Intervenção

"Quem já viu Goa não precisa de ver Lisboa"

Avelino Rodrigues*

Interior de uma casa em Panjim.

Pertenço a uma geração que bateu pal-mas quando as tropas de Nehru entraram em Goa. Não era um sentimento anti-nacional, era o reflexo da desmotivação colectiva a que o regime salazarista tinha conduzido o país. Passados vinte e sete anos, já sem complexos anticolonialistas nem patriotismos de pacoti-lha, chega-se a Goa e é impossível mandar ca-lar o coração.

Os jovens do meu tempo não podiam en-tender a teimosia colonialista de Salazar e as-sistiram ao desastre de Goa como uma derrota do regime. Era o tempo da libertação do Ter-ceiro Mundo, da liquidação de impérios do passado, do triunfo de um novo modernismo que arejava a Europa e alimentava sonhos de "um admirável mundo novo". Mas em Portugal estas ideias generosas eram esmagadas pelas botas velhas que não permitiam a evolução do país e o empurravam para uma nova guerra colonial nos territórios africanos.

O regime mostrava-se capaz de aprovei-tar o choque do terrorismo no Norte de Angola para cerrar os dentes e mobilizar energias na  cionalistas de camadas alargadas da popula-ção. Um povo generoso que "das suas fraque-zas faz força (ou, como em Portugal também se diz, "faz das tripas coração") deixou-se inebriar pela grandeza do holocausto, em que sempre fora moldado cristãmente - e pôs-se em mar-cha para Áírica, ao toque de uma propagan-da razoavelmente bem conseguida. E os cais do Tejo, ao embarque dos soldados, transfor-maram-se em cenário duma tragédia-festa do nacionalismo magoado.

Mas o regime não conseguiu o mínimo de adesão popular para a sua política sobre Goa, depreciativamente relegada como questão policial contra maltrapilhos, (que era assim que Salazar considerava os "satiagrahis" do Pandita, sem entender minimamente a lingua-gem de Gandhi, que derrotara a Inglaterra, nem o prestígio internacional de Nehru, feito campeão do Terceiro-Mundo). De Goa, o povo português pouco mais conhecia que as leves reminiscências da escola primária, onde "Es-tado da Índia" figurava como um ponto minús-culo no mapa do "Império Colonial Português". Da importância da Índia, como referência obrigatória da História e da Cultura portugue-sas, nada ou quase nada era divulgado fora do circuito académico e, mesmo aí, apagara-se a escola orientalista que só recentemente volta a nascer.

A ÍNDIA ESQUECIDA

Esgotada a geração de estudiosos de 1920, o Oriente apenas emergiu em Portugal nas comemorações do Centenário Nacional em 1940, mas já transformado em tema de dis-cursos patrioteiros e em historietas das revistas da "Mocidade". A culpa não foi só do regime, que realmente não estava vocacionado para estimular os estudos da História da Cultura. A culpa também foi dos nossos intelectuais bem-pensantes, à margem do regime, que não se atreveram a disputar o monopólio maçónico da historiografia portuguesa e, portanto, esta-vam incapacitados para entender a compo-nente religiosa da expansão portuguesa, sem a qual a história de Goa não faz sentido.

Por outro lado, os escritores eclesiásticos não estavam à altura das exigências científi-cas e, salvo raras e conhecidas excepções, apresentavam a história como "literatura