Antologia

S. Francisco Xavier
(tentativa de um estudo médico-histórico)

João Manuel Pacheco de Figueiredo*

Mausoléu de S. Francisco Xavier, em mármores florentinos, oferecido pelo Grão-Duque da Toscana, e túmulo de prata fundido por ou-rives goeses.

com especial oportunidade, nete suplemento dedicado à memória portuguesa na Índia, preenche a sua secção de Antologia com a publicação de alguns documentos apaixonantes e interessantes ao esclareci-mento histórico de uma das mais proeminentes figuras quinhentistas no grande teatro do Oriente - S. Francisco Xavier. Grão Senhor de Espanha convertido em esbraseado Apóstolo da Fé, Dom Francisco Jasso Xavier deixou pelo cená-rio extremo-oriental um rasto de grandeza lendária, que lhe projectou fama universal e lhe valeu a polarização mística de multidões que ainda hoje o cul-tuam na Índia, na peregrinação ao seu corpo e ao seu túmulo. Têm os textos aqui divulgados o particular interesse de permitirem o estudo comparado das efemérides biográficas de Xavier com as observações constantes nos autos dos exames médicos que foram sendo realizadas. Nestes, assume lugar de destaque o estudo médico-histórico de autoria do médico goês João Manuel Pacheco de Figueiredo (antigo Director da Escola Médica de Goa), apresentado à Classe de Ciências da Academia de Ciências de Lisboa na sessão de 19 de Fevereiro de 1976, e publicado nas "Memórias" (Tomo XX, Lisboa-1977). Complementa-se este estudo com a publicação dos autos, até agora inéditos, dos exames realiza-dos em 23 de Junho de 1951 e em 12 de Fevereiro de 1975, que nos foi autori-zada por Sua Excelência Reverendíssima o Patriarca de Goa.

S. Francisco Xavier, no estado em que se achou aos 12de Outubro de 1859(in "A India Portuguesa", A. Lopes Mendes, Lx. I. N.-1886).

Na madrugada de 3 de Dezembro de 1552, num sábado 1, com a imagem do Crucificado nas mãos e nos olhos e com o mesmo Senhor no coração e na boca chamando Jesus e Maria (Lucena), de 46 anos de idade (e não 55, segundo Lucena, Sebastiam Gonçalves e Francisco de Sousa, pois nasceu em 1506 e não 1497), após ter missionado no Oriente 10 anos, 7 meses e 4 dias, morria na praia de Sancião, sem ver realizado seu grande sonho de evangelizar a China, Dom Francisco Jasso Xavier, «que assim se chamava enquanto não deixou o mundo» (Lucena), um dos mais altos espíritos que, numa arrancada heróica, percorria de lés-a-lés, sujeitando-se a todas as fadigas, perseguições e intempéries dos climas, de Goa, centro do seu apostolado, à Costa de Pescaria, Nagapatão, Meliapur, Travancores, Malaca, Molu-cas, Tarnate, Amboino, Moro, Japão... Grande da Espanha, Mestre em Paris, Francisco tinha diante de si todo um mundo cheio de triunfos e seduções. Mas ele predestinado pela Providência para Grandes Coisas qual Paulo de Tarso na estrada de Damasco, fulminado ouviu uma voz: «Saulo porque me persegues? » Ou Francisco de Assis, na sua visão do Spoleto, de caminho a Apúlia onde ia ser armado cavaleiro, uma voz lhe perguntava: «Porque razão deixas o Senhor pelo servo, o príncipe pelo vas-salo? ». Xavier ouvia também uma voz. Era a de Inácio de Loiola a repetir-lhe as palavras do Evangelho: «De que serve ao homem ganhar o mundo todo se perder a sua alma? » Palavras mágicas que transformavam todo o seu espírito buliçoso e aventureiro em «Vaso de Eleição destinado a levar para as Índias o facho da Fé», como profetizara D. Madalena, sua irmã 2. E assim, o Grão Senhor da Espanha tornava-se no mais humilde Escravo do Senhor.

