Centenário

PRESENÇA DO ORIENTE NA LITERATURA PORTUGUESA

Andrée Rocha*

Basta um relance por museus, solares ou até casas abastadas do território nacional para que, de imediato, louças, panos, mobiliário, ourivesaria e outras formas de artesanato ou de arte nos forneçam disso inequívoco testemunho.

O próprio léxico, enriquecido por elementos dravídicos, malaios, chineses e japoneses, as espécies botânicas transplantadas em Portugal, e até certas particularidades da culinária, vêm confirmá-lo.

Mas num domínio em especial essa presença é manifesta. Os textos literários reveladores do contributo oriental no imaginário português são de tal modo numerosos e impressivos que merecem uns momentos de atenção.

Por um lado, e desde tempos muito mais recuados do que sucedera com a Inglaterra, a Holanda ou a França, à vastidão do continente asiático parece corresponder - e corresponde de facto, pelo seu volume e importância pioneira -igual vastidão de obras portuguesas evocando a Índia, a Malásia, a China, o Japão, e mesmo a Mongólia e o Tibete, com as suas configurações geográficas e climáticas, os seus costumes, crenças, sistemas governativos, fauna, flora, arquitectura, etc..

Por outro lado, sendo relativamente escassa a documentação iconográfica conhecida - que no entanto existiu, como se vê pelo álbum recentemente publicado "Imagens do Oriente no século XVI', que reproduz as figuras exóticas dum códice português guardado na Biblioteca Casanatense, de Roma -, confiou-se preferentemente à palavra escrita, ainda com toda a sua soberana pujança comunicativa, essas evocações. E ela cumpriu de modo surpreendente a sua missão: traduzir da maneira mais sugestiva o deslumbramento de quem, por necessidade ou por gosto, se aventurou naquelas longínquas paragens e transmitir ao mundo o seu esplendor e a sua diferença.

É certo que nem sempre, no decorrer dos séculos, esses testemunhos assumiram a mesma frequência, a mesma força e a mesma feição literária. E não será difícil apontarmos aqui algumas razões para que tal suceda. Mais difícil se torna expô-las com clareza, pois as três ordens de factores que condicionam essa diversidade - e são: o intertexto histórico, as funções e modas literárias, e o conhecimento directo ou apenas indirecto dos países exóticos - podem funcionar em simultâneo ou em diferido, em separado ou por acumulação.

Assim, o momento histórico pode exigir a adopção dum determinado género literário; a presença in loco pode, excepcionalmente, não ser produtiva, ou ser menos produtiva que a vivência imaginada; cada um dos aspectos acima mencionados pode, em certas alturas, conjugar-se com os restantes. De qualquer modo, conseguindo ou não, o tipo de abordagem que me proponho fazer terá o mérito de fugir a um simples inventário cronológico do inesgotável material ao nosso dispor.

Do contacto inicial com povos altamente civilizados, possuidores duma arte e de uma filosofia próprias, de riquezas próprias e de costumes próprios, não poderíamos esperar outra coisa senão uma literatura predominantemente informativa e descritiva, que se enquadra na chamada literatura de viagens. Na verdade, deparamos com um nunca acabar de roteiros, missivas, itinerários, relatos e até tratados, alusivos a factos, coisas e homens da "pestana do mundo", na designação de Fernão Mendes Pinto, que, sempre sensível ao pitoresco metafórico das línguas orientais, a colheu nos escritores locais e a verteu para português.

Ora, em todos aqueles que descreveram viagens e aventuras, há a mesma curiosidade, o mesmo dom de evocar, a mesma preocupação em não omitir minudências de costumes que fogem às normas metropolitanas, o mesmo vigor na narração de peripécias, e até a mesma isenção em não esconder as fraquezas, as crueldades ou os erros cometidos.

Repórteres pioneiros, quase diria repórteres fotográficos, pela precisão da imagem e flagrância dos flashes que nos deixaram, encurtaram distâncias, abriram novas perspectivas ao mundo, deram às palavras uma consistência original e verídica, desmentindo o velho adágio "Longas vias, mui longas mentiras", que precavia contra excessos narrativos incontroláveis.

O que os Portugueses relatam e comentam não são patranhas nem ficções. É a realidade, e basta.

Precisamente por trazerem a marca do vivido e do observado, os seus escritos enchem o espírito dos leitores de factos inéditos, e a sua imaginação de surpresas e pasmo.

