Artes

SUNQUA E O PANORAMA CHINÊS DO RIO DE JANEIRO

José Roberto Teixeira Leite*

Precedida pelos prospectos e perspectivas de meados do Setecentos, a pintura de panoramas surgiu em fins do séc. XVIII quando, pela primeira vez, a praticou um obscuro artista alemão, Breising. Seu objetivo era a representação pictórica ou gráfica de um cenário natural, cidade ou episódio histórico, fixado em minúcia topográfica desde dado ponto de observação por alguém que, ao executá-la, efetuasse um giro de até 360° em torno de si próprio. Tornou-se moda na Europa em começos do Oitocentos, quando exposições do gênero chegaram a despertar sensação, atraindo multidões de curiosos, especialmente na Inglaterra e na França.

No devido tempo, a voga atingiria o Brasil onde, desde muito, uma cidade em especial, o Rio de Janeiro, impusera-se às atenções internacionais por causa de sua espetacular topografia e pela beleza de sua vasta baía. Em pouco, ao lado de representações pictóricas de cidades como Londres, Paris, Roma, Amsterdam, Atenas, Lisboa, Nápoles, Madrid, Viena e outras, principiaram a ser exibidos em Paris e Londres panoramas do Rio de Janeiro; o primeiro mostrado em 1821 na capital francesa, obra de G. Rommy, baseada em desenhos executados in loco por Félix-Emile Taunay.

Panoramas do Rio de Janeiro e de sua baía da Guanabara existem, ou existiram, em bom número, bastando mencionar, para além do de Rommy, os de autoria de Burford, Ducany, Shilliber, Pasini, Vidal, Landseer, Chamberlain, Kretschmar, Fielding, Bate e - talvez o mais espetacular de todos, posto que anacrônico - o que Vítor Meireles realizou entre 1885 e 1887 com a ajuda do jovem pintor belga Henri Langerock. Gigantesca "máquina" de l.667 metros quadrados, exposta primeiro em Bruxelas e depois na "Exposição Universal de Paris" antes de o ser no próprio Rio de Janeiro onde, em começos do nosso século, arruinou-se.

De todos esses panoramas elaborados in loco e, mais usualmente, à distância, a partir de originais alheios, nenhum porém reveste-se de maior curiosidade do que um panorama chinês da cidade, remontando à primeira metade do séc. XIX e do qual são hoje conservadas três pinturas (das quatro de que originalmente se compunha), propriedade de ilustre colecionador brasileiro. Seu autor é o trade painter Sunqua, de atividade documentada primeiro em Cantão e depois em Macau entre 1830 e 1870, e que certos autores brasileiros até admitem possa ter estado em nosso país, nas décadas iniciais do Oitocentos.

Antes de prosseguir, convém esclarecer o que se entende por trade painter, e que tipo de serviço artístico lhe competia, na China do século passado. Trade painters - a designação inglesa é hoje universalmente consagrada - eram pintores chineses que, com técnica e em estilo ocidentais, trabalhavam para clientes europeus ou norte-americanos realizando, sob encomenda, retratos, pinturas de cenas portuárias e do litoral, vistas de cidades, representações de navios, etc. Mantinham seus ateliês em Cantão, Whampoa, Macau, Hong-Kong, Xangai, Pequim e mesmo, ao menos em um caso excepcional, fora da China - em Calcutá; tendo permanecido ativos de fins do séc. XVIII até os últimos anos do Oitocentos.

Em seu livro Illus-trations of China and its people, 1 publicado na Inglaterra em 1873/4, o fotógrafo John Thomson, que peregrinara pela China entre 1862 e 1872, mostra-nos um desses trade painters - Lamqua, então ativo em Hong-Kong e antigo aluno de Chinnery - em seu ateliê, no ato de concluir um retra-to de grupo. O pintor é um homem ainda moço, e está sentado a uma banqueta diante de uma mesa-cava-lete sobre a qual trabalha. Seu cabelo acha-se arrematado num rabicho que desce com elegância até ao chão, enquanto, no apertado aposento, podem ser vistos alguns móveis e umas poucas pinturas - figuras em sua maioria, mas também uma cena marítima com embarcações chinesas. O texto de Thomson sobre a fotografia é tão importante para caracterizar a atividade desses artistas ocidentalizados, que não há como não transcrevê-lo, em livre tradução:

