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OS NAVIOS DA 'PEREGRINAÇÃO'

José Alberto Leit~~ao Barata*

O mar está no centro da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, tal como se encontra no centro do Império Português do Oriente: portos movimentados; operações de embarque e desembarque; abordagens arriscadas; actos de pirataria; tempestades terríveis, desastrosos naufrágios. Tudo isto encontramos, a cada passo, nas páginas desta obra que, no entanto, não foi escrita para falar do mar, mas de gente e de terras; de terras habitadas por gente. Simplesmente, para se chegar até onde os homens estão, necessário se torna levar a cabo longas viagens por mar; ele transformou-se na "terra de eleição" dos Portugueses no Oriente; os barcos são as suas casas. Longe dos navios, os Portugueses não se sentem seguros; estão em terra alheia.

Tipos de embarcações chinesas, vendo-se em segundo plano, à direita, uma das famosas cidades flutuantes. In "Description (...) de l'Empire de la Chine et de la Tartarie Chinoise", J. B. Du Halde, S. J., Haye, MDCCXXXIV.

Em toda a Peregrinação, nunca Fernão Mendes Pinto foi tão peregrino como quando se viu obrigado a calcorrear intermináveis caminhos pelas imensidões da terra da China, longe do mar e sem a perspectiva de um navio que o pudesse levar de regresso à desejada Malaca. E, nem mesmo então, a sua viagem se torna inteiramente terrestre. Eis que surgem os grandes rios e esteiros que cortam toda a China e aí temos de novo as embarcações, os actos de pirataria, o movimento colorido das cidades flutuantes. Por este rio abaixo, Por este rio acima, -- eis como Fernão Mendes Pinto viu as terras e gentes da China, da Tartária, do Sião, do Pegú. Uma visão verdadeiramente marginal da Ásia de Quinhentos, que era afinal a de todos os Portugueses do Oriente dependendo, como dependiam, directa ou indirectamente do mar.

Fernão Mendes Pinto foi pois, à sua maneira, um homem do mar, como qualquer dos seus compatriotas no Índico ou no Pacífico. Participou em inúmeros actos de pirataria, e foi vítima de outros tantos; colaborou nas manobras de carga e descarga dos navios, no alijar das mercadorias em caso de naufrágio iminente; navegou por mares desconhecidos e reclamou para si o descobrimento do Japão, assim como a exploração do litoral oeste da ilha de Samatra.1 Levado pela necessidade, teria mesmo chegado a pilotar uma embarcação no pequeno percurso que ligava o reino de Quedá à praça portuguesa de Malaca.2 Um saber todo de experiência feito, que lhe terá conferido um certo à vontade nos domínios da marinharia e talvez mesmo da náutica, o qual se traduz na correcção com que utiliza uma grande variedade de termos técnicos,3 assim como no interesse com que avalia a actuação de pilotos e marinheiros, e no rigor que põe na descrição de certos aspectos da vida no mar. Nem sempre tão profuso como desejaríamos, nem tão exacto quanto poderíamos esperar, Fernão Mendes Pinto revela-se-nos no entanto, no conjunto da sua obra, um observador atento, interessado e sabedor, em tudo o que ao mar e às coisas do mar dizia respeito. Eis porque julgamos poder dispensar, ao iniciar este artigo, a abordagem da eterna questão do valor da Peregrinação como fonte histórica. Ele parece-nos indiscutível no que à nossa matéria diz respeito, não só porque temos por provado que Mendes Pinto era alguém que sabia o que dizia ao falar das coisas do mar,4 mas também porque os temas náuticos na Peregrinação, sendo embora centrais, não deixam de estar, pela própria natureza do livro, afastados das centrais preocupações do autor. A Literatura Portuguesa Náutica do Século XVI é extremamente rica; é sabido e não se estranha que, nos domínios da praxis e da ciência, roteiros e livros de marinharia se contam entre os monumentos do Saber universal. Já pelo con--trário, se o que procuramos é a descrição de viagens marítimas, achá-la-emos curiosamente avara, sobretudo se pusermos de lado o caso particular da rota do Cabo. A obra de Fernão Mendes Pinto assume então um papel de primeiríssimo plano no âmbito da Literatura Náutica Portuguesa, aspecto sob o qual tem sido até hoje, acreditamo-lo, mal explorada, preocupados como andamos com a eterna questão de saber se Fernão Mendes mente ou fala verdade.

