre as mesmas terras", os Ingleses não tiveram a menor dúvida em aceitar - reconhecendo--a como elemento corporal de posse - todo o tipo de situação derivada de um acordo ou tratado de vassalagem, ao ponto de a Rainha Isabel ter garantido proibir aos súbditos o navegar em direcção a todas as terras "em que El-Rei de Portugal era obedecido e em que lhe pagavam tributo."8

É certo que -- à excepção, talvez, das situações radicais de que é paradigma o Reino de Ormuz - os mais dos reinos vassalos da Coroa de Portugal, fosse pelo efémero da situação, fosse pela muito razoável autonomia dos seus governantes (v. g. Cochim, Ternate, alguns reinos de Ceilão, etc.) em termos do proveito directo da situação de vassalidade, pouco mais renderam aos Reis de Portugal que o prestígio, de algum modo fátuo, inerente à imagem do "fazedor de Reis" ou do "Rei de Reis". Contudo, esta situação, que implicava a preeminência da Coroa de Portugal sobre outras coroas, propiciando essa imagem antiga do rex regum, 9 conduziu a situações peculiares. Se em Lisboa, na chancelaria régia, o respeito pela ortodoxia política e protocolar da Cristandade inibiu sistematicamente que outro que não o titular do Sacro Império usasse do título de Imperador, 10 sabe-se, todavia, que no âmbito longínquo do Oriente os governantes portugueses sentiram a necessidade de uma representação poderosa, manifesta precisamente na apropriação desse tipo de titulação. Vieram recentemente a lume as célebres cartas em que o Vice-Rei D. Francisco de Almeida, logo após a tomada das primeiras vassalagens orientais, exorta o Rei D. Manuel a que assuma o título de Imperador. 11 Significativos são também alguns documentos emitidos in loco em nome do Rei de Portugal, como, por exemplo, as cartas em que Afonso de Albuquerque atribuiu ao Rei D. Manuel os títulos complementares de Rei e Senhor dos Reinos e Senhorios de Goa e de Ormuz.12 Em 1545, em Ternate, por morte do Rei D. Manuel Tabarija, Jordão de Freitas aclama o Rei D. João III de Portugal como Rei das Molucas. Também depois da formalização da renúncia que o Sultão Hayrun da mesma ilha de Ternate faz em 1561 dos seus reinos à Coroa portuguesa,13 não surpreende que um documento emitido em Goa em nome do Rei D. Sebastião, enuncie o ditado de "Rei de Portugal e dos Algarves, d'aquém e d'além mar em África, Senhor da Guiné e da conquista, navegação, comércio d'Etiópia, Arábia, Pérsia e da Índia, Rei de Maluco."14

Ainda no âmbito dos títulos de aquisição, é de considerar que outra das vias escolhidas é a da eleição a que procedessem os próprios povos, tomando em mãos a escolha dos seus soberanos. Solução que, incluída entre os seis títulos legítimos de aquisição de domínio consagrados pelo grande Francisco de Vitoria,15 era perfeitamente conhecida dos autores portugueses que também sobre o tema discorreram. De facto, nesta sede, já Ruy de Albuquerque chamou a atenção para um texto extremamente claro do jurista português Pedro Simões que, precisamente no dobrar do Século XVI para o XVII, advertia:

"se os bárbaros, tanto o príncipe como o povo, compreendendo a prudência e humanidade dos hispanos, livremente, isto é, sem medo, sem fraude e sem ignorância, elegessem, como príncipe e senhor, o rei de Espanha ou de Portugal, tal título seria legítimo de acordo com a lei natural, pois qualquer república pode constituir como seu rei a quem quiser e para ele transferir o domínio; para tal parece bastar o consentimento da maior parte, mesmo quando os outros se oponham."16

Contudo, ainda que assim consagrada na doutrina jus-intemacionalista das primeiras décadas de Quinhentos, esta solução doutrinária era já acolhida entre nós muito antes do magistério do grande Mestre de Salamanca, bastando recordar que já em 1505 o Rei D. Manuel encomendava ao futuro Vice--Rei D. Francisco de Almeida, no regimento que lhe entregou à partida para a Índia que, na eventualidade da morte do Rei de Cochim, persuadisse os povos do mesmo reino a que o elegessem por rei.17 E quando em 1545 Jordão de Freitas se defende das acusações que lhe foram feitas por ter decidido aclamar em Temate o Rei D. João III como Rei das Molucas,18 argumenta que se fundou não só no testamento do falecido Sultão Tabarija, mas também "porquanto os naturais desta terra, de seu próprio moto e livre alvedrio requereram e aceitaram, receberam e juraram Sua Alteza por seu principal rei e senhor, como as leis permitem, consentem e concedem ao povo por se fazer...''19

Sem prejuízo do que com maior pormenor se tratará adiante, recordemos também que à doação do Reino de Kotte (1580) fizeram-na acompanhar os letrados, que depois a analisaram em Lisboa ou Madrid, de um acto de eleição popular, fundado expressamente em "todo o direito e aução que o dito povo tem e pode ter de nomear e eleger rei..."20 Outra situação criada com semelhante fundamento parece ter sido a que decorreu dos esforços do aventureiro Filipe de Brito Nicote que, nos primeiros anos do Século XVII e beneficiando da instabilidade causada pelas violentas guerras de Pegú com Sião e Arrakan, logrou através da sua pessoa a eleição do Rei de Portugal para a Coroa do primeiro daqueles Reinos. Se bem que o fim trágico do aventureiro tenha malogrado as expectativas portuguesas, conhecemos o alvará de 18 de Agosto de 1613 pelo qual o Vice-Rei D. Jerónimo de Azevedo ordena a Filipe de Brito "que levante a Sua Majestade por Rei dos ditos Reinos de Pegú", remetendo para a letra de uma carta régia de 12 de Setembro de 1608:

"... E porque também me escreve o dito Filipe de Brito que os Pegús naturais daqueles reinos lhe pedem que me levante por Rei deles, vos encomendo ordeneis que assim se faça e os Pegús sejam favorecidos e se lhes prometa da minha parte que sendo eu levantado por Rei (enquanto eles f orem fiéis) se lhes guardarão todos os privilégios e liberdades que tinham com os reis naturais..."20

O elenco dos títulos de aquisição territorial entendidos como actos voluntários de sujeitos de Direito na doutrina jurídico-política portuguesa não ficaria completo se, finalmente, não aludíssemos à figura da doação de reinos.

Presente já na história de processos expansivos tão recuados como o do próprio Império Romano,21 nos termos que nos interessam o instituto destinou-se normalmente a contrariar juridicamente a situação histórica e politicamente indesejada de um reino sem rei, i. e., de um reino que -- mercê da falta de uma regra de sucessão, da previsão ou efectiva inexistência de um sucessor por ela determinado ou em conformidade com os interesses dessa Coroa - era, na verdade, um património sem titular, exposto à ambição de qualquer que, sem título justo ou definido, apreendesse uma sucessão vaga, tomando-se o seu legítimo titular.22

Não nos iremos debruçar sobre a questão de se saber sobre que direitos se funda um príncipe para dispôr do seu reino ou qual a capacidade de um outro para o mesmo aceitar e possuir. Presente a admissibilidade de um e de outra, bastará notar aqui que a concepção patrimonial dos reinos por parte dos seus soberanos é, sem dúvida, o ponto de partida para a análise de um problema ainda não suficientemente esclarecido, mas a que a análise dos actos de doação dos reinos de Ceilão dará, sem dúvida, o seu contributo.

Nas circunstâncias em estudo, e revelando a transposição quase perfeita de uma realidade do Direito privado, o recurso à doação de reino aponta a um objectivo determinado: ou o monarca doador transfere em vida os seus direitos para outro monarca, ou institui esse outro monarca como herdeiro desses mesmos direitos, designando aquele que tomará o seu lugar depois de-morto para dominar e governar, nos precisos termos em que o doador o fizera.

Na primeira das situações, o doador demite de si, de imediato, sem qualquer condição ou dilacção, os direitos que até ao momento possuiu. Caso que se nos depara na célebre doação do Reino de Temate ("renuncio de mim, deste dia para todo o sempre, todo o direito real e actual que no dito reino tenho, para S. Alteza fazer dele como de coisa sua própria que é, porque de hoje avante lhe hei por entregue o dito reino...") ou na doação dos direitos à Coroa de Jaffna:

"renuncio todo o direito, acção, domínio e possessão que por qualquer via tenho no dito Reino de Jafanapatão, em El-Rei de Portugal, meu Senhor, para que, como de coisa sua, disponha, use e goze na maneira que lhe parecer, e demito de mim aposse que tenho ou tive no dito reino e aponho no dito Senhor..."

Em termos diversos, na segunda das situações o monarca que, por virtude daquela designação, adquire um título de aquisição sobre o património do doador, perfeito pela via do mecanismo da devolução causa mortis, assume a sucessão nos mesmos termos em que em Direito privado o faz o herdeiro. Como nota Ruy de Albuquerque com pertinência para o acto que trazemos sub judice, "normalmente não se encontra expressa a aceitação do donatário e deparam-se-nos autos, em separado, de investidura, cujo tipo é simbólico."23 Assim sucede na sequência da doação dos reinos de Temate e de Kotte, casos para os quais ainda hoje estamos de posse dos actos autónomos de investidura.

OS ANTECEDENTES DA DOAÇÃO DE KOTTE O CASO DE TERNATE

Várias situações ilustram o recurso que, durante o processo expansivo dos Portugueses, se fêz à figura da doação mortis causa como título de aquisição de domínios para a Coroa de Portugal. Um caso pouco conhecido, mas significativo, é o do representante de um ramo da família dos Sultões de Bijahpur que, j á em meados do Século X VII, doa por testamento aos Reis de Portugal todos os direitos que considerava ter sobre parte dos domínios tradicionais dos Adil Shahi, como herdeiro do célebre pretendente Meale Khan, domínios esses j á incorporados no Estado da Índia por força de tratados mais antigos, mas assim reforçados como pertença indesmentida da Coroa.24 Este testamento não o pudemos localizar,25 e perdidas estão, quanto se saiba, as doações mortis causa a que procederam o Rei das Maldivas26 ou o de Kandy, em Ceilão.27 Restam-nos, todavia, ambas em Ceilão também, as dos Reis de Jaffna (1633) e de Kotte (1580), quase ignota a primeira, melhor conhecida a segunda. Será esta o alvo principal do nosso estudo.

No entanto e antes de tudo o mais, há que referir uma outra doação de reino que nos interessa particularmente; seja pela abundância de elementos que a documentam, sej a por tratar-se do antecedente mais explícito e directo da mencionada doação do reino de Kotte.

Carta de Ceilão, segundo a cartografia portuguesa de Seiscentos. (In Fernão Mendes Pinto e o Japão, Christovam Ayres; cópia por N. Ferrão).