Lamqua foi um aluno chinês deChinnery, notável artista estrangeiro falecido em Macau em 1852. Lamqua produziu um bom número de excelentes trabalhos a óleo, ainda hoje copiados pelos pintores de Hong-Kong e Cantão. Tivesse ele acaso vivido em outro país, e seria o criador de uma esc ola de pintura. Na China, seus seguidores não lograram captar o espírito de sua arte. Limitam-se a fabricar imitações servis, copiando obras de Lamqua ou de Chinnery, ou de outro qualquer, ou seja o que for, só porque tais imitações têm de ser concluídas e pagas num prazo determinado, a tanto por pé quadrado.

Há em Hong-Kong um número de pintores estabelecidos, mas todos fazem o mesmo tipo de trabalho, e possuem a mesma tabela de preços, que variam segundo as dimensões da tela. Sua ocupação consiste, sobretudo, em ampliar fotografias. Cada ateliê pos--sui seu corretor, que esquadrinha, na baía, os barcos que chegam, obtendo entre os marinheiros estrangeiros muitos clientes. Tais marinheiros encomendam o retrato de Mary ou de Su-san, tão grande e tão barato quanto possível, e que deve estar pronto, emoldurado e embalado para viagem provavelmente em 24 horas. Os pintores dividem suas tarefas do seguinte modo: um aprendiz dedica-se a pintar corpos e mãos, enquanto o mestre executa a fisionomia. Assim o trabalho é feito com inacreditável rapidez.

"Lamqua em seu estúdio". Auguste Borget Gravura publicada em La Chine ouverte, 1845. Reprodução extraída de: CONNER, Patrick, George Chinnery, 1774-1852: artist of India and the China coast, Woodbridge, Suffolk, Antique Collectors' Club, 1993, p. 263.

Cores atraentes são livremente utilizadas e, as--sim, o ideal de beleza de Jack, por vezes, é representado usando um vestido azul celeste, sobre o qual foram figu-radas, com prodigalidade, um maciço colar de ouro e outras peças de joalheria. Tais pinturas seriam belas obras de arte, fosse melhor o desenho, e as cores brilhantes dispostas com propriedade; mas todas as distorções de fotografias mal tiradas são fielmente transpostas para uma escala maior. O melhor que tais pintores executam são pinturas de navios, nativos ou estrangeiros, maravilhosamente desenhados. Para aumentar uma figura, eles traçam sobre a tela quadrados que correspondem aos quadrados menores nos quais dividem a figura a ser copiada."

Todos esses artistas chineses trabalhando para uma clientela pouco exigente de marinheiros e viajantes apressados eram até bem pouco incluídos com afoiteza numa ambígua "Anglo-Chinese School", e suas obras vendidas sem maiores exigências nos leilões de pintura topográfica de Londres ou Hong-Kong; ou então viam-se classificados, sem maiores explicações, numa elástica "Escola de George Chinnery" - o artista inglês que, radicando-se em 1825 em Macau, de então até 1852, quando aí faleceu, dedicou-se à pintura de assunto ou motivo chinês.

Esse cenário impreciso, no qual leiloeiros faziam a vez de historiadores de arte, só se modificaria em 1972, quando Carl Crossmann publicou seu livro The China trade.2 Nessa obra pioneira, Crossmann elencou nada menos de 37 trade painters, desde os mais antigos -Spoilum, ativo em Cantão entre 1785 e 1810, e Pu Qua, autor de boa parte das ilustrações para o livro The costumes of China,3 de George Henry Mason, aparecido em 1804 - até Lai Fong que, fixado em Calcutá, nessa cidade indiana ainda trabalhava em 1900.

Produziam, esses 37 artistas, retratos, perfis de navios, cenas portuárias, paisagens, miniaturas, mapas e cenas citadinas, trabalhando a óleo ou aquarela sobre papel, tela, vidro ou polpa de árvores; La Sung, atuante entre 1850 e 1885, era ainda fotógrafo. A maioria vivia e trabalhava em Cantão, durante a primeira metade do séc. XIX; na segunda metade, Hong-Kong substitui aquela cidade, por motivos óbvios.

