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MARSELHA E O ORIENTE PORTUGUÊS O CAPITÃO PIERRE BLANCARD

Ernestina Carreira*

Retrato em cerâmica polícroma na campa de Pierre Blancard (placa comemorativa oferecida pelo Município de Aubagne, 1989).

Na história das relações comerciais entre a França e o Oriente, após a extinção da Compagnie des Indes Orientales, em 1769, Pierre Blancard merece um lugar de destaque. O seu caso é representativo da evolução da marinha mercante de Marselha, até ali obrigada a dedicar-se exclusivamente à rota das Antilhas Francesas, devido ao monopólio da Companhia. Logo a partir de 1771 os armadores começam a investir em novos horizontes e a mandar navios para os mares do Oriente.1 O sucesso foi imediato, e o porto só abandonou este tráfico em 1793, quando a Inglaterra expulsou a França da Índia.

AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS

A carreira de Pierre Blancard seguiu essa evolução. Nascido em Marselha em 1741,2 numa família ligada há várias gerações à marinha mercante, iniciou aos 25 anos, após estudos de hidrografia, uma carreira marítima. As suas dez primeiras viagens (1766-1770) destinaram-se às Antilhas. Depois, e até 1793, efectua seis viagens ao Oriente. É durante esse período que entra em contacto com o mundo oriental português.

A abertura desta nova rota comercial de Marselha iria obrigar muitos capitães, até aí especializados no Atlântico, a mudarem de rumo. Seria o caso de Blancard, que partiu pela primeira vez para o Oriente em 1771, como sobrecarga e segundo capitão da Thétis. 3 A expedição chegou a Batávia e voltou por Lorient, antigo porto exclusivo da Companhia francesa, onde os navios vindos do Oriente continuavam, por motivos de interesse comercial, a ir vender as suas cargas.4

A sua segunda viagem teve como objectivo o Índico e o comércio chamado nessa época d'Inde en Inde. 5 Blancard, desta vez capitão do navio Gracieux (500 toneladas), saiu do porto do Havre de Grâce a 20 de Junho de 1773. Cumpriu sem problemas a rota fixada: Ilha de França6, costa do Malabar, Ceilão, Ilhas Maldivas, Pondichéri7 e costa arábica, regressando a Lorient a 22 de Abril de 17758.

A sua terceira viagem é um fracasso: parte de Marselha a 5 de Junho de 1776, como capitão do Duc de Duras9 fazendo aliás escala na ilha da Madeira.10 O navio fez uma primeira rota circular: Ilha de França, Pondichéri, Moca, e Ilha de França. Numa segunda expedição a Pondichéri, Blancard naufragou nas ilhas Maldivas, perdendo-se navio e carga.11

Vista geral do porto de Marselha, arsenal e galeras; gravura dos fins do Século XVII (Museu da Marinha, Marselha).

GOA NO COMÉRCIO DE MARSELHA

O naufrágio do Duc de Duras não desencorajou os armadores de Marselha, convencidos das excelentes potencialidade s deste novo mercado. Chegam mesmo a expedir navios durante a Guerra de Independência dos Estados Unidos, que opôs França e Inglaterra de 1777 a 1783, e durante a qual se travaram grandes combates navais e se deram numerosos apresamentos de navios no Índico. Marselha, porém, aproveitava as suas relações privilegiadas com Génova e Livorno (Toscana) para utilizar os respectivos pavilhões (neutros) no comércio com o Oriente. A Inglaterra ocupou a Índia francesa de 1778 a 1785, e os capitães viram-se obrigados a entrar na rede comercial inglesa. Daí a necessidade de estabelecerem contactos com portos neutros, onde pudessem fazer escalas. Goa surgiu, assim, como a melhor solução.

É pois com pavilhão toscano que Blancard parte de Marselha em 28 de Janeiro de 1783, na fragata Saint-Charles12. Após uma escala na Ilha de França, em Junho, dirige-se a Trincomalee, para remeter a M. de Suffren13 500 toneladas de munições navais que transportava a bordo desde Marselha, por conta do rei.

Prosseguiu depois a sua viagem para negociar nos portos do Malabar. Nesta época, os armadores davam instruções aos capitães para contactar prioritariamente os tradicionais corretores dos Franceses naquela costa, devido aos seus conhecimentos das possibilidades dos mercados locais.

