História Diplomática

GOA E MACAU

Mons. Carmo da Silva*

Família crstã(bairro das Fontaínhas. Panjim). Um refúgio da tradição e da língua.

A cristianização da Índia, onde os portugue-ses se encontraram contra a sua expectativa "em face de uma civilização completa, civilização di-versa da sua, inferior em muitos traços e superior em alguns", como diria o Conde de Ficalho, data de tempos apostólicos. Pois é tradição constante no sul da Índia que São Tomé, um dos apóstolos, veio à Índia onde morreu mártir.

Mas a evangelização do Oriente, própria-mente dita, começou com a chegada de Vasco da Gama "por mares nunca dantes navegados"a Ca-licute, um actual estado Kerala, no sul da Índia, a 20 de Maio de 1498.

Com Vasco da Gama, vinham, pois, seis sa-cerdotes, dois dos quais eram da ordem dos Trini-tários. Frei Rodrigues Anes faleceu durante a via-gem em Melinde, África, e Frei Pedro da Covilhã morreu mártir em Calicute. Outros quatro, se-gundo se diz, fizeram mais que todos os guerrei-ros para dilatar os domínios de D. Manuel.

O sucesso da empresa do ousado argonauta levou o rei D. Manuel a mandar mais armadas pa-ra Índia não só com o fim de conquista mas tam-bém a fim de dilatar a Fé e "fazer cristandade", como então se dizia.

Na primeira armada de Pedro Álvares Ca-bral que saiu de Lisboa em 1500 vieram oito reli-giosos franciscanos e nove sacerdotes diocesanos. Oito destes eram capelães da armada e o nono com o título de Vigário deveria administrar sacra-mentos na fortaleza.

A primeira tentativa missionária dos francis-canos começou na ilha de Angediva. Duas deze-nas de habitantes receberam desta forma águas lustrais de baptismo.

Em Calicute quatro missionários morreram mártires e os outros foram a Cochim e Cananore onde muitos abraçaram a nova Religião.

Na armada de 1503 vieram os dominicanos. Estes e os franciscanos estabeleceram centros de irradiação evangélica em Goa, Angediva, Calicu-te, Cananore, Chaúl, Cochim e Ceilão (Shri Lan-ka), onde os portugueses tinham fortalezas ou fei-torias.

Até 1514, estas cristandades estiveram sujei-tas à Ordem Militar de Cristo. O "Prior-mor" da Ordem governava as cristandades do Oriente por meio dos seus Vigários Gerais. Como estes não podiam exercer todas as funções eclesiásticas, o Papa Alexandre VI pela sua bula "Cum sicut ma-nifestas", de 23 de Março de 1500, concedeu ao Rei "a faculdade de nomear Comissários Apos-tólicos com poder ordinário nas cidades e povos descobertos desde o Cabo de Boa Esperança até a Índia".

Com a criação da diocese do Funchal pelo Papa Leão X, com a sua bula "Pro excellenti" de 12 de Junho de 1514, as cristandades do Oriente, subtraídas à jurisdição da Ordem de Cristo, fica-ram a fazer parte da nova diocese. O bispo do Funchal exercia a sua jurisdição por meio de Vi-gários Gerais e a Santa Sé nomeava Comissários Apostólicos, que eram bispos titulares ou bispos de anel, "para dar ordens e crismar e prover todas as igrejas". Esta situação continuou até 1535.

Clemente VII, no Consistório de 31 de Ja-neiro de 1533, erigiu a diocese de Goa e fê-la su-fragânea do Funchal que também pela mesma bula passou a ser arquidiocese metropolitana.

Infelizmente, Clemente VII veio a falecer antes de expedir a respectiva bula. Paulo III, seu sucessor, pela bula "Aequum reputamus" de 3 de Novembro de 1534 declarou que "não tendo sido expedida a Carta Apostólica de erecção do Bis-pado de Goa, por causa da morte do seu anteces-sor, ele a mandava expedir e surtir efeito a partir de 31 de Janeiro de 1533, como se tivesse sido ex-pedida pelo seu antecessor".

A jurisdição da nova diocese de Goa se es-tendia a todo o território desde o Cabo da Boa Es-perança até à China. O primeiro bispo eleito e sa-grado, D. Francisco de Melo, não chegou a em-barcar para Goa devido à morte prematura aos 27 de Abril de 1536. Assim, o primeiro bispo de Goa foi o seu sucessor, D. Frei João de Albuquerque que desembarcou em Goa em 1538.

Portanto pode-se dizer que as relações entre as duas cristandades, de Goa e China, datam da criação da diocese de Goa.

Galeria do Seminário de Rachol.

O primeiro português a aportar nas costas da China foi Jorge Álvares que armou um junco em Malaca, desembarcou na costa da China e construiu uma cabana na ilha de Sanchão onde, em 1552, acolheu S. Francisco Xavier, já alque-brado e doente, que veio a falecer lá com os olhos postos na imensa China que sonhava evangelizar.

Jorge Álvares limitou-se a relações comer-ciais entre Malaca e a China.

D. Manuel enviou à côrte de Pequim como seu embaixador Tomé Pires, boticário de profis-são e autor da "Suma Oriental", mina de informa-ções sobre a Malásia, Java, Sumatra etc., que co-lheu em Malaca. Mas infelizmente Tomé Pires não pôde levar a cabo a sua missão, pois veio a acabar os seus dias na cadeia.