Um único pintor -justamente Sunqua - acha-se elencado como tendo mantido ateliê em Macau. No entanto, o número desses artistas chineses ocidentali-zados deve ter sido muitíssimo maior, e prova disso é que, em seu livro Os Chins de Macau,4 Manuel de Castro Sampaio informa que só em Macau, por aquela época pouco mais ou menos, achavam-se em atividade 152 pintores e mais 2 fotógrafos, sendo que dos pintores nada menos de 22 eram "retratistas a óleo", isto é, trabalhavam por encomenda em técnica ocidental. Não é impossível que um desses pintores recenseados em 1867 por Castro Sampaio fosse Sunqua, o qual, como parece indicar a inscrição "Macau" que se lê numa etiqueta pespegada ao dorso de uma sua pintura tardia pode, ao fim da vida, ter trocado seu ateliê, de Cantão para Macau.

Dos pintores estudados por Crosmann, Sunqua é dos mais destacados. Foi ele dos primeiros artistas chineses que adotaram o hábito de assinarem suas pinturas à maneira ocidental, na frente do quadro, usualmente embaixo à direita, em pequeninas letras latinas de forma. Sua atividade parece ter-se desenvolvido por 40 anos ou mais, de 1830 até 1870 - período suficiente para que se lhe possa reconstituir, em traços gerais, a trajetória estilística. Além e acima de tudo, a qualidade do que nos resta de sua produção é, via de regra, elevada, sobretudo no que respeita à representação de embarcações, a ponto de ser considerado, pelo mencionado estudioso, como um dos três melhores pintores chineses de seu tempo; os dois outros sendo o "Mestre do Grey-hound", que trabalhou em Cantão e Whampoa entre 1825 e 1840, e o "Pintor do Henry Tuke", ativo em Cantão na década de 1830.

Um e outro desses artistas por identificar pos--suem estilo afim ao de Sunqua, e há quem sustente serem o "Mestre do Greyhound" e Sunqua uma só pessoa; por outro lado há quem pense em que "Sunqua" não designe propriamente um indivíduo, mas sim o trabalho coletivo de um ateliê, do qual Sunqua funcionasse como uma espécie de maestro-orquestrador- tantas e tão diferentes estilisticamente são as pinturas que levam sua assinatura ou marca.

Os clientes dos trade painters, já o dissemos, eram marinheiros, embarcadiços, pequenos comerciantes, militares ou viajantes ocidentais que, ao termo de sua permanência na China, encomendavam uma pinturinha a algum deles, para levar na bagagem uma lembrança da terra. Coisa mais ou menos parecida ocorrera desde pelo menos 1730 cúm porcelanas, muitas das quais exibindo "retratos" de navios - holandeses, como o Vrijburg (1756); ingleses, como o Latham (1755) ou o Earl of Elgin (1764); suecos, como o Calmar (1742); norte-americanos, como o Grand Turk (1785) ou o George Washington (1794); portugueses, como o Brilhante (1820), entre tantos outros - bem como cenas alegóricas, do tipo O adeus do marujo ou O retorno do capitão, peças votivas: Feliz regresso, etc.; tudo finamente desenhado e esmaltado. Era natural que tais "retratos" de navios fossem encomendados por marinheiros e capitães; no que respeita a pinturas eram também comuns as encomendas de vistas de portos e cidades da China.

Até 1840 as cenas portuárias eram fornecidas em séries de quatro vistas diferentes - de Cantão, Whampoa, Macau e da Boca Tigris, sendo de observar que o Peabody Museum de Salem, Estados Unidos, possui um destes primitivos sets, de autoria, aliás, de Sunqua. Após 1840, uma vista de Hong-Kong passou usualmente a substituir a de Boca Tigris, quando as pinturas eram em número de quatro; e, se eram seis, às quatro originais acrescentaram-se duas novas representações, de Hong-Kong e de Xangai. Muito raramente representariam vistas de outros portos frequentados pelos trade ships, como Singapura, Cabo, a ilha de Santa Helena, etc.; pinturas essas que volta e meia costumam aparecer nos catálogos dos leilões londrinos. Cenas de portos americanos são porém desconhecidas, o que torna o panorama chinês do Rio de Janeiro, de Sunqua, documento de extraordinária importância, único de seu tipo como parece ser.

