Macau-Brasil

MACAU VISTO DO BRASIL

João Alves das Neves*

O que poderá pensar de Macau um português que vive no Brasil há cerca de 30 anos?

A primeira "visão", através do jornalismo, parece-nos insuficiente, porque o noticiário e alguns dos artigos divulgados na imprensa brasileira têm versado apenas sobre determinados factos, acompanhando os destaques da actualidade mas nunca a evolução dos acontecimentos. Até mesmo as reportagens voltadas para o turismo têm sido esporádicas e nem sempre realistas, para não falar dos fundamentos culturais, históricos ou literários, políticos ou de Macau.

A "visão" cultural que temos desta pequena península pode ser documentada, é claro, pelos numerosos livros que nos revelam o passado e o presente macaense, sob vários ângulos, mas onde encontrá-los? Falar da língua de Macau - ou do papiá cristan, como sugerem alguns - é descobrir outra vez o Brasil, pois existem conotações que raros conhecem. E da religião católica, tão frequentemente comum? E da arquitectura em que o estilo oriental se funde com o português e se identifica com o da chamada "casa colonial" que os Lusitanos ergueram nas terras brasileiras?

Outro ponto a realçar é o do intercâmbio económico cujo nível permanece abaixo das potencialidades e dos interesses brasileiros e macaenses.

Muitos outros interesses e afinidades poderiam ser ainda relacionados, desde os estabelecidos pela geografia e os de valor estratégico, em vários planos, começando pelos transportes e escalas, com relevo para a economia, sem deixar de referir outros paralelos e aproximações, pois o que não faltam são oportunidades. O mal é que, frequentemente, não as sabemos aproveitar.

O que se passa no domínio da mera informação é sintomático e confirma que a distância é má conselheira: o que tem sido publicado na imprensa do Brasil acerca de Macau é reduzido e incompleto. Os textos editados são, por vezes, tanto mais especulativos. quanto menos realistas. O dia a dia chega ao Brasil através das agências noticiosas internacionais, cujos interesses não são os de Macau nem de Portugal e do Brasil. De modo que a realidade macaense flutua ao sabor dos incidentes políticos e das catástrofes ou do acaso de alguma reportagem turística.

Recordamos que há mais ou menos um quarto de século os jornais brasileiros se referiram aos protestos em Macau de jovens chineses contra o regime de Salazar.Em 1974, às consequências do 25 de Abril em Macau. E, mais recentemente, às negociações que levaram ao acordo entre os governos de Lisboa e de Pequim sobre o futuro de Macau.

Exemplificamos com a crónica de Flávio Tavares, publicada pelo jornal "O Estado de São Paulo", em 9/2/1979: "Portugal e a China estebeleceram finalmente relações diplomáticas ontem e trocarão embaixadores no prazo máximo de 3 meses, pondo fim às controvérsias e disputas em torno do território de Macau, cuja administração permanecerá em mãos do governo de Lisboa".

A revista "Isto É", também de São Paulo, publicou de Albino Castro Filho, em 26/5/1982, um artigo cujo significado pode ser definido pelo título: Milagres económicos - a força da pataca - na velha Macau, o novo 'boom' económico do Oriente. Em 5/12/1982, a "Folha de São Paulo" divulgou um artigo assinado por Anton Ferreira, da Agência Reuters, sob o título: Em Macau, as sombras da vida tranquila, trabalho que o "Jornal de Macau" reproduziu com a irónica manchete de Macau à brasileira... (mas cremos que o autor do artigo não é brasileiro). Segundo o jornalista da Reuters, "os macaenses discutem poesia durante lautas refeições com os mais finos vinhos portugueses". E acrescentava que a maioria dos turistas era de Hong-Kong, interes--sados apenas nos casinos e nas pistas de corrida.

O "Jornal do Brasil", do Rio de Janeiro, republicou do "The New York Times", em 22/6/1983, o texto Macau - a Ásia com sotaque português, observando no início o autor (não identificado) que o Território "usa uma máscara européia sob sua face asiática". Salientava que "a lembrança do passado é um dos atractivos turísticos de Macau, mas o jogo é a sua grande fonte de renda". Falava um pouco da história e dos templos e lugares, recomendando-os aos turistas e dava informações que a estes podem interessar.

Chineses são eleitos deputados em Macau, noticiava "O Estado de São Paulo", em 17/8/1984, enquanto a "Folha de São Paulo" adiantava, em 24/5/1985: "Portugal vai devolver Macau para a China". Com uma referência ao turismo, como principal fonte de renda, e a nota de que os casinos macaenses atraem cerca de 4 milhões de pessoas, em cada ano. Título do destaque por demais significativo: O paraíso do jogo no Oriente.