EM SANCIÃO

Doença, morte e primeiro enterramento

Estava-se no mês de Dezembro de 1552. A nau Santa Cruz ancorada nas águas da China. Os ventos Norte sopravam desabridos naquela ilha deserta. Xavier, numa humilde choupana, aguarda ansiosa-mente o mercador «que o meteria num batel pequeno governado por ele e remado por seus filhos e criados somente, de quem não temia que os malsinassem, e que ou o deixaria no areal com seu fatinho às costas (que eram brevário e aparelho para dizer missa) ou o esconderia por três ou quatro dias em sua casa, que tinha nos arredores, até o pôr numa madrugada às portas da cidade, donde o levariam logo, ou ele se iria apresentar aos mandarins como desejava, prometendo-lhe de não declarar nunca nos tormentos quem o passara à China... Mas faltou-lhe tão bem o gentio com a palavra por se não atrever a cumpri-la pelo evidente perigo em que se metia cumprindo-a... Nem por isso enfraqueceu um ponto da empresa» (S. G.). Mas se o seu espírito se mantinha forte apesar de tantas perseguições que sofrera, em especial em Amanguchi (Japão) -«pedradas e outras pancadas e sapatadas» (S. G.) - e, pior ainda o ódio feroz que lhe votava o Governador de Malaca, D. Álvaro de Ataíde, seu físico se achava debilitado com contínuas fadigas e jejuns. Xavier já não era o homem cheio de carnes, bem formado e de grande compleição e forças, que Sebastiam Gonçal-ves descreve. Ele, «grande sofredor do trabalho e tão senhor das próprias paixões», emagrecera na Índia e já quando estava nas Molucas começava a pintar de branco, embranquecera de todo em Amanguchi (1551) escreve Francisco de Sousa. «Eu estou já cheio de cãs», escrevia Xavier em 29 de Janeiro de 1552 3.

Em 20 de Novembro (parece que fala de 21, anota Wicki), após a celebração da missa de defuntos, teve febre e recolheu-se à nau em que estavam outros doentes, desejoso de os acompanhar. Como o contínuo balouçar da nau o impedisse, com a fraqueza da cabeça, ter atenção às coisas divinas, pediu ao Capitão Luís d'Almeida que «o mandasse botar em terra». Era intenso o frio. Foi-lhe dado «com que se defendesse e umas poucas amêndoas doces para comer» (S. G.). Jorge Álvares «vendo--otão maltratado» (JL) leva-o para uma choupana «plantada sobre um teso não muito longe do mar» (F. S.) João de Lucena assim descreve a choupana: «Coberta de ramos e torrões, aberta por diversas partes do vento e sem abrigo algum do frio; o tempo ia entrando áspero, a falta de tudo crescia por horas... » Era natural que a situação se agravasse. No dia 22 de Novembro tem «pontada de um dos lados com veementes dores», forte opressão (dispneia?) e violentas dores de cabeça. A debilidade, o clima inóspito, a falta de devido abrigo e o mínimo de recursos médicos ou medicamentosos - tudo o levou a ter uma pneumonia. Sangram-no duas vezes, com imperícia, apesar da febre alta e extrema fraqueza. O estado geral agrava-se ainda mais no dia 28. Tem delírio. Está inconsciente. Recobra a fal? no último dia do mês e desde esse dia para diante não mete mais bocado na boca. Avizinhando-se já muito a morte, tratou-se de se dispor para passar da terra ao Céu, segundo narra Francisco de Sousa. O dia 3 de Dezembro de 1552 é um dos grandes marcos na História das Cristandades do Oriente. João Alvares (deve ser Diogo Vaz, anota Wicki) mandou fazer um caixão «à moda China» onde depositaram o corpo lançando-lhe por cima muita quantidade de cal virgem para que «se comesse a carne depressa e poderem levar ossos limpos à Índia quando a nau partisse para Malaca». Da leitura das Crónicas de João de Lucena, Sebastiam Gonçalves e Francisco de Sousa fica-se com a impressão de que assim se procedeu por iniciativa da tripulação. Porém, tal não foi. Um curioso documento existente na Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa - «Cartas de Japão» cuja autoria se atribui a João Eiró -, contém elementos elucidativos. Um passo do mesmo documento: «... e o enterraram debaixo do chão, em uma tumba, com cal virgem que o padre pediu que lhe botassem, e estava enterrado três meses, pouco mais ou menos; e por mandado do padre quando a náu partisse para a Índia desenterrá-lo para lher trazerem uma ossada para a Índia» 4. Cobrindo-o de cal, assim se cumpria o seu desejo. Já em Goa, antes de embarcar para Sancião, ao despedir-se de seus amigos ele predissera: «não voltarei mais a Goa, o meu corpo sim, aqui ficará» (Lucena).

