Lusíada

A TRADIÇÃO DOS SANTOS POPULARES EM GOA

Carmo Azevedo*

Por "Santos Populares" são conhecidos em Portugal três vultos do hagiológio cristão - St° António, S. João Batista, o Precursor, e o Apostólico S. Pedro - cujas festas se celebram, respectivamente, a 13,24, e 29 de Junho, como reza a folhinha e refere esta quadra popular:

    A treze do mês de Junho
    Santo António se demove
    São João a vinte e quatro
    E São Pedro a vinte e nove. 

Ora, era natural, que numa terra como Goa, evangelizada pelos portugueses, esses três Santos gozassem, entre a comunidade cristã, da mesma popularidade que entre o povo de Portugal.

Só que significativamente, por força de condicionalismos locais, a tradição goesa dos três Santos é bastante diferente da tradição portuguesa.

Santo António, que nasceu em Lisboa e morreu em Pádua (donde o chamar-se tanto St° António de Lisboa como St° António de Pádua) é, na tradição portuguesa, o grande Taumaturgo, a quem se atribuem treze milagres, e daí que a sua festa seja precedida não de uma novena, mas de uma trezena; é o Santo milagreiro por excelência, para os portugueses, que o invocam sobretudo como deparador de coisas perdidas.

Mas St° António é também, como S. João, um santo casamenteiro da particular devoção dos namorados e, acima de tudo, das moças casadoiras, a quem o povo recomenda:

    Ó moças, andai ligeiras, 
    I(de) pedir a Santo António
    Qu'vos ponha todas em linha
    No Livro do Matrimónio. 
    
    São Gonçalo casa as velhas, 
    Santo António as raparigas; 
    Cantai moças ao Santinho
    As vossas belas cantigas. 

Ou então, ao próprio Santo, tanto como às moças:

    Santo António, Santo António, 
    Às moças 'stendei a mão; 
    Correi, moças i(de) depressa, 
    Fazei-lhe uma petição. 

Ou ainda, de novo a elas:

    Ó moças, se quereis noivos, 
    I(de) esta noite à ribeira, 
    Que sos moços, louvando o Santo, 
    Vão armar uma fogueira. 

É também como Santo casamenteiro que o Baptista figura no cancioneiro popular, como se vê por estas quadras:

    Agora no São João
    É o tomar dos amores
     Estão os linhos nos campos, 
    E toda a terra tem flores. 
    
    No altar de São João 
    Nascem rosas amarelas, 
    São João subiu ao céu
    A pedir pelas donzelas. 
    
    Ó meu São João Baptista, 
    De que quereis as capelas? 
    De cravos e mais de rosas, 
    Com cravinhas amarelas? 
    
    Hei-de deixar ao relento
    Uma folha de figueira: 
    Se São João a orvalhar, 
    Hei-de encontrar quem me queira. 

Mas, se S. João é isto para as moças, é também, vestido com uma pele de carneiro e de ovelha ao lado, como se representa iconograficamente, o padroeiro dos pastores:

    Abaixai-vos, carvalheiras, 
    Com as pontas para o chão: 
    Deixai passar os pastores
    Que vão para o São João. 

Intimamente ligada à tradição de S. João em Goa está a do Judeu, melhor, da queima do Judeu (nisto diferente da queima de Judas em Portugal) nas vésperas da festa do Precursor, assinalando assim o fim do Judaísmo e o começo do Cristianismo.

Faz-se para esse efeito um grande boneco de palha - o Judeu - que se coloca à porta da casa e se queima ao cair da noite, precisamente como em Portugal se faz ao Judas.

Não menos popular, mas muito diverso na devoção do povo português, é S. Pedro (de S. Paulo, curiosamente, embora festejado no mesmo dia, quase nem se fala em Portugal), venerado sobretudo pelos pescadores como seu padroeiro, pescador que era e pescador de almas que Cristo dele fez, como também, além de pedra angular da Igreja, claviculário do Céu:

    Nas praias da Galileia, 
    Andava o bom do São Pedro, 
    A lançar a rede ao mar
    Sem ter receio nem medo. 
    Vêde, raparigas, vêde
    Como o Santo deita a rede. 
    
    Desde pequeno São Pedro
    Começou logo a pescar
    E agora é quem tem as chaves
    Do paraíso eternal. 
    Vamos dar nossos louvores
    Ao Santo dos pescadores. 

Ora se, nos estratos sociais mais elevados de Goa, a quadra dos Santos Populares é festejada numa versão um pouco aristocratizada da tradição popular portuguesa, com bailes nos clubes, é de todo diferente a tradição desses Santos entre o nosso povo.

De facto, enquanto em Portugal a quadra dos Santos Populares, que recai no Verão, é festejada com arraiais, bailaricos ao ar livre, fogueiras com balões, marchas com lanternas, descantes, luminárias, etc., essa quadra, recaindo em Goa na época das chuvas, é assinalada de modo tão diverso do de Portugal como variado de Santo para Santo, embora todos três estejam, de qualquer modo, ligados à monção.

Para começar, St° António é invocado sobretudo como o Santo milagreiro que faz chover. Por isso, se não houver chuva pela Mirga, em 5 de Junho, e a estiagem se prolongar até 13, saem procissões com um andor do Santo a implorar a sua intercessão junto de Deus para que choça:

    San Anton Figueanchó
    Paus ghal Devacho. 
    
    (Santo António dos portugueses
    Fazei cair a chuva de Deus). 

Ou, talvez por a iconografia o representar com um livro na mão e o Menino Jesus:

    Sant Anton virgó, 
    Escolacho bhurgó
    Sant Anton Devagueló
    Paus ghal sorgaveló. 
    (Santo António Virgem
    Menino de escola, 
    Santo António de Deus
    Fazei cair chuva dos céus). 

O dia de S. João é a grande festa dos genros recém-casados em casa dos sogros, mavoddeá, em que, antes de um regabofe, com uma coroa na cabeça, dão um pulo ao poço para se banharem, um pulo simbólico do que o precursor teria dado, segundo a Bíblia, no ventre da mãe, Santa Isabel, quando abraçava a prima, a Virgem Maria, trazendo Jesus nas entranhas:

    Soglé amim zanvoem vortotaunv
    Choddá tempan bhettleanv
    San Jucanchem fest mhunnon amim
    Movoddeá ailem. 
    
    (Somos todos nós genros, 
    Vimos de visita após longo tempo
    Por ser hoje festa de São João
    Viemos à casa de nossos sogros)
    
    Matear amim copelam ghalun
    Udok naunk bhair sorleanv
    San Jucanchem fest mhunon amim
    Chodd khoxi zaleanv
    
    (Com estas coroas na cabeça
    Saímos de casa para tomar banho
    Por ser hoje a festa de São João
    Estamos tão alegres e contentes!) 

Detentor das chaves do Paraíso, S. Pedro, na tradição popular goesa, não daria entrada no céu aos justos após a morte, mas também governaria as catadupas celestes para fazer chover:

    San Pedru, San Paul, 
    Chavi Kadd, 
    Jesu Maem, 
    Paus ghal. 
    
    (São Pedro, São Paulo
    Abri as portas do céu
    Mãe de Jesus
    Fazei chover). 

Publicado in Revista de Cultura,

N° 5, I Série, Abril/Junho de 1988.

* Médico, jornalista e investigador (Goa).

desde a p. 195
até a p.