A história desse panorama chinês do Rio de Janeiro já completou 150 anos. Com efeito, em 1840, o "Jornal do Comércio"5 publicava o seguinte anúncio, tal como o transcreveu Marques dos Santos, no estudo As belas artes na Regência6

"Auto-retrato". Lamqua Inscrição no dorso da moldura: "Lamqua, aos 52 anos [sic], por ele próprio, Cantão, 1853". Museu de Arte de Hong-Kong. Reprodução extraída de: CONNER, Patrick, George Chinnery, 1774-1852: artist of India and the China coast, Woodbridge, Suffolk, Antique Collectors' Club, 1993, p. 264.

"Cannel Southam e C. fazem leilão, hoje, terça-feira, às 4 horas da tarde em ponto, na chácara do Sr. Swinfen Jordan, no alto do morro da Glória (logo na entrada do portão de ferro do Sr. Russel), de toda a escolhida mobília, prata, cristais, porcelanas, casquinhas, pinturas, gravuras, biblioteca, vinhos, etc. pertencentes ao Sr. Jordão (sic), que se retira no paquete para a Europa, constando de 2 lindos sofás de jacarandá com assentos e encostos de clina, mesas de jogo, redondas, de sofá, quadradas, de xadrez, de costura, etc., etc., de mogno e jacarandá, guarda-roupas, cômodas, toucadores, aparadores para sala de jantar, de mogno massiço, consolo dourado com pedra de mármore, espelhos, etc.; mesa de jantar para 24 pessoas, guarda-livros, secretárias, guarda-louça, serviços para jantar, chá, café e sobremesa, de porcelana; vidros, cristais e casquinhas, um serviço de pratos cobertos de metal fino, guarnecidos de prata, serviço para chá e café de dito, diversas gravuras-superiores em molduras e pastas, quatro ricas pinturas a óleo, chinesas, formando o panorama do Rio de Janeiro; um piano-forte do autor Broadwood,'uma porção de vinhos bons de Xéres, Madeira, Porto e Bordeaux, algumas excelentes obras em italiano, português e inglês; um excelente telescópio grande com vidros, astronômico, pedestal de bronze e caixa de mogno; máquina de engomar, bandeira da China; selins, cabeçadas e freios, etc." (grifos não originais).

Pinturas chinesas já existiam no Brasil desde os princípios do séc. XIX, e provavelmente desde muito antes: viu-as Maria Graham, em 1821, na sala de jantar de uma residência em Pernambuco, lado a lado com gravuras inglesas, como escreveu em seu Diário de uma viagem ao Brasil;7 eram de qualquer maneira muito raras e, no caso das citadas por Graham, nada indica fossem obra de trade painters, e sim pinturas chinesas de estilo chinês e vasadas em técnica também chinesa. De maneira que, ou muito nos enganamos, ou as quatro pinturas a óleo, chinesas, formando um panorama do Rio de Janeiro e que foram propriedade de Mr. Swinfen Jor-dan, são as únicas do tipo de que se tem notícia no Brasil.

Jordan, contudo, não possuía apenas quatro pinturas chinesas: tambémpossuía "uma bandeira da China", o que talvez indique que nutria por esse país longínquo interesse invulgar, quem sabe se por ter estado ou estar ainda ligado a ele por vínculos de natureza comercial. E aqui, cabe a indagação: o panorama terá sido encomendado a Sunqua por Swinfen Jordan ele mesmo, ou o Inglês tê-lo-ia adquirido no Rio de Janeiro a um proprietário anterior? Swinfen Jordan só se retirou do Brasil a 2 de Dezembro de 1841, com destino não à Europa, mas a Buenos Aires.