A 6 colunas, "O Estado de São Paulo" abria, com a manchete Portugal já começa a perder Macau, em 17/6/1985, um comentário de José Júdice: "A nomeação do novo governador de Macau permite que tenham finalmente início, no fim deste mês, as negociações entre os governos de Lisboa e Pequim sobre o futuro desse território, administrado pelos portugueses há 500 anos". No entretítulo, o jornal paulista assinalava: Mas China conservará sistema capitalista.

Na edição de 1/7/1986, o mesmo jornal informava: Começa em Pequim a reunião sobre Macau. E em 24/3/1987: Macau será da China em Dezembro de 99. Título do semanário "Voz de Portugal", do Rio de Janeiro, em 6/2/1987: Assembléia de Macau aprovou programa do governo. A "Folha de São Paulo" dizia, em 24/3/1987: Portugal devolverá Macau para os chineses em 1999; enquanto "O Estado de São Paulo", de 27 do mesmo mês, confirmava: Capitalismo prevalecerá em Macau até 2050.

Um artigo sobre turismo no semanário "City News / Shopping News / Jornal da Semana", que se publica em São Paulo com uma tiragem anunciada superior a 500 mil exemplares: Macau - mistérios chineses com sotaque português. E n'"O Estado de São Paulo", em 16/1/1988, a informação: Ratificado o acordo sobre Macau.

Em 1986 e 1987, o presidente da Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, António Gomes da Costa, publicou uma série de artigos sobre o tema macaense, a maioria dos quais apareceu no extinto semanário "O Mundo Português" e alguns outros no diário "O Globo", ambos do Rio de Janeiro. O articulista ressaltou nos seus trabalhos não só problemas políticos e económicos mas também os de interesse cultural.

Finalmente, permitimo-nos enumerar os 6 artigos que fizemos publicar na imprensa brasileira (e que foram reproduzidos em Portugal e alguns até mesmo em Macau):

- Macau: motivos da presença portuguesa, no jornal "O Estado de São Paulo", de 13/10/1974 (reprodução parcial da palestra proferida em 11 do mesmo mês, no Elos Clube de São Paulo);

- Subsídios para a história da imprensa de Macau, na revista "Comunidades de Língua Portuguesa", São Paulo, n° 1, l° semestre de 1983;

- Macau e Brasil, unidos nos mesmos mistérios do falar em português, jornal "O Estado de São Paulo", em 28/11/1982;

- Macau - a história e a lenda têm encontro em Macau, no Suplemento de Turismo de "O Estado de São Paulo", em 27/3/1987;

- Realidade e mito do casamento na China, no "Jornal da Tarde", São Paulo, em 25/2/1989;

- .0 poeta, agora, finge em chinês, n'"O Estado de São Paulo", de 6/1/1987.

Ainda que parciais, as referências são evidentemente incompletas, mas podem ser tomadas como pedra de toque para ilustrar que há enormes falhas na informação da imprensa brasileira sobre Macau. E se este panorama dos jornais e revistas sugere as lacunas, poderemos sublinhar que são ainda maiores nos casos das emissoras de rádio e de televisão, o que desde já pressupõe um lamentável vazio nos capítulos da História, da Economia e em tantos outros.

Gostaríamos de evocar, ainda que superficialmente, certos episódios históricos que aproximam Macau e o Brasil, começando por referir as tentativas que os holandeses fizeram de se apoderar de Macau em 1604, 1607, 1622 e 1627. Datas relevantes, ao ponto de a vitória contra os invasores, em 24/6/1622, ser hoje o "Dia da Cidade" que tem o "nome de Deus", porque "não há outra mais leal", consoante a chamou o rei D. João IV. Mais do que isso, esclarece-nos o Padre Manuel Teixeira, nos Vultos marcantes de Macau, que ao saber--se nesta terra da retirada da Família Real para o Brasil, "o Senado nomeou, em 7/3/1809, o vereador António Joaquim de Oliveira Matos, e no seu impedimento, o morador Raimundo Nicolau Vieira para ir felicitá-lo ao Rio de Janeiro; foi escolhida para esse fim a fragatinha 'Ulisses' sob o comando de Pereira Barreto. O Príncipe Regente D. João VI promoveu este tenente ao posto de capitão de fragata e ao Senado outorgou o título de 'Leal'."

"Vista chinesa" Colecção Imago — Rio / Oriente 03-020 Projecto Rota das Especiarias MOUSEION — Rio.