António de Santa Fé e dois mulatos levam o caixão às costas até ao local onde havia de ser enterrado, numa cova na fralda do outeiro, ao pé duma Cruz que os Portugueses «ali tinham por devoção arvorado» (S. Gonçalves) e como sinal puseram muitas pedras ao lado da cabeça. Achava-se também presente, por acaso, o piloto Francisco Aguiar. A falta de acompanhamento, tanta frieza da devoção, António da Santa Fé atribui-as ao grande frio daquele dia, que não permitiu aos Portugueses saírem das choupanas (F. Sousa). Assim foi enterra-do, pela primeira vez, aquele que seria conhecido como o Grande Apóstolo das Índias 5.

Está-se em 17 de Fevereiro de 1552. São já volvidos dois meses e meio. A nau está pronta para partir para Malaca. Abre-se a cova para ver «se já estavam limpos os ossos do Padre Mestre Francisco» (F. de Sousa). Aberto o caixão, afastada a cal, verificava-se com surpresa que o corpo estava incorrupto. Narra Lucena: «... nenhuma mudança, a mesma cor e boa sombra do rosto, as mesmas mostras mais da vida que da morte. Atónitos, observam-no com cuidado. Apalpam-no todo e verificam que está inteiro, sólido, cheio de sumo e de sangue, e com entranhas sãs» e, não satisfeitos, para se certificarem da sua incorrupção e para ser presente ao capitão da nau cortaram um retalho cutâneo-muscular que Ambrósio Ribeiro certificou, em 1 de Dezembro de 1556, «como situado na perna esquerda, em cima do joelho, uma mão de través da banda de fora, cortada da maneira duma ferida de comprimento dum dedo que parecia ser quebradura de golpe, dalguma que lhe deu na perna e ao redor da ferida se mostrava nódoa». A ferida lançou sangue como se estivesse fresca, escreve Francisco de Sousa. Relíquia que se perdeu, informa Schurhammer 6. Era a primeira mutilação que se praticava e a esta outras, muitas outras se seguiram. Era o início do seu Martírio post-mortem. Mais e mais, Senhor, mais e mais, suplicava Xavier em vida. «Para ele o sacrifício devia ir mesmo além da morte! Deus nada lhe poupara! Mas bem depressa também nada poupará para manifestar a glória do imortal Apóstolo», escreve Daurignac 7.

EM MALACA

Segundo enterramento, desumano e in-digno

Em Malaca, aos 22 de Março de 1553, aguarda-o a vingança do Governador D. Álvaro de Ataíde - uma cova de pequena dimensão e certamente superficial para ser melhor «amassado», à porta da sacristia da Igreja da Nossa Senhora do Oiteiro. O corpo é retirado do caixão e, à força, deitado na cova. O pescoço é «dobrado» com tanta violência que «lhe rebenta o sangue fresco como se naquela hora saísse das veias. Pesadas alavancas calcam com força a terra» 8.

Decorridos cinco meses, na noite de 15 de Agosto, procedia-se à segunda exumação. O corpo e os paramentos mantinham-se íntegros e incorrup-tos. Só o lenço branco que cobria a face e a almofada sobre que tinha a cabeça estavam banhados de «sangue fresco» 9.

Sendo a cova de pequena dimensão, não é de se admitir que fosse enterrado em decúbito dorsal, como qualquer pobre mortal. Foi-o certamente em decúbito lateral com a cabeça em flexão forçada, as coxas, as pernas e os pés em posição adaptada à força à pequenez da cova. Após a segunda exumação notou-se a existência de hemorragia na região cervical por lesões cutâneo-musculares provocadas por flexão forçada (dobramento) e provável fractura de vértebras cervicais, o nariz «amassado» 10 e o «costado direito quebrado» 11.

Ao proceder-se ao exame médico de 21de Janeiro de 1951 verificou-se a falta das três primeiras vértebras cervicais, luxação para trás do osso nasal direito e o calcâneo direito luxado para dentro, levando tudo a supor que o enterramento foi em decúbito esquerdo.