Por isso, Blancard negoceia em Goa e Bombaim com as famílias Kamat14 e Nasserwanjee Monackjee.15 Estes corretores vendiam e compravam as mercadorias por conta dos capitães franceses, que podiam assim continuar seu tráfico noutros portos. Eram negociantes ricos e com crédito na Índia. Ora, neste período, havia uma grande escassez de numerário e o comércio local funcionava no sistema da conta dupla: dois negociantes de portos diferentes trocavam mercadorias, que eram avaliadas e assentadas a crédito do remetente, e vice-versa. No final do ano, confrontadas as contas, o devedor pagava a diferença. Isto dispensava ao máximo a utilização de numerário e até mesmo da letra de câmbio.

Os Kamat possuiam assim uma importante rede de contas duplas com Mahé16, Bombaim (Nasserwanjee), Pondichéri17 e a Ilha de França (Sociedade Monneron), na qual se iriam integrar Blancard e outros capitães franceses.18

A correspondência dos Kamat permite conhecer as transacções comerciais de Blancard em Goa, onde chegou em Abril de 1784. Ele vende, por intermédio dos Kamat, uma carga de cobre (por 43.455 rupias de Surate), 27 chapéus (por 169 rupias)19 e uma libra de coral (por 457 rupias).20 Mas o negócio local também incluía produtos comprados em outros portos da Índia e vendidos em Goa. Assim, Blancard trouxe de Mahé 1200 sacos de pimenta que vendeu aos Kamat.21

Mas, em troca de suas vendas, Blancard exige numerário e não mercadorias, porque quer comprar têxteis na costa do Coromandel (de boa qualidade e cuja procura é importante na Europa). Além disso, o mercado de exportação goês é limitado.22 De facto, Blancard só compra aos Kamat produtos para o seu consumo pessoal: 6 pares de meias de algodão (grande produção de Anjediva e que será muito apreciada pelos negociantes franceses para consumo e exportação), uma cana de ouro e aço (especialidade artesanal de Goa), sal, 6 barris das célebres mangas de Goa, 24 galinhas, e alguns percais.23

A fragata continuou depois para Pondichéri e outros portos da costa do Coromandel, antes de regressar à Ilha de França e à Europa. É preciso notar a sua escala em Lisboa (de 13 de Janeiro a 2 de Fevereiro de 1785), certamente no intento de fazer contactos para uma próxima viagem à Índia.

Esta primeira estadia de Blancard em Goa é interessante para a história comercial deste porto. De facto, os Kamat vêem nestes novos parceiros franceses a abertura possível de um novo mercado, que lhes permita escapar à asfixia do comércio com Portugal, ou à mono-polização progressiva do comércio goês por Bombaim.

Aproveitando então o regresso de Blancard à Europa, mandaram através dele 4 balas de têxteis indianos e uma caixa de canela. Pierre Blancard ficou encarregado de vender a mercadoria por conta deles.24 Impressionados com os lucros obtidos por Blancard na Índia com a sua venda de coral,25 os Kamat encomendaram-lhe, a título de pagamento, uma caixa de coral.26 Mas, em Março de 1786, escreviam para Marselha anulando o pedido porque a mercadoria já não encontrava compradores em Goa.27 A carta chegou depois da partida de Blancard que, em 1787, lhes entregou o coral.28 E o negócio foi um fracasso: o artigo não teve venda em Goa e foi mandado para Bombaim onde Blancard também não o conseguiu vender. O Francês acabou por levá--lo para Cantão onde igualmente não teve sucesso, tendo-o deixado com Nasserwanjee29, na volta para Bombaim. Após uma segunda tentativa também falhada30, os Kamat desistiram definitivamente desta via comercial e voltaram-se sobretudo para Bombaim.

Mas os Franceses continuavam satisfeitos com os seus negócios em Goa, visto Blancard elogiar as suas possibilidades comerciais ainda em 1806. Considera Goa como um dos mais bonitos portos do mundo apesar de não ter profundidade suficiente. Segundo ele, os negociantes franceses podiam lá comprar pimenta, canela, gengibre e percais. Para além disso, podiam também vender produtos franceses como o ferro, o aço, o chumbo, vinhos...31

Na realidade, o seu sonho, como o dos bonapartistas até 1801, era a possessão de Goa pela França.32 O seu argumento, como o dos militares, é a incompetência dos Portugueses:

Cais da Câmara Municipal de Marselha. Anónimo, Século XVIII (Museu da Marinha, Marselha).