E, diga-se desde já, se pôs o labéu de mentiroso ao mais dotado de entre eles, Fernão Mendes Pinto.

Essa injusta lenda nasceu, muito mais do que de alguns lapsos de memória perfeitamente admissíveis em quem recordou, já velho, as suas peregrinações do Índico ao Pacífico, do acinte manifesto que lhe votaram os Jesuítas, quando ele, após breve permanência, abandonou a ordem.

Claro que, ao lado das revelações exóticas, esses textos também nos esclarecem, e de que maneira!, sobre a índole e o comportamento dosnarradores. E o que nos deixa estupefactos são as qualidades ímpar que saltam à vista. Primeiro que tudo, uma inesgotavel curiosidade. Missionários, comerciantes, funcionários ou aventureiros, não se cingem a observações circunscritas à sua função.

O padre fala, evidentemente, de evangelização, mas não deixa de atentar nos aspectos sociais ou geográficos, em usos, habitações, vestuário que tem debaixo dos olhos. Por sua vez, o traficante não é apenas sensível às coisas que oferecem interesse mercantil: de caminho, faz observações psicológicas, descreve com todos os pormenores a muralha da China ou os templos hindús, e aventura-se até em reconstituir, com as informações disponíveis, a história mítica ou recente das nações visitadas.

Nesse sentido, todos se esforçam, em grau maior ou menor, por adquirir conhecimentos das línguas locais, de modo a colher, em documentos ou conversas o máximo de informações.

O exemplo mais evidente desse desejo de intercomunicação encontra-se na Peregrinação, onde o autor nomeia a cada passo em chinês produtos, cargos ou instituições, dando-nos, ao mesmo tempo que a sua equivalência aproximada em Portugal, uma tradução literal, de pitoresco recorte. Assim, "muro" se dirá naquela língua "chan-cafau", o que significa "resistência forte", enquanto que "Bigaypotin" é o deus de 110.000 deuses...

Demonstram ainda uma incrível coragem, ao enfrentarem o desconhecido, sujeitos a mil perigos, doenças, prisões, maus tratos ou inclemências da natureza.

Pasma-se ao ler, no Novo descobrimento do Gram Cathayo, as peripécias duma penosa ascensão no Tibete, empreendida por um pequeno grupo sem equipamento adequado, a enfrentar a neve, o frio que gangrena pés e mãos, a cegueira que ameaça os membros da expedição, a solidariedade dos companheiros que se recusam a abandonar o seu chefe, o Padre António de Andrade, que, exausto e mutilado, vai registando, apesar das agruras do percurso, o tipo de alimentação dos raros habitantes, as mulheres que semeiam enquanto os homens fiam, a semelhança de certas crenças dos lamas com o cristianismo, e os produtos aí procurados pelos mercadores vizinhos.

Para os leitores coevos, esses relatos eram o infindável desenrolar de maravilhas nunca vistas, em geral acompanhados de lisonjeiros comentários sobre a "grandíssima ordem" administrativa, a distribuição de géneros aos mais desfavorecidos, o rigor e isenção da justiça, e mesmo as soluções astuciosas para fomentar abundância e bem-estar.

Mas ao interesse que tais revelações deviam suscitar nos contemporâneos junta-se, para os leitores de hoje, o natural espanto perante a existência tão remota de soluções adoptadas pela Europa apenas no século XX. Refiro-me, a título de exemplo, àquele passo da Peregrinação em que o autor, ao mencionar a variedade dos negócios praticados no Celeste Império, nos fala da criação em grande de patos, especializando-se uns na produção de patinhos do dia, outros na criação de 10 a 12 mil aves para abate, outros ainda na venda dos ovos. Reflexo natural e salutar, esse de pasmarmos ao saber que a existência de aviários já era, há quatro séculos pelo menos, um negócio da China...

Finalmente, os escritores viajeiros demonstram possuir um espírito ecuménico invulgar. observam e aceitam com objectiva serenidade os costumes alheios, salvo, aqui e acolá, em matéria de ritos, superstições e multiplicidade de seitas.

Mas é preciso lembrar que não era só uma íntima convicção religiosa que ditava essas reservas: a apertada vigilância da Mesa Censória também aconselhava prudentes reafirmações de ortodoxia.