Diz Francisco de Sousa que «só tinha de mais uma ferida do lado esquerdo procedida de uma pedra aguda, que o penetrou à força do maço... » 12. Ora essa ferida poderia só ser na face direita e não no tronco nem no abdómen, pois a vestimenta estava em perfeito estado de conservação, «tão fresca e nova como se agora fosse feita», segundo narra Fernão Mendes Pinto 13. O certo é que no Auto de Abertura do Túmulo, datado de 1 de Janeiro de 1782, consta que o rosto com todas as feições estava carcomido mas coberto de pele, «exceptuando a parte direita que tinha uma pequena contusão». E o Auto do Exame Médico, datado de 12 de Outubro de 1850, diz que «a face estava revestida toda a pele ressequida e escura com uma abertura do lado direito a qual parece corresponder ao lugar da contusão, a que se refere o Auto feito em 1 de Janeiro de 1782» 14. O corpo, após a exumação, foi colocado em decúbito dorsal, donde é de concluir não ter havido rigidez cadavérica 15.

EM GOA

Primeiro exame médico (17 de Março de 1554) e terceiro enterramento

Aos 16 de Março de 1554 era o corpo de Xavier transportado da Igreja de Ribandar para o Colégio de S. Paulo «com grande solenidade e acompanha-mento de clero, de gente nobre e plebeia».

Logo no dia seguinte o Vice-Rei D. Afonso de Noronha pedia ao Doutor Cosme de Saraiva, físico do vice-rei, e ao Doutor Ambrósio Ribeiro, provi-sor, vigário-geral e administrador do bispado de Goa, o exame do Corpo a fim de comprovar a sua incorrupção.

O caixão colocado na capela-mor, foi aberto às 9 horas da manhã. Melchior Nunes Barreto, vice--provincial e reitor do Colégio que estava presente, narrava, qual Apóstolo Tomé, a Inácio de Loiola: «Vi com os meus olhos e toquei com as minhas mãos e estava incrédulo até que o visse»16.

Tenho presentes as transcrições dos certificados de exames feitos pelos Doutor Saraiva e Provisor Ambrósio, o primeiro datado de 18 de Novembro e o segundo de 1 de Dezembro de 155617, o depoi-mento do Saraiva no processo de canonização em que foi oitava testemunha18 e o que consta do trabalho de Manuel Teixeira, 158019.

«Saraiva palpou a barriga e lhe pareceu ao tacto e corpulência haver intestinos e não estar embalsa-mado (nem outra coisa artificial que lhe preservasse a corrupção, vide certificado); as pernas e outras parte do corpo vinham inteiras e com alguma carne que ainda tinha tacto; que segundo o curso da natureza e regra de física não se podia conservar da maneira como estava, por estar muito espaço de tempo o Corpo sepultado debaixo da terra». Saraiva verificou ainda «a existência dum orifício, ferida ou chaga (parecia ser de algum golpe, segundo Ambró-sio) do lado esquerdo, da parte do coração e pediu a um Irmão da Companhia20 que metesse os dedos, o qual meteu o dedo e tornando a tirá-lo saiu pelo mesmo orifício um sangue aquoso que ele testemu-nha, cheirou, e não cheirava a corrupção nenhuma, somente um pequeno bafio que parecia de cal e do fato que o Corpo trazia». É o que consta do depoimento do processo de canonização.

Tanto no certificado como no depoimento no-tam-se duas deficiências que deram margem a interpretações erradas. Saraiva não teve o cuidado de, com precisão, localizar o orifício, dando a impressão que estava situado no tórax quando o era no abdómen; e, muito importante, sendo médico--perito, não introduziu o dedo para verificar devida-mente o conteúdo abdominal, como o fez o leigo, o Provisor Ambrósio, que declarou no certificado que «na barriga da banda esquerda tinha um buraco que também parecia uma quebradura por onde «meteu os dedos até o cabo, que achou vão e dentro tocou em uns pedaços de coisas pequenas, que ao seu ver pareciam intestinos que estavam secos por muito tempo que estava sepultado».