OS TIPOS DE NAVIOS

Referindo-se a navios, Fernão Mendes não precisa de mentir; fala deles com o à vontade e até com a relativa indiferença de quem os conheceu bem. Fornece-nos nada menos de umas 40 designações para os diferentes tipos de embarcações que conheceu e utilizou no Oriente, número considerável que, se por um lado significa o desejo de impressionar o leitor através de uma manifestação de sapiência, por outro reflecte uma certa realidade: não nos devemos esquecer que, nas suas andanças, Mendes Pinto percorreu os mais diversos mares e litorais de múltiplas civilizações, cada um deles e cada uma delas com as suas próprias tradições de construção naval. Atravessou o mar de Oman e penetrou no estreito de Meca e no golfo Pérsico: estava no reino das naus Mouriscas, dos zambucos, das almadias, das terradas. Ligeiras, rigorosamente adaptadas aos fins em vista, que tanto podem ser a longa travessia de 25 dias ou mais entre Moçambique e a Índia, como a pescaria de pérolas entre os bancos da costa Árabe do golfo Pérsico, são embarcações que "não têm nenhum modo de pregadura, senão cosidas com cairo."5 Entrou em seguida em contacto com os navios de longo curso e com as pequenas embarcações de cabotagem que surgiam nos portos Indianos, desde Cambaia ao Malabar. Atravessando o golfo de Bengala, penetrou no mundo variegado do Sudeste Asiático onde, no capítulo da construção naval, se misturam as tradições do Ocidente e do Oriente, convivendo, e medindo forças, galés Turcas mediterrânicas com juncos vindos da China. Mas aqui, é o jong, talvez mal apelidado de Javanês, porque a sua implantação ultrapassa em muito a área da ilha de Java, que representa a tradição local da construção de navios. Também estes não "têm pregadura, senão tornos de pau que os metem nas junturas das tábuas, de tal maneira que se não parecem por fora." Nos seus três mastros, armam umas velas "que têm umas canas atravessadas, que tomam toda a quantidade e grandura da vela, que chamam banbús, e por meio destes banbús vai a vela que é uma tecida de rota, que são umas varinhas delgadas como canas de Bengala que fazem em muitas tiras, e assim tecem a vela."6 Notemos desde já que, se fomos buscar estas breves citações a uma interessante lista redigida, talvez para uso próprio, por um Jesuíta, por volta do ano de 1582, foi porque, na Peregrinação, Fernão Mendes Pinto não nos deixou quaisquer descrições que se pudessem comparar às deste autor, que aliás talvez nunca tenha estado no Oriente, no que respeita à construção naval. Não deixa de ser curiosa e estranha esta omissão em homem tão interessado, por um lado, por tudo o que dizia respeito ao mar, por outro, em geral, por tudo quanto fosse exótico e novidade. Teria considerado estes pormenores desinteressantes para o leitor comum? É provável que sim, tanto mais que, quando a descrição das embarcações serve os intuitos da sua narração, não deixa nunca de a fazer. É o caso das barcaças dos rios da China, ao mesmo tempo lojas e casas flutuantes, onde tudo se vendia ao longo de imensas ruas engalanadas; é sobretudo o aspecto guerreiro de algumas galés Turcas, cuja cuidada descrição prepara o leitor para a violência do embate.

Mapa dos Mares da Ásia ( Lopo Homem -- Reinéis, 1519 Bibliothèque National de Paris, Portugaliae Monumenta Cartographica). Ilustrado com galés turcas e alterosos juncos chineses de alto mar.
Primeira edição da Peregrinação (Pedro Crasbeeck, Lx,1614).

Mas, entremos ainda com Fernão Mendes nos mares da China: estamos agora no domínio dos juncos, dos vancões, das lanteias, das lorchas; uma vez mais, variedade infinda de embarcações servindo os mais diversos fins. Como colocar um pouco de ordem neste mundo imenso? É claro que, graças à sua experiência, o observador avisado pode, de um só golpe de vista, localizar a origem e adivinhar a finalidade de cada embarcação. A Fernão Mendes Pinto basta por vezes uma simples pincelada adjectivante para pôr as coisas no seu lugar. Assim: podemos ter as barcaças de sal, como as barcaças de loiças ou os paraus de pescar como os paraus de refresco. O que não podemos é esperar que as diversas designações correspondam sempre rigorosamente a determinados tipos de embarcações. É Rui Brito Peixoto7 quem nos põe de sobreaviso quanto a uma possível classificação das embarcações de fabrico artesanal que ainda hoje impera nos meios piscatórios Chineses: muitas vezes são as próprias dimensões e o formato dos madeiros originais que determinam, ou pelo menos condicionam, o aspecto acabado da embarcação. Por outro lado, o acerto de interesses entre construtor e armador ultrapassa muitas vezes as convenções, não tendo de modo algum em consideração classificações preconcebidas. Não é pois de estranhar que na Peregrinação, mais do que uma vez, os termos se confundam, por vezes começando o autor por apelidar certa embarcação de determinada forma e acabando, no fim do mesmo capítulo, por utilizar outro termo para o mesmo navio. Assim, chama primeiramente nau à embarcação do pirata Similau, a qual vem mais tarde a descrever como junco alteroso. Lorcha ou lanteia podem vir a ser o mesmo, especificando-se ser a última a designação que dão os China àquele tipo de navio.8 Entre as embarcações pequenas, a confusão é ainda maior. Indo de Malaca para Martavão, Fernão Mendes diz levar consigo uma "manchua bem equipada"; mas mais tarde, no mesmo capítulo, refere-se-lhe como balão de remo. Uma champana, tal como uma manchua, pode ser um batel. Na verdade, este último termo é mais funcional do que descritivo, designando sempre a maior embarcação auxiliar que se encontra a bordo de um navio.10 Assim também, as embarcações que servem para espiar os portos "pela calada do remo" ou, nos rios da China, para fazer o seu policiamento, são quase sempre balões, é de crer que independentemente das suas características específicas. O termo um tanto vago de barcaça, aplica-se de preferência às embarcações de pescadores, mais do que a quaisquer outras de fabrico caseiro, portanto não susceptíveis de classificação mais exigente. Já pelo contrário a palavra almadia se aplica antes à forma da embarcação, em princípio monóxila, do que às funções específicas a desempenhar. Em última análise, o que é importante é que autor e leitor utilizem o mesmo código e se entendam, e não, impossibilidade absoluta, que a cada termo corresponda um tipo rígido de embarcação. É claro que, à medida que vamos subindo na escala das embarcações em tonelagem e volume, a classificação se vai tornando mais fácil. Mas ainda assim, um termo como galé é muito abrangente. A palavra junco é-o ainda mais, incluindo desde logo duas tradições de construção naval completamente diferentes, na sua origem e processos, como são as do Sudeste Asiático e da China. Entretanto, através de características específicas, como sejam a disposição ou o número dos remos, o número ou tipo de mastros, as dimensões dos castelos à proa e à popa, etc., é sempre possível arriscar uma classificação, por mais simples que seja. Sobretudo, embora a mobilidade seja, (como não?), a característica principal de um navio, vão-se delimitando zonas de influência de um ou de outro tipo de embarcações. E neste ponto, sublinhemo-lo, Fernão Mendes Pinto não se engana. Se exceptuarmos termos vagos ou cuja área de aplicação era na realidade muito vasta, como no primeiro caso o de barcaça ou almadia e no segundo o de parau ou junco, cada tipo de embarcação tem, na Peregrinação, a sua área geográfica própria. Assim, não há referência a guelvas ou terradas nos mares da China, mas exclusivamente no mar Roxo. Catures, só nos litorais da Índia, até ao Malabar. As serós são embarcações exclusivas da área do Pegú e países limítrofes, sendo aliás Fernão Mendes Pinto um dos raros (se não o único) autores a referi-las.11 Jurupangos, só na Ásia do Sudeste: Malásia, Samatra, Java. Lanteias e vancões são embarcações da China, assim como funés e funces o são do Japão. Galés, há-as um pouco por todo o lado mas são, na maior parte dos casos, de Turcos, assim como as caravelas são Portuguesas. Os juncos são quase sempre da China mas os Portugueses também navegam neles com frequência. Aliás, na luta pela sobrevivência no alto mar, não se pode ser esquisito e cada um embarca onde pode ou onde encontra mais proveito.12 Daí, que só as embarcações de muito pequeno porte, de todo incapazes de longas viagens transoceânicas, se mantenham aproximadamente nas suas áreas de origem. Tudo afinal, a mobilidade dos homens e a mobilidade das próprias embarcações, contribui para tornar o quadro confuso e impreciso. Mas, no meio desta confusão, o nosso autor continua a movimentar-se com notável à vontade.