"Le Portugal a fait de Goa un lieu de déportation. La garnison de cette ville est composée, en grande partie, d'hommes perdus de crimes, ces individus, que la justice aurait dû condamner aux derniers châtiments, les évitent en passant dans l'Inde en qualité de volontaires; ainsi donc les troupes portugaises à Goa sont plutôt un ramassis de voleurs et d'assassins, qu'une réunion d'hommes que l'honneur conduit au-delà des mers pour soutenir la gloire de leur nation. L'audace de ces brigands est telle, que la plupart des négociants sont obligés de faire garder, pendant la nuit, les magasins qui renferment leurs marchandises. Des domestiques affidés, auxquels ils confient cette garde, tirent des coups de fusil de temps à autre en signe d'éveil (....) Il est même très dangereux de se trouver éloigné de chez soi à la nuit close. On ne peut sortir alors sans être bien armé ou escorté par des hommes sûrs. (...) La police est muette, impuissante même."33

É preciso acrescentar que ele escreve numa época em que Goa está ocupada pelos Ingleses, que receiam desde 1797 que os Franceses tomem este ponto estratégico importante e façam dele uma base para conquistar a Índia.

O EIXO MARSELHA - GOA - CANTÃO

O decénio de 1780, na costa ocidental da Índia, assiste à explosão comercial de Bombaim, onde negociantes particulares e agentes da East India Company, compram enormes quantidades de algodão em rama, vindas de Surate, para as venderem em Cantão, único porto chinês aberto aos estrangeiros.

Uma vez assinada a paz com a Inglaterra, em 1783, os negociantes franceses integraram-se nesta rede comercial de Bombaim tanto mais que, a partir de 1785, com o restabelecimento do monopólio da Compagnie des Indes, 34 o comércio particular entre a França e a Índia francesa tornou-se praticamente impossível. A única solução é o comércio d'Inde en Inde. Os navios partiam de França com mercadorias destinadas sobretudo à Ilha de França e aos portos da costa ocidental da Índia. Com o produto das suas vendas, compravam algodão em rama em Surate ou Bombaim, que iam vender à China. No regresso, carregavam na Índia mercadorias encomendadas antes da partida e voltavam para a Ilha de França.

Por isso, Goa continua a ser um porto procurado por causa da sua proximidade de Bombaim (o que permite aos capitães seguirem os seus negócios simultaneamente nos dois portos), e porque lá podiam vender as mercadorias francesas.

A propósito das suas viagens efectuadas entre 1771 e 1784, Blancard registou que os seus armadores tiveram lucros de 50 a 60% sobre o investimento inicial. Mas após 1784, eles compreenderam quanto podiam ganhar com o mercado do algodão em rama e é este comércio que vai ser o objectivo da quinta expedição de Blancard. O negócio teve sucesso visto que, a acreditarmos nas suas afirmações, a viagem rendeu até 271% de lucro aos armadores.35

É com este incentivo que ele sai novamente de Marselha a 20 de Maio de 1786, como capitão da fragata Saint-Charles, comprada e armada pelos irmãos Audibert. Após uma curta estadia na Ilha de França, passa por Goa e chega a Bombaim a 10 de Março de 1787, onde ficará dois meses e meio a comprar algodão em rama.

Em Goa, deixa mais uma vez aos Kamat mercadorias para venderem por sua conta. Não existe nenhuma lista destas últimas e Blancard, no seu Manuel, junta as de 1784 com as de 1787. Deduzindo as vendas conhecidas em 1784, pode-se concluir que vendeu em Goa, em 1787, uma carga de cobre, 1000 resmas de papel, 20 balas de pano de Carcassone, 6 barris de cochonilha, 10000 copos, âncoras...36

Contrariamente à precedente viagem, Blancard não arrecadou numerário, investindo o produto da venda em 400 ou 500 corjas de percais, por conta da armação do navio. A viagem ao Coromandel é portanto substituída por compras na costa ocidental, o que lhe permite ganhar tempo para a viagem à China. Como Blancard afirma no seu Manuel que os percais de Goa não se vendiam em França,37 aquela transação visava certamente a sua venda na Ilha de França onde servia de moeda de troca no tráfico negreiro. Além desta carga, e semelhantemente ao que fizera em 1784, Blancard encomendou 24 camisas para uso próprio, cuja recolha encomendou aos cuidados de seu cunhado Guiol, de passagem por Goa entre 28 e 30 de Março de 1787.38

Os Kamat, mais uma vez, tentam aproveitar a estadia de Blancard para exportar uma caixa de canela para a China. Mas Blancard recusa por "falta de lugar".39 Verdade ou mentira, esta atitude denuncia que ele já não precisava de cultivar as suas relações com os Kamat para negociar, tendo já firmado na Índia o seu próprio crédito.