Vê-se, pois, enquanto Saraiva se limita a dizer que saiu «sangue aquoso», Ambrósio tocou em «uns pedaços de coisas pequenas que pareciam intestinos», o Irmão João Bravo constatou a existência «de uma mistura de carne e sangue»21, o Irmão António Dias escreveu de Malaca aos Irmãos da Companhia de Jesus em Coimbra o seguinte: «... o vi todo desamor-talhado e o tornei com outros padres e irmãos a por noutro lençol: digo-vos mete em admiração o suave cheiro que dele sái; eu lhe meti uma mão na barriga, e lhe achei tudo cheio, porque lhe não tiraram as tripas no tempo que faleceu, nem depois, e o que lhe achei era tudo como sangue coalhado, muito branco e macio, que parecia unguento vermelho, o qual cheirava suavemente»22. Também Ambrósio que no certificado declarou com clareza que o orifício ficava situado «na barriga da banda esquerda» no depoi-mento do processo de canonização disse que «ele ficava à esquerda, para o lado do coração». Foi precisamente a leitura dos depoimentos do Saraiva e do Ambrósio que levou o grande investigador xavieriano G. Schurhammer, S. J., a escrever que «a pedido do Saraiva, o irmão João Bravo e seu companheiro António Dias introduziram o dedo «numa abertura que existia do lado esquerdo do peito»23, quando o orifício se situava de facto do lado esquerdo do abdómen — orifício pequeno onde se poderia introduzir um ou dois dedos e nunca uma mão, na exagerada expressão do Irmão António Dias. O que porém não consegui apurar foi a génese desse orifício24.

No quarto dia, escreve, Sebastiam Gonçalves, o Corpo foi enterrado pela terceira vez numa sepul-tura que se abriu junto do altar-mor, do lado do Evangelho e exumado quando foi demolida a Igreja de S. Paulo Velho. Colocado, durante algum tempo, no cubículo do reitor e depois sucessivamente no cubículo do mestre dos noviços, na capela de S. Tomé, na sacristia do Colégio de S. Paulo dos Arcos, o Corpo foi transportado para uma das salas da Casa Professa do Bom-Jesus, e em 1624, após a canonização, foi depositado na capela de S. Fran-cisco de Borja, no cruzeiro do Convento, do lado do Evangelho e finalmente, em 1659, na capela onde presentemente se encontra, no túmulo de prata, obra de ourivesaria goesa, concluído em 2 de Dezembro de 1637 e colocado em 8 de Novembro de 1698 sobre o mausoléu florentino, trabalho de Giovanni Batista Foggini, oferta de Cosme III25.

Essa longa jornada do Corpo de Xavier, Francisco de Sousa sintetizou-a nestas palavras26:

«Peregrinou Xavier em Corpo e alma por imensos mares remotíssimas províncias; desceu em forma de Peregrino do Céu à terra; até o seu Corpo já morto e sem alma peregrinou de Sancião a Malaca, de Malaca a Goa, de uma sepultura em outra mudando túmulos e ataúdes, cubículos, salas e capelas».

E vendo a imoralidade e corrupção que reinavam infrenes nessa que foi Goa Dourada, assim conti-nuava:

«E porque ainda se suspeita que há-de peregrinar mais ao longe (o que Deus não permita por sua Divina Misericórdia) jaz ao presente em túmulo interior de rodas para se poder tirar mais facilmente do mausoléu de prata e navegar a Lisboa por última relíquia do Império Português no Oriente. Mas eu espero em seu milagroso patrocínio que se lhe hão-de servir as rodas para se mover com mais prontidão e velocidade ao socorro da Índia, porque pedem remédio mais apressado tão lastimosas ruí-nas».

MUTILAÇÕES

É um capítulo triste, esse de mutilações e ferimen-tos no Corpo de Xavier. Se os corpos de Santos ficaram sujeitos a essas mutilações «para propagar a sua devoção», Xavier, Grande Apóstolo, foi sem dúvida um dos maiores Mártires post-mortem. Certamente por isso Francisco de Sousa, em 1697, lamentava nestes suaves termos27:

«Não me leva o génio a dizer epigramas sobre estas divisões e mais me inclina o zelo a sentir que satisfaz Deus a S. Francisco Xavier os excessivos desejos do martírio com o destroço que o seu Corpo virginal experimentou depois da morte: e talvez que lhe revelasse Deus todos esses sucessos, quando ainda vivia, para seu maior ensinamento». Rayana, também da Companhia de Jesus, condena em palavras concisas as mutilações28:

«What of the force, of nature respected, pious vandalism has succeeded in ruining the integrity of that holy body».