Aludimos à doação feita pelo Sultão Tabarija, de Ternate. Baptizado na Sé de Goa em 1537 com o nome de D. Manuel, o monarca tematense, sentindo-se morrer numa escala em Malaca quando regressava às Molucas, fêz redigir em 30 de Junho de 1545 um testamento em que doou todos os seus domínios à Coroa de Portugal.28 Com base nesta doação e na sequente morte do Sultão, pôde o Capitão português de Temate, o célebre Jordão de Freitas, aclamar o Rei de Portugal como Rei das Molucas. 29 E ainda que, na sequência de sentença da relação de Goa, este Capitão fosse desautorizado30 e eleito Sultão o príncipe Hayrun, irmão do falecido D. Manuel, a Coroa não deixou de se aperceber das extensas virtualidades jurídicas do acto. Efectivamente, em finais do Século XVI, o cronista Diogo do Couto relata-nos a severa punição do Capitão Bernardim de Sousa, encarregue em Goa da entronização de Hayrun, acto julgado em Lisboa por nocivo, especialmente recordando "todos os desgostos passados entre El-Rei D. João e o Imperador Carlos V seu cunhado sobre o direito das Ilhas de Maluco, cujas diferenças cessaram pelo empenho de que na quarta Década, no Cap. I do Liv. VII fazemos menção, que tanto que os Reis Católicos tornassem os trezentos e cinquenta mil cruzados logo se tornaria a contender sobre o mesmo direito, como os povos de Espanha muitas vezes lhe requereram. O que não poderiam fazer se Bernardim de Sousa não metera de posse El-Rei Aeiro [Hayrun], tendo-a ele Jordão de Freitas tomado por El-Rei D. João de Portugal, por virtude do testa- mento de El-Rei D. Manuel, que morreu em Malaca, porque se ficavam acabando as contendas todas, porque já El-Rei de Portugal, além do direito que alegava de posse e propriedade, ficava-lhe agora muito melhor pela herança como verdadeiro herdeiro de El-Rei D. Manuel de Maluco..."31

Diz-nos o mesmo Couto que, a fim de solucionar de algum modo a situação, o Capitão Manuel de Vasconcelos foi enviado em 1561 a Temate com ordens expressas para fazer desistir ao Sultão Hayrun "do Reino de Maluco para tomar posse dele por El-Rei de Portugal, como verdadeiro Senhor e herdeiro dele, pela verba do testamento de El-Rei D. Manuel que morreu em Malaca, onde deixava a El-Rei de Portugal e a todos os seus descendentes por herdeiros daquele Reino de Maluco. E posto que já Jordão de Freitas tinha tomado posse dele por virtude da dita verba, foi necessário fazer-se de novo esta solenidade para ficar melhor direito naquela herança."32

Já no seu tempo confessava Couto não ter conhecimento dos autos ou de quaisquer outros documentos respeitantes a estas diligências, declarando reportar-se a "umas lembranças que estão em nosso poder" da autoria do célebre cronista das Molucas, Gabriel Rebelo.33 Segundo elas, o Capitão teria chamado à fortaleza o Sultão de Temate que, "sem contradição alguma", desistiu do reino nas suas mãos, declarando "que dali por diante não conheceria outro Rei por Senhor daquele Reino senão El-Rei de Portugal, como verdadeiro herdeiro dele por virtude da verba do testamento d'El-Rei D. Manuel seu irmão, em que o declarava por tal". 34

Feitos e devidamente assinados os autos, "juraram a El-rei D. Sebastião de Portugal por Rei de Maluco com as solenidades costumadas no Reino."35 Procedeu-se então ao acto sequente da entronização do rei vassalo, nomeado e subordinado ao poder eminente do Rei de Portugal (acto que, aliás, não era desconhecido na prática do estabelecimento dos reinos vassalos à Coroa de Portugal e que estava expressamente considerado no testamento do Rei D. Manuel Tabarija36) entregando o Capitão o Reino ao Sultão Hayrun, que se declarou vassalo "pelo costume do Reino de Portugal, prometendo de o tornar a entregar a quem El Rei de Portugal seu Senhor mandasse, todas as vezes que disso fosse servido."37

O REI DHARMAPALA E A DOAÇÃO DO REINO DE KOTTE AOS REIS DE PORTUGAL

A história de Maha Bandara ou Dharmapala, como é melhor conhecido antes de ser baptizado com o nome de D. João, não é estranha aos historiadores de Ceilão.38 Ainda antes de suceder ao avô, o Rei Bhuvanekabahu,39 é a ele que o Rei D. João III reconhece como herdeiro do Reino de Kotte, coroando-lhe em Lisboa a imagem dourada, em cerimónia das mais significativas na história e na simbologia própria das vassalagens orientais prestadas à Coroa de Portugal.40

Dharmapala subirá ao trono em 1550 e, criado e doutrinado no Convento de S. Francisco de Colombo,41 será baptizado com cerca de 18 anos, em 1557, com o nome de D. João; acto que, patrocinado pelo célebre Franciscano Fr. João de Vila do Conde, causou o maior regozijo na Corte de Lisboa e, inclusive, no próprio Papado.42 Porém, esta conversão e o significativo e estratégico abandono da cidade real de Kotte, em favor da mais defensável cidade e fortaleza portuguesa de Colombo,43 irão alienar ao desventurado príncipe grande parte do apoio de uma população majoritariamente budista, colocando-o numa posição irremediavelmente presa aos interesses e à fortuna dos Portugueses.

O primeiro beneficiado com esta situação foi, sem dúvida, o próprio tio paterno de D. João, o Rei de Sitawaka, Mayadunne, arvorado facilmente em campeão religioso e símbolo da resistência ao invasor.44 Mayadunne e seu filho Rajasinha irão durante mais de cinquenta anos alimentar uma guerra feroz contra Kotte - o que era dizer contra os Portugueses - avançando rapidamente sobre os limites do Reino, conquistando a capital em 1565 e reduzindo o raio de acção do seu monarca a pouco mais do que o espaço limitado das muralhas da fortaleza de Colombo. Após vários e duríssimos cercos aqui lançados, os Portugueses - mercê das alterações políticas dos reinos singaleses e da própria morte de Rajasinha - irão lograr dois sucessos consideráveis: a conquista de Sitawaka e a colocação da Princesa Kusumasana devi (filha do Rei Karaliyadde e baptisada com o nome de D. Catarina) no trono protegido de Kandy. Sucessos logo empalidecidos pela derrota na batalha de Danture (1594),após a qual o vencedor, Wimaladharma suriya, esmagadas as forças lusitanas, se apossará e casará com a Princesa, legitimando a nova dinastia de Kandy.

O Rei D. João, intitulado Periya Bandara, chegou a ser um participante activo destes confrontos; encontramo-lo, de facto, em várias operações contra Rajasinha durante o cerco de Kotte. Todavia, em 1577, durante um jantar oferecido pelo Capitão de Colombo, é envenenado, alegadamente por suborno do inimigo, mas logra escapar com grandes danos físicos. Apesar disso, ainda o vemos a participar na campanha que leva à conquista de Sitawaka e também na angustiosa retirada para Colombo em 1596, onde morrerá no ano seguinte.

Casado três vezes, entre os relativamente obscuros primeiro e terceiro casamentos interessa-nos destacar o segundo do Rei D. João com a Princesa D. Margarida. A crêr na genealogia anónima dos Reis de Ceilão publicada por Biker, a cerimónia realizou-se em 1573, sendo a noiva filha do Rei Karaliyadde de Kandy e irmã da mencionada Princesa Kusumasana devi, aliás D. Catarina, Rainha de Kandy. Em 1597/98 D. Margarida vivia ainda, julgada como "tirana e pouco fiel"; 45 todavia, valendo-se da sua qualidade de irmã do último Rei cristão de Kandy,46 os Portugueses tê-la-ão também levado - a exemplo do marido - a doar à Coroa de Portugal os eventuais direitos ao trono de Kandy. Direitos esses que os mesmos Portugueses não se esquecerão de alegar algumas décadas mais tarde como fundamento da sua presença em Ceilão.47

Poucos documentos nos ficaram da acção do desventurado D. João Periya Bandara como Rei de Kotte: é conhecida, por exemplo, a pungente carta escrita ao Papa em 26 de Janeiro de 1574, expondo a triste situação do Reino de Kotte e solicitando a intervenção do Pontífice junto do Rei de Portugal com vista à restauração militar do depauperado Reino. São conhecidos também os apontamentos que, três anos antes de morrer, faz ainda entregar ao Rei de Portugal, declarando as coisas que seus procuradores haviam de alcançar do Papa, do soberano português e dos Vice-Reis da Índia.48 Sabemos, enfim, das abundantes mercês concedidas aos Padres franciscanos a expensas dos rendimentos dos extintos templos budistas.49 Generosidade que conduziu "este bom rei a grande extremo de pobreza e necessidade"50 que justificou aos ditos Padres o abdicarem provisoriamente dessas benesses em proveito da bolsa depauperada do Rei.51 Frequentemente D. João queixar-se-á dos abusos dos Portugueses, mas também de Lisboa se recordarão os tristes comentários do Vice-Rei sobre o infeliz monarca: "bom cristão, mas demasiadamente pródigo e não tem entendimento para governar a si nem a seus vassalos, mas que tinha mandado que se lhe fizesse toda a cortesia devida ao nome de Rei cristão..."52

Contudo, o mais célebre acto devido ao mando deste Rei de Kotte é, sem dúvida, o da doação de Ceilão, celebrada em Colombo durante um dos mais violentos cercos sofridos pela fortaleza, precisamente aquele que, movido por Rajasinha, Rei de Sitawaka, se prolongou durante quase dois anos, de 1579 a 1581.

Independentemente das motivações de prudência ou precaução experimentadas pelos Portugueses durante a incerteza do desfecho do cerco e aparte os factos declarados no próprio corpo da escritura da doação, não conhecemos os antecedentes que conduziram o Rei D. João a doar o seu Reino de Kotte à Coroa de Portugal. O Jesuíta P.e Femão de Queiroz alega, por um lado, a gratidão sentida pelo Monarca para com os Portugueses, "tolerando com grande valor ver-se em muita parte despojado de seu estado e grandeza, ostentando mais figura que realidade de Rei, e posto que não deixou de padecer largas vexações de alguns capitães, nunca perdeu o amor e agradecimento do que os Portugueses obram em lhe defender a Corôa."53

Poroutro lado, o facto de que vendo "que não tinha esperança de herdeiro, pelas enfermidades que sempre padeceu depois do desastroso caso da peçonha que lhe deram, e ponderando que pelas terras debaixo, sem entrar Jafanapatão, havia já mais de 100 paróquias de Cristãos, e que havendo quietação nas terras poderia ser geral a conversão, e tanto mais se El Rey de Portugal fizesse mais conta daquela Ilha, achou que para este maior fim da Cristandade em tudo era mais conveniente deixar seu Reino a El Rey de Portugal."54

Versão que talvez valha a pena temperar com a consideração do que nos recorda outro cronista religioso, o Franciscano Fr. Paulo da Trindade, que - no caudal de louvores à amizade e fidelidade do Rei D. João para com a Ordem de S. Francisco - não deixa de notar como o monarca "nunca enquanto viveu (que foi muitos anos) se tirou um ponto da obediência dos nossos frades, seguindo por tudo e em tudo os seus conselhos. E tanto assim que, criando um menino a quem queria tanto que comia com ele no mesmo prato, que é entre eles como filhação, e tendo desejos de o fazer seu herdeiro por não ter filhos que herdassem seus reinos, puderam os nossos frades tanto com ele que fizeram com que deixasse por seu herdeiro a El Rei de Portugal."55

"Demonstração da Fortaleza de Columbo" (In António Bocarro, Livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, BPA de Évora).

A escritura de doação foi lavrada a 12 de Agosto de 15 80 na fortaleza de Colombo, no próprio "aposento do muito alto príncipe Dom João por graça de Deus Rei de Ceilão Perea Pandar", estando presentes como testemunhas, Fr. Francisco de Chaves, Guardião do Mosteiro de Santo António de Colombo, o Padre Manuel Luís, Vigário na mesma, o Capitão de Colombo Manuel de Sousa Coutinho, Estevão Figueira, que aí fora Ouvidor, o Juíz Ordinário, Pedro Jorge Franco, o morador António Lou-renço, D. Estevão modeliar, Camareiro-Mor e Regedor pelo Rei de Ceilão,56 os modeliares D. António, D. Francisco Henriques, André Baião e D. Fernando, que serviu de intérprete "sem embargo dele [Rei] saber falar e entender a língua portuguesa", bem assim como Lourenço Fernandes, Secretário do Rei e "Juíz da sua jurisdição"; lavrou a escritura António Ribeiro, Tabelião público de Colombo. D. João começava por recordar "que ele dito Senhor Rei sucedera nestes Reinos de Ceilão por falecimento del Rei Bonegabao seu Senhor e Avô, que lhos deixara por não ter filhos e lhe pertencerem como a seu neto que é e pelo ter já perfilhado em sua vida por filho e herdeiro seu com autoridade do Senhor Rei de Portugal Dom João terceiro deste nome, que santa glória haja, e ele dito Senhor Rei houvera aposse destes seus reinos e os possuíra todos sem falta alguma assim e da maneira que os possuíu o dito Bonegabao seu Avô, tendo seu assento na sua real cidade de Cota, metropolitana e cabeça do reino, que ora está despejada, e que depois por diversos casos o Madune Pandar, Rei de Suita Vaca e o Raju seu filho lhe tinham tiranica-mente e por vias ilícitas ocupado e tomado todos os ditos seus reinos havia já certos anos, sem lhe ficar deles mais que esta cidade e fortaleza de Colombo, que os Senhores Reis de Portugal por seus Vice-Reis e Capitães defendiam, pugnando sempre pelo tornar a restituir em os ditos seus reinos, o que até agora não pôde ter efeito por outras guerras e trabalhos que os ditos Vice-Reis tiveram e pelo Estado da Índia estar gastado e pobre..."