A sua operação em Bombaim foi um sucesso: antes de prosseguir para a China vendeu toda a carga (1400 balas de algodão em rama) a um negociante parse. Viajando assim por conta de outrem, teria lucros redobrados, visto que ganhava ao mesmo tempo na venda da mercadoria e no transporte.40

A Saint Charles partiu a 21 de Maio de 1787 de Bombaim para a China. Chegou a Macau a 28 de Julho e a Cantão a 2 de Agosto. Terminados os seus negócios, Blancard deixou a China em Dezembro e regressou a Bombaim, onde se instalou de 9 de Março a 17 de Maio de 1788.41

Encontram-se nos arquivos da Feitoria portuguesa de Surate, depositados hoje nos arquivos de Goa, vários documentos referentes a esta estadia. Por eles sabe-se que o capitão francês organizou esta sua quinta viagem sob contrato de associação com o negociante lisboeta José Ribeiro.

A Sociedade "Ribeiro, Hubens e Cia," composta de capitais ingleses e portugueses, é uma das mais importantes firmas comerciais portuguesas presentes no Oriente no final do Século XVIII e início do Século XIX. É dirigida, em Lisboa, por Francisco Henrique Hubens, José Ribeiro Neves, seu irmão Ambrósio Ribeiro Neves, e seu cunhado João Gomes Loureiro.42 Além de comerciar com a França,43 esta sociedade tinha representantes em Moçambique, Goa,44 Bombaim,45 Surate,46 e relações comerciais com Batávia,47 Pondichéri48 e a Ilha de França.49

Manufactura Real de Coral, Marselha. Desenho de M. de Remuzat, 1782, (Museu da Marinha, Marselha).

Até ao regresso de Blancard da China, não existe nenhum dado concreto sobre esta associação, que dura até 1788. Pelas datas de estadia de José Ribeiro em Bombaim (Março de1787)50 podemos supor que José Ribeiro acompanhou Blancard na sua viagem para a Índia a bordo da Saint Charles. Em 1787, após a partida de Blancard para a China, o representante da Sociedade em Surate diz dever ainda 50000 rupias à Sociedade Ribeiro e Blancard51. Pode-se pensar que estes dois últimos adiantaram fundos ou mercadorias da Europa, para a compra de mercadorias indianas, aos representantes da sociedade lisboeta em Surate e Bombaim.

Concretamente, a única transacção de Ribeiro e Blancard descrita aqui é a encomenda de têxteis que fazem em 1787, antes da viagem de Blancard à China, a Beizane Lorasgy, negociante de Surate, e empregado da Sociedade Ribeiro. De regresso a Bombaim, Blancard mandou imediatamente o seu segundo capitão, M. Chabert, buscar os 80 fardos de mercadoria a Surate. Mas recusou-a, por não ser conforme às amostras, e exigiu de volta os fundos adiantados para a sua compra ao representante da Sociedade Ribeiro em Bombaim. Finalmente, acabou por aceitá-la mas protestando contra o aumento dos preços. Assim ficou sanado o contrato com os representantes da Sociedade na Índia, que restituiram em têxteis 80000 rupias avançadas por Blancard e Ribeiro.52

Estes são os últimos contactos conhecidos de Blancard com a rede comercial portuguesa. A 17 de Maio de 1788 partiu de Bombaim, escalou em Goa para recolher os percais encomendados aos Kamat em 1787 e, depois de rumar a Pondichéri, fez derrota em direcção à Ilha de França e à Europa, em Março de 1789.

A sua sexta e última viagem não apresenta nenhum interesse quanto às relações com o mundo português. Já não é como capitão, mas como sobrecarga, que Blancard parte de novo, em 28 de Agosto de 1791, a bordo da Saint--Charles, rebaptisada Argonaute, comprada e armada por Laflèche e Raffinesque, negociantes de Marselha. A viagem é directa à Ilha de França e à China, após uma pequena escala no Malabar e em Malaca.