Relata ainda o autor do mesmo livro que António de Albuquerque Coelho, "o Capitão-Geral mais querido dos habitantes de Macau", nasceu na vila de S. Cruz do Camutá, "aí por 1682, indo para Portugal ainda pequeno". Era filho de António de Albuquerque Coelho de Carvalho, fidalgo da Casa Real: "foi Capitão-mor do Pará, Governador do Maranhão, da Beira-Baixa e de Olivença, das Capitanias do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas (Gerais) e, finalmente, de Angola, onde morreu. A mãe do Capitão-Geral António de Albuqerque chamou-se Ângela de Barros, natural do Gurupá, sendo ele bastardo". O pai do futuro capitão-geral dos macaenses chegou ao Brasil em 1685 e, além dos cargos citados,teve papel relevante na demarcação da fronteira com a antiga Guiana Francesa. Quanto à terra de sua mãe, Gu-rupá, é cidade e município do Estado do Pará, localizando-se na margem direita do rio Amazonas. De S. Cruz do Camutá não achamos registro em dicionários históricos: terá mudado de nome?

Nos Vultos marcantes estudados pelo Padre Manuel Teixeira, fala-se do jornalista Carlos Augusto Montalto de Jesus (Hong-Kong, 1863-1927), autor de uma cuidadosa História de Macau, e que dirigiu a revista "Margonigrama", publicada em Londres pela The Wire-leen Press e destinada a Portugal e ao Brasil, onde o autor chegou a fazer conferências (no Rio de Janeiro) sobre assuntos históricos e económicos. Tão sabedor que - informa o Padre Teixeira - foi nomeado sócio efectivo da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, em 15/7/1913.

No livro Macau no século XVIII, o Padre Manuel Teixeira dá-nos também outros esclarecimentos sobre as ligações Macau-Brasil, relatando o seguinte, a propósito das efemérides de 1719: "Um decreto régio de Portugal concede a Macau o privilégio de enviar anualmente, durante 5 anos, 2 navios a Portugal e ao Brasil via Goa, com as seguintes condições: proibição de enviar qualquer navio a Angola, sob pena de confiscação e de serem cassados os privilégios; proibição de transportar prata ou ouro de Portugal para o Brasil (...)".

Pode ter sido a última licença para as viagens directas ou com escala entre os dois territórios, conforme se deduz de outra informação do Padre Teixeira, relativa a dois sacerdotes que chegaram a Cantão em 1/2/1707, "via Brasil e aportaram a Baía de Todos os Santos" (Salvador, Brasil). No mesmo ano, outro documento importante consta de Macau no século XVIII - a "Carta Regia sobre poderem os moradores de Macau mandar os seos navios a Goa comboiados p. hua Nao de guerra, e não a Brazil, e sobre outros assumptos q' na m. Carta se referem": "(...) e no que respeita a licença que pedis p. a a navegação livre desse porto, p. os do Estado do Brazil. Me pareceo dizer-vos que de nenhuma maneira se deve permitir p. que sobre o prejuízo que resultaria a Alfandega de Goa, em se privar dos direitos das fazendas que vem a ella da China; ocorre que do Brazil não podem ter nenhum retorno, e verção por este caminho a fazer muito pouco negocio (...)."

Tem-se a idéia de que os macaenses insistiram no pedido, visto que em 1708 há outra Carta Régia sobre não deferir a representação do Senado a respeito de mandar navio a Brasil; e sobre não pagar a Côngrua do Sr. Bispo: "Officiaes da Camara da Cidade de Macáo. Eu El-Rey vos Envio muito saudar. Vio-se a vossa carta de 14 de Dezembro de 1706, em que pedis licença para esses moradores commerciarem em Surrate, e Meca, e para poderem mandar um navio ao Brazil e que vos alivie de pagardes a congrua ao Bispo pello mizeravel estado em que se acha o commercio dessa cidade, e pareceo-Me dizer-vos, que não tem lugar o defferir-se a reprezentação que fazeis pelos grandes incovenientes que neste particular se offerecem, que todos se fazem dignos de maior ponderação. Escripta em Lisboa a quatorze de Março de mil sette centos e oito. - Rey".

A gente de Macau insistiu mais uma vez e em 30/12/1709 receberam outra Carta Regia desobrigando os Emb. de Macau que passass pelos mares de Goa pagass direitos ad. Cap. (enq durasse a guerra com Castela) e na qual foi escrito: "(...) Me pareceu dizer-vos, que sobre o poderem navegar as vossas embarcações para os portos do Brazil deste Reino e da Asia, vos tenho concedido esta liberdade; havendo por bem que se forme uma companhia de homens de negócio, na qual se interessam assim os deste Reino, com os dessa Cidade (...)".