Assim, no termo de uma vida atribulada, vendo-se o desventurado príncipe "em idade e não com boa disposição em sua real pessoa e sem filhos e herdeiros que lhe de direito sucedam por seu falecimento em estes seus reinos, e vendo-se muito obrigado aos Senhores Reis de Portugal pelos muitos bens e mercês que deles sempre recebeu [...] lhe aprazia de fazer doação pura e perf eita de todos os ditos seus reinos e senhorios ao Senhor Dom Henrique, Rei que ora é dos Reinos de Portugal, e a seus sucessores, como de facto disse que pela presente lhos dava e doava e com ele os punha e trespassava com todo o direito senhorio e aução que nos ditos Reinos tem e podia ter, para que o dito Senhor Rei de Portugal D. Henrique e seus sucessores o hajam depois de seu falecimento perpetuamente os possuam e logrem assim da maneira que ele dito Senhor Rei os possuiu e houve e herdou do dito Rei Bonegabao seu Senhor e Avô cujos foram e melhor se o melhor puderem haver. E possam fazer dele como de coisa sua própria que é, por virtude desta doação, tirando-os para isso do poder dos ditos inimigos que hoje em dia os têm e possuem indevidamente, sem nenhum direito nem justiça, para o que eles poderão licitamente fazer guerra por terra e por mar até de todo estarem senhores de todos os ditos reinos por suas antigas demarcações e senhorios que têm como tiveram os Reis de Cota sobre os outros reis desta ilha que lhes é e foi sempre devida."

A escritura encerrava com um enfático pedido para que não só o Rei de Portugal, mas inclusivamente o próprio Papa - de quem o Rei D. João se confessava com toda a "humildade e reverência devida como filho obediente" - aprovassem a doação, garantindo-lhe os efeitos depois da morte. Aceita a doação pelo Capitão Manuel de Sousa Coutinho, em nome do Rei de Portugal, assinaram a escritura o próprio D. João e todas as testemunhas presentes.57

Como se sabe, o Cardeal Rei D. Henrique morrera já a 31 de Janeiro desse mesmo ano. Foi assim o recém-aclamado D. Filipe I de Portugal - o II de Espanha - quem recebeu a notícia e a escritura (extensível, como vimos, aos sucessores de D. Henrique) e a fez guardar e registar no Arquivo Real da Torre do Tombo, em Lisboa. Assim reza o registo do chamado Livro das Ilhas do mesmo Arquivo: "a qual escritura de doação foi mandada a esta Torre do Tombo por mandado d' El-Rei Nosso Senhor e se lançou na gaveta das doações e se tresladou aqui de verbo ad verbum e foi concertada pelo Doutor Jorge de Cabedo Guarda-Mor da dita Torre do Tombo e por ele assinada comigo Cristovão de Benavente, escrivão de seu cargo, em Lisboa, aos 6 de Abril de 1582."

Conservaram-se intactos, assim, até hoje, os dois registos originais da doação: o treslado vindo de Ceilão e lançado na predita "gaveta das doações" guarda-se ainda no mesmo Arquivo no corpo precisamente chamado das "Gavetas" e está publicado num dos volumes dedicados ao conteúdo das mesmas. A doação, na versão do registo de Jorge de Cabedo, foi - com base no citado Livro das Ilhas que se guarda também na Torre do Tombo - integralmente publicada em 1881 por Júdice Biker no Tomo I da sua Collecção de Tratados e Concertos de Pazes. 58

Acrescente-se que nada, neste ponto, poderia fazer supôr qualquer dúvida doutrinária no sustento do predito acto de doação. Abonava-o a experiência incontestada da doação de Temate e a certeza da crença na concepção patrimonial dos reinos entre os monarcas orientais. De facto, recordará algumas décadas depois o Padre Fernão de Queiroz, que essa doação a pudera fazer o Rei D. João Periya Bandara "com mais justiça e boa consciência do que qualquer outro Rei da Europa, porque em toda esta Ásia os Reis naturais não só são senhores pelo domínio alto e supremo, mas também pelo directo, ficando só aos vassalos o usufruto ou domínio útil."59

Todavia, a prudência que caracterizou o 1º monarca da Dinastia Filipina e a importância atribuída ao acto do Rei D. João levaram a um maior apuro das formalidades necessárias à perfeição do acto. Assim o ditava o parecer dos letrados a quem o Rei D. Filipe fez analisar o caso, e assim, mais tarde, o recordava o próprio monarca em carta de 10 de Março de 1584 ao Capitão Manuel de Sousa Coutinho:

"... e posto que a dita escritura viesse em boa forma e a mandasse lançar na Torre do Tombo uma das vias dela, todavia entendi que para esta herança ficar mais firme se devia tratar com o dito Rei de Ceilão, que por seus parentes andarem contra ele em armas os deserdasse expressamente porque conforme a direito é coisa justa e bastante para os privar da sucessão do Reino tomarem armas contra ele, e assim o entendem e determinaram os letrados a que mandei ver este caso. Pelo que escrevi sobre isso o ano de 82 ao Conde Dom Francisco e lhe encomendei que desse ordem como se fizesse logo esta diligência, e também que o povo natural de Ceilão me elegesse a mim e a meus sucessores por Rei daquele Reino, fundando-se na dita escritura e a doação de El-rei de Ceilão e que de ambas estas duas coisas fizesse fazer escrituras autênticas com as solenizações que se requerem emas enviasse..."60

Como se vê, a prudência filipina centrava-se - além dos actos essenciais de registo nos arquivos da Coroa - em complementar formalmente uma doação que, aparentemente, era clara na salvaguarda dos direitos dos Reis de Portugal. E fazia-o visando obstar a duas situações, decerto notadas pelos letrados encarregues de fiscalizar a conformidade da letra da doação com os ditames doutrinários neste campo aceites como bons. A primeira, a hipótese de contestação da doação por concorrência e reclamação de outros herdeiros eventualmente existentes. A segunda, a fragilidade de uma doação fundada na vontade exclusiva do Rei de Ceilão, i. e., com o alheamento da expressão volitiva dos povos do mesmo reino, o bem conhecido requisito do "sextus titulus" definido pela doutrina de Francisco de Vitoria no âmbito dos títulos legítimos de aquisição de domínio, doutrina que, já o dissemos, era acolhida pelos autores portugueses que também sobre o tema discorreram.

Em conformidade, compreendemos a predita directiva filipina e o facto sequente pelo qual, a 4 de Novembro de 1583, na mesma Fortaleza de Colombo, o Rei D. João tomava a reunir os Oficiais da sua Casa, um grupo de notáveis portugueses da Cidade, o seu Capitão, João Correia de Brito, e o antecessor, Manuel de Sousa Coutinho. Depois de recordar as circunstâncias que o tinham levado a fazer a doação de 1580, o monarca singalês declarava a intenção de a ratificar por ocorrência da morte do Cardeal Rei D. Henrique e sucessão de D. Filipe, "para que o herde e haja, possua e senhoreie como coisa sua que é por virtude deste público instrumento de doação e ratificação, por morte dele dito Rei, porquanto não tem herdeiros que lhe sucedam, com declaração que sendo caso que alguns parentes dele dito rei pretendam direito na sucessão deste Reino, ele, pela presente doação de ratificação os declara e nomeia por indignos da dita sucessão e direito que nela podem ter como inimigos capitais e alevantados contra sua Corôa e por tomarem armas contra ele dito Rei e o pretenderem e tentarem matar, com todas as mais declarações e cláusulas que forem necessárias que ele dito Rei aqui há propostas, e como tais perderem os bens e a sucessão e direito os que semelhantes maldades cometerem pretenderem haver e ter..."61

Perfeita, assim, a primeira das exigências formuladas pelos letrados, desenrolou-se no mesmo dia e no mesmo local uma cerimónia omitida em 1580, mas agora cumprida com vista a acorrer à segunda das mesmas exigências. Referimo-nos à eleição e à sequente homenagem e juramento do Rei D. Filipe I de Portugal como sucessor do Rei D. João Periya Bandara de Ceilão. Na presença do Capitão de Colombo, de Manuel de Sousa Coutinho, do Guardião do Convento de S. Francisco, de D. Estevão, de Luís Correia da Silva e de Lourenço Fernandes, respectivamente, Camareiro-Mor, Guarda-Mor e Secretário do monarca singalês, fêz este convocar pelo seu intérprete D. Fernando "a seus vassalos", que temos que entender como o punhado de fiéis singaleses residentes em Colombo: "... e logo em público presente todos lhes tomou a homenagem e juramentos solenes, que fizeram os Cristãos em um livro missal e os gentios em suas manilhas e pagodes, como tem de costume de darem obediência e vassalagem os ditos seus vassalos, e de obedecerem e conhecerem por Rei e Senhor ao dito Rei de Portugal e seus sucessores por morte dele dito Rei de Ceilão Dom João, como eles prometeram e disseram que sim..."

Feito este juramento, que se considerava limitado, i. e., restrito à pessoa dos presentes, nova convocatória, no mesmo dia e local, exigiu a eleição entre os presentes de "seus procuradores bastantes par apoderem aceitar e aprovar a dita nomeação em seu nome e de todo o povo." Eleitos D. Estevão,62 D. Antão e D. Afonso Mansamde, fidalgos da Casa do Rei de Ceilão, logo ali declararam que "em seu nome e de todo o povo, que eles aceitavam por seu Rei e Senhor ao Senhor Dom Filipe, Rei de Portugal, e a seus sucessores no dito Reino por falecimento do dito seu Rei Dom João, e aprovavam a doação deste reino feita pelo dito seu Rei ao dito Senhor Rei de Portugal e a seus sucessores com todas as declarações na dita doação contidas, e neles trespassavam todo o direito e aução que o dito povo tem e pode ter de nomear e eleger Rei por falecimento do dito Rei Dom João, por si haverem por seu Rei e Senhor ao dito Rei de Portugal por morte do dito seu Rei de Ceilão, e por esse o conhecerem e obedecerem no alto e no baixo, como a seu próprio rei natural, como até agora ainda reconhecem, o mesmo farão por morte do dito Senhor Rei."

Redigidos e devidamente autenticados os autos de uma e outra cerimónia, foram juntos à certidão da doação e prontamente remetidos para Lisboa. Aí foram arquivados na mesma "gaveta das doações" e, com a anterior escritura, muito mais tarde publicados.

A ACLAMAÇÃO DO REI DE PORTUGAL COMO REI DE CEILÃO

A 27 de Maio de 1597 morreu, enfim, na fortaleza de Colombo D. João Periya Bandara, Rei de Kotte. Quer os Padres Fernão de Queiroz e Paulo da Trindade,63 quer o Capitão João Ribeiro, aludem à existência de um testamento em que o monarca singalês, à hora da morte, viria uma vez mais a confirmar as doações anteriormente feitas. Segundo o último daqueles autores, sentindo o Rei que "se lhe chegava a hora, tratou de dispor suas coisas, repartindo seus bens com os que o tinham servido, fazendo seu testamento, nele declarando não ter filho que lhe sucedesse em seus Reinos; que portanto instituía por seu universal herdeiro de todos eles a El-Rei de Portugal, assim e da maneira que ele era absoluto senhor de todas as terras debaixo daquela Ilha; que somente os reinos de Candia e Uva eram de Dona Catarina e o Reino de Jafanapatão, que tinha seu Rei natural. E que pedia muito a Sua Majestade mandasse vir para Portugal um sobrinho que tinha de menor idade, o qual se ordenaria Sacerdote, e em nenhum tempo passasse à Índia por não causar na Ilha algum movimento, e também lhe pedia muito de mercê lhe consignasse neste reino uma côngrua para seu sustento. Tudo o que temos referido, foi ordenado por este Imperador, e assim se cumpriu..."64 Desconhecemos hoje o paradeiro deste testamento. Já o Padre Fernão de Queiroz na sua Conquista Temporal e Espiritual de Ceylão, completada em 1687, confessa que "fiz extremas diligências para descobrir o testamento deste Rei D. João Pareapandar em que falam todos os documentos, e é pública e constante voz na Índia que nele deixou por herdeiros de todo o direito que tinha na ilha de Ceilão aos Senhores Reis de Portugal. Mas nem na Secretaria do Estado, nem na casa dos Contos, nem na Torre do Tombo se pôde descobrir. E já Couto falou acautelado, porque dizendo deixava na Torre do Tombo o instrumento que por sua morte se fez quando D. Jerónimo de Azevedo, como Geral de Ceilão, em nome del Rei de Portugal, tomou posse daquela Ilha e foi jurado Rei dela pelos naturais, nenhuma menção faz do testamento del Rei D. João Pareapandar, nem de presente se achou na mesma Torre este auto de que Couto fala..."65