Blancard residiu em Cantão em 1787 e 1792. Nada prova que tenha visitado Macau porque as suas informações a respeito desta cidade são bastante gerais. Ele destaca somente o papel comercial da cidade, notando as poucas relações com Lisboa mas, em contrapartida, o activo comércio local dos negociantes portugueses com as Filipinas, o Sião, a Cochinchina, Bengala... E até o Malabar e Surate, onde participam nas exportações de algodão em rama.

Também descreve o gosto dos Chineses pelo tabaco brasileiro, de preferência a qualquer outro, e que Macau exporta para Cantão. Termina, enfim, dizendo que a língua comercial utilizada em Cantão é o Português.53

Cartaz das comemorações em honra de Pierre Blancard, 1938, Aubagne-Marselha.

O navio partiu de Cantão em Dezembro de 92, atingindo a Ilha de França em Fevereiro de 1793. Aí são informados de que a guerra foi declarada contra a Inglaterra. Blancard toma então o comando da fragata. Perto da Ilha de Santa Helena, são agredidos pelos Ingleses54 e compreendem que não conseguirão regressar a França. Seguem para Filadélfia, onde o navio será desarmado, em Maio de 1793.55

OS ÚLTIMOS ANOS

A vida de Pierre Blancard depois de 1793 está inteiramente ligada às cidades de Marselha e Aubagne (onde reside). A França perdeu, com a entrada em guerra contra a Inglaterra e Portugal, o seu direito de presença na Índia e no Extremo Oriente e só lá voltará em 1816. Além disso, muitos armadores ficaram arruinados com a Revolução Francesa, e o comércio de Marselha desabou.

Retirando-se da carreira marítima com 52 anos, Blancard continua porém a vida de negociante e dirige a sua casa comercial "Blancard et Cie", fundada no início dos anos 1780, associado ao seu filho Luís. Os únicos contactos que os Blancard terão com o ultramar será a viagem de Luís à Ilha de França em 1813.56

Negociantes no Cais de Marselha. Desenho de F. A. Vincent, 1795 (Museu da Marinha, Marselha).

Pierre Blancard iniciara também entretanto uma carreira de homem público. Já em 1790, ele tinha parücipado na comemoração da Tomada da Bastilha, em Paris, como deputado da Corporação dos Capitães de Marinha de Marselha. Mas não parece ter sido bem sucedido nos dois discursos que fez perante o rei e a rainha, em que advogava a urgência da reorganização do comércio marítimo.57 Na época do Consulado, ele é um dos fundadores e primeiros membros do Conseil d'Agriculture, Arts et Commerce de la ville de Marseille, futura Câmara de Comércio. Também é nesta época administrador e síndico da Caixa dos Inválidos da Marinha.58

Mas o que sobretudo o torna conhecido a nível nacional é a publicação do seu Manuel, resultado de 27 anos de experiência do comércio marítimo e da hidrografia. Bonapartista convicto59, dedicou a obra a Napoleão, e incentivou capitães e armadores a retomar as rotas dos oceanos. Daí certos exageros propagandistas do Manuel. Em recompensa desta obra e da sua experiência, Blancard foi eleito, em 1808, membro da Academia de Artes e Ciências de Marselha.

Enfim, dedicou-se à única actividade que o tornou célebre até hoje: a floricultura. De facto, Blancard foi o primeiro importador europeu do crisântemo. Em 1789, traz de Cantão três chantões (branco, roxo, e purpúreo) da famosa KO-HOA. Só o purpúreo sobreviveu até Marselha, e floresceu em 1790 no seu jardim de Aubagne. A flor é então baptizada de "crisântemo" (flor de ouro, em Grego) e espalha-se pelo sul da França. Chegou simbolicamente a Paris em 1808, onde Pierre Blancard a ofereceu à imperatriz Josefina.60

Pintura de M. Moulinneuf (pormenor), de fins do Século XVIII. Alegoria da Câmara de Comércio de Marselha (Museu da Marinha, Marselha).