Lê-se ainda no livro do Padre Teixeira: "A 5-12-1716, o Senado resolveu mandar o Pe. António dos Prazeres, O. P., como seu procurador a Lisboa, a pedir ao Rei que os dispensasse de pagar a côngrua episcopal e licença para mandar ao Brasil os seus barcos a comerciar." Por fim, vem a biografia completa de António de Albuquerque Coelho, "natural do Maranhão" e "filho natural de António Albuquerque Coelho de Carvalho", etc. E a confirmação que "do Brasil passou ao Reino, ainda bastante novo", tendo embarcado para a Índia em 25/3/ 1700, servindo depois em Macau, onde chegou em Maio de 1708.

Mais profundos que os laços históricos são com certeza os linguísticos, porque, se o passado tem por vezes paralelos, o presente idiomático exige, mais do que a preservação, uma acção comum. A releitura de Língua de Macau: o que foi e o que é, um dos estudos da ensaísta Graciete Nogueira Batalha, conduz-nos a aproximações que, para lá dos filólogos, gramáticos e dicionaristas que não somos, ilustram a evolução do nosso idioma, conduzindo-nos através de trilhas por vezes diferentes das percorridãs em Portugal: "Empresta este livro a mim" - refere a professora Graciete Batalha, reproduzindo a frase de um jovem macaense, influenciado pelo chinês e pelo inglês. Acontece que um adolescente brasileiro repetiria a frase ou diria: "Empresta este livro para (p'ra) mim".

Admite a estudiosa do linguajar de Macau as semelhanças com os crioulos afro-portugueses e observa: "Explicará até algumas coincidências com o falar popular do Brasil, uma vez que este país, como é sabido, recebeu ao tempo da sua colonização grande contingente da mão de obra africana". Não é só isso, as mudanças e preservações do linguajar apenas foram diferentes. Palavras como "mês", "vez", "talvez", que se pronunciam "mâis", "vâis", "talvâis", como terão sido formadas? O linguajar do caipira brasileiro não é assim tão diferente - como se pensa - do rude campónio português. Na troca do l pelo r, por exemplo, até Gil Vicente foi "atrâis"...

Está noutros clássicos, como recorda Graciete Batalha ao mencionar um clássico dos clássicos, Fernão Mendes Pinto (e Camões? E o mestre Gil, Fernão Lopes e tantos outros?), onde a grafia "peis" vem no lugar de "pés". E a queda do r final em "fala", "comê", "calô", enquanto o tch transforma "pertinho" em "pertchinho" ou "rodinha" em "rodjinha", o que leva a autora a concluir: "(...) Sabedendo-se que as áreas mais afastadas de um centro de irradiação são sempre as mais conservadoras, a identidade de características fonéticas entre o macaísta e o brasileiro leva-nos à conclusão de que a maior parte dessas características não é devida a influências nativas, mas à conservação de pronúncias trazidas de Portugal pelos nossos colonizadores. Algumas, sobre a pressão da linguagem culta, já lá desapareceram totalmente ou quase, mas outras ainda se mantêm em grande vitalidade."

Outras semelhanças são assinaladas por Graciete Batalha mas destacamos apenas os casos de "cacoeta" ou "cacoete" (hábito ou mania de torcer o rosto, repetir palavras que não vêm a propósito, fazer gestos), palavras que tem no Brasil o mesmo sentido que em Macau. Quanto à referência ao papiá cristã de Malaca e também por vezes citado a respeito da Macau, lembra-se que "papiar" ou "papiá" é, para os brasileiros, sinónimo de fala, conversa, linguajar. (E o paralelo possível em o "papiamento", dialecto de base portuguesa nas Antilhas Holandesas?).

O mesmo fenómeno brasileiro ocorre no caso de palavras como "professóra", "senhóra", "àmô" e "calorr", para referir apenas as palavras apontadas por Graciente Batalha, que salienta ainda a confusão entre o "tu" e o "você" - em Macau como no Brasil: "Ainda como no Brasil, os dois tratamentos usam-se indistintamente entre as mesmas pessoas, o que nunca acontece em Portugal". E podemos adiantar que a confusão de certos brasileiros, ao usarem uma ou outra das formas, é em tudo igual, repetindo a macaense.