De qualquer modo, pela novidade e pelo toque de autenticidade vivida, os seus escritos ainda exercem sobre nós um fascínio que outras obras, redigidas por autores sedentários e informados em segunda mão, não conseguem igualar. Estou a pensar, por exemplo, na miscelânea de Garcia de Resende, e nas trovas que nela consagra aos mundos novamente achados. Não tendo o compilador do cancioneiro visto ao natural as paragens longínquas de que nos fala, a sua evocação provém ou de outros textos anteriores, ou dos relatos orais que deviam abundar, por parte dos que regressavam, quer fossem simples marinheiros, como o do Auto da Índia de Gil Vicente, quer pertencessem a mais alta estirpe.

À sua visão falta, portanto, o frémito da surpresa e a confrontação directa com as coisas. Limita-se a enumerar, para além do Sésamo aberto de rubis, diamantes, safiras e esmeraldas, os costumes orientais relativos ao sexo, a ritos funerários, a castas e a formas de governo, sem o mínimo comentário a respeito de práticas que a mente europeia desconhece ou repele. E só formula juízos críticos para recriminar as transformações sociais e éticas dum povo que o seu próprio espírito de aventura colocara à mercê da cobiça, da intriga, da desagregação dos valores tradicionais.

A pacífica literatura noticiosa e de reconhecimento de que falamos até aqui vai tomar outro rumo e outra feição literária quando a ocupação de territórios, a exacção de tributos ou a concorrência com outras raças de mercadores provocam conflitos e guerras.

O erro da Coroa e de muitos dos seus mandatários foi considerar o Oriente, não com a admiração devida a civilizações muito mais antigas do que a nossa, mas como lugar de onde se podiam sacar riquezas, que tiveram de defender com as armas na mão. E os que presenciaram, ou ouviram quem presenciasse, as vitórias e desaires sofridos, tiveram consciência de quer era urgente não deixar perecer a memória dos feitos e dos seus protagonistas.

Assim, o século XVI conhece um espantoso florescimento de cronistas da expansão ultramarina, recordando cercos e combates, rasgos e sofrimentos, valentias e manhas, e conferindo à historiografia uma feição nova, muitas vezes empolgada pela participação directa de quem, depois, relatava os acontecimentos. São nomes grandes dessa historiografia os de João de Barros, Diogo do Couto, Afonso de Albuquerque, Duarte Barbosa, Castanheda e tantos outros que rememoram e enaltecem o passado recente.

É natural que o propósito de exaltar as glórias nacionais os fizesse silenciar a grandeza alheia. Mas nem sempre assim sucede. Os actos só tinham significado inseridos no seu cenário -terras e mares do Sol Nascente - e confrontados com adversários de que se reconhecia o valor.

A celebração da aventura marítima e das façanhas heróicas conhecerá, depois de adequado compasso de espera, a passagem da História à Epopeia, lente de aumento das glórias dum povo. Camões representa, evidentemente, o culminar mítico dessa glorificação, não só por enaltecer, n' Os Lusíadas, virtudes incontroversas e momentos de plenitude, como pelo génio de muitos dos seus versos e pelo sentido superior e universal que insuflou no seu poema.

Esse derradeiro e insubstituível fulgor apaga-se, como era de esperar, quando os desacatos cometidos ameaçam o bom nome lusitano e põem em risco a sua própria permanência naqueles territórios. Os gritos de alerta de Diogo do Couto, no Soldado prático e mais ainda nas Cartas, não impedirão o descalabro, apesar do seu vigor e da sua razão.

À actuação irresponsável e impune de alguns prepotentes, que põem em causa a legitimidade da presença portuguesa no Oriente, é preciso acrescentar os efeitos nefastos da perda da independência e o apetite colonizador de outras nações, para explicar o silêncio de decadência que se segue. Podem ainda erguer-se vozes como a de Francisco de Sá e Meneses, entre outros representantes da epopeia post-camoniana: a sua Malaca conquistada, mais do que uma epopeia de cenário oriental, é apenas uma tentativa canhestra de fornecer aos seus patrícios, quase no fim da ocupação espanhola, o tónico patriótico de que os ânimos careciam, com prejuízo duma íntima vivência exótica.