Rota de Fernão Mendes Pinto de Goa ao Japão, 1554 -- 1556. (Cópia de N. Ferrão, in Fernão Mendes Pinto e o Japão, Christovam Ayres, Lisboa, 1904)

A CONSTRUÇÃO NAVAL

O interesse que Mendes Pinto demonstra ao longo de toda a Peregrinação pela construção de embarcações, é um dos aspectos interessantes a retirar de uma leitura atenta da obra, tanto mais que será motivo de estranheza para quem, teimosamente, quiser continuar a ver nela apenas um grande livro de viagens ou uma satírica crítica de costumes.

Por mais que uma vez o autor se detém na descrição de uma paisagem, fazendo questão de apontar ao leitor as grandes potencialidades desta ou daquela terra, para a construção de milhares de embarcações. Compreenderemos melhor a insistência, se admitirmos que a Peregrinação é, para além de outras coisas, também um programa de acção futura para os Portugueses no Oriente; ou, se preferirmos, para a Cristandade. Sobretudo ao descrever a "ilha grande dos Léquios", 13 herdeira de um passado prestigioso aos olhos dos Portugueses de Malaca, Fernão Mendes Pinto é eloquente. Com efeito, afirma claramente que com quaisquer dois mil homens se tomaria a ilha, o que seria empresa de tanto "serviço para Nosso Senhor" e de tanta "honra e proveito" para os Portugueses, que o seu senhoreamento se revelaria bem mais útil que o de toda a Índia.14 É bem certo não ser Fernão Mendes o único autor que estava sempre pronto a sonhar, nas terras que escapavam ao domínio Português, com outras tantas Índias ou, mais tarde, outros tantos Brasis. Mas, no caso da Peregrinação, estes sonhos inscrevem-se sem dúvida num plano vasto, de que faria parte integrante a procura e domínio de regiões que pudessem ser boas fornecedoras de matéria-prima para a construção de navios. Porque, é claro, sem a existência de muitos e bons navios, não havia sonho de império no Oriente que vingasse. Demora-se pois o nosso autor na enumeração das excelentes madeiras para construção naval existentes na "Índia" a conquistar futuramente: é antes de mais o angelim, "pau muito forte" no dizer de Gaspar Correia,15 cujas qualidades os Portugueses tinham aprendido a conhecer no Malabar, onde a designavam comummente por madeira de jaca ou jaqueira brava. Era também o jatemá. 16 Ainda duas espécies de designações desconhecidas: o poitão e o pissu, para além do pinho manso, do castanho, do carvalho.

Mas não era apenas em Okinawa que existiam tais condições. Também no Sião abundava o angelim, de que se poderiam fazer "milhares de embarcações de toda a sorte."17 Junto à cidade de Quanguiparu, na Cochinchina, há uma vez mais "árvores de angelim como na Índia", para além de "soutos de castanheiros muito grandes e pinhais". 18 Mas não só as madeiras existiam; também os estaleiros e os artífices. Estes últimos, deslocando-se pelas florestas, marcavam as melhores árvores e dispunham-se a construir qualquer tipo de navio, mesmo ao ar livre, nas margens do primeiro curso de água, caso o contrato com um armador de ocasião lhes parecesse favorável.19 Em Patane, no extremo Norte da península Malaia, António de Faria manda construir uma embarcação para ir até Lugor, no Sião, e parece ter sido servido com rapidez e qualidade. Aliás, as espantosas quantidades de navios que Mendes Pinto, como outros autores, registou desde Samatra às ilhas Japonesas, atesta a facilidade de construção por aquelas paragens. Na China são, no dizer de Frei Gaspar da Cruz, acessíveis "a todo o homem ainda que seja pouco possante."20 Isto, devido aos "bosques de arvoredo muito basto de cedros, carvalhos e pinheiros mansos e bravos, de que muitos navios se provêem de vergas, mastros, tabuado e outras madeiras sem lhe custarem nada."21

"A perspective view of Canton in China", c. 1660. Gravura holandesa.
"Kuching", c. de 1656, idem. Nas duas gravuras podem ver-se vários tipos de embarcações orientais.

Deste modo, se os Portugueses quisessem e soubessem, poderiam multiplicar pelo Extremo Oriente os excelentes estaleiros de Cochim, onde se construíam das melhores embarcações de toda a Índia. E não devemos esquecer que um dos grandes problemas do "Crescente" em águas do Índico era precisamente a falta de madeiras ao longo do mar Roxo, do golfo Pérsico e por todo o mar de Oman. A existência de múltiplos e bons estaleiros poderia ser afinal a chave da vitória decisiva dos Cristãos sobre os infiéis.