Entre os poucos estudos que pudemos compulsar sobre a língua de Macau, não podemos deixar de mencionar também o livro de José dos Santos Ferreira, Papiá cristám di Macau, assegurando que numerosos vocábulos apresentam no Brasil divergências em tudo semelhantes ao falar de Portugal.

As artes e letras proporcionam outros pontos de contacto do Brasil com Macau que não têm sido suficientemente analisados. A arquitectura barroca de Macau está numa linha paralela à brasileira, a partir da mesma origem lusíada. Não somos crítico de artes plásticas mas pelo que temos observado de obras de arte macaenses não duvidamos que a linha é uma só - e se em Macau ocorreu a compreensível influência da arte oriental e, em particular, da chinesa, o barroco mineiro acabou identificando-se, como era inevitável, com o ambiente e mesmo as inclinações estéticas dos arquitectos, escultores e pintores locais. O que haveria de esperar-se, a não ser essa tendência para a individualização - ou regionalização?

Ainda há poucos anos, veio ao território macaense o príncipe João Henrique de Orleans e Bragança,herdeiro presumptivo da coroa imperial brasileira, a fim de realizar - como ele revelou à "Folha de São Paulo" -um trabalho fotográfico sobre a influência chinesa no barroco português e, por tabela, no barroco mineiro."

Aí está mais um tema a aprofundar, se quisermos restabelecer o elo que não está perdido, apesar de omitido, entre Portugal, o Brasil e Macau. Neste âmbito, como em tantos outros mal aflorados, e cremos que nunca devidamente pesquisados.

Em artigo intitulado Macau e o Brasil, publicado em 6/12/1982, no "Jornal de Macau", o Prof. Francisco Videira Pires fez um breve inventário sobre a presença macaense em terras brasileiras: "Trata-se de obras de arte, com evidente marca chinesa, vindas de pelo menos de fins do século XVII. Aparecem nas famosas 'cidades históricas', que salpicam o mapa brasileiro" -esclarecendo o articulista que na igreja de Santa Efigênia, em Ouro Preto, de ambos os lados do altar-mor, "de opulenta talha doirada, rentes aos balaústres, (há) duas tábuas pintadas que reproduzem motivos chineses, puríssimos."

"Vista chinesa"

Colecção Imago — Rio / Oriente 03-020

Projecto Rota das Especiarias

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E em Sabará, perto de Belo Horizonte, na capela da Senhora do Ó, também se encontram "tábuas chinesas", no altar-mor, enquanto na igreja de Nossa Senhora da Conceição, vê-se a "porta chinesa" da sacristia, de origem macaense: "De facto, nela tudo é chinês, no desenho, na distribuição das tintas e do doirado, nos próprios motivos decorativos" - observou o Prof. Videira Pires, e nós também o confirmamos, pois fomos também a Ouro Preto e Sabará, e para essa "chinesice" (como dizem os guias) também nos chamaram a atenção.

Lê-se ainda no artigo do Prof. Videira Pires: "Não falo já de peças atribuídas a Macau, não raro expostas em museu, como no de Arte Sacra de Mariana, ainda em Minas. Quem me diria a mim que a matriz de Feira de Santana, na Bahia, tivesse a torre sineira coroada de azulejos chineses? No convento do Carmo, em Cachoeira, às margens do caudaloso Paraguaçu, dentro da sacristia, guarda-se um verdadeiro museu de antiguidades macaenses. Já não são apenas pinturas, alfaias litúrgicas ou móveis. Temos ali, mal acomodada em armários, meio abandonados à poeira e à humidade, uma colecção de imagens de tamanho natural, para os passos da Semana Santa, todas com rosto bem chinês, nos pómulos salientes, a pele amarelada e os olhos cortados à lâmina". (Várias destas informações foram-me confir-madas pelo macaense Frederico Martins, que vive em São Paulo).

E conclui o Prof. Francisco Videira Pires com estas "explicações": "Uma salta aos olhos. As fronteiras do mundo português, de Macau ao Brasil, estavam abertas a todo o tipo de permutas, em naus e gentes que iam e vinham. As congregações religiosas, mormente os jesuítas, devem ter sido os grandes agentes deste intercâmbio artístico. Trariam consigo artistas que aqui trabalhassem? Parece mais viável que se tratasse de encomendas executadas em Macau, ou aqui mesmo no Brasil, por artistas locais, sobre cartões daí vindos."