NOTAS

1 Louis DERMIGNY, Cargaisons indiennes (1781-1793), S. E. V. P. E. N., Paris, 1960, Vol. 1, p. 16.

2 Pierre Blancard nasceu a 22 de Abril de 1741. Desposou em 1770 Marie Claire Anne Guiol (1749-1835), natural de Toulon, e da qual teve 3 filhos. Faleceu em Aubagne, pequena cidade próxima de Marselha, a 16 de Março de 1826. Albert BODIN, Histoire d' un quartier, La Blancarde, Philoffset, Marselha, 1983, pp. 19 a 26.

3 A fragata é armada por uma das mais ricas famílias de armadores de Marselha: os Audibert. Charles CARRIÈRE, Négociants marseillais au XVIIIe siècle, Institut Historique de Provence, Aix-en-Provence,1973, p. 342.

4 J. FOURNIER, Les voyages de Pierre Blancard, navigateur marseillais importateur du chrysanthème, Bulletin de la Société de Géographie et d'Etudes Coloniales de Marseille, 1910, p.73.

5 Em Francês utiliza-se a expressão "Commerce d'Inde en Inde" para designar o tráfico marítimo costeiro entre os países do Índico, ou entre o Índico e a China. O comércio directo entre a Europa e o Oriente é chamado "Grand Commerce". Philippe HAUDRÈRE, La Compagnie française des Indes au XVIIIe siècle, Paris, 1989, vol. III, p.810.

6 A Ilha de França, hoje Maurícia, pertenceu à França de 1715 a 1810, data em que foi tomada pelos Ingleses. Foi capital de todas as possessões francesas situadas além do Cabo da Boa Esperança de 1785 a 1810.

7 Capital de todas as possessões francesas situadas além do Cabo até 1785.

8 J. FOURNIER, op. cit. p. 79.

9 Este navio pertence também aos irmãos Audibert. Gaston RAMBERT, Histoire du commerce de Marseille, Librairie Plon, Paris, 1959, p. 578.

10 Jean de SER VIÈRES, Un hardi navigateur marseillais, le Capitaine Pierre Blancard, in Provincia, Société de Statistiques, d'Histoire et d'Arquéologie de Marseille et de Provence; Marseille, 1939, T. XIX-XX, N° 119, p.181.

11 Blancard volta a França como passageiro de outro navio em 1778. J. FOURNIER, op. cit. p. 80.

12 Esta fragata, de 400 toneladas e 115 homens de equipagem, foi construída em 1766 em Civita-Vecchia, e comprada pelo armador de Marselha, Sr. Chauvet. O seu capitão oficial era toscano (Francisco Squarci), mas na realidade quem Blancard assumia o comando. Archives de la Chambre de Commerce de Marseille, Série H, N° 41, 1782-85. J. FOURNIER, op. cit. p. 83.

13 Pierre de Suffren (1729-1788) foi comandante da esquadra francesa no Oriente de 1782 a 1783. Tomou Trincomalee aos Ingleses em 2 de Setembro de 1782.

14 "Les courtiers présentent les acheteurs, et ils sont garants de leur solvabilité moyennant le droit de courtage, qu'on leur paye à raison de deux pour cent (...) Les Français avaient pour leurs courtiers à Goa trois frères, dont les intérêts étaient communs. Ils étaient actifs, et ils méritaient la confiance de leurs commettans. Leur nom de famille était Camotin. Elle était en possession de servir les Français depuis plusieurs générations..." Pierre BLANCARD: Manuel du Commerce des Indes Orientales et de la Chine, Sube et Laporte, Marseille, 1806, p.154-155. Segundo Teotónio de Sousa, Camotim é uma corrupção europeia de "Kamat". Teotónio R. de SOUSA, French slave-trading in Portuguese Goa in Essays in Goan history, New Delhi, 1989, p. 120, 121.

15 "Les Parsis, qui sont quelque huit mille à Bombay, y tiennent la majeure partie des affaires. Monackjee est l'un des fils de Lowjee Nasserwanjee, contremaître réputé dans les constructions navales à Surate et qui ouvrit un chantier à Bombay vers 1735 (...) Les Nasserwanjee s'occupent non seulement de constructions navales; mais d'armement et de toutes sortes d'affaires." Louis DERMIGNY, op. cit., Vol. II, p. 284.

16 Porto francês no qual o negociante M. Chalamont é o principal correspondente e fornecedor de pimenta dos Kamat e também de Blancard. Xavier's Centre for Historical Research, Goa, French 3, fl. 42 r.