AS TRIPULAÇÕES

Sob muitos aspectos, a mentalidade de Fernão Mendes Pinto é ainda a do homem da Idade Média. Lembremos uma vez mais: a conquista da ilha grande dos Léquios seria "serviço de Deus" e "honra e proveito" para os Portugueses. São termos Medievais. Não quer isto dizer que, por outro lado, ele não mergulhe até à alma na nova era Moderna, capitalista, que se está afirmando. Prova disso: um gosto apaixonado pelo número. Revelando-se bem um homem do seu tempo, Mendes Pinto reduz tudo a números: conta as pontes, as entradas, os edifícios das cidades de Nanquim, de Pequim. Enumera os pagodes e, dentro dos pagodes, fornece o número dos edifícios, das colunas, das estátuas. Tudo tem um valor traduzível em números: o saque dos actos de pirataria, os prejuízos causados pelos naufrágios, as fortunas dos mercadores. É também em números que nos fornece as latitudes dos lugares, a profundidade das bocas dos rios, em tantas braças, a largura dos esteiros em tiros de berço. Tudo é avaliado, pesado, enumerado. Fernão Mendes sabe que o seu leitor só será capaz de imaginar convenientemente uma frota, se conhecer o número de navios que a compõem, o número dos mastros de cada navio, o número de homens que cada um comporta. Apresentar a tripulação de um navio é, de um só golpe, dar a conhecer ao leitor as dimensões do mesmo, o seu peso económico, o seu poderio militar. Daí que a obra seja pontuada por uma série de números, sempre muito concretos para as tripulações dos diversos navios. Até que ponto poderemos fazer fé neles? Esse é outro aspecto da questão.

O exagero é elemento estrutural da Peregrinação: faz parte do estilo, ajuda a compôr a personagem Fernão Mendes Pinto, para além de ser um método para atingir determinados fins. Não estranhemos pois que os números sejam por vezes exagerados. Por exemplo: aquando da invasão da China pelos tártaros, o rei destes últimos teria organizado um exército de um conto e duzentos mil homens, os quais são transportados em 16 mil embarcações. Números fantásticos, que tinham em vista precisamente impressionar os leitores. Igualmente desmedidas, como tudo o que se refere ao universo chinês, as armadas da China encarregues de fazer o policiamento dos litorais. De uma vez são quarenta juncos; de uma segunda, são 400; finalmente são 300 juncos mais 60 vancões de remo.22 Entretanto, ao apro-ximarmo-nos das regiões melhor conhecidas pelo autor, os números vão-se tornando mais razoáveis. Assim, a frota com que o rei do Achém se propõe defender o recém-conquistado reino de Aru do ataque que contra ele move o rei do Jantana, é composta de 180 navios, número que não nos deve espantar uma vez que, entre eles, Mendes Pinto apenas salienta, como unidades importantes, 15 galés. Aliás, anos volvidos, António Pinto Pereira irá mesmo mais longe, referindo-se à frota do Achém que diz ser composta por perto de "duzentos navios de remo em que terá setenta bons para todo o feito: galés, galeotas, fustas e os mais lancharas e navios menores de outra sorte."23

Se considerarmos agora os números referentes às tripulações e aos exércitos transportados por mar, e os dividirmos pelo número das embarcações, poderemos concluir que, ao tratar de grandes exércitos e grandes frotas, a tendência de Mendes Pinto é sempre para o exagero, tomando-se os cálculos bem mais aceitáveis à medida que o número de unidades vai diminuindo. Retomemos o nosso exemplo: nos já referidos 180 navios, diz Femão Mendes Pinto que o sultão de Achém fizera embarcar 15 mil homens, dos quais 12 mil de peleja, o que nos leva a uma média de 83 homens por navio. Parece um tanto exagerado, se nos lembrarmos que a frota era constituída sobretudo por pequenas embarcações de remo. Aliás, podemos consultar uma vez mais António Pinto Pereira: nos 200 navios que refere em 1568, dos quais, lembremos, "setenta bons para todo o feito", o sultão do Achém poderia embarcar cerca de 5 mil homens de peleja. Já o rei de Jantana, em 215 navios, dos quais 15 eram juncos, transportava 14 mil homens; logo, uma média de 65 marinheiros e guerreiros por embarcação; número que, embora mais aceitável, parece ainda desproporcionado. Na frota punitiva que os Japoneses organizam contra os mercadores Portugueses de Liampó,24 seguem em 400 juncos cem mil homens, o que nos daria uma média de 250 por junco, o que, sendo possível, não é de aceitar, pois teríamos que admitir que os 400 juncos da frota eram todos grandes navios; noutra frota Chinesa,25 em 40 juncos e 25 vancões, seguem 7 mil homens (média de 107 por embarcação). O rei da Tartária transporta o seu exército de um milhão e 200 mil homens em 16 mil navios, como dissemos já; do que resulta uma média de 75 homens para cada uma das pequenas embarcações fluviais, laulés e jangás, que constituíam a frota. Entretanto, noutro episódio, o mesmo rei atreve-se ainda a concentrar mais os seus homens por embarcação, já que transporta de 10 a 12 mil em 120 laulés de remo; logo, quase 100 homens por laulé.

Tipos de embarcações chinesas, do "Journal" de Peter Mundy (1637). A - "The Forme of the Admirall Juncke thatt come unto us as wee wente towards Cantan". B - "Another sort of Men of warre, having as it Were a gallery From stemme to sterne without board, made of Bamboes (...)". C - "A vessell under saile, one saile lying one way and the other tother, and one before the Mast and the other abaft." D - "A vessel at an Anchore (...) with great stones For Anchors". E - "A poore mans boate by which he getteth his living either by Fishing or transporting or carrying goodes (...)". F - "A smalle little low long Narrow shallow prow (...)" G - Manchooas or small vessells of recreation used by the Portugalls here, as allsoe att Goa (...) resembling little Frigatts."(...)"