Porém, o inverso também é verdadeiro, conforme se deduz do artigo publicado pelo jornalista, escritor e político brasileiro Carlos Lacerda, publicado pelo "Jornal da Tarde", em 7/6/1966, no qual recorda ter encontrado na sede dos Amigos da Comunidade Luso-Brasileira de Macau - "a mais tocante e pobre das sociedades", uma flámula do Madureira, clube carioca de futebol. A agremiação tinha estatutos aprovados oficialmente em 1958 e o seu presidente era o Dr. Barnabé Lopes, director da Fazenda macaense. E dava o famoso político os nomes de outros dirigentes da Sociedade, cujo objectivo principal era "promover o intercâmbio cultural, artístico, desportivo, comercial, financeiro, etc., proporcionando meios de maior aproximação entre Portugal e as suas Províncias Ultramarinas - uma das quais é Macau - e todos os Estados da Federação Brasileira, intensificar a importação e exportação de produtos de ambos os países" - um vasto e ambicioso programa para tão pouca gente, admitia o articulista.

Comentava Carlos Lacerda que foram tocantes os depoimentos que ouviu em Macau: "Aquele velho de Malaca pedindo, pateticamente, que mandem professores de português à Malásia 'para que se não perca o idioma naquelas regiões' onde muitos o falam. É o próprio orador a falar em português antigo. Ou a mãe desolada que chora no enterro do filho, junto com as carpideiras, em malaio e em inglês; mas quando chega a hora de enterrá-lo, abraça-se a ele e, como se fosse de novo a sua criança, o embala no mais puro português de antanho".

Confessava o político brasileiro que preferira não iludir os directores da Sociedade dos Amigos da Comunidade Luso-Brasileira quanto à repercussão dos seus apelos no Brasil e acabou pedindo notícias de Goa, Damão e Diu, "onde os indianos praticam, à maneira de Hitler, as idéias do Mahatma Gandhi, pois oprimem a comunidade que fala português, que é portuguesa pelo menos tanto quanto os outros povos indianos falam uma das várias línguas da União Indiana".

Logo depois referia-se a Macau como "ponta da cultura a que pertencemos, os brasileiros, lançada na Ásia, sem guerra nem conquista", salientando que, se o Brasil votasse na ONU contra Portugal, não tiraria desse voto "nenhuma consequência e nenhum proveito, dos muitos e legítimos proveitos que devemos tirar". E ressaltava: "Por isto aí está, patética, tal qual aquela mãe de Malaca, a falar na comunidade luso-brasileira como se usasse expressões de uma língua antiga e quase morta, a Sociedade de Macau. Quanto não dariam as nações bem governadas para terem essa porta aberta em todos os continentes, esse porto em todos os mares!"

Viu Carlos Lacerda em Macau "a China traduzida em português", para usar a sua curiosa expressão, ao mesmo tempo que lamentou, nesse velho artigo de 1966, ~$TMporém actual quanto aos conceitos, o desconhecimento e a indiferença dos brasileiros perante a realidade do mundo de língua portuguesa. E Carlos Lacerda concluía: "Por estas e outras é que o Brasil não sabe que estão à sua espera instrumentos de difusão de suas idéias, e de seus produtos, possiblidades de intercâmbio e de expansão pacífica que Portugal lhe proporciona e que depende, apenas, de falarmos uma linguagem que se entenda - nem que seja o português antigo, em vez desse cassanje político que temos falado, cada vez mais engrolado, com um vocabulário político encolhido, tímido e titubeante, o triste vocabulário da descrença e da ignorância".

É claro que não podemos fechar este capítulo Macau-Brasil sem evocar a existência da cidade brasileira de Macau, localizada no Estado do Rio Grande do Norte, onde desde o século XVII é explorado o sal, além de ser uma região de pesca e de produção agrícola que vai desde o algodão ao feijão, coco-da-baía, milho, melancia e melão.

A brasileira Macau dista 174 km, em linha recta, de Natal, a capital do estado do Rio Grande do Norte, e a sua população actual é de cerca de 25 mil habitantes. Segundo uma monografia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, Macau começou a ser povoada na ilha de Manuel Gonçalves, a qual era, nesse tempo, "habitada por portugueses, dedicados à exploração e ao comércio do sal". Mas desde o ano de 1825 a povoação foi gradualmente invadida pelo Atlântico e, em 1829, "tomando-se impossível a permanência desses habitantes na ilha, decidiram eles transferir-se para outro local, escolhendo então a ilha de Macau, na foz do rio Açu". E acrescenta a monografia do IBGE: "Os fundadores do povoado de Macau foram os portugueses Capitão Martins Ferreira, quatro genros deste - José Joaquim Fernandes, Manuel José Fernandes, Manuel António Fernandes e António Joaquim de Sousa - e ainda João Garcia Vala-dão e o brasileiro João da Horta".