Independentemente do juízo que façamos sobre a existência deste testamento e do problema de saber até que ponto, nas palavras de Ribeiro e de Queiroz, estarão confundidas as últimas vontades do Monarca com as anteriores doações, é de referir o relato feito pelo primeiro daqueles escritores no tocante ao período imediatamente seguido à morte de D. João. Diz-nos o autor da Fatalidade Histórica da Ilha de Ceylão que a "morte do Imperador foi bem sentida, assim dos seus como dos nossos, e, com a majestade possível foi sepultado em o Convento de S. Francisco de Colombo, que já era uma formosa cidade povoada de muitas famílias nobres. Depois de sepultado e feitas as exéquias que convinham a tal pessoa, o Capitão Geral chamou o Capitão de Colombo e mais cabos, e propôs que modo se tomaria para que os povos daqueles reinos, sem os obrigarem com as armas, reconhecessem a S. Majestade por seu Rei e Senhor..."66

A crêr no sequente relato do mesmo João Ribeiro, também parcialmente secundado pelo Padre Femão de Queiroz,67 fôra esta a ocasião em que teria tido lugar a célebre Convenção de Malvana: D. Jerónimo de Azevedo, convocando para essa cidade a presença de dois deputados por cada korale, propusera à assembleia que - dada a incorporação de Kotte na Coroa de Portugal - todos os súbditos desse reino passassem a govemar-se pelas leis de Portugal. Após dois dias de deliberação os deputados teriam contraposto a preferência pelo uso das leis e costumes de Ceilão, o que Azevedo teria aceite, recolhendo, então, a homenagem e juramento da fidelidade dos povos de Kotte.68

Apesar do episódio de Malvana debitado por aqueles dois antigos escritores ter vindo a ser acolhido sem reserva na historiografia da Expansão portuguesa,69 o seu carácter lendário e imaginoso foi definitivamente demonstrado por Tikiry Abeyasinghe que, com persuasão, fêz notar os absurdos históricos e cronológicos que conduziram à confusão em que incorreram tanto Ribeiro como Queiroz.70 É questão que julgamos ocioso aqui abordar de novo. O que nos interessa, sim, notar como único elemento determinante da procura da manifestação formal da vontade dos povos de Kotte, é a existência do auto ou "Estromento de como em Ceilão os naturaes daquella Ilha e caza del Rey de Ceylão Dom João Purapandar, por seu falecimento jurarão por Rey e Senhor Dom Phelippe", documento inédito que Diogo do Couto conheceu mas que só parcialmente reproduziu nas suas Décadas, 71 e que em finais do Século XVII, segundo Queiroz, já não existia na Torre do Tombo de Goa.72

Segundo esse auto - a que nos reportamos, usando da cópia de uma certidão de António Bocarro - dois dias passados sobre a morte de D. João, aos 29 de Maio de 1597, reuniam-se no adro da Santa Casa da Misericórdia de Colombo, que servia de Sé Matriz, o Capitão Geral D. Jerónimo de Azevedo, o Capitão da Fortaleza Tomé de Sousa d'Arronches, o Padre Comissário Francisco do Oriente, o Padre Vigário Bemardino da Fonseca, o Vedor da Fazenda Jorge Frolim de Almeida, o Ouvidor João Homem da Costa e alguns notáveis da Corte do falecido Rei. De imediato foi dito ao povo pelo arache Domingos da Costa "em língua chingala" como o Rei D. João doara por morte ao Rei de Portugal o Reino de Ceilão, do que decorria a necessidade de a este jurar e aclamar. O que ali foi feito, e "pelo dito D. Jerónimo de Azevedo Capitão Geral foi entregue a Bandeira da Cidade nas mãos de Dom Antão, o qual e o dito Capitão Geral e o dito Tomé de Sousa d'Arronches Capitão desta fortaleza e as mais pessoas acima nomeadas foram logo por todas as ruas desta Cidade, pelas quais o dito Dom Antão ia dizendo em voz alta Real, Real, Real pelo muito poderoso Senhor el-Rey Dom Filipe Rei de Portugal e de Ceilão, a que o dito povo acudia todo, Real, Real, Real, e corridas assim as ditas ruas todas as solenidades e diligências acostumadas no tal auto pelo dito ouvidor João homem da Costa foi mandado a mim Manoel Correa da Costa tabelião público de notas desta Cidade e Ilha de Ceilão que pelo dito Senhor fizesse este auto em pública forma em que se assinou aqui com as mais acima nomeadas."

Este auto de aclamação foi arquivado pelo próprio Couto e registado no infelizmente desaparecido Livro dos Contratos e Pazes, a fls.143, na Torre do Tombo de Goa.73 Daí o tresladou parcialmente o mesmo Cronista para as suas Décadas. 74 Terá sido nesse mesmo registo que o viu também, e transcreveu integralmente em certidão de 1643 de que existe cópia, o sucessor de Couto, o cronista e Guarda-Mor da Torre do Tombo de Goa, António Bocarro? De facto, segundo julgamos saber, jánessa data estava desaparecido ou destruído o mencionado Livro dos Contratos e Pazes onde o registou Couto.

Independentemente de todas estas questões puramente formais, o que interessa vincar de momento é o facto de estarmos de posse de elementes suficientes para a compreensão de toda a matéria da doação de Ceilão e, inclusivemente, de uma das suas mais importantes sequelas políticas.

Referimo-nos ao significado da doação de D. João Periya B andara como suporte jurídico e político do novo reino português de Malvana, construído na sucessão do de Kotte e herdeiro das suas pretensões imperiais na Ilha de Ceilão.75 Sucessão que tem aspectos dignos de nota.

Em primeiro lugar, o facto de que se, de iure, os representantes da Coroa de Portugal em Ceilão vão herdar tal tipo de pretensões dessa coroa antiga, vão também assumir naturalmente os atributos majestáticos dos monarcas singaleses. Diz-nos o Capitão João Ribeiro na Fatalidade Histórica que, de facto, "tinhão os nossos Capitães Gerais o mesmo domínio, como o Imperador, com o títùlo de Reis de Malvana, por respeito e autoridade daquele posto entre os Chingalas, que lhes foi concedido por Sua Majestade [...] Nenhum natural lhes podia chamar senão por Alteza e a mesma lhe dava o Rei de Cândia..."76

O Padre Femão de Queiroz também escreve que os mesmos Capitães Gerais "foram dos Chingalas tratados por Altezas e como Reis,"77 e, realmente, nas primeiras décadas do Século XVII, o Capitão Geral é formalmente reconhecido pelos Reis de Kandy como R ei de Malvana78 ou El-Rei das Terras de Baixo. 79 Não surpreende, pois, que a tradição do Rajavalya a esses governantes portugueses lhes atribua precisamente o título de Reis, raja, 80 materializando e consagrando in loco uma das mais importantes ficções jurídico-políticas de que, por via da doação de Ceilão, a Coroa de Portugal foi o sustento.

Em segundo lugar, há a notar a faceta política da sucessão dos Reis de Portugal no Trono do Leão. Ciente da importância do acto de aclamação desenrolado após a morte do Rei de Kotte, também de Madrid o Rei D. Filipe escrevia em 21 de Novembro de 1598 ao Vice-Rei da Índia D. Francisco da Gama:

"... assim me dizeis que é morto Dom João Rei de Ceilão, que residia na Cidade de Colombo, e que por seu falecimento tomara Dom Jerónimo de Azevedo posse daquele Reino em meu nome, e em tudo o que nestas matérias se fez me hei por bem servido, advertindo-vos, como já o deveis saber, que o dito Rei Dom João, muitos anos antes de seu falecimento, me fez doação do dito seu Reino, que eu aceitei, e a mandei lançar na Torre do Tombo, de que também deve haver escrituras autênticas nessas partes. Pelo que, conforme a isto, procedereis em tudo o que tocar ao mesmo Reino, havendo-o por tão meu in solidum no que pertencia ao dito Rei Dom João, como são todos os outros de minha Corôa, e quando se dele tratar em quaisquer escrituras e papéis, assim ordenareis que se faça continuando-se com a posse que dele é já tomada, de que fareis fazer autos com toda a solenidade, se já náo forem feitos, que me enviareis por vias em todas as náus, e outros tais se lançarão na Torre do Tombo de Goa, e ordenareis como no lugar onde o dito Rei faleceu se façãm umas exéquias com a solenidade que puder ser."81

É manifesta a gravidade com que o Rei de Portugal e o seu governo encararam a doação de Ceilão e a efectividade dos seus efeitos depois da morte do último soberano de Kotte, merecendo, por reveladora do novo status desse reino, que se note a advertência real: "havendo-o por tão meu in solidum no que pertencia ao dito Rei D. João, como são todos os outros de minha Corôa..."82

A declaração tem a sua razão de ser; daí que se não possa menosprezar todo um processo que, na génese, mais do que político é, essencialmente, jurídico. Principalmente no âmbito da história de uma expansão cujos métodos e efeitos políticos estão profundamente vinculados às práticas e às instituições do Direito. É muito significativo que Fr. Paulo da Trindade declare na sua Conq uista Espiritual do Oriente, comentando essa mesma doação de Kotte, que "nesta herança se funda o justo e legítimo título que têm os Portugueses para conquistar esta ilha de Ceilão."83 De facto, à luz das palavras da doação de 1580, a guerra feita pelos Portugueses em Ceilão é, com um vigor renovado, um iustum bellum, uma guerra justa, uma comissão sagrada colhida da boca do último Rei de Kotte e assumida pelo seu herdeiro, o Rei de Portugal:

"... E possam fazer dele (reino de Kotte) como de coisa sua própria que é, por virtude desta doação, tirando-os para isso do poder dos ditos inimigos que hoje em dia os têm e possuem indevidamente, sem nenhum direito nem justiça, para o que eles poderão licitamente fazer guerra por terra e por mar até de todo estarem senhores de todos os ditos reinos por suas antigas demarcaçóes e senhorios que têm como tiveram os Reis de Cota sobre os outros reis desta ilha que lhes é e foi sempre devida."

Assim, o Capitão Geral D. Jerónimo de Azevedo, o grande fautor da conquista de Ceilão, ao abrir uma época nova, acaba por reafirmar e materializar uma política mais antiga, a política que, em detrimento da prática da criação de reinos vassalos, advogou abertamente a conquista e incorporação directa, facilitada pela queda do reino de Sitawaka, motivada pela revalorização da posse de Ceilão no âmbito conturbado do Oriente do dobrar do século, e precisamente justificada de direito pela consolidação da doação do malogrado D. João. Estratégia que, com estes precisos fundamentos, estava já delineada no Reino, em data pelo menos um ano anterior à da morte do príncipe singalês. Revela-o com clareza a Instrução particular e expressa sobre a conquista de Ceilão, levada de Lisboa pelo Vice--Rei Conde da Vidigueira e datada de 1 de Março de 1598, documento régio onde habilmente se entrança o interesse político com o argumento jurídico:

"É tão grande esta matéria de Ceilão pela qualidade e substância dela e pela importância das circunstâncias que tem, que me pareceu tratar-vos dela somente nesta Instrução particular. E para vo-la encarecer há muitas razões e basta aquela geral e antiga, entendida e praticada sempre dos experimentados na Índia, que chegaram a dizer que se ela em algum tempo se perdesse, que de Ceilão se podia tornar a cobrar pelo lugar em que está e abundância e fertilidade de tudo o necessário e riquezas da própria terra. Também há entre esta e outras razões de presente aquela que muito obriga do direito que a minha Corôa tem naquele Reino pela r enunciação e doação feita a ela por Dom João Rei de Ceilão com tanta solenidade que a mandei lançar na minha Torre do Tombo [...] E supostas todas estas considerações e razões de muito mais força que outras que possa haver em contrário [...] vos encomendo e mando que prossigais a dita empresa e conquista..."84

Por todas estas razões e apesar das vicissitudes e da irregularidade dos índices do seu poder em Ceilão, os Portugueses não irão esquecer o que poderemos caracterizar de virtualidades justificativas da doação do Reino de Kotte. Para não falar já do relevo dado ao acto em crónicas tardias como as de Trindade, Queiroz ou Ribeiro, basta lembrar que sessenta anos passados sobre a doação de Dharmapala, a Coroa portuguesa ainda brandia os seus direitos sobre Ceilão, fundando-se em vários actos de disposição de soberanos singaleses e nas pretensões imperiais da Coroa de Kotte.