Em 1557, Macau foi cedida aos portugueses que ainda se encontram lá. A superfície total do território é apenas de 16 quilómetros quadrados. Mas esta pequena nesga de terra ganhou para si lugar de relevo no mapa comercial e religioso da Ásia. Foi por aí que entraram os missionários cris-tãos para levar o nome de Deus ao povo chinês e foi também por esta cidade que sairam as merca-dorias para o Japão e a Europa. À cidade foi dado pois, justamente o nome de "Cidade ou Porto do Nome de Deus".

Arco dos Vice-Reis, Goa (in "A India Portuguesa, A. Lopes Mendes, Lx. I. N.-1886).

O Papa Paulo IV pela constituição "Etsi sancta et immaculata" de 4 de Fevereiro de 1557 desmembrou a diocese de Goa do arcebispado do Funchal e elevou-a à dignidade de arquidocese metropolitana. Foram-lhe dadas como sufragâ-neas as dioceses de Cochim e Malaca, criadas no mesmo ano.

Em 23 de Janeiro de 1576 Gregório XIII pela sua bula "Super specula militantis Ecclesiae" criou a diocese de Macau e fê-la sufragânea de Goa. A sua jurisdição ia até à China, Japão e ilhas adjacentes e Tonquim, que foi desmembrado de Malaca. Os Jesuítas lá se encontravam desde 1563. Em 1557 os Dominicanos tinham lá uma casa de invocação de Nossa Senhora do Rosário. Como consta da história, o dominicano Frei Gas-par do Cruz entrou em China em 1556 e pregou com fruto em muitos portos da China. Os Francis-canos entraram lá entre os anos 1579 e 1580, os Agostinhos em 1588 e as Clarissas em 1633.

O título de "Indorum Primas" do bispo do Funchal, reconhecido pela já citada "Aequum re-putamus", passou com razão para Goa. Gregório XIII pelo seu breve "Pastoralis officii cura", de 15 de Março de 1572, reconhece ao arcebispo de Goa o título de "Primaz de todas as igrejas cate-drais da Índia", título que aliás já fora estrenua-mente defendido no Concílio de Trento pelo dele-gado português.

D. Frei João Vicente da Fonseca, arcebispo de Goa (1582 a 1587) ao convocar o terceiro Con-cílio Provincial em 1585 diz ser "Primaz da Índia e partes orientais". D. Frei Aleixo de Menezes (1595-1609) no sínodo de Diamper, 1599, afirma ser "Primaz da Índia e partes orientais". Na con-cordata de 23 de Junho de 1886 em que se confere ao Arcebispo "pro tempore" da Igreja de Goa o título honorífico de Patriarca das Índias Orien-tais, se reconhece que a Igreja de Goa é "Igreja Metropolitana e Primacial". D. António Sebas-tião Valente (1882-1908) foi o primeiro Patriarca.

Após a integração de Goa, Damão e Diu na Índia em 1962, Goa não pôde manter as suas rela-ções com as dioceses de Macau e Timor, esta úl-tima criada em 1940 como território desmem-brado daquela.

A bula "Ad hominem respicientes", de 1 de Janeiro de 1976, acabou com esta anomalia de facto. Macau e Timor deixaram de ser sufragâ-neas de Goa e a arquiocese deixou de ser metro-politana após quatrocentos e dezanove anos. No decurso da história a Arquidiocese de Goa teve ao todo onze sufragâneas: Cochim, Malaca, Fu-nay, Cranganore, Meliapur, Pequim, Nanquim, Damão, Moçambique, Macau e Timor.

As relações eclesiásticas entre Goa e Macau e ainda Timor foram mais que jurídicas. Uma pleiade enorme de sacerdotes, sábios e zelosos, saídos do Seminário Patriarcal de Rachol, o mais   antigo em toda a Ásia, trabalharam com afinco ao serviço da igreja de Macau! Quase todos entra-ram no mistério da eternidade, mas pelo menos dois ainda continuam a tradição e trabalham ao serviço da Igreja de Deus em Macau e um, já com cem anos feitos, goza do merecido descanso na sua aldeia natal em Goa. Pelo menos três se en-contram ainda ao serviço da Diocese de Timor. Os seus trabalhos e a obra que deixaram bem me-recem que sejam um dia devidamente estudados e arquivados em publicações de carácter histórico para edificação de futuras gerações!

BIBLIOGRAFIA

BRAGANÇA PEREIRA, História Religiosa de Goa, Bastorá, 1934; FIGUEIREDO N., Pelo Clero de Goa, Bastorá, 1939; GOMES CATÃO F. X., Anuário da Arquidiocese de Goa e Damão, Bastorá, 1955; LENYJ., BullariumPatronatusPortu-galliae, Lisboa, 1868; MEMÓRIAS HISTÓRICO-ECLESIÁS-TICAS DA ARQUIDIOCESE DE GOA, Nova-Goa, 1933; MONUMENTA GOANA ECLESIASTICA, Nova-Goa, 1918--20; SILVA REGO A., O Padroado português no Oriente, Lis-boa, 1940; Idem, Documentos para a História das Missões do Pa-droado Português no Oriente, Lisboa.

Igreja do Bom Jesus, Goa (in "A India Portuguesa", A. Lopes Men-des, Lx. I. N.-1886).

*Doutorado em Sagradas Escrituras pela Univ. Gregoriana de Roma. Vigário Forâneo da Igreja Matriz de Na Sa da Conceição (Pangim-Goa).

desde a p. 6
até a p.