Mas deixemos as grandes concentrações humanas, e tudo parecerá diferente. Para as tripulações dos juncos, fornece-nos por várias vezes quantitativos. Raramente são embarcações pequenas como a do corsário Chim Quiai Panjão, que leva 10 homens e 15 peças de artilharia; mas podem ser bastante grandes e alterosos, expressão que se torna quase um leit--motiv a aplicar aos juncos Chineses: das 4 embarcações que António de Faria comandava, ao naufragar na ilha dos Ladrões, uma era uma lanteia, e as restantes eram juncos; seguiam na frota, ao todo, 639 pessoas; deixemos as 39 para a lanteia, o que parece boa conta, e ficam 600 pessoas para distribuir pelos 3 juncos. Num outro, em que Fernão Mendes segue da Sunda para a China e naufraga perto do Camboja, feitas as contas a mortos e sobreviventes, seguiam umas 170 pessoas. No junco que de Liampó segue para o Japão, naufragando junto à ilha dos Léquios, viajam 92 pessoas. No do pirata Similau vão 80 homens, e no do Coja Assém, 70 a 80 igualmente. Todos estes números são perfeitamente aceitáveis, pois o junco é embarcação de dimensões variáveis que, no dizer de Jorge de Lemos, podia ir de "300 até 500 toneladas", 26 mas que por vezes era ainda bastante maior: "grandes como grandíssimas naus", segundo Nicolau Pereira.27 Entre as embarcações menores, de vela e remo, temos 20 pessoas, para além do capitão e do próprio Mendes Pinto, na funce que vai do reino de Bungo a Tanixuma. A lorcha, que no entanto se aventura aos tempestuosos mares da China e da Cochinchina, é também uma embarcação pequena. Na de António de Faria, no momento em que é atacada pelo pirata Similau, seguem 50 homens, mas Fernão Mendes faz questão de notar que o pirata atacou "por lhe parecer que não pudessemos ser mais que seis ou sete como ordinariamente costumamos a andar nestas lorchas". 28 Em duas panouras rumo a Calemplui, seguem 146 homens. Quanto às fustas: os números são bastante variáveis porque as dimensões deste tipo de navio, comummente descrito como "pequena galé", também variam bastante. Nas 7 da armada de Malaca que se aparelham para defender a cidade dos Achéns, seguem uns 180 homens; ou seja, cerca de 25 por embarcação. Nas laulés, embarcações fluviais, caberiam de 50 a 100 homens, mas tratando-se de avaliações de exércitos, estes números não são de confiança.

No tempo em que Fernão Mendes Pinto escrevia não fora ainda inventada a nova "arte da guerra no mar", que só viria a ser plenamente introduzida no Oriente com a chegada dos Holandeses. A guerra era ainda basicamente terrestre, apenas se transferindo os movimentos dos homens de armas para o mar. As transformações desses verdadeiros pedaços de campos de batalha flutuantes, que eram os navios, em fortalezas marítimas, graças à introdução de uma poderosa artilharia, facto a que não fora estranha a chegada dos Portugueses ao Índico, embora abrindo vias para novas técnicas bélicas, não fora suficiente para modificar, no essencial, as batalhas marítimas. Os homens de armas que os navios transportavam, eram pois guerreiros de terra, que com as suas armas e técnicas terrestres, se preparavam para combater no mar. Os marinheiros apenas intervinham na refrega, a partir do momento em que todos os braços não eram de mais para empunhar objectos de arremesso ou panelas de pólvora.29 Desta forma, até finais do Século XVI, a divisão manteve-se bem nítida entre homens do mar e gente de guerra; distinção essa que Mendes Pinto nunca se esquece de estabelecer. Os primeiros são os marinheiros, os criados, os moços; muitos fazem parte da escravaria. Nas galés, galeotas e fustas, os remadores têm designação própria. São a chusma do remo. O próprio Fernão Mendes chegou a fazer parte dela, seguindo entre Nanquim e Pequim, juntamente com os seus companheiros, "preso ao banco da lanteia em que remávamos". 30 Preparados para a guerra, estão todos os Portugueses nas embarcações de El-rei, e em todas aquelas em que o capitão seja Cristão. Nos navios Orientais a gente de peleja, "a que eles chamam de bailéu"31 (por, durante o combate, se deslocar em passadiços próprios para o efeito que acompanham toda a extensão do navio, de popa a proa), divide-se muito claramente em várias categorias, que formam uma hierarquia de prestígio: à cabeça, estão os Turcos, aliados desde a primeira hora dos Guzerates e dos Achéns; em segundo lugar, os Mouros, designação genérica de que se destacam os Guzerates; os Muçulmanos do sultanato de Achém, principal concorrente de Malaca, encontram-se por sua vez à cabeça de um outro grupo, com a designação genérica de "gente da outra costa do Malaio", que se opõe por superioridade aos naturais das ilhas e terras do Pacífico. Champás, Cambojanos, Chineses, dão bons marinheiros, mas não estão entre os melhores homens de guerra. Mesmo nas embarcações dos piratas Chineses, a gente de peleja é frequentemente constituída por Mouros. São Chins os 40 marinheiros do junco de Similau, pirata Chinês; mas os homens de armas que nele seguem e somam outros tantos, são Guzerates e Achéns.