São conhecidos os problemas que, na sequência da aplicação do tratado de tréguas e cessação de hostilidades celebrado entre o Rei D. João IV de Portugal e os Estados Gerais Holandeses em 12 de Junho de 1641, se levantaram a propósito da sua aplicação na área disputada de Ceilão.85 Problemas relativos à divisão dos limites das terras que, naquela ilha, se situavam entre as fortalezas extremas de ambas as partes, e que justificaram em Novembro de 1644 a conclusão de uma "convenção provisional sobre a nova publicação e observância das tréguas em toda a Índia, suspensão de armas e de todo o acto de hostilidade na Ilha de Ceilão", 86 seguida em Março de 1645 do "tratado provisional" relativo a mais particulares questões "ocorridas àcerca da jurisdição do território do forte de Gale", na mesma Ilha.87

Ora - recordemos a discussão que, antecedendo as preditas convenções, é travada em Goa entre o Vice-rei Conde de Aveiras e o representante holandês, o Conselheiro extraordinário Peter Boreel - um dos argumentos avançados pelos Portugueses é precisamente o dos direitos adquiridos em Ceilão mercê do título aquisitivo constituído quer pela doação de D. João Dharmapala no tocante ao Reino de Kotte, quer por acto da mesma natureza relativo ao Reino de Kandy, atribuído à mulher desse monarca, a Princesa D. Margarida.88 Na relativamente volumosa documentação diplomática que, respeitante à questão, se guarda na Biblioteca Pública de Évora, constam apensos às alegações portuguesas não só o já mencionado "auto de aclamação" de 1597,89 como também um interessante memorial datado de 1643 e subordinado ao título De como os Reys de Portugal são legítimos herdeiros dos Reinos de Ceylão, principalmente do Reino de Candea, 90 documento onde se analisam pormenorizadamente os argumentos jurídicos e genealógicos que tais teses sustentam.

NA SEQUÊNCIA DE KOTTE OS EXEMPLOS DE KANDY E DE JAFFNA

Convictos das virtualidades de um título de aquisição como era o da doação de reino, os Portugueses irão buscá-lo mais de uma vêz e aplicá-lo de novo a outras realidades da vida política de Ceilão. Recorde-se, de facto, que assim o irão fazer a título de fundamento das suas pretensões ao domínio dos dois grandes reinos remanescentes na cena singalesa da passagem de Quinhentos para Seiscentos: Kandy e Jaffna.

Em Kandy a situação nasce em meados do Século XVI nas guerras travadas entre Mayadunne e Rajasinha, Reis de Sitawaka, e Karaliyadde, Rei de Kandy.

Derrotado já nas últimas décadas do mesmo século, Karaliyadde irá morrer em Trincomalee, nada mais restando à sua família - o sobrinho e herdeiro designado do trono Yamasinha Bandara, e a filha, Kusumasana devi, a futura D. Catarina, Rainha de Kandy- senão refugiar-se entre os Portugueses.

Criado e convertido pelos padres fran-ciscanos, Yamasinha Bandara seria baptizado em Goa com o nome de D. Filipe, apadrinhando-o o próprio Vice-Rei, D. Duarte de Menezes. O mesmo Vice-Rei o fará passar a Ceilão com o objectivo, efectivamente alcançado, de o fazer subir ao trono de Kandy. Lá, segundo o relato do Padre Femão de Queiroz, "fez doação do Reino de Cândia, juntamente com o seu filho, príncipe jurado dele, à Majestade de Filipe II, enquanto Rei de Portugal, em caso que ele não tivesse mais filhos, nem seu filho D. João os tivesse; do que se fez público instrumento presente o nomeado Capitão (de Manar, João de Melo S. Payo), e o Guardião Fr. Bartolomeu de S. Sebastião, Fr. Rodrigo das Chagas e Fr. Pedro das Chagas, que todos se assinaram nele."91

O Rei D. Filipe irá, porém, morrer envenenado pouco tempo passado. Aproveitando, senão mesmo propiciando este evento, um chefe militar, Konappu Bandara, apossar-se-á do trono e da sucessão de D. Filipe com o nome de Wimaladharma suriya, forçando à fuga do Príncipe D. João, filho herdeiro do Rei D. Filipe.

Salvo pelos Portugueses, o Príncipe é levado a Manar e daí a Colombo onde, no Colégio dos Franciscanos, se reúne a D. Filipe, outro príncipe convertido, de seu nome Nikapitiye Bandara, neto e herdeiro de Rajasinha, Rei de Sitawaka.92 Depois, a pedido de D. João Dharmapala, Rei de Kotte, "e segurança das coisas daquela ilha", os dois príncipes são levados para o Convento dos Reis Magos de Goa onde, durante quinze anos, recebem uma educação cuidada. Finalmente, "e parecendo ao Conselho de Portugal que convinha tirá-los da Índia", são enviados para Lisboa93 e aí recebidos pelo Vice-Rei de Portugal D. Cristovão de Moura, com honras dignas de qualquer príncipe de sangue.94

No entanto, descontente com as rendas recebidas, D. João decide-se ir a Madrid a requerer os direitos à Coroa de Kandy que recebera do pai, D. Filipe. Confrontado com o incómodo pedido, o Rei acaba por derramar sobre o pretendente um lote de honrosas mercês: aumenta-lhe as rendas para 8.000 cruzados, fá-lo Grande de Espanha, mandando-o cobrir e, dado o ser clérigo, tomar assento no banco reservado em Corte aos Bispos.95 Aparentemente reconhecido, D. João, ainda em Madrid, "ali renunciou o direito que tinha ao Reino de Candia e mais estados, na mão de S. Majestade, enquanto Rei de Portugal."96

Desconhecemos hoje o texto e o paradeiro da escritura original desta renúncia e doação do Reino de Kandy. Mas nem por isso é lícito duvidar da sua existência ou da sua relevância. A ela alude, por exemplo, uma portaria do Secretário de Estado Diogo Soares, datada de Madrid em 6 de Julho de 1639, exibida em Lisboa em Outubro do mesmo ano aquando de uma escritura de "constituição de missas e obrigação" promovida pelo mesmo Príncipe D. João; aí se refere precisamente que "El-Rei nosso Senhor, tendo respeito a lhe representar ele Príncipe que por ordem de El-Rei Filipe seu avô que haja glória, fôra entregue aos Religiosos da dita Ordem de São Francisco da Província de Portugal e que de sua companhia e doutrina resultara para melhor poder servir a Deus nosso Senhor ordenar-se de ordens sacras, renunciando livre e voluntariamente todo o direito que tinha em seus reinos, e que vindo à dita Côrte lhe fizera Sua Majestade mercê de pensões e rendas com que se sustentasse..."97

Ora, tendo Sousa Viterbo publicado o alvará régio pelo qual é concedida parte destas mercês a D. João, não repugna acreditar que a doação de Kandy tivesse lugar em momento próximo da data do diploma régio, isto é, 11 de Fevereiro de 1626.98

Após uma vida que alguns caracterizaram de faustosa, acabou o Príncipe D. João os seus dias em 1 de Abril de 1642, sendo sepultado na Igreja do Convento que fundou em Telheiras, termo de Lisboa.99 O retrato que aí existia, deslocado do seu lugar original depois da extinção das ordens religiosas, foi incorporado com muitos outros nas colecções da hoje Biblioteca Nacional de Lisboa. Aí o viu nas primeiras décadas do nosso Século o erudito Sousa Viterbo, que o fez copiar parcialmente e reproduzir num estudo que em 1905 dedicou à biografia de D. João de Kandy,100 tal como em 1904 já publicara a fotografia da lápide e pedra de armas da sepultura do Príncipe na Igreja de Telheiras.101

Como em relação a Kotte, os Portugueses não irão esquecer nem abdicar dos direitos angariados através da doação feita à Coroa pelo Rei e Príncipe de Kandy.

Significativas são, por exemplo, as circunstâncias que envolvem em 1617 as negociações de paz que correram entre o Capitão Geral de Ceilão D. Nuno Álvares Pereira e o Rei Senarath de Kandy, com o fito de encerrar um prolongado período de hostilidades. Negociações que conduziram à vassalagem quase simbólica do monarca singalês e ao seu reconhecimento por parte dos Portugueses como soberano de Kandy.102 Todavia, escreve o cronista António Bocarro, Guarda-Mor da Torre do Tombo de Goa e contemporâneo destes eventos, que estas pazes "de muita honra", analisadas no Conselho de Estado, em Goa, foram confirmadas em coerência com os termos da doação do Príncipe D. João de Kandy, isto é, reservando para o Rei de Portugal a confirmação da atribuição do trono a Senarath ou seus sucessores, "visto pertencer a S. Majestade pela doação que dele lhe fez Dom João, o príncipe seu herdeiro natural", de maneira que "sempre ficasse para S. Majestade o (Reino de Kandy) procurar..."103

A quebra destas pazes e o reatar do conflito com o Reino de Kandy, irão provocar a renovação das pretensões portuguesas. Aquando das já mencionadas negociações de 1643 com os Holandeses, o anónimo autor do também já referido memorial histórico e genealógico dos Reis de Ceilão, entrança habilmente o significado das duas doações de Kotte e de Kandy, concluindo:

"... de maneira que assim por via do dito Príncipe de Candia Dom João, como por via da Princesa Dona Margarida casada com o Imperador Dom João Pareapandar, ou por outros justos respeitos, nascidos das rebeliões causadas dos Régulos de Candia contra a suprema Corôa Imperial de Ceilão e seus sucessores, pertence de direito o dito Reino de Candia à Coroa de Portugal, desde oitenta anos a esta parte, por doação, aceitação, sucessão, possessão e grande domínio que sempre tiveram os sereníssimos Reis de Portugal em toda a Ilha de Ceilão e seus reinos, potentados e senhorios, como verdadeiros e legítimos Reis, herdeiros do dito Imperador Dom João Pareapandar, supremo senhor da dita ilha, como claramente testificam as cédulas antigas e papéis autênticos de tempos imemoráveis, como tudo se vê nas notas dos tabeliães tiradas dos livros da era de mil e quinhentos e setenta e tres, e da era de mil quinhentos e oitenta."

Também precisamente no mesmo ano de 1643, o acolhimento dado em Goa ao fugitivo Príncipe Vijayapala, irmão primogénito de Mahastana, Rei de Kandy, filhos ambos do Rei Senarath e da Princesa Kusumasana devi - a célebre D. Catarina, irmã de D. Margarida, mulher de D. João Dharmapala, filhas ambas do Rei Karaliyadde de Kandy - irá dar, por outra via, um novo alento às aspirações ao domínio português de Ceilão.104

Efectivamente, baptisado com a maior pompa em Goa em 8 de Dezembro de 1643 sob os auspícios do Vice-Rei D. Filipe Mascarenhas, o neófito D. Teodósio, intitulado "Imperador de Ceilão, Rei de Cândia, Uva e Matale" e ostentando uma coroa e um ceptro imperiais, fará declarar solenemente ao Vice-Rei, ante os notáveis laicos e religiosos de Goa:

"O Imperador Teodósio, estando Vossa Excelência em lugar do mui alto e poderoso Rei e Senhor nosso D. João o IV, seu irmão, oferece a Vossa Excelência esta Corôa e Ceptro empenhor da palavra que dá de guardar fidelidade a S. Majestade, que Deus guarde, esperando de sua grandeza muitos favores e socorros, para com eles ter muitas vitórias contra os rebeldes inimigos da Sua Fé Católica. E todos estes bons sucessos e vencimentos que tiver serão só para glória de Deus Nosso Senhor e aumento da Cristandade, e para que desta sorte se acrescentem os Reinos e fama do mui alto e poderoso Rei e Senhor nosso D. João o IV, meu irmão."105

E aqui, como trinta anos antes também em Kandy, ou 100 anos antes em Ternate, através do ritual sequente da entronização do Rei, é marcada a preeeminência e o domínio eminente que, através das doações desses reinos, eram atributo indiscutido da Coroa de Portugal. Se o Capitão Geral nunca pôde coroar Senarath de Kandy, contentando-se em impôr-lhe, na fórmula do tratado de 1617, a vassalagem e, implicitamente, como revela Bocarro, a ideia de preeminência dos Reis de Portugal sobre os de Kandy, mercê das doações dos seus monarcas,106 no caso do bem mais dependente Vijayapala a vassalagem é consagrada religiosamente com as águas do baptismo e com a bem mais elaborada cerimónia da coroação na Sé de Goa onde, em final "tomou o Vice-Rei em sua mão a Corôa e a pôs na cabeça do Imperador..."107

A doação de Jaffna - o Reino de Jafanapatão, como lhe chamaram os Portugueses - é, talvez, o menos conhecido dos actos da natureza daqueles que vimos a analisar. As circunstâncias históricas que a envolvem remontam à morte do Rei de Jaffna, Ethirimane Sinham, em finais de 1615.108

Este monarca, depois da apocalíptica conquista de Jaffna pelas armas de André Furtado de Mendonça em 1591 e da execução do seu último rei independente, pertencia à já referida categoria dos reis vassalos, escolhido pelo arbítrio dos representantes da Coroa de Portugal entre os membros da família real e entronizado a bem da estabilidade do domínio indirecto dos Portugueses.109

Por expressa determinação do falecido rei e na menoridade do príncipe herdeiro, foi encarregue da regência o príncipe Arsakesani, irmão do próprio Ethirimane; contudo, o levantamento de Sankili, um outro membro da casa real, levará ao assassínio do regente e à ascensão de Sankili ao trono de Jaffna. Ciente do sucedido, o Capitão Geral de Ceilão, Constantino de Sá e Noronha "quiz acudir com o remédio necessário por lhe pertencer a ele dá-lo, por ser aquele reino da sua conquista", 110 empresa coroada de sucesso pela acção do Capitão-Mor Filipe de Oliveira que, em 1619, derrotou e capturou o usurpador, depois executado em Goa.