Poucos anos mais tarde, em 1847, no mesmo "Jornal do Comércio",8 de novo era colocado à venda o panorama chinês do Rio de Janeiro, como segue:

"Quatro vistas do Rio de Janeiro, tomadas do lado do mar, em pintura a óleo a mais perfeita possível, por autores célebres da China, a preços razoáveis; vendem-se na Rua do Ouvidor, n° 36."

Os dois anúncios do "Jornal do Comércio" não descem a pormenores tais como dimensões ou natureza do suporte empregado, e nem sequer citam o nome do autor - ou dos autores, visto, como no anúncio de 1847, dar a entender serem as quatro vistas devidas a mais de um pintor. Como porém seria improvável a existência de mais de um panorama chinês do Rio de Janeiro, quando a de um só é já tão surpreendente, força é concluir que a série leiloada em 1840 e de novo colocada à venda em 1847 seja a mesma da qual hoje podem ser vistas três pinturas na Coleção Paulo Fontainha Geyer, no Rio de Janeiro; ignorando-se o paradeiro da quarta e última pintura.

Panorama do Rio de Janeiro, Sunqua

Desde o convento da Ajuda e morro do Castelo até o final dã ilha das Cobras.

Óleo s/tela, ass., s/d [ca. 1830], 40 x 124 cm

Colecção Paulo Fontainha Geyer, Rio de Janeiro

Foto: Dr. Paulo Berger

Após a referência de 1847, no "Jornal do Comércio", as pinturas reaparecerão apenas em 1952, num leilão da Sotheby's, em Londres, tendo sido, na ocasião, adquiridas por certo Mr. Nothman. Tomaram mais tarde o rumo do Brasil, onde ainda se encontram, tendo sido expostas em 1972 no Museu Nacional de Belas Artes -exposição Memória da Independência: 1808-1825,9 e referenciadas na obra Rio antigo,10 coordenada por Paulo Berger. Nesse livro, a nota biográfica relativa a Sunqua, devida a Donato Mello Júnior, afirma-o "possivelmente Chinês", e aceita a versão segundo a qual "atuou no Rio de Janeiro em princípios do século XIX" - o que discutiremos mais adiante.

Fixemo-nos, antes, nas três pinturas, assim descritas por Gilberto Ferrez, no catálogo da mencionada mostra Memória da Independência, em 1972:

"320 Panorama do Rio de Janeiro, Sunqua Desde o convento da Ajuda e morro do Castelo até o final da ilha das Cobras. Óleo s/tela, ass., s/d, 40,0 x 124,0

No primeiro plano, diversos tipos de embarcações menores. No segundo, o convento da Ajuda, Igreja de Sta Luzia com primitiva sineira, ponta do Calabouço com a Casa do Trem. Atrás, a Misericórdia e morro do Castelo com a Sé velha, casarão do Colégio e Igreja dos Jesuítas e o Pau da Bandeira (telégrafo semafórico); as duas torres de S. Francisco de Paula, casas da rua Misericórdia, a torre única da Igreja de S. José; o Paço, já com o terceiro pavimento do lado do mar; o largo do Paço e casas do Teles; a Sé Catedral e Igreja do Carmo com sineira provisória; a praia do Peixe, Igreja da Candelária já com duas torres: navios no Paço em frente à praia de, Braz de Pina, o S. Bento e ilha das Cobras e suas fortificações.

321 Panorama do Rio de Janeiro, Sunqua Desde a ilha de Villegaignon, Pão de Açúcar até Corcovado e Lapa. Óleo s/tela, ass., s/d, 40,0 x 124,0

No primeiro plano, veleiros ancorados próximo à ilha de Villegaignon e diversos tipos de embarcações menores com seus remadores. Notar dois escaleres que parecem ser da guarda-mor ou da Alfândega do Rio, pois hasteam a bandeira imperial e seus remadores estão uniformizados e transportam personagens de posição. Vê-se o casario do Flamengo, Glória até a Lapa e Sta Teresa. Ao fundo, as montanhas da cidade.

322 Panorama do Rio de Janeiro, Sunqua Desde a ponta da armação até a entrada da Barra. Óleo s/tela, s/d, 40,0 x 124,0

No primeiro plano veleiros e embarcações menores. No segundo plano, Niterói, Boa Viagem, Jurujuba, o Pico, Fortaleza de Santa Cruz e entrada da Barra."