Foi em Sancião, quando da primeira exumação, que se fez também a primeira mutilação — secção de um retalho cutâneo-muscular, de um dedo de comprimento, na face externa da coxa esquerda29.

Na segunda exumação, em Malaca, notou-se a existência de lesões cutâneo-musculares na nuca, com provável fractura das primeiras vértebras cervi-cais e, do lado direito: luxação do osso nasal, contusão da face, fractura de costelas e luxação para dentro do calcâneo.

Em Goa, no Colégio de S. Paulo, durante a primeira Exposição do Corpo (16 a 18 de Março de 1554) no clima emocional que se viveu, descrito por Manuel Teixeira, Fernão Mendes Pinto, Aires Bran-dão e outros30, uma fidalga portuguesa, D. Isabel de Caron, na ânsia de ter uma relíquia, mordeu e arrancou o quinto dedo do pé direito31. Nessa mesma Exposição uma pessoa (Irmão João Bravo?) cortou «uma pequena carne do seu Corpo, a qual carne era vermelha e enxuta... para a meter em uma «nomina», e tingiu o papel em que se envolveu a carne, a qual deitou um cheiro suave»32.

Aos 3 de Novembro de 1614, «na sala sobre a portaria»33 da Casa Professa do Bom-Jesus, «para satisfazer a ordem e devoção do Geral Cláudio Aquaviva»34 que «segundo dizem só pediu alguma relíquia»35, o Provincial Francisco Vieira, certamente por excesso de zelo, ordenou ao Irmão Tomé Dias, uma das mutilantes intervenções ósteo-articulares no corpo de Xavier — a desarticulação escápulo--humeral direita. Todo o membro superior direito foi dividido a fim de ser distribuído como relíquias, sendo enviado a Roma (Igreja de Gesu) o antebraço «com a mão e dedos mirrados», segundo o relato de Sebastiam Gonçalves, testemunha presencial36.

Para se apreciar a mentalidade religiosa daquela longínqua época basta saber que, em 1716, volvido quase um século, o Doutor Manuel Porras, cirurgião de Sua Majestade e dos reais Hospitais da Corte, Examinador do Real Proto-medicato dedicava o compêndio de Anatomia Galénico-Moderna, ao Apóstolo das Índias, S. Francisco Xavier, ilustran-do-o com uma estampa alusiva à operação. É longa a dedicatória e assim inicia:

«Ao Grande Apóstolo das Índias, S. Francisco Xavier, especialmente ao milagroso acontecimento de cortar-lhe o braço. Ao meu Protector nos mais perigosos lances da Cirurgia, e outros sucessos adversos, por cuja intercessão logrei os melhores acertos e consolações... »37.

Sobre os «milagrosos acontecimentos», escreve Schurhammer, S. J.:

«A narração que se lê no Juvency sobre prodígios (tremores da terra, derramamento do sangue) que se deram quando da amputação do braço, não é histórica. A lenda do derramamento do sangue baseia-se seguramente num erro. »

E, mais além, assim continua:

«Segundo outras lendas, referentes à amputação do braço, o sangue derramou em tal abundância que se pôde recolher em frasquinhos de prata, o qual foi distribuído por muitas Igrejas que desejavam pos-suir relíquias do Santo»38.

Da mesma opinião é Francisco Rodrigues, S. J., que diz: «lenda a suposta tradição que diz ter brotado sangue do corte do braço (em 1614) e em tanta abundância que se embebeu em panos de linho e se recolheu em frasquinhos de prata»39.

Em 1620 ou tempos depois, para satisfazer o pedido de relíquias feito pelo Geral da Companhia Veteleschi, procedeu-se no Corpo de Xavier a verdadeira dissecção. O termo dissecção empregou-o Pietro dello Spírito Santo, a propósito do rigoroso exame médico, feito em 1731, no Corpo da Beata Maria Ana de Jesus, 107 anos depois da morte40. Enquanto neste intervieram 11 médicos-peritos, professores dos mais ilustres e afamados da cidade e da Corte de Madrid, os quais exploraram todo o Corpo, todas as cavidades e orifícios e fizeram profundas incisões nos músculos, a fim de verifi-carem a existência de alguma substância que o preservasse de. putrefacção; mãos leigas fizeram ablação de «entranhas» e de «outras partes nobres do Corpo»de Xavier as quais reuniram «em uma só massa» para serem distribuídas como relíquias — ex ossibus, ex precordiis, ex intestinis, ex carne, ex viceribus... — e já em 1659 elas estavam espalhadas pelo mundo inteiro (P. J. Marchault, S. J.). Em 10 de Março de 1638, Mastrilli escrevia ao Geral da Companhia que os intestinos do Santo estavam conservados em segredo num cofrezinho japonês.41