É claro que, quando a guerra chega, toca a todos e todos são guerreiros, tal como, quando sobrevém um temporal, é mister que todos se transformem em marinheiros. Mas, mesmo nestes casos, as funções, as armas e os instrumentos, são distintos. A proporção entre a gente do mar e a gente de guerra varia muito conforme as circunstâncias e as finalidades da viagem: quando são grandes exércitos que se movimentam, os homens de peleja são, é claro, esmagadoramente maioritários. Na frota do rei de Jantana que se prepara para invadir o Aru, 72 por cento dos homens são guerreiros. Na do Achém, que se apresta para defender aquele mesmo reino, a percentagem sobe para 80. Numa das frotas do Mandarim de Cantão, que vigiam os mares do Sul da China, a percentagem entre guerreiros e homens do mar é uma vez mais de 72-28 por cento. É curioso que, no caso atrás citado do junco Chinês de Similau, a proporção de guerreiros e marinheiros se situe nos 50 por cento; um navio de piratas não deixa de ser um misto equilibrado de embarcação mercante e navio de guerra. Já os Portugueses, homens de guerra, estão sempre em franca minoria em relação aos Asiáticos, nas suas embarcações: Em Lugor, a lanchara de António de Faria comporta uns 16 Portugueses, num total de uns 59 homens; ou seja, 38 por cento. A percentagem repete-se no que se refere às duas panouras que António de Faria comanda na viagem a Calemplui. Mas, quando uma delas regressa, indo naufragar na enseada de Nanquim, os Portugueses são já 46 por cento, o que se explica pela deserção, que Mendes Pinto refere capítulos antes, do piloto Chinês e de alguns dos seus compatriotas. Quando se prepara para atacar o pirata Coja Assém, António de Faria leva consigo 500 homens, dos quais apenas 19 porcento são Portugueses; é que fora necessário contratar mercenários. Num naufrágio, junto à "ilha dos Ladrões", apenas 7,8 por cento dos ocupantes dos três juncos e da lanteia são Portugueses. Os nossos, eram sempre poucos no Oriente. No entanto, os números podem enganar: se o Português é sempre sinónimo de guerreiro, em caso de necessidade, nem sempre o Asiático é exclusivamente um marinheiro; sobretudo os Cristianizados, quer sejam Chineses, Malaios ou escravos Africanos, são frequentemente auxiliares bélicos preciosos. São vários os louvores que Fernão Mendes Pinto endereça à valentia e fidelidade dos "moços Cristãos".

Temos falado sempre, até aqui, em números de homens. É claro que este plural colectivo inclui algumas mulheres; mas a seu respeito, Mendes Pinto é muito avaro de informações. Sabemos que entre os prisioneiros que seguiam num junco tomado por António de Faria, se encontravam "duas moças"; mas estas pertenciam mais à carga da embarcação do que à sua tripulação. Sabemos também que algumas mulheres seguiam na viagem de Malaca para Martavão pois encontramo-las a lavar roupa,aproveitando a pausa de uma aguada. Três outras faziam parte dos nove ocupantes de uma embarcação fluvial, tomada por Mendes Pinto e seus sete companheiros no Pegú. Do naufrágio, junto à ilha dos Léquios, de um dos juncos que seguem da China para o Japão, salvam-se apenas 24 pessoas, "fora algumas mulheres."32 Vem-se a saber, três capítulos adiante, que se tratava de facto de 6 mulheres, o que nos dá-uma percentagem de 20 por cento para a população feminina entre os sobreviventes. Mas o que não deixa de ser curioso anotar, para a História das Mentalidades pelo menos, é que as mulheres não façam parte do cômputo preciso dos náufragos e dos sobreviventes. Todos os casos referidos respeitam a navios Orientais, pois mesmo o último, embarcação de Portugueses de Liampó em direcção ao Japão, era um junco Chinês, provavelmente apenas fretado para aquela ocasião especial. Logo: mulheres a bordo, apenas em navios locais, no que Mendes Pinto reforça as palavras do padre João de Lucena que pela mesma altura notava ser "costume dos Chins como dos Mouros Lascarins, trazerem toda a família nos navios."33 Nas embarcações de Cristãos, as mulheres eram apenas passageiras de ocasião. Aliás o assalto às quatro lanteias "em que seguia uma noiva"34 assume na Peregrinação todo o aspecto de uma versão moderna do rapto das Sabinas.

Nos navios portugueses o capitão é, claro está, a autoridade máxima; corresponde-lhe, nos Asiáticos, o necodá. 35 Autoridade superior à sua, só a do capitão-mor, quando as embarcações seguem organizadas em frota. Na China tem o nome de "aitão que é como almirante entre nós."36 Para auxiliar o capitão, ou para o substituir temporariamente em caso de impedimento, nomeia-se o sota-capitão. Na viagem rumo a Calemplui, este cargo cabe a um sacerdote: o padre Diogo Lobato que tem autoridade de patrão sobre toda a tripulação. Há ainda uma referência aos capitães das vigias que organizam a tripulação por turnos; dois outros cargos interessantes, ligados desta feita à administração dos navios, são os de escrivão dos cartazes, em que é investido o moço Costa por António de Faria, no porto de Madel, e de feitor das presas, que nos navios do pirata Faria era um tal António Borges.

Mas a alma do navio é o piloto, ou tocão37 entre as embarcações Asiáticas. Nas andanças de António de Faria pelos mares do Extremo Oriente, muitas vezes o piloto é Asiático, sobretudo Chinês. É Chim o piloto que leva-consigo para as paragens do Champá e do Camboja, em busca do Coja Assém; é igualmente Chinês o Similau que promete ao capitão levá-lo à fabulosa ilha de Calemplui. Já para conduzir Fernão Mendes Pinto até Samatra, Pêro de Faria entrega o seu jurupango a um piloto Mouro. Tratava-se de homens profundamente conhecedores das carreiras locais, a que os Portugueses nunca se esqueciam de recorrer. Note-se aliás, que um dos poucos erros que Pinto assaca directamente a um piloto, é a um Português, o qual deixa varar a sua caravela num baixio, perto de Singapura. Em geral, os pilotos são aptos e, se os nove juncos que partem de Liampó acabam por perder-se, é em boa parte porque os capitães não tiveram o cuidado de os escolher convenientemente. Têm no entanto os pilotos um grande defeito: são teimosos. Como têm que entregar-se à sua ciência, eles arvoram-se autoridade única, no que às suas funções diz respeito. É curioso o conflito que opõe o capitão António de Faria ao piloto Similau: quando este último acaba por reconhecer a sua incapacidade de levar as embarcações até Calemplui, só já lhe resta uma solução: a fuga. Em 1556, a nau de que era capitão e senhorio D. Francisco de Mas-carenhas, zarpa de Lampacau, rumo ao Japão. Um desvio no rumo seguido, associado ao nordestear da agulha e a correntes contrárias fortes, obrigam o piloto a seguir rota inesperada. Resultado: "já quando conheceu o seu erro, ainda que por natureza marinhática o não quisesse confessar, tínhamos deixado o porto para onde íamos, 60 léguas a baixo."38 Uma profissão de alto risco: eis como hoje classificaríamos a tarefa destes pilotos, perante o mau humor incontrolado de certos capitães. No entanto, podemos adivinhar nas entrelinhas o grande respeito que, apesar de tudo, capitães e homens da guarnição nutriam por estes pilotos que, afinal de contas, eram os únicos da tripulação a quem se permitiam tais teimosias.