Explica-se ainda, na monografia oficial brasileira, que "Macau é uma corruptela da palavra chinesa Ama-Ngao, que significa abrigo ou porto de Amá, deusa dos navegantes". Em 2/10/1847, o povoado tornou-se município; em 1871 passou a comarca e em 1875 foi guindada à condição de cidade. Está situada a 5° 06' 56" de latitude e 36° 38' 08" de longitude oeste de Green-wich. Centro de grandes salinas, os seus depósitos salí-feros estendem-se ao longo das margens dos rios Açu, Cavalos e Amargoso, esclarecendo a monografia do IBGE que "o litoral é baixo e a desembocadura do rio Açu é recortada por vários braços, gamboas e igarapés. Assim, as águas da maré avançam pelas regiões baixas e formam os 'rios salgados'. Prosseguindo, as águas chegam às planícies argilosas deprimidas, em cujo solo impermeável se depositam. Os sedimentos em suspensão da maré, cuja amplitude é sempre normal, invadem as bacias de evaporação, o que se processa com facilidade em virtude de pouca altura da costa. Então os elementos climáticos agem e favorecem a rápida evaporação".

Aí estão algumas informações geográficas e económicas da Macau brasileira, cuja ligação com a Macau da Ásia parece inegável, se considerarmos a relação estabelecida pelo autor da monografia oficial, Erasmo Catauli Giacometti. O que terá inspirado os primeiros habitantes a darem à terra o nome de Macau, não sabemos, mas é muito provável que tenha havido alguma relação que não conseguimos apurar. Sabe-se, no entanto, que a licença para explorar as salinas terá sido concedida por Jerónimo Albuquerque, em 1605, aos seus filhos António e Matias (Jerónimo Albuquerque foi o conquistador do Rio Grande do Norte e chegou a ser capitão-mor do Maranhão, depois de ter vencido as tropas de La Ravardière, que tentou implantar no norte do Brasil a França Equinocial).

O escritor Luís da Câmara Cascudo, que deixou valiosas obras sobre a história e os costumes brasileiros, escreveu que as salinas, "quarenta léguas ao norte, em terras que apenas para o sal se prestam e onde este é formado espontaneamente pela disposição do terreno, foram identificadas pelo desembargador Luís Fernando como sendo as salinas de Macau".

Só falta dizer que as duas maiores festas religiosas da Macau brasileira são as de Nossa Senhora da Conceição (padroeira do município) e a de Nossa Senhora dos Navegantes, a primeira com início em 28 de Novembro e término em 8 de Dezembro, ao passo que a da Senhora dos Navegantes vai de 11 a 15 de Agosto.

Dispondo de uma área de 1.185 km2 e de uma altitude de apenas 5 metros, a temperatura varia de 16 a 35°, com uma precipitação anual de 390 mm, em média.

Quem sabe se identificaremos, um dia, aquele que teve a idéia de atribuir à Macau do Brasil o nome da Macau da'Ásia?

De Camões em relação a Macau, menciona-se, por vezes, no Brasil, a acidentalidade da sua presença nesta terra da Ásia. Um ponto a juntar à lenda e à realidade; porém, na circunstância, um ponto positivo, porque através do poeta d'Os Lusíadas se formam os laços invisíveis da língua e do espírito, para lá dos oceanos e continentes. Pois não há linguistas que dizem ter persistido no Brasil a linguagem camoniana?

Autores como Venceslau de Morais, Camilo Pes--sanha e Joaquim Paço d'Arcos, que sonharam e escreveram em Macau, são outras referências culturais que no Brasil surgem quando se lê, analisa e discute a obra de qualquer dos três escritores portugueses. E revela-se a obra poética de Camilo Pessanha, por ser a mais conhecida, em virtude do interesse que despertam os estudos sobre as letras portuguesas contemporâneas, principalmente nas universidades. Aí está uma proposta - a divulgação da obra do Poeta de Clepsidra no Brasil, quem sabe se por meio de um curso e de palestras, exposições documentais, fotografias e filmes se os houver. E, se quisermos ir um pouco mais longe, poderemos recordar também Bocage, que passou algum tempo no Rio de Janeiro, antes de passar por Goa e alcançar Macau.

Cremos ter soado a hora de reunir: no seu livro A influência da cultura portuguesa em Macau, o escritor Rafael Ávila de Azevedo menciona o livro A China e os chins, da autoria do diplomata brasileiro Henrique C. R. Lisboa, editado em Montevideu, no ano de 1888. Não conseguimos encontrar a obra, que descreve -segundo o ensaísta português - a Macau de 1880.