Ponderando a importância estratégica do Reino de Jaffna, os Portugueses decidirão não renovar a sucessão singalesa no trono preferindo, a exemplo de Kotte, incorporar o reino na Coroa de Portugal. Relata-nos Fr. Paulo da Trindade que o vitorioso Filipe de Oliveira, ocupada a capital de Nallur, "vendo-se obedecido de todos geralmente, fez ajuntar os modeliares que são os governadores e todos os grandes, e fez que jurassem por rei daquele reino a Sua Majestade, o que eles logo fizeram com muita solenidade. E ele da mesma maneira jurou em nome de Sua Majestade de os conservar em paz, fazer justiça e guardar os seus foros e privilégios."111

O príncipe herdeiro de Jaffna, a Rainha viúva e os poucos membros da família real sobreviventes do massacre de Sankili, recolhidos em Colombo serão aí baptizados em Junho de 1623;112 o príncipe, apadrinhado pelo Capitão Geral, receberá o nome de D. Constantino. Chamado mais tarde a Goa por ordem do Vice-Rei Conde da Vidigueira, recolher--se-á no Colégio dos Reis Magos"aprendendo a ler, escrever, cantar e latim,"113 até professar solenemente na Ordem de S. Francisco em 1633. Sob o nome de Fr. Constantino de Cristo, terá uma carreira de algum destaque na predita Ordem, ocupando os cargos de Guardião e Definidor do Convento dos Franciscanos de Goa e de Reitor do Colégio Real dos Reis Magos.114 Escreve Fr. Paulo da Trindade que foi precisamente nas vésperas da profissão que "querendo antes disto fazer testamento e dispor suas coisas, ajudado do conselho dos nossos religiosos que sempre em tudo foram sua guia, deixou escrito que como príncipe e herdeiro do Reino de Jafanapatão todo o direito que tinha nele o deixava à Coroa de Portugal."115

Quanto saibamos, mercê do cuidado de Fr. Paulo da Trindade, a Conquista Espiritual do Oriente é o único sítio onde, desconhecida dos historiadores de Ceilão, se conservou a escritura original da doação do Reino de Jaffna. Escritura construída em termos relativamente simples, e que, apesar de remeter expressamente para os casos de Kotte e de Kandy, não é propriamente uma doação mortis causa, dado transferir de imediato para o Rei de Portugal todos os direitos ao trono de Jaffna possuídos pelo Príncipe D. Constatino:

"Conforme o que de direito me cabe à sucessão dele, e porque foi Deus servido trazer-me não só ao conhecimento da sua Santa Fé Católica mas também fazer-me religioso nesta sagrada religião onde recebi o Santo Baptismo e a boa criação que me deram os seus religiosos, seguindo seus conselhos e conformando-me com o que D. João Pareapandar, Imperador da Ilha de Ceilão e D. Filipe, Rei de Cândia, que por morrerem sem herdeiros de direito, deixaram por suas mortes a El--Rei Nosso Senhor seu império e reino, renuncio todo o direito, acção, domínio e possessão que por qualquer via tenho no dito Reino de Jafanapatão, em El-Rei de Portugal, meu Senhor, para que, como de coisa sua, disponha, use e goze na maneira que lhe parecer, e demito de mim a posse que tenho ou tive no dito reino e aponho no dito Senhor..."

No termo desta breve análise, julgamos poder afirmar que a historiografia da presença portuguesa em Ceilão tem descurado um aspecto revelador de uma política global que a Coroa aí prosseguiu aturada e coerentemente. De facto, no dobrar do Século XVI para o XVII, os Portugueses lograram atrair a si, converter e integrar no seu círculo os quatro herdeiros legítimos dos quatro reinos de Ceilão: D. João Dharmapala, herdeiro do trono de Kotte, D. João, herdeiro do trono de Kandy, D. Filipe Nikapitiye B andara, herdeiro do trono de Sitawaka, e D. Constantino, herdeiro do trono de Jaffna. À excepção do Príncipe de Sitawaka - reino naturalmente absorvido por Kandy - todos os outros acabaram por transferir para os Reis de Portugal os seus direitos aos tronos respectivos. Independentemente de considerações que nos levem a ter em conta as justificações sociais, políticas, religiosas, nacionalistas em suma, de todos aqueles que, classificados pelos Portugueses de usurpadores ou revoltosos, foram levados a subverter a ordem dinástica tradicional dos reinos singaleses, numa perspectiva legitimista, construída unilateralmente sobre os quadros jurídicos e políticos dos Portugueses, a Coroa lusitana podia teoricamente incorporar em si os três velhos reinos de Ceilão.

A final derrota e queda de Colombo frente às armas holandesas em 1656, escassos 13 anos passados sobre a vassalagem de Vijayapala e outros 23 sobre a doação da Coroa de Jaffna, selarão o destino dos Portugueses em Ceilão, impedindo-os de fazer revivescer nesse reino ou nos de Kotte ou Kandy as pretensões inauguradas com a doação de D. João Dharmapala. Das três estudadas - não esquecendo a mais longínqua experiência do Reino de Temate -esta é, sem dúvida, a situação mais emblemática e um dos mais curiosos exemplos da aplicação dos institutos jurídicos, aceites na christianitas, à realidade multiforme do Oriente da época da Expansão. Oriente a quem esses institutos, através das suas virtualidades explicativas e funcionais, lograram fazer ligar, com o elo peculiar das tradições jurídico-políticas, um Ocidente aparentemente votado a um distanciamento irremissível.

"Demonstração da Fortaleza de Gvale" (António Bocarro, idem).

NOTAS

1 P. E. PIERIS, Portugal and Ceylon: 1505-1568. Lectures delivered at King's College, London in March 1937, Cambridge, W. Heffer & Sons Ld., s. i. d..

2 "At the beginning of the sixteenth century Sri Lanka was divided into a number of kingdoms and principalities of wich the most important was the kingdom wich had Jayawar dhanapura Kotte as its capital and was centred on the southern and south-weestern plains of the island. The most powerful of the rulers of Kotte, Parakramabahu VI (1412-1467) had united the whole island under his rule for a brief period of about two decades but when internal strife weakened central control after the death of this ruler, the effective power of the kings of Kotte extended only from the Malvatu Oya in the North to a little beyond the Walawe Ganga in the South and from the sea coast in the West to the foothills of the Central highlands in the East. In the North a virtually independant kingdom of Jaffna had emerged with its capital at Nallur while in the central regions of Sri Lanka, the Udarata was governed by an autonomous ruler", C. R. DE SILVA, "The Rise and Fall of the Kingdom of Sitawaka (1521-1593)", in The Ceylon Journal of Historical and Social Studies, January-June 1977, nº 1, p. 1. De notar ainda que numa célebre memória de Fr. Agostinho de Azevedo - Estado da Índia e aonde tem o seu princípio (1603) - existente na British Library e publicada em Documentação Ultramarina Portuguesa, I, Lisboa, 1960, pp. 197ss, se trata especificamente "Da real geração da Casta do Sol que os chingalas de Ceilão tem por divina de que procedem os reis de Ceilão segundo suasfabulas", dizendo-se que "destes vinha direitamente Vigia Raja que foi como ja disse degredado povoar aquela ilha de Ceilão, em cujos herdeiros o imperio dela andou direitamente e anda ate hoje porque el Rei Dom João que está entre nós e é o verdadeiro herdeiro de toda a Ilha procede desta casa e só nesta Ilha de Ceilão se conservou por linha direita de herdeiro em herdeiro...", p. 242. Vide sobre este mss. GEORG SCHURHAMMER, Francis Xavier. His Life, His Times, II, translated by M. Joseph Costelloe, Rome, The Jesuit Historical Institute, 1977, pp. 614ss.

3 LUÍS FILIPE FERREIRA REIS THOMAZ, Estrutura política e administrativa do Estado da Índia no Século XVI, separata de II Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa - Actas, Estudos de História e Cartografia Antiga - Memórias, nº 25, Instituto de Investigação Científica Tropical, Lisboa, 1985, pp. 515-517.

4 A obra mais completa sobre os títulos de aquisição territorial na Expansão portuguesa continua a ser o infelizmente pouco divulgado estudo de RUY DE ALBUQUERQUE, Os Títulos de Aquisição Territorial na Expansão Portuguesa (Sec. XV e XVI), Edição policopiada, Lisboa, 1960. Segundo informação do seu Autor, nova edição revista desta obra está em vias de publicação.

5 Vide RUY DE ALBUQUERQUE, op. cit., pp. 348-350.

6 Sobre esta Bula vide RUY DE ALBUQUERQUE, Os Títulos de Aquisição Territorial..., pp. 57-58; CHARLES-MARTIAL DE WITTE, "Les Bulles Pontificales et l'Expansion Portugaise au XVe siècle", in Révue d'Histoire Ecclesiastique, 1953, T. LIII, pp. 451-453; e ALFONSO GARCIA GALLO, "Las Bulas de Alejandro VI y el ordenamiento juridico de la expansión portuguesa y castelhana en Africa y India," in Los Origenes Españoles de las Instituciones Americanas. Estudios de Derecho Indiano. Conmemoraciones del V centenario del descobrimiento de America. Madrid, Real Academia de Jurisprudencia y Legislación, 1987, pp. 313-666, pp. 442-443. O texto da Bula Ineffabilis está transcrito em latim e traduzido em espanhol a pp. 651-654.

7 GALLO, op. cit., p. 443.

8 VISCONDE DE SANTARÉM, Quadro Elementar das Relações Políticas e Diplomáticas de Portugal com as diversas Potências do Mundo, desde o princípio da Monarquia Portuguesa até aos nossos dias, Paris, XV, pp. CIV-CV, XCIX, 199, e tb. RUY DE ALBUQUERQUE, op. cit., p. 342.

9 Vide ANTÓNIO VASCONCELOS DE SALDANHA, Rex regum. Antecedentes medievais e sequelas quinhentistas da imagem de D. Manuel o Venturoso como Imperador de um novo mundo, comunicação apresentada ao Colóquio Internacional As relações de poder no pensamento político da Baixa Idade Média, Lisboa, Junho de 1991 (no prelo).

10 Sobre esta questão vide ANTÓNIO VASCONCELOS DE SALDANHA, "Conceitos de Espaço e Poder e seus reflexos na titulação régia portuguesa da época da Expansão", in La Decouverte, le Portugal et l'Europe, Actes du Colloque, Paris, 26-28 Mai 1988, Paris, Fondation Calouste Gulbenkian, Centre Culturel Portugais, 1990, pp. 105-129.

11 Vide os documentos em ANTÓNIO DIAS FARINHA, "A dupla conquista de Ormuz por Afonso de Albuquerque", in Studia, Lisboa, nº 48, 1989, pp. 445-472, e um comentário em A. VASCONCELOS DE SALDANHA, Rex Regum...