Esse distanciamento acentua-se no século seguinte. Os vínculos afectivos com o Oriente afrouxam cada vez mais, pelos motivos já apontados e ainda pelo interesse despertado pelo eldorado brasileiro, e a esse eclipse histórico corresponde um eclipse literário. Quando, num dos seus ensaios, Ribeiro Sanches evoca "os três Conselheiros pensantes da China", que exerciam rigoroso controlo sobre o executivo, e aconselhava Portugal a seguir tão salutar exemplo, é na medida em que toda a literatura europeia iluminista se socorreu de esquemas mentais ou políticos oriundos do Próximo ou do Extremo Oriente, os quais tinham, para além do seu pitoresco, a vantagem de permitir, sem perigo de maior, uma crítica indirecta às instituições nacionais. Mas não se vislumbra qualquer ligação umbilical entre o pensador setecentista e o Oriente.

Supreendentemente, o pré-romantismo e o romantismo apresentam a mesma característica de desprendimento, tanto em escritores que cruzaram o Índico, como nos que se ficaram pela Europa. Nada mais sumário do que a referência de Bocage à paisagem indiana:

Do Mandovi na margem reclinado

Chorei debalde minha negra sina...

Quanto a Garrett, ao evocar no seu Camões as andanças do poeta, usa, da forma mais anódina, toponímicos que colheu na própria epopeia. E se consagra, no início do seu poema, um longo episódio ao Jau, é para condenar os preconceitos rácicos e sociais do capitão fidalgo que se opõe à entrada do escravo no escaler que os vai levar ao cais de Lisboa, encarecendo, por contraste, a humanidade do velho épico e a fiel devoção do seu humilde servidor. Na mesma perspectiva romântica, as glórias de antanho servem apenas de contraponto às "frívolas contendas" e opressões de agora, e o papel do cantor sobreleva o dos próprios navegadores e cabos de guerra que celebrou. Antes de lhe conceder a tença, D. Sebastião quer saber se Camões é igual aos Gamas e aos Albuquerques, recebe esta resposta:

Fez mais do que eles,

Que os tornou imortais...

A consciência de que "erros nossos, baloiços da fortuna" viriam a aniquilar as posições conquistadas, comum a Camões e a Garrett, permanece, no entanto, a nota dominante.

Esse desprendimento em relação aos aspectos exóticos (quer étnicos, quer culturais)atinge o máximo com a geração de 70. Nas suas Causas de decadência dos povos peninsulares é sub specie aeternitatis que Antero de Quental se refere à Índia e às consequências nefastas dum imperialismo que tornou o país de origem tributário de riquezas alheias, sem desenvolver os recursos próprios nem estimular as qualidades de trabalho e de iniciativa que para tal contribuíssem. Mas faz tábua rasa de tudo o que enriqueceu o inconsciente colectivo português e o seu imaginário.

Não se dá exactamente a mesma coisa com narrativa queirosiana, concretamente, com O Mandarim, que apresenta uma curiosa solução da antinomia entre literatura referencial e ausência de observação directa. É sabido que o realismo pretende retratar, nos termos mais verídicos e documentados, a realidade.

Não tendo Eça de Queirós ido além do Canal de Suez, não pôde aplicar o preceito no que diz respeito à parte central da sua novela, que se passa na China. Mas essa evocação tem os contornos duma fantasia ou de um sonho, o que o isenta em parte da obediência ao cânone realista. Contudo, é óbvio que Eça fez algumas leituras para obter um mínimo de colocal.

Mas o pitoresco da sua China é confrangedor. Ou provém dum arsenal de ideias feitas, como as da maioria das pessoas a respeito de países diferentes, ou acolhe dados que lhe podiam ser oferecidos por qualquer guia do tempo ou pelos comunicados das agências noticiosas finisseculares.

Quem sabe se Camilo Pessanha não pensaria também no romancista, ao afirmar que os Europeus só "conhecem os Chineses pelo guarda-roupa das mágicas" ou pelas "bugigangas de marfim cinzelado"? Aliando a graçola ao eco de notícias jornalísticas, Teodoro falará sem complexos da decadência do Império do Meio, da plebe esfomeada e piolhosa, da culinária específica, mas fica "sombrimente indiferente" à paisagem, recusa visitar Nanquim, e cerra as cortinas da liteira que o transporta nas ruas de Pequim.

Como o autor tem o cuidado de o anunciar no prefácio, esta obra pertence ao sonho e não à realidade, e como o sonho é o dum bacharel formado em Coimbra, o que significa, na perspectiva queirosiana, um ignorante e um superficial, nem a corrente literária que perfilhou é traída, nem é de espantar uma visão tão caricata.

Na viragem do século XIX para o século XX, reacende-se o interesse de alguns escritores pelo Oriente, nomeadamente em dois de entre eles, ambos residentes por largos anos nestes confins.