17 Os correpondentes de 1785 a 1790 são a Sociedade Coulon, Amalric e Cia, e a Sociedade de M. Carcenac. Estes negociantes são todos de Marselha e trabalham para a sociedade do armador Rabaud. Charles CARRIÈRE, op. cit. p. 906. Louis DERMIGNY, op. cit., Vol. I, p. 47,118; Vol. II, p. 41, 552, 249, 270.

18 Por exemplo, em Maio de 1788, Nasserwanjee paga a Pierre Blancard 1592 rupias de Goa, que os Kamat lhe deviam. Depois, debita a sua própria conta com os Kamat. X. C. H. R. French 3, fl.109 r.

19 A indústria do chapéu é tradicional em Marselha, e conheceu nos anos 1780 um forte aumento graças às exportações para as Antilhas e a Índia. G. RAMBERT, op. cit. p. 426.

20 Se acreditarmos no seu Manuel, ele diz ter vendido em Goa 1500 rupias de coral. Essa diferença, entre as suas afirmações e a correspondência dos Kamat, mostra que ele vendeu mercadorias a outros negociantes de Goa. P. BLANCARD, op. cit. p. 157,158. X. C. H. R. French 8, fl. 35 r.

21 X. C. H. R. French 8, fl. 35r. French 2, fl. 23 r.

22 "On trouve à Goa les diverses productions de la côte de Malabar, (poivre, tamarin, gingembre, toiles communes) mais cette ville n'en forme point un marché où les bâtiments puissent faire des achats importants. Tous les articles propres pour l'Europe sont accaparés par les deux ou trois navires portugais venus de Lisbonne, et autres navires particuliers, qui sont même souvent obligés d'aller achever leur chargement au bas de la côte". P. BLANCARD, op. cit. p. 159.

23 X. C. H. R. French 2, fl. 23 r e 25 r.

24 X. C. H. R. French 3, fl.39 rv. French 4, fl.114 r.

25 Entre 28 e 54 % de lucro sobre o preço da compra. P. BLANCARD, op. cit. p. 145.

26 X. C. H. R. French 3, fl. 39 r.

27 X. C. H. R. French 3, fl. 53 r.

28 X. C. H. R. French 3, fl. 39 rv.

29 Porém, no Manuel, ele afirma ter vendido com sucesso todo o seu próprio coral nesta viagem. X. C. H. R. French 3, fl. 44 rv, 50r, 109 r. P. BLANCARD, op. cit. p. 145.

30 Em 1787, antes da chegada de Blancard a Goa, os Kamat fazem uma segunda tentativa de exportação para Marselha. Mandam pelo capitão Pierre Monneron 9 balas de têxteis indianos, 39 sacos de caju de Goa, 50 cabazes de óleo de coco, 9 balas de canela, 5 caixas de porcelana chinesa... Além da mercadoria estragada pelo caminho, os Kamat nunca recuperarão o dinheiro da venda, porque a casa Monneron abriu falência em 1792. X. C. H. R., French 3, fl. 56 rv, 120 rv. French 4, fl. 56 r, 59 rv.

31 Pierre BLANCARD, op. cit. p. 120.

32 "Si la France eût possédé Goa, qu'elle l'eût fortifiée, et qu'elle en eût fait le chef-lieu de ses possessions dans l'Inde, cette ville n'eût pas été envahie aussi facilement que Pondichéry l'a été dans le temps." Pierre BLANCARD, op. cit. p. 152.

33 Pierre BLANCARD, op. cit. pp. 151 a 158.

34 "De 1785 à 1790, l'Inde française redevient à nouveau monopole de la Compagnie en ce qui concerne le Grand Commerce. l'Ile de France et Bourbon restent une zone de commerce libre". Philippe HAUDRÈRE, op. cit. Vol. III, p. 810.

35 J. FOURNIER, op. cit. p. 72.

36 A correspondência dos Kamat indica somente 3 barris de cochonilha, o que mostra que Blancard vendeu mercadorias a outros negociantes. Pierre BLANCARD, op. cit. p. 157, 158.

37 Pierre BLANCARD, op. cit. p. 153.

38 X. C. H. R. French 3, fl. 46 r, 47 v.

39 X. C. H. R. French 3, fl. 48 rv, 49 r.

40 Ele compra a carga por 80.710 rupias e vende-a em Bombaim por 135.027 rupias, o que lhe dá um lucro de 70%. P. BLANCARD, op. cit. p. 162, 184, 187.