Imagem que nos evoca Fernão Mendes Pinto: barco com comerciantes nos mares do Japão, Sec. XVI (arte namban).

O QUOTIDIANO DOS HOMENS DO MAR

Sobre o dia-a-dia a bordo, nada nos diz directamente Fernão Mendes Pinto. É preciso procurar entre os mais pequenos pormenores, e tentar adivinhar o que seriam, para marinheiros e homens de armas, as longas horas passadas no alto mar.

Quando se defende a embarcação de um ataque de pirataria, ou se prepara um assalto, ou sempre que sobrevém a tempestade, o ritmo da vida a bordo acelera-se, e o navio, todo ele, se transforma num acontecimento. Não há então mãos a medir, e nunca o ritmo da descrição se torna tão frenético como nessas ocasiões. Para evitar o desastre de um naufrágio, há que cortar mastros, desfazer chapitéus e obras mortas da proa e da popa, alijar o convés, guarnecer bombas de novo, baldear fazendas ao mar e ajustar calabretes e viradores. Quando se ouve a voz do capitão bradar por três ou quatro vezes "- armas... armas", as funções são outras, mas o ritmo é o mesmo e cada um ocupa rapidamente os seus lugares: preparam-se as peças de artilharia; distribuem-se as panelas de pólvora, cada homem com o seu morrão escondido, se é de noite, para se não ser avistado pelo inimigo. Ninguém tem então tempo para pensar, apenas para agir. As mais das vezes, porém, embora a parte marítima da Peregrinação nos pareça um interminável desfilar de actos de pirataria e de naufrágios, o ritmo é mais lento e mais desinteressante; trata-se então de cumprir os trabalhos ordinários da marinharia: dividir a tripulação por turnos e montar a vigília. Se se avistam vultos suspeitos, sobretudo durante a noite, vai-se avisar o capitão que pode estar a descansar no convés, deitado em cima de uma capoeira, ou na sua câmara, na segunda ou terceira coberta de um junco Chinês. Adivinha-se a confusão que frequentemente reina no navio. Sejam quais forem as dimensões de uma embarcação, ela é sempre demasiado pequena para que os seus ocupantes se movam à vontade. Depois de ataques bem sucedidos a outros navios, os porões enchem-se e as embarcações tornam-se então na verdade pequenas. Após dois ataques de pirataria, os navios de António de Faria seguem tão carregados, que correm constantemente o risco de encalhar nos baixos da baía de Camoi. Quanto ao convés, está tão empachado de amarras e calabretes que os homens quase se não podem mover. Por vezes, em caso de ataque súbito, é necessário lançar amarras e driças ao mar, para tornar o convés utilizável pelos homens de armas. Se os juncos vão cheios, os trabalhos de carga e descarga tornam-se naturalmente mais morosos. Num dos portos da Cochinchina levam dois dias, "tudo feito com muita pressa" porque é necessário primeiramente pesar e ensacar todas as mercadorias.

Por vezes a vida a bordo é calma e rotineira. Os trabalhos normais são garantidos pelos marinheiros, e há que ocupar os ócios com alguns divertimentos. Sempre que se desce a terra para fazer aguada, há ocasião para percorrer as redondezas, embora com todas as cautelas necessárias. Enquanto mulheres e moços distribuem entre si as tarefas da lavagem da roupa e do corte da lenha, alguns homens entregam-se a lutas e folguedos vários. Uma abundante pescaria, como a de sardos e corvinas, que teve lugar durante três dias na ilha da Pulocondor, perto do Camboja, pode ser também um divertimento para os homens, para além de suprir uma necessidade. Mas o passatempo preferido entre os Portugueses, parece ter sido o jogo. Da conversa de um pescador de pérolas, na ilha de Camoi, com António de Faria, se depreende que se rifavam objectos vários a jogo de dados: "Porque vemos que, por seu passatempo, ao lance de três dados, arremeçam uma peça de damasco tanto sem piedade como homens a quem ela custou pouco."39

É que há que passar o tempo de qualquer forma; tanto mais que não há espaço nas embarcações para grandes folguedos. Todo o enfeite de um navio, no Século XVI como ainda depois,40 é exterior. Aí sim, as tripulações e seus capitães capricham. Ao chegar a Liampó "todas as embarcações iam com suas invenções diferentes, a qual melhor."41 Entretanto no convés todo o espaço é para as amarras e para as driças. Quando os três ocupantes de uma almadia sobem a bordo, sendo recebidos pelo capitão, Faria convida-os a sentarem-se sobre uma alcatifa, tal como Cabral fizera aos Índios no Brasil; é uma cortesia, é um luxo!

Finalmente: da alimentação a bordo quase nada sabemos, a não ser que, em geral, era má e escassa. Quando, depois do assalto a uma lanteia que fazia aguada na ilha dos Ladrões, os Portugueses encontram a bordo panelas com arroz e toucinho, fazem uma festa. É que, muitas vezes, passa-se verdadeira fome, como durante 13 dias, na baía de Nanquim "pois se não dava a cada homem mais que só três escassos bocados de arroz cozido na sua água, sem mais outra coisa nenhuma."42 É claro que, de vez em quando, há peixe fresco ou até alguns confeites: trazem um prato deles com um copo de água para estimular o pirata Inimilau a confessar o que sabe. Mas a carne de galinhas, que se levam em capoeiras, assim como os ovos, são de preferência guardados para os doentes. Três náufragos que se encontram, moribundos, perdidos em pleno mar, é com gemas de ovos e caldos de galinha que lhes lançavam pela boca, que finalmente são reanimados.