12 RAYMUNDO ANTÓNIO DE BULHÃO PATO, Cartas de Affonso de Albuquerque seguidas de documentos que as elucidam. Publicadas na Ordem da Classe de Sciencias Moraes, Políticas e Bellas-Lettras da Academia Real das Sciencias de Lisboa e sob a Direcção de..., tomo I, Lisboa, Academia. Real das Sciencias, 1884, p. 387. Vide também ANTÓNIO VASCONCELOS DE SALDANHA, "Conceitos de Espaço...", p. 116.

13 Vide a nota 34.

14 In "Estatutos da Confraria da Conversão à Fé", in Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Índia, III, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1950, pp. 3-12.

15 FRANCISCO DE VITORIA, Relectio de Indis o Libertad de los Indios, edicion critica bilingue por L. Pereña y J. M. Perez Prendes, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas, 1967, p. 94.

16 In RUY DE ALBUQUERQUE, Os Títulos..., p. 351.

17 Vide o "Regimento de D. Francisco de Almeida quando foi por capitão-mor à Índia" (5 de Março de 1505) in RAYMUNDO ANTÓNIO DE BULHÃO PATO, Cartas de Affonso de Albuquerque, II, pp. 272ss.

18 "... pois se fez sem mandado d'el-Rei Nosso Senhor, nem com sua provisão, porque não é de crêr que coisa de tanto peso se havia de bulir, senão com'especial mandado...". Vide o "Treslado dos embarguos com que veo Jurdam de Freitas aa semtemça que contra ele ouve Aeiro, Rei de Maluquo, apresentados a Bernalldim de Sousa, capitão da Fortaleza de Maluquo", Biblioteca Nacional de Lisboa, cx.61 nº 17, publicado por Artur Basílio de Sá, in Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Insulíndia, II, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1955, p. 36.

19 Idem, p. 33.

20 In Archivo Português Oriental. Documentos do Século XVII, 1%%%%%a Parte, nº 253, pp. 975-976. Para uma aproximação recente à biografia e bibliografia dedicada a Filipe de Brito, vide SANJAY SUBRAHMANYAN "The tail wags the dog or some aspects of the Estado da India, 1570-1600" in Moyen Orient & Océan Indien, V, (1988), pp. 131-160.

21 Vide MAXIME LEMOSSE, "À propos des Royaumes légués au peuple romain" in Synteleia Arangio-Ruiz (1964), pp. 280-285.

22 LEMOSSE, op. cit., p. 283.

23 RUY DE ALBUQUERQUE, op. cit., p. 349.

24 Vide BIKER, Colecção..., I, tratado de 26 de Fevereiro de 1546 com o Adil Khan (pp. 116ss.), tratado de 19 de Setembro de 1547 com o Rei Vijayanagar (pp. 118ss), tratado de 24 de Abril de 1555 com o Meale (pp. 130ss.). Vide tb. FILIPE NERY XAVIER, Bosquejo Historico das Communidades das Aldêas dos Concelhos das Ilhas, Salcete, e Bardez, Parte II, Notas à I Parte, Nova-Goa, Imprensa Nacional, 1852, pp. 1-3.

25 "É facto também verificado que o Neto do mesmo Meale tendo ido a Portugal lá se casara e ao tempo do seu falecimento legara a El-Rei de Portugal as Terras de Salsete e Bardez, sob varias condições, sendo delas a mais vital, que as possuiria sem alteração alguma para mais nos foros a que eram obrigados. O Testamento que contem esse legado, segundo afirma o Desembargador Veríssimo António da Silveira, que serviu neste Estado os Cargos de Procurador da Coroa e Fazenda e de Chanceler da Relação, anda impresso num tomo de Pegas. (vid. Lº 4º do R. d. P. a fol. 71 v.).", NERY XAVIER, op. cit. p. 3.

26 "Sobre o título de conquista, além dos Reinos e terras que notoriamente possuimos, por contrato é El-Rei de Portugal Senhor do Reino de Tigrê na Etiópia Alta ou Abássia; por herança é Rei das Ilhas de Mamale e pelo mesmo título da Ilha de Ceilão; por doação entre vivos do Reino de Pegu, e por testamento e herança das Ilhas Maldivas e dos Reinos de Maluco, alem dos outros títulos e direito apontado", in FERNÃO DE QUEIROZ, Conquista Temporal, e Espiritual de Ceylão, ordenada pelo....., Da Companhia de Jesus, da Provincia de Goa. Com muytas outras proueytozas noticias pertencentes à disposição, e gouerno do Estado da India. Em Lisboa no ano..., ed. Colombo, 1916, p. 946. Vide tb. p. 431.

27 Este caso será estudado no decorrer do presente estudo.

28 O testamento de Tabarija, reproduzido numa cópia coeva, existe na Biblioteca Nacional de Lisboa, Cx. 61, nº 17, e foi publicado por Artur Basílio de Sá, in Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Insulíndia, II, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1955, pp. 19-25. É o Apêndice IX deste estudo. Vide tb. DIOGO DO COUTO, Da Ásia de... Dos Feitos que os Portuguezes fizeram na Conquista, e Descubrimento das Terras, e Mares do Oriente, Lisboa, Regia Oficina Tipográfica, 1788, Década V, Cap. X. As mais completas referências biográficas e documentais respeitantes a D. Manuel Tabarija podem ser vistas em GEORG SCHURHAMMER, Francis Xavier. His Life, His Times, translated by M. Joseph Costelloe, Rome, The Jesuit Historical Institute, 197.., II, pp. 249-256, e III, pp. 38-42.

29 Na Historia das Ilhas de Maluco escripta no anno de 1561, devida à pena de Gabriel Rebelo e publicada também por Basílio de Sá no III vol. da dita Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Insulíndia, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1956, pp. 192ss, descreve-se a cerimónia:

"Sendo certo Jordão de Freitas da morte de D. Manuel por Fernão de Sousa e por seu filho António de Freitas, que lhe levara o treslado do testamento por que deixava por herdeiro a el-Rei nosso Senhor do seu reino, ordenou tomar posse dele; a qual ele mesmo tomou com bandeira de tafetá branco e verde e cruz de Cristo, com pregão dizendo: Real, Real por el-Rei D. João de Portugal! E disso tirou seu instrumento, e os naturaes consentiram, nem que cuidaram que era alguma doidice ou jogo nosso, porque não são costumados aquelas invenções".

Sobre este passo escreveu Ruy de Albuquerque que "demonstra como nem sempre esses actos de que os portugueses pretendiam tirar efeitos jurídicos apresentavam qualquer significado aos olhos daqueles a quem se pretendia opô-los [...] Era a consequência da presença de dois ordenamentos jurídicos, hipótese que sempre ofereceu particular dificuldade aos nossos juristas". In ALBUQUERQUE, Op. loc. cit.

30 "... pois se fez sem mandado d'el-Rei Nosso Senhor, nem com sua provisão, porque não é de crêr que coisa de tanto peso se havia de bulir, senão com especial mandado...". Vide o "Treslado dos embarguos com que veo Jurdam de Freitas aa semtemça que contra ele ouve Aeiro, Rei de Maluquo, apresentados a Bemalldim de Sousa, capitão da Fortaleza de Maluquo", Biblioteca Nacional de Lisboa, cx.61 nº 17, publicado por Artur Basílio de Sá, in Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Insulíndia, II, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1955, p. 36.

31 COUTO, op. cit., Dec. VI, Liv. X, Cap. XIV, pp. 498-499.

32 COUTO, op. cit., Dec. VII, Liv. IX, Cap. XV, pp. 417-419.

33 COUTO, op. loc. cit., p. 419.

34 COUTO, op. loc. cit., pp. 418-419.

35 Idem, ibidem.

36 "Peço por mercê a S. Alteza que, havendo nele depôr rei ou governador de sua mão, que oponha tal que tenha propósito de fazer cristãos todos aqueles povos de Ternate..."

37 COUTO, op. cit., Dec. VII, Liv. IX, Cap. XV, pp. 418-419. É de notar que a bem da consolidação dos direitos dos Portugueses, o Sultão Hayrun e seu filho o futuro Sultão Babu serão levados a renovar em 1564 a doação do domínio eminente do Reino de Ternate à Corôa de Portugal. Vide BIKER, Collecção..., I, pp. 157-160.

38 Para a biografia de D. João Periya Bandara e todas as circunstâncias históricas da sua época utilizámos um determinado número de obras que, entre clássicos e estudos recentes, reputamos de essenciais. A saber: FR. PAULO DA TRINDADE, Conquista Espiritual do Oriente. Em que se dá relação de algumas cousas mais notáveis que fizeram os Frades Menores da Santa Província de S. Tomé da Índia Oriental em a pregação da fé e conversão dos infiéis, em mais de trinta reinos, do Cabo da Boa Esperança até às remotíssimas Ilhas do Japão. Repartida em três volumes. Composta pelo Pe..., filho da mesma Província, leitor jubilado de Prima e Comissário Geral dela, Deputado do Santo Ofício. Introdução e notas de F. Félix, O. F. M., 3 vols., Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1962 - 1967. P.e FERNÃO DE QUEIROZ, Conquista Temporal, e Espiritual de Ceylão, ordenada pelo...... Da Companhia de Jesus, da Provincia de Goa. Com muytas outras proueytozas noticias pertencentes à disposição, e gouerno do Estado da India. Em Lisboa no ano..., ed. Colombo, 1916. JOÃO RIBEIRO, Fatalidade Historica da Ilha de Ceilão in Collecção de Noticias para a Historia e Geografia das Nações Ultramarinas que vivem nos domínios portugueses ou lhes são visinhas: publicada pela Academia Real das Sciencias, tomo V, Lisboa, Tipografia da Academia, 1836. P. E. PIERIS, Ceylon: The Portuguese Era. Being a History of the Island for the Period 1505-1658, Colombo, 1913. GEORG SCHURHAMMER e E. A. VORETZSCH, Ceylon zur Zeit des Konigs Bhuvaneka Bahu und Franz Xavers 1539-1552. Quellen zur Geschichte der Portugiesen, sowie der Franziskanner Jesuitmission auf Ceylon, Leipzig, Verlag der Asia Major, 1928. GEORG SCHURHAMMER, Francis Xavier. His Life, His Times, translated by M. Joseph Costelloe, Rome, The Jesuit Historical Institute, 1977. TIKIRI ABEYASINGHE, Portuguese Rule in Ceylon 1594-1612, Colombo, Lake House, 1966 C. R. DE SILVA, "The Rise and Fall of the Kingdom of Sitawaka (1521-1593)", in The Ceylon Journal of Historical and Social Studies, January-June 1977, nº 1, pp. 1-43, e "The Politics of Survival: Aspects of Kandyan External Relations in the Mid-Sixteenth Century", in Journal of the Sri Lanka Branch of the Royal Asiatic Society, New Series, Vol. XVII, 1973, pp. 11-21. GEORGE DAVIDSON WINIUS, The Fatal History of Portuguese Ceylon. Transition to Dutch Rule, Harvard University Press, Cambridge, Massachussetts, 1971.

39 Dharmapala era neto materno de Bhuvaneka Bahu, filho de sua filha Samudra devi e de Vidiye Bandara de Udugampola. Vide JOHN M. SENAVARATNE, Vidyia Bandara, Colombo, 1930. Para um quadro desta família paterna vide J. DIAS ABEYASINGHE, A critical and documented review by.... of The Tudgala Family by J. H. O. Paulusz Retired Govt. Archivist. Dedicated to the Memory of Don Richard Wijewardene, Patriot and Nationalist, Nawala, Rajagiriya, Douglas D. Ranasinghe, 1972, p.26echartlA.

40 Sobre Bhuvanekabahu e as suas relações com os Portugueses, vide GEORG SCHURHAMMER e E. A. VORETZSCH, Ceylon zur Zeit des Konigs Bhuvaneka Bahu und Franz Xavers 1539-1552. Quellen zur Geschichte der Portugiesen, sowie der Franziskanner Jesuitmission auf Ceylon, Leipzig, Verlag der Asia Major, 1928; eGEORG SCHURHAMMER, Francis Xavier. His Life, His Times, translated by M. Joseph Costelloe, Rome, The Jesuit Historical Institute, II, pp. 371-424. Sobre a coroação vide do mesmo autor a mesma obra pp. 420, Ceylon, I, e QUEIROZ II, pp. 184-185.

41 FR. PAULO DA TRINDADE, Conquista..., III, p. 43.

42 Vide as várias cartas recebidas por D. João in QUEIROZ, Conquista..., pp. 261-267. Vejam-se também as notas de Fr. Félix Lopes a ed. de TRINDADE, III, pp. 38-40, e PIERIS, op. cit. pp. 138-140.