Panorama do Rio de Janeiro, Sunqua

Desde a ilha de Villegaignon, Pão de Açúcar até ao Corcovado e à Lapa.

Óleo s/tela, ass., s. d. [ca. 1830], 40 x 124 cm

Coleção Paulo Fontainha Geyer, Rio de Janeiro

Foto: Dr. Paulo Berger

A fatura dessas três pinturas revela certa dureza, um desenho mastigado e pouco éspontâneo. Isso pode significar que Sunqua partiu de um original alheio, ao qual teve de se ater o mais fielmente possível, como pode também denunciar o artista nos primórdios de sua carreira, às voltas com problemas de técnica e hesitações. A representação de embarcações, morros e edifícios é fiel, sendo que alguns barcos e certos dorsos de montanhas revelam tênue achinesamento. O mar, esquematizado, trai dificuldades de execução. Quanto à composição, o espaço pictórico acha-se dividido em três faixas horizontais; as duas mais elevadas reservadas à representação do céu, de marcante efeito luminoso, pelo qual perpassam nuvens de extrema leveza, resolvidas em pinceladas delicadas e matizadas de violetas, rosas, azuis e brancos. Intensa luminosidade banha os três óleos, sendo de realçar os reflexos, de suaves tonalidades róseas, que os cascos das embarcações projetam sobre as tranquilas águas da Guanabara. Diríamos, para sintetizar, que nessas pinturas Sunqua revela-se mais artista que propriamente pintor, uma personalidade em plasma-ção, à procura de si mesma.

Tal impressão é ainda reforçada quando se com-para as pinturas do Rio de Janeiro aos poucos óleos de autoria comprovada do artista, oito dos quais conserva-dos na "Robinson Room" do Peabody Mu-seum, em Salem, Mass.; as obras de tema brasileiro aparentam-se com nitidez àquelas que Carl Crossmann situa em princípios da carreira de Sunqua:

"Sunqua's earliest works are easily identifi able by their distinctive compositions and palette to-nalities. A typical ship painting has the ship neatly placed in the water with a view of the island of Lin Tin behind. The water is painted in a rather free man-ner with white highlights on the waves and a streak of light running across it in the foreground. The hills beyond and the sky have a warm color in them, and the overall palette is delicate and light. The ships are often a bit small for the canvas size, especially when compared with the placement of the vessels by the Hong Kong painters in the late period of 1850 to 1880."11

Mais tarde, o estilo de Sunqua modificar-se--ia tanto, que há quem questione se não seriam dois os pintores que utilizaram essa assinatura, um, mais velho, trabalhando dentro do espírito por assim dizer neoclássico, o outro denotando já os efeitos da revolução romântica. Tal hipótese não é de modo algum descabida, quando se sabe que não foi inusitado, na China das primeiras décadas do Oitocentos, um trade painter ter-se apropriado do nome de outro.

Panorama do Rio de Janeiro, Sunqua

Desde a ponta da armação até a entrada da Barra.

Óleo sobre tela, ass., s. d. [ca. 1830], 40 x 124 cm

Colecção Paulo Fontainha Geyer, Rio de Janeiro

Foto: Dr. Paulo Berger

No caso específico das pinturas que compõem o panorama do Rio de Janeiro, duas assinadas "Sunqua", estamos obviamente diante de obras realizadas antes de 1840: possivelmente na década de 1830, e até, quem sabe, diante da produção de Sunqua num recuadíssimo estágio de sua carreira -na segunda metade da década de 1820. Isso traz à baila a possibilidade, já aventada por outros pesquisadores brasileiros, de que esse artista chinês tenha estado no Rio de Janeiro. É, pelo menos, o que está escrito no catálogo da exposição de 1972 do Museu Nacional de Belas Artes:

"Existem apenas indicações de que era Chinês e que vendeu seus quadros no Rio nas primeiras décadas do século XIX."

