Atrium

EDITORIAL

O Director da Revista de Cultura Luís Sá Cunha

Taipa. Fotografia de Joaquim de Castro.

Este Número Especial da "Revista de Cultura", e tantos outros acontecimentos que concorrem para o grande programa que rodeia o encontro em Macau da UCCLA, são evidentemente significativos da consciência de partilha que a nova RAEM manifesta para com o mundo da lusofonia. Isto releva um facto incontornável: pelo seu passado Macau comunga da família luso-falante e, pelo seu presente e com vistas ao futuro, Macau não quer renegar esses velhos laços de sangue. Macau será, na larga comunidade lusófona, como aquele parente afastado que tão cedo emigrou para longes paragens, mas sempre com fotografia no álbum familiar.

Desde os seus primórdios, Macau cresceu com a amplitude institucional, antropológica e cultural da grande metrópole.

Do extremo Ocidente ao extremo Oriente, o nauta lusíada é o inter-agente de todos os comércios, operando trocas e miscigenações de todos os genótipos e produtos culturais, desde os trópicos oeste-africanos, passando pela Índia, Burma, Tailândia, Malaca, Insulíndia, Indochina. Macau foi cabo acolhedor dessa rota pan-civilizacional e escala transiente de tudo para o imo do grande Império do Meio.

Aqui, ao longo de séculos, vieram confluir, reflectir-se, transmutar-se, depurar-se, refinar-se, genes e memórias de todos os pequenos mundos e escalas do percurso: luso-mediterrânicas, lusíadas, africanas, sul-americanas, asiáticas. A urbe amadureceu contornos de metrópole luso-tropical, envolvida da grande cercadura sínica.

Na terra, maioritariamente chinesa, foram convivendo portugueses e europeus do Sul com as grandes comunidades cantonense e fuquinense, indianos, filipinos, malaios, japoneses, timores, javaneses, africanos.

Foram florescendo diversos hibridismos etno-culturais, da farmacopeia, à culinária, das vivências às crenças.

As múltiplas e profundas miscigenações confluiram à génese secular de um novo biótipo -o Macaense -, de um novo endemismo cultural e de um dialecto crioulo (o patuá). No apuramento desta novidade biocultural, e sobretudo na urdidura do patuá, foram decisivos sobretudo os contributos de quatro elementos: o português reinol, o indiano, o malaio e o chinês cantonense.

Pujante até aos finais do Século XIX, veicular de uso diário na relação doméstica, o patuá ou língu maquista foi emurchucendo até praticamente desaparecer nas primeiras décadas do Século XX.

São grandes as semelhanças estruturais dos diversos crioulos de matriz lusíada no Oriente, que os distanciam dos crioulos portugueses atlânticos. É mais evidente e directa a influência do papiá kristang de Malaca no dialecto crioulo macaense. Era esse Português crioulizado, popularizado e expressivo que constituiu a "língua franca" no Oriente, na última metade do Século XVI.

Mas a crioulização do Português vernáculo começara muitos anos antes, pelas costas de África Atlântica abaixo, e é essa matriz que se projecta e vem esbatendo-se, até ao Oriente, enriquecendo-se agora no progresso das viagens, até originar o patuá macaense.

A presença de África desvela-se ao olhar mais penetrante do investigador do crioulo de Macau; por via Cabo-Verdiana, adivinhas,provérbios, canções, modos lexicais, vieram insinuar-se e densificar o folclore macaense.

A seguinte quadra do folclore macaense é apontada como ilustração da "universalidade" dos crioulos de raiz lusa e síntese da complexidade da cultura crioula gerada em Macau:

    Nhonha na jinela (macaense) 
    Cô fula mogarim (cabo-verdiana)
    Sua mãe tankaréra (cantonense)
    Sua pai canarim (indiano)

Foram latas, também, as relações entretecidas entre Macau e o Brasil, vastamente referidas em vários textos desta edição.

Mas o que mais importa, talvez, destacar, será o impulso geo-político que animou a comunidade de negócios de Macau durante mais de um Século, polarizada na ânsia de relações directas com o Brasil.

Em dois anos, Macau viu-se cortada das duas grande linhas marítimo-comerciais que vinham fazendo a sua invejável prosperidade no passado.

Em 1639 terminava o comércio aberto com o Japão; em 1640, razão da restauração política em Lisboa, fechava-se a rota de Manila.

O Século XVIII, foi um longo período de insistências do Leal Senado visando um objectivo: a viagem directa do comércio Macau/ Brasil com dispensa de escala em Lisboa e, daí, do pagamento dos Direitos Reais à Coroa Portuguesa. Sonho finalmente realizado em 13/5/1810, quando a Família Real Portuguesa declarou a abertura universal dos portos brasileiros ao comércio das nações amigas. Mais tarde, em 16/2/1818, já eleito, D. João VI assinará dois alvarás concedendo o título de Senhoria às cidades de Rio de Janeiro e de Macau, ficando assim para sempre simbolicamente geminadas.

Importa, agora, olhar o presente e perspectivar e apostar no futuro, recebendo a partilha do mesmo universo lusófono como estrada de dois sentidos, de comum serviço.

Confluem à tonificação deste movimento vários factores harmónicos e de complementares interesses, estratégicos, comerciais, tecnológicos, culturais e de serviços. Entre Macau/China e o espaço mundial da Lusofonia que, semelhantemente à China, entra em crescente afirmação pelo novo milénio adentro.

O Português é a sexta Língua mais falada no quadro mundial, e a terceira língua materna com maior número de falantes em países exteriores aos espaços originais. É a terceira Língua "internacional" do Mundo, em que se expressam Culturas e Literaturas apaixonantes. Em mancha geográfica, a Lusofonia percorre aquela faixa tropical em cintura do inteiro globo terrestre, estrada de estrelas que, na expressão tirada de empréstimo a Agostinho da Silva, lança um abraço do universo ao universo.

É bom ver Macau aberta e entroncada nesta grande rota aberta ao Mundo e ao Futuro.

Camões: o retrato de Fernão Gomes

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