E Pietro dello Spirito Santo comenta assim sobre o procedimento de médicos que examinaram o Corpo da Beata Maria Ana:

«Se esse procedimento foi irregular, irreverente e indesejável, teve o mérito de provar a realidade do milagre, e, por isso, no íntimo não podemos condená-los».

Dessa indulgência não poderão aproveitar certa-mente tantos leigos que mutilaram o venerando Corpo do Grande Apóstolo.

Ao lado dessas mutilações, obra de mãos huma-nas, houve-as outras, obra do tempo:

Em 1654, 1782 e 1859 notou-se a falta do quarto dedo, em 1890 do terceiro e em 1910 do segundo42— todos do pé direito, ficando este reduzido ao dedo grosso. Em 1974 observou-se que o quarto dedo do pé esquerdo estava em via de se descolar. Em 1932 verificou-se no exame médico a existência do pavilhão da orelha esquerda, enquanto já não existia em 195143.

Ao espírito devocionista exagerado e supersticio-so, causador de tantas mutilações, contrapunha-se, a partir de 1681, um rigorismo exagerado44.

O Provincial Fernão Queirós com o receio de o Corpo mirrado do Santo vir a «desfazer-se em pó», solicitava do Geral da Companhia ordem para não abrir o caixão, sob pena de excomunhão. Em 1686, o Provincial Gaspar Afonso renovava o pedido ale-gando que «os membros se encontravam secos, carne dura e carcomida em muitas partes, o rosto enegrecido e deformado». Atendendo a esses cons-tantes pedidos de Provinciais, o Geral Miguel Ângelo Tamburini determinava que o Corpo ficasse encerrado em caixão de chumbo, de maneira que não se pudesse tornar a abrir, ordem que era cumprida pelo Provincial Manuel Saraiva. Em 1708, Francisco de Sousa, Prepósito da Casa Professa, autor do «Oriente Conquistado», pedia ao Geral Tamburini autorização para lançar «no fundo do Oceano» as chaves das lâminas exteriores de prata «para que nem sequer através de cristais se pudessem observar as relíquias que se deterioravam rapida-mente». Assim o Corpo de Xavier esteve encerrado por 36 anos.

A que atribuir essa atitude rígida dos Provinciais? À hipótese já posta por Rayanna 45, a qual não me satisfaz, eu juntaria outra: o receio de que «o Corpo virginal de Xavier», para empregar as palavras de Francisco de Sousa, experimentasse novos «destro-ços», isto é novas mutilações, atendendo talvez à circunstância daquilo que existia já não ser Corpo incorrupto. Seja como for, o certo é que o rei de Portugal **, tendo conhecimento de que as aberturas do caixão tinham causado «algum prejuízo» no Corpo, ordenava, aos 2 de Abril de 1755, que ele não fosse aberto sem sua especial ordem «por motivo algum, nem a favor de pessoa alguma, posto que seja da mais alta qualidade ou do mais elevado carácter e emprego»46.

Volvidos dez anos, aos 15 de Abril de 1765, o rei determinava ao Arcebispo Primaz do Oriente que o caixão devia ter três chaves e indicava dos claviculários 47.

Finalmente aos 8 de Fevereiro de 1768, a Junta Governativa da presidência do Arcebispo Primaz, comunicava ao rei a existência de «chaves semelhan-tes e que estas paravam nas mãos de alguns particulares eclesiásticos de tantos quantos têm estu-dado na Administração da Casa Professa, depois que dela saíram os denominados Jesuítas»48.

É de presumir, portanto, que houvesse depois da expulsão dos Jesuítas, em 1759, novas mutilações cuja natureza não consta de documentos ou de livros por mim compulsados.