Que viveram centenas de Chineses no Rio de Janeiro desde Setembro de 1814 - quando o Príncipe Regente Dom João, futuro Dom João VI, fez vir de Macau, a bordo do D. MariaI, um grupo numeroso deles, destinado à cultura do chá no Jardim Botânico- não existem dúvidas. Os nomes desses primeiros cúlis são desconhecidos, e, embora muito difícil, não é impossível que entre eles houvesse algum artista. Fracassada a tentativa do cultivo do chá, tais Chineses foram empregados em outros afazeres; uns poucos podem ter retornado à China, mas a maior parte permaneceu no Brasil, como bem explica Von Martius, na obra Viagem ao Brasil:12

"A maioria tinha ido para a cidade, a fim de andar pelas ruas como vendedores ambulantes, oferecendo pequenãs bugigangas chinesas, especialmente tecidos de algodão e foguetes."

Teria sido Sunqua um desses vendedores ambulantes? Impossível precisar, tanto mais que os poucos Chineses elencados nos três tomos do Registro de estrangeiros, 13 relativos aos anos de 1808 a 1839, exibem nomes cristãos - Cipriano Rangel, Joaquim Pereira, Antônio Francisco, João Félix do Araújo, etc.- e não mais os seus nacionais. Disfarçar-se-á sob um desses nomes ocidentais o futuro pintor Sunqua, então extremamente jovem? Fica a pergunta, que só pesquisas futuras poderão talvez elucidar.

De qualquer modo, a presença de Sunqua no Rio de Janeiro não seria necessária para que pudesse executar com extrema fidelidade as vistas que lhe fossem encomendadas, para isso bastando que lhe fornecessem desenhos ou gravuras dos sítios a serem reproduzidos. Afinal, assim foram feitos muitos dos panoramas do Rio de Janeiro de que temos notícia, e assim trabalharam, na China, os pintores que decoraram com vistas da baía da Guanabara ou da cidade do Rio de Janeiro leques históricos, como o comemorativo da chegada da Corte, em 1808, ou o da aclamação de D. João VI, em 1818 (com cena inspirada em Debret).

Publicado in Revista de Cultura,

N°22, II Série, Janeiro/Março de 1995.

NOTAS

1 THOMPSON, John, Illustrations of China and its people, London, Sampson, Marston, Low and Searle, 1873-1874.

2 CROSSMANN, Carl L., The China trade, 2a ed. ampliada, Woodbridge, Suffolk, Antique Collector's Club, 1991, p.55.

3 MANSON, George Henry, The costumes of China, London, William Miller, 1804.

4 SAMPAIO, Manuel de Castro, Os chins de Macau, Hong Kong, Typografia de Noronha e Filhos, 1867, p. 134.

5 "Jornal do Commercio", Rio de Janeiro, 19 Mar. 1840.

6 SANTOS, Francisco Marques dos, As belas artes na Regência, "Estudos Brasileiros", Rio de Janeiro, s. 5, 9 (25-7) 2° Semestre 1942, pp. 128-9.

7 GRAHAM, Maria, Diário de uma viagem ao Brasil, Belo Horizonte, Itatiaia, EDUSP, 1990, p. 158.

8 "Jornal do Commercio", Rio de Janeiro, 9 Jun. 1847.

9 MEMÓRIA DA INDEPENDÊNCIA, Rio de Janeiro, 1972, Memória da Independência: 1808-1825, Rio de Janeiro, Museu Nacional de Belas Artes, 1972, n° 320-2.

10 BERGER, Paulo, cood., Rio Antigo, Rio de Janeiro, Kosmos, 1990, pp. 41-2.

11 CROSSMAN, op. cit., p. 55.

12 MARTIUS, Karl Friedrich Philip von, Viagem ao Brasil, Rio de Janeiro, Imprensa Nacional, 1938, vol. l, p. 96.

13 RIO DE JANEIRO, Arquivo Nacional, Registro de estrangeiros: 1808-1839, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1960, 3 tomos.

* Historiador e crítico de arte, foi director do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. É professor de História da Arte na Universidade Estadual de Campinas, São Paulo, onde, anteriormente, doutorara-se com a tese: Influências, marcas, ecos e sobrevivências chinesas na arte e na sociedade do Brasil. Publicou mais de 20 livros sobre arte brasileira.

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