43 "The abandonment of the capital city meant a further loss of standing in the eyes ofthe subjects, for if Dharmapala by going to Colombo increasedhis personal security, he lost both independence and royal dignity", TIKIRI ABEYASINGHE, Portuguese Rule... p. 11.

44 Sobre esta questão vide C. R. DE SILVA, "The Rise and Fall of the Kingdom of Sitawaka (1521-1593)", in The Ceylon Journal of Historical and Social Studies, January-June 1977, no. l, pp. 1-43.

45 Vide a carta régia de 15.1.1598 ao Vice-Rei Conde da Vidigueira, no Archivo Português-Oriental, Fasc.3, p.817.

46 Na verdade, o Rei D. Filipe era apenas sobrinho do Rei Karaliyadde (pai de D. Margarida) que o adoptou como herdeiro; daí a razão de, segundo a tradição singalesa, ser muitas vezes designado como filho.

47 Desconhecemos qualquer documento relativo a esta doação; sabemos dela através da genealogia anónima publicada no Apêndice VI: "... a qual se desposou nesta cidade de Colombo com o dito Imperador Dom João Pareapandar, o ano de 1573, e houve com ela em dote de casamento nova sujeição do Reino de Candia [...] como claramente testificam as cédulas antigas e papéis autênticos de tempos imemoráveis, como tudo se vê nas notas dos tabeliães tiradas dos livros da era de mil e quinhentos e setenta e tres, e da era de mil quinhentos e oitenta". Existe também uma referência de Queiroz, Conquista..., pp. 429-430, e a menção expressa nas alegações portuguesas produzidas em 1643 durante a discussão travada com os Holandeses a propósito dos limites dos territórios de Ceilão; vide nota 88.

48 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Manuscritos da Livraria, 1109, fls. 45-48. Vide tb. Fr. Félix Lopes na n. 2 da pag.45 do vol. III de TRINDADE, Conquista...

49 Sobre estes factos vide a abundante documentação publicada ou referida por Fr. Paulo da Trindade, Conquista..., III, pp. 45 a 47, na ed. anotada que usamos.

50 TRINDADE, Conquista..., III, p. 45.

51 Idem, p. 46.

52 Carta régia de 15.1.1598, in Archivo Portugu-ês-Oriental, Fasc.3º, p. 817.

53 QUEIROZ, op. cit., p. 425.

54 Idem, ibidem.

55 TRINDADE, op. cit., III, p. 57.

56 D. Estevão era primo co-irmão de D. João, filho de seu tio paterno Talmita Sembahap Perumal, baptizado com o nome de D. Francisco Barreto, que também ocupou o cargo de Camareiro-Mor, primeiro sob Bhuvaneka Bahu e depois sob D. João. Sobre D. Francisco vide SCHURHAMMER, Francis Xavier..., II, p. 421. Vide tb. J. DIAS ABEYASINGHE, A critical and documented review by.... of The Tudgala Family by J. H. O. Paulusz Retired Govt. Archivist. Dedicated to the Memory of Don Richard Wijewardene, Patriot and Nationalist, Nawala, Rajagiriya, Douglas D. Ranasinghe, 1972, p. 26 e chart 1A.

57 A versão da escritura que traz o Padre Fernão de Queiroz - colhida decerto em Goa - tem a mais um enunciado pormenorizado dos domínios do Rei de Kotte, ausente da certidão de Lisboa.

58 JÚLIO FIRMINO JÚDICE BIKER, pp. 180-184.

59 QUEIROZ, Conquista..., p. 425.

60 Esta carta, até hoje desconhecida, conserva-se em Londres na British Library, Add. 20.861, "Collecção de Leis", tomo I, fols.3-3v.

61 No texto da doação do Reino de Ternate inclui-se uma referência ao afastamento dos eventuais sucessores da estirpe do Sultão Tabarija, afastamento feito por recurso a um argumento diverso mas não menos efectivo: "... e pois eu não tenho sucessor cristão que me haja de herdar e aos mouros não pertence suceder de direito em tal reino de rei cristão, por serem indignos e não capazes de tal reino de rei christão..." in Artur Basílio de Sá, Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente, Insulíndia, II, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1955, p. 23.

62 Vide a nota 56.

63 TRINDADE, Conquista..., III, p. 49 e57.

64 JOÃO RIBEIRO, Fatalidade Histórica..., p. 20.

65 QUEIROZ, Conquista..., pp. 429-430.

66 RIBEIRO, op. cit., p. 21.

67 QUEIROZ, op. cit., pp. 430 e 833.

68. RIBEIRO, op. cit., pp. 20-22.

69. A mero título de exemplo vide PIERIS, Ceylon..., Vol. I, p.311.

70 T. B. H. ABEYASINGHE, "The myth of the Malvana Convention", in The Ceylon Journal of Historical and Social Studies, January - June 1964, Vol. 7, nº 1, pp. 67-72.

71 COUTO, op. cit., Década XII, Cap. VI, pp. 44-47.

72 QUEIROZ, Conquista..., p. 430.

73 COUTO, op. cit., Década XII, Cap. VI, p. 47. O mencionado Livro dos Contratos nada tem a ver com o conhecido Livro das Pazes, registo da mesma natureza mas posterior, ainda hoje existente no Arquivo de Goa.

74 COUTO, op. loc. cit.

75 Vide C. R. DE SILVA, The Portuguese..., p. 9, The Rise..., pp. 42-43. TIKIRI ABEYASINGHE, The Myth..., pp. 70-71, Portuguese Rule..., p. 39.

76 RIBEIRO, op. cit., p. 23.

77 QUEIROZ, op. cit., p. 833.

78 Vide "Copia das Pazes que o Geral Diogo de Mello de Castro fez com El Rei Rajasinga em nome de S. Majestade", in Diário do 3º Conde de Linhares, Vice-rei da Índia, tomo I, Lisboa, Biblioteca Nacional, 1937; p. 68.

79 Vide o "Escrito do Rei de Candea" in BIKER, Collecção de Tratados..., vol. I, p. 213.

80 Vide TIKIRI ABEYASINGHE, Portuguese Rule..., p. 77.

81 In Archivo Português-Oriental, Fasc. 3º, p. 918.

82 Idem, ibidem.

83 TRINDADE, Conquista..., III, p. 57.

84 "Instrução particular e expreça que leua o Conde Almirante sobre a conquista e empreza de Ceilão", in Archivo Portuguez-Oriental, fasc. 3º, pp. 595-597.

85 Vide o texto do tratado em BIKER, Collecção..., II, pp. 108ss. Sobre esta questão vide GEORGE DAVIDSON WINIUS, The Fatal History of Portuguese Ceylon. Transition to Dutch Rule, Harvard University Press, Cambridge, Massachussetts, 1971, Cap. V, pp. 67-83 e K. W. GOONEWARDENA; The Foundation of Dutch Power in Ceylon (1638-1658), Djambatan - Amsterdam, 1958.

86 Vide BIKER, Collecção..., II, pp. 138ss.

87 Vide BIKER, Collecção..., II, pp. 174ss.

88 Vide o Códice CVI/2-2, fol. 272, da Biblioteca Pública de Évora, códice onde se encontra uma parte importante da documentação relativa às negociações Aveiras/Boreel.

89 Idem, fols. 254-255.

90 Idem, fols. 256ss.

91 QUEIROZ, Conquista..., p. 576; quase o mesmo texto em FR. PAULO DA TRINDADE, III, pp. 70-71; vide aí a p. 70 a n. 3.

92 Vide CHANDRA R. DA SILVA, "The Rise and Fall of the Kingdom of Sitawaka (1521-1593)", in The Ceylon Journal of Historical and Social Studies, January-June 1977, nº 1, pp. 40-41.

93 QUEIROZ, op. cit., p. 578. Vide tb. a nota de Félix Lopes in TRINDADE, Conquista..., p. 75.

94 Vide o relato da recepção dada em Lisboa e Madrid em QUEIROZ, op. cit., p. 578.

95 Seguimos versão debitada por QUEIROZ, op. cit., p. 579.

96 Idem, ibidem.

97 In SOUSA VITERBO, "D. João, príncipe de Candia", in Archivo Historico Portuguez, vol. III, 1905, p. 452.

98 Vide SOUSA VITERBO, "Relações de Portugal com alguns potentados africanos e orientaes", in Archivo Historico Portuguez, vol. II, 1904, pp. 462.

99 Idem, passim. Um auto de 1781 dá-nos conta do que era nessa data a última morada do herdeiro do trono de Kandy:

"... os ossos do mesmo Instituidor se achavam na na sacristia do dito Convento na parede da parte do nascente cobertos com uma pedra mármore de quatro palmos de comprido e dois de alto com o letreiro ou inscrição que diz: Qui sacram hanc. Mariae aedem fundavit hic Candie Princeps ossa sepeliuntur, com uma pedra d'armas por cima de quatro palmos de alto e dois de largo e nela uma targe que contem um escudo no meio com um leão da banda direita e uma torre da esquerda e sobre esta torre uma cruz de Avis e no alto do mesmo escudo a forma do Sol, orlado este escudo com os sete castelos das armas reais de Portugal e em cima uma corôa com florões. E isto tudo sobre um altar de madeira portatil que se acha arrumado à dita parede, sobre o qual está um sacrário que serve para na Quinta Feira Santa se recolher o Santíssimo Sacramento. E na parede fronteira da parte do poente se acha um painel com o retrato do dito Príncipe com uma corôa e ceptro aos pés e um letreiro com uma inscrição que diz: Dom João de Austria, Príncipe de Cândia, fundador deste convento onde instituiu a sua Capela. Faleceu no mes de Março de mil seiscentos e quarenta e dois", in "D. João, príncipe de Candia" in Archivo Historico Portuguez, vol. III, 1905, p. 457.

100 Inquirimos pessoalmente junto deste organismo do paradeiro do retrato do Príncipe de Ceilão; embora conste dos inventários mais antigos (v. g. G. P. Notícia dos Retratos em Tela, p. 7), dizem-nos que, possivelmente e como sucedeu a tantos outros, desapareceu devido aos estragos do tempo. O retrato publicado por Sousa Viterbo é, pois, o único testemunho da vera efígie do Principe de Kandy.

101 SOUSA VITERBO, "Relações de Portugal com alguns potentados africanos e orientaes", in Archivo Historico Portuguez, vol. II, 1904, pp. 458ss., e "D. João, principe de Candia", in Archivo Historico Portuguez, vol. III, 1905, pp. 354-364 e 441-459.

102 Vide BIKER, Collecção..., I, pp. 205-217, PADURONGA P. PISSURLENCAR, Assentos do Conselho de Estado, I, Bastorá, 1955; BOCARRO, Decada..., P. II, pp. 709-710.

103 BOCARRO, op. loc. cit.

104 Sobre estes eventos e apesar do facciosismo, vide P. E. PIERIS, The Prince Vijaya Pala of Ceylon 1634 - 1654 from the original documents at Lisbon, Colombo, 1927.

105 PIERIS, op. cit., e sobretudo (uma das principais fontes deste autor) a Relaçam Verdadeira do baptismo do Emperador de Ceilão, Rey de Candia, Vva, & Matale, Theodosio, Vassallo delRey nosso Senhor D. Ioão o IV, Lisboa, por Manuel Gomez de Carvalho, 1648, fls.7v-8.

106 Vide atrás a nota 103.

107 Relação... cit., fls. 7v.-8.

108 Além das obras cit. na nota 43, para o período em causa vide TIKIRY ABEYASINGHE, Jaffna under the Portuguese, Colombo, 1986.

109 QUEIROZ, op. cit., pp. 367-369.

110 TRINDADE, op. cit., p. 210.

111 Idem, p. 213.

112 Vide o relato da cerimónia in TRINDADE, op. cit., pp. 232-233.

113 Idem, p. 236.

114 Idem, p. 238, n. 3.

115 Idem, p. 237.

* António Vasconcelos de Saldanha, nascido em Lisboa em 1956. Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Mestre em Ciências Histórico-Jurídicas pela mesma Faculdade, Doutorando em Relações Internacionais (Direito Internacional) no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas de Lisboa, Bolseiro da Fundação Oriente. A sua carreira docente está ligada ao ensino da História do Direito Português, no curso de Direito da Faculdade de Direito de Lisboa, e ao do Direito Civil e Direito Internacional Público, no curso de Relações Internacionais do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, em Lisboa. Publicou vários títulos dedicados à história das ideias políticas e questões jurídico-políticas da Expansão portuguesa.

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