E, antes que deixemos partir os nossos navios, guardemos uma imagem final, que nos traz a única nota que encontramos respeitante ao vestuário: "no chapitéu, muita gente com barretes vermelhos que os nossos naquele tempo costumavam muito de trazer, quando andavam de armada."43

NOTAS

1 Um relatório completo desta expedição teria sido por ele entregue ao capitão de Malaca, Pêro de Faria: Peregrinação, cap. XX.

2 Ibidem, cap. XIX.

3 Contámos uns 140 em toda a obra.

4Já há muito o professor Léon Bourdon o reconheceu. Veja-se: Les Routes des marchands Portuguais entre Chine et Japon au Milieu du XVIème Siècle, Lisboa, 1949.

5 Segundo Nicolau Pereira, Lista de Moedas, Pesos e Embarcações do Oriente, publicada por J. Wicki, in Studia, Lisboa, Dezembro, 1971.

6Idem, ibidem.

7 Os Pescadores Chineses do Sul da China, Revista de Cultura, Instituto Cultural de Macau, n° 3, Macau, 1987, pp. 9-23.

8 Peregrinação cap. LXIII.

10 Ibidem, caps. LIX, CCII.

11 Por exemplo: Femão Lopes de Castanheda refere paraus no Pegú: História do Descobrimen to..., liv. V cap. XI.

12 I%%%%%sto, é claro, falando de particulares; quanto ao Estado, as coisas nem sempre foram tão simples: foi contemporânea de F. Mendes Pinto, uma acesa discussão em torno das vantagens e desvantagens da adopção de navios Orientais e Mediterrânicos por parte da Coroa, sendo D. João de Castro um dos seus mais firmes adversários.

13 O Visconde de Lagoa, (A Peregrinação de Fernão Mendes Pinto -- Tentativa de Reconstituição Geográfica, Lisboa, 1947), na esteira de Albert Kammerer, (La Découverte de la Chine par les Portuguais au XVIème Siècle, E. J. Brill, Leiden, 1944), quis ver nela a ilha Formosa, algo que as fontes contrariam na sua maioria, apelidando claramente Taiwan de "ilha pequena dos Léquios" ou "Pequeno Liqueu"; a ilha grande seria pois Okinawa, uma das Ryu-kyu, explicando-se provavelmente o epíteto grande pelo prestígio quase mítico de que gozava, desde os primeiros encontros entre Portugueses e Léquios, em Malaca.

14 Peregrinação, cap. CXLIII.

15 Citado por Monsenhor Sebastião Dalgado, Glossário Luso-asiático, Imprensa da Universidade, 2 vols., Coimbra, 1921.

16Monsenhor Dalgado supõe o termo derivado do Malaio jati merah: teca vermelha.

17 Peregrinação, cap. CLXXXIX.

18 Ibidem, cap. LII.

19 Veja-se o que a este respeito escreveu Jean Poujade, La Route des Indes et ses Navires, Payot, Paris, 1946, pp 262.

20 Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Cousas da China..., 2' edição, Tipografia Rolandiana, Lisboa, 1829, cap. IX.

21Peregrinação, cap. LXVII.

22 Ibidem, caps. XLIV, LVII, CCXXI.

23 História da Índia no Tempo em que a Governou o Vice-rei D. Luís de Ataíde, reprodução da edição original de 1617, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, parte II cap. XXIII.

24 Peregrinação, cap. LVII.

25 Ibidem, cap. XXIV.

26 História dos Cercos de Malaca, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1982, parte II, cap. I.

27 Obracitada. Note-seque Nicolau Pereira escreveu a sua lista por volta de 1582, altura em que as naus Portuguesas chegavam a atingir as mil toneladas, e mais.

28 Peregrinação, cap. XL.

29 Veja-se o que a este respeito escreveu Alfredo Botelho de Sousa: A Armada e o Império da Índia, in História da Expansão Portuguesa no Mundo, Ática, Lisboa, 1939, vol. II, pp93-100.

30 Peregrinação, cap. LXXXVIII.

31 Ibidem, cap. XXXII.

32 Ibidem, cap. CXXXVII.

33 Vida do Padre Francisco Xavier, Biblioteca da Expansão Portuguesa, n° 30-33, Publicações Alfa, Lisboa, 1989, vol. II, cap. XV.

34 Peregrinação, cap. XLVII.

35 Termo Persa, aportuguesado a partir do Malaio, nahoda.

36 Peregrinação, cap. CCXXI.

37 Do Malaio, tukang: mestre.

38 Peregrinação, cap. CCXXIII.

39 Ibidem, cap. XLIV. As referências ao jogo nos navios Portugueses são muito frequentes, sobretudo na literatura Jesuítica; veja-se a título de exemplo: P.e Jerónimo Lobo, Itinerário e Outros Escritos Inéditos, Livraria Civilização, Barcelos, 1971, cap. II.

40 Leia-se a este respeito Jean Mérien: A Vida Quotididiana dos Marinheiros no Tempo do Rei Sol, Livros do Brasil, Lisboa.

41 Peregrinação, cap. LXVIII.

42 Ibidem, cap. LXXIV.

43 Ibidem, cap. LVI; é um aspecto que muitas outras fontes confirmam. Por exemplo: "Tanto que D. Paio Rodrigues de Araújo ouviu dizer que os vossos capitães estava em Baçaim, (...)pôs logo uma capa aberta verde e uma gorra vermelha e determinou de vos ir buscar", in Cartas Trocadas Entre D. João de Castro e os Filhos-1546-1548, intrd. e notas de Luís de Albuquerque, Ministério de Educação, Lisboa, 1989, documento XI.

* Mestrado em História dos Descobrimentos da Expansão Portuguesa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa). Conferências e participações em congressos e seminários internacionais (Concarneau, Goa, Universidade de Colónia) com comunicações sobre temas da História Marítima Portuguesa no Oriente. Colaborador do "Dicionário de História dos Descobrimentos Portugueses" dirigido pelo Prof. Luís Albuquerque.

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