O acaso de termos um exemplar do "Boletim do Instituto Luís de Camões" deu-nos a oportunidade de ler um estudo de Edgar C. Knowlton, Machado de Assis and his 'Lira chinesa', e uma bibliografia sumária do grande escritor brasileiro, tão ligado a Portugal por sua mulher Carolina Novais e por outros fortes laços culturais. É mais um anel da ponte espiritual dos povos de fala portuguesa.

Antes de concluir, queremos chamar a atenção para o facto de que a Bibliografia macaense, de Luís G. Gomes, incluir mais de uma dúzia de obras, de pequeno e grande portes, que ilustram o diálogo histórico, literário, jornalístico, económico e cultural de Macau com o Brasil. Tratam algumas dessas obras de questões afins; há também casos de edições brasileiras, infelizmente raras, sobre problemas macaenses. Desse rol, só pudemos consultar o livro de Alda de Carvalho Ângelo, que nasceu em Macau e conhecemos, há anos, em São Paulo: Fragmentos do Oriente: contos, viagens, culinária é o título desse volume, impresso em São Paulo em 1965. E da autora macaense radicada no Brasil há ainda uma edição paulista das Maravilhas do conto chinês que ela selecciou e traduziu, em parte. Sabemos que Alda de Carvalho Ângelo colaborou em alguns jornais brasileiros.

Fragmentos do Oriente tem um pouco de tudo, desde as recordações da China a outras viagens, passando pela guerra -"esse monstro"- e pela culinária chinesa, com relevo para a de Macau. Longe, porém, a autora escreveu dois textos, inseridos nos Fragmentos do Oriente, sob o título "Saudades da minha casa", e num deles - Minha Amah velha - conta Alda Ângelo as baladas com que a ama a embalava e aos seus irmãos: "O que mais nela me agradava, porém, eram os maravilhosos contos que ela sabia cantar. Posto que rusticamente, ela o fazia com tanta expressão, com tanto calor na voz, que nos prendia a atenção. Éramos todo ouvido. Vibrávamos de emoção com as peripécias, nossos olhares acompanhavam muito interessados suas expressões e mímicas". Contos de Macau, relembrados em São Paulo!

A nossa digressão através do passado e do presente de um diálogo que já foi fluente entre Macau e o Brasil, por obra e graça do idioma de Camões, demonstra que é possível dinamizá-lo. Reconhecemos que um dos veículos desse diálogo necessário é o Instituto Cultural de Macau, pois foi por intermédio das suas edições que pudemos alimentar o nosso interesse por Macau, independentemente dos laços histórico-culturais que juntam os povos e núcleos de língua portuguesa. Mas não terminaremos sem afirmar que os macaenses podem intensificar o seu intercâmbio com todos os povos que se expressam em português. E, no caso do Brasil, só temos a acrescentar que todas as condições favorecem o diálogo, conforme ilustra a curiosidade que têm despertado as edições macaenses, em chinês, da obra de Fernando Pessoa e outros. Aí está apontado o caminho a seguir.

"Plantação de chá por chineses no Jardim Botânico do Rio de Janeiro"

RUGENDAS, Johann Moritz, Viagem pitoresca através do Brasil, trad. de Sérgio Milliet,2aed., São Paulo, Livraria Martins,1949.

Biblioteca Macional do Rio de Janeiro.

Tea plantation under Chinese supervision, in the Botanical Gardens of Rio de Janeiro.

In: RUGENDAS, Johann Moritz, MILLIET, Sérgio, trans.'Viagem pitoresca através do Brasil, São Paulo, Livraria Martins,1949[2nd edition].

* Professor de Comunicação Social da Faculdade Cásper Líbero, S. Paulo; da Escola Superior de Jornalismo e do Instituto Superior das Ciências da Informação e da Empresa, Porto. Editorialista de "O Estado de São Paulo", de 1958 a 1989. Coordenador do l Colóquio Luso-Brasileiro de Estudos Pessoanos, S. Paulo, 1985; do Colóquio sobre o movimento literário português "Távola Redonda", S. Paulo, 1988; e do Encontro de Intelectuais e Artistas Portugueses do Brasil, S. Paulo, 1990. Autor de duas dezenas de livros sobre temas luso-afro-brasileiros.

Publicado in Revista de Cultura,

22, II Série, Janeiro/Março de 1995.

desde a p. 211
até a p.