41 X. C. H. R. French 3, 99 rv.

42 José Ribeiro casou com Ana Isabel Joaquina Loureiro. Historical Archives of Goa, Feitoria de Surate, Livro 2603, fl. 242, 227, 235.

43 José Ribeiro vai a Toulon em Maio de 1783. A sociedade corresponde-se também com "Cabarrus et Fils", de Bordéus. H. A. G., Feitoria de Surate, Livro 2603, fl 62,63,254.

44 Dirigida por Manuel José Gomes Loureiro, Desembargador da Relação de Goa, e pelo negociante Sebastião Gracias (que trabalha com os Franceses desde 1771, em nome da Sociedade). Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Caixas de Moçambique, C. 111, D. 71, 1805. H. A. G. Feitoria de Surate, Livro 2533, fl.11 r.

45 O representante da sociedade, é Francisco Gomes Loureiro, que assumirá as suas funções em Bombaim até 1797. Blancard negocia com ele em 1784 e 1788. A Sociedade tem também importantes relações comerciais com um dos mais ricos negociantes de Bombaim: David Scott. H. A. G. Feitoria de Surate, Livro 2533, fl. 11r. X. C. H. R. French 2, fl. 23 r.

46 Quando Blancard vai a Surate, em 1787, o feitor português é Jacinto Domingues, que é também o representante da Sociedade Ribeiro. Quando ele morre, em 1797, é substituído por Francisco Gomes Loureiro, que até ali representava a Sociedade em Bombaim, e que é ao mesmo tempo nomeado consul geral de Portugal em todos os portos ingleses da costa até Bombaim. Morre em 1805 e é substituído imediatamente por José Gomes Loureiro, que até essa data ocupara o cargo de provedor do governador de Rios de Sena, em Moçambique. H. A. G. Feitoria de Surate, Livro 2354, fl 153.

47 No final do ano de 1788, a Sociedade liquida a sua conta dupla com Johannes Manuel Jacob Jan et Warden Gaspar. H. A. G., Feitoria de Surate, Livro 2533, fl. 307.

48 José Ribeiro encontra-se em Pondichéri no início de Julho de 1787. H. A. G., Feitoria de Surate, Livro 2533, fl.11.

49 A Sociedade tem relações comerciais com a Sociedade "Monneron e Cie" Em 1788, José Ribeiro volta para a Europa num navio francês, e faz escala em Junho do mesmo ano na Ilha de França. H. A. G., Feitoria de Surate, Livro 2533, fl. 307.

50 X. C. H. R. French 3, fl.44v. French 8, fl. 10 r.

51 H. A. G., Feitoria de Surate, Livro 2533, fl. 11 r.

52 H. A. G., Feitoria de Surate, Livro 2533, fl. 228 a 232,256, 257.

53 P. BLANCARD. op. cit. p. 387,388,415,423,439.

54 Archives d'Outremer, Aix-en-Provence, Inde-Correspondance générale, Carton 536, dossier 1013, 1794, 11 Frimaire, an 3.

55 J. FOURNIER. op. cit. p. 223, 224.

56 Informação comunicada pelo Senhor Georges Bergoin, da Academia de Marselha.

57 Existem nos arquivos municipais de Marselha (Série 33 H 3), 7 cartas mandadas de Paris por Pierre Blancard em 1790, e nas quais dá conta das suas representações nas Festas da Federação, assim como dos seus discursos.

58 J. De SERVIÈRES, op. cit. p. 191.

59 Blancard pertence a uma família ligada ao imperador: seu primo e amigo, o almirante Ganteaume, participou na Campanha do Egipto, protegendo a retirada de Bonaparte para França em 1799. Lucien GRIMAUD, Aubagne Hier et Aujourd'hui, Aubagne, 1978. p. 41.

60 J. De SERVIÈRES, op. cit. p. 177.

* Estudos na Escola Normal Superior de Paris. Mestrado (1985) e DEA (Diplôme d'Études Appronfondies (1987) pela Universidade da Sorbonne (Paris). Prepara a tese de Doutoramento sob a direcção do Prof. Jean Aubin da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris): "A presença francesa nas colónias portuguesas do Índico no Século XVIII". É desde 1987 Professora na Universidade de Provence (Aix-en-Provence).

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