Embora contemporâneos e amigos, Camilo Pessanha e Venceslau de Morais não são casos absolutamente idênticos, a não ser na adopção de certos costumes da China ou do Japão, e em certas afinidades com a filosofia e a mentalidade do Extremo Oriente. Com efeito, a permanência deste último em Macau, e depois no Japão, traduziu-se na publicação de crónicas, de ensaios e de novelas, quase exclusivamente dedicados à realidade nipónica, na esteira da contra-corrente impressionista representada por Pierre Loti e Lafcádio Hearn, mas servidos por limitados recursos literários, que mal se elevam acima do nivel de impressões ou experiências íntimas.

Pelo contrário, Camilo Pessanha tem uma dimensão cimeira em matéria de angústia existencial e de requinte literário. E contudo, não é na sua poesia que a vivência efectiva do Oriente deixou rastos. A fazer fé na datação dos poemas da Clepsidra que contêm alusões explícitas à China, elas são anteriores à sua vinda para Macau. Quer a "parlenda nasal" da Viola Chinesa, quer as comparações do poema "Lúbrica", onde o poeta pretende apertar a amada como serpente "dos bosques tropicais da Ásia" e respirar o seu vestido.

Como os ébrios chineses, delirantes

Repiram, a dormir, o fumo inquieto

Que o seu longo cachimbo predilecto

No ambiente espalhava pouco antes...

Têm a ver apenas com reminiscências literárias, simbolistas ou decadentistas. É, pelo contrário, num volume em prosa, China - Estudos e traduções, recolha de artigos, palestras e traduções, que vinte anos de convívio com a raça chinesa encontram expressão. Contrariamente a Fernão Mendes Pinto, que viu a China no seu esplendor, Camilo Pessanha só a conheceu depois dum longo processo de decadência.

Nem por isso deixa de surpreender-nos, num poeta que tem com o Oriente prévias afinidades e acaba por encontrar no ópio o esquecimento do nada, a alacridade de alguns desses textos. Autêntico libelo contra a ignorância, a miséria, as superstições e as cortesias servis do "inferno amarelo" que tem debaixo dos olhos, e as ruínas da antiga grandeza portuguesa, só quando se ocupa da literatura ou da arte desta cultura milenar, ou traduz para português alguns dos seus poetas e filósofos, é que cessa a sua animosidade.

Nessa perspectiva, a colecção de arte chinesa reunida por Camilo Pessanha e oferecida ao Museu Machado de Castro, e de que ele próprio estabeleceu o catálogo, é um testemunho mais eloquente do que as palavras, para compreendermos o que a sensibilidade do poeta amou e admirou no seu exílio oriental.

A poesia modernista pouco ou nada deve ao imaginário oriental colhido na sua própria fonte. Surge, no entanto, no poema "Opiário" de Álvaro de Campos, e tem, para o caso, um duplo interesse. Em primeiro lugar, o de atribuir, no presente absurdo que o entendia, uma responsabilização negativa ao passado. Diz ele:

Pertenço a um género de portugueses

Que depois de estar a Índia descoberta

Ficaram sem trabalho...

Depois, porque Fernando Pessoa que, segundo creio, só viu a costa africana do Índico e o canal de Suez (de onde, aliás, o poema é datado), acha, no jeito paradoxal de sempre, que

Não vale a pena ter

Ido ao Oriente e visto a Índia e a China,

pois o ópio que o seu heterónimo fuma, para fugir à mágoa de viver, o leva a "um Oriente ao oriente do Oriente". A palavra, neste poema, significa tudo e não significa nada. Cedendo mais uma vez ao seu pendor verbal e intelectualizante, o poeta faz dela um significante sem referente, com mera existência mental.

Para terminar esta breve vista panorâmica da presença do Oriente na literatura portuguesa, ainda queria mencionar uma última obra, O Senhor Ventura, de Miguel Torga. Nela não vamos encontrar uma China previamente conhecida pelo autor. Mas o cenário funciona como paradigma ou emblema dos lugares onde o espírito aventureiro levou o seu herói, à semelhança de quantos Portugueses do passado se viram confrontados com eles e exerceram neles a sua actividade imaginativa.

Publicado in Revista de Cultura,

N° 4, I Série, Janeiro/Março de 1988.

* Professora de Literatura da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

desde a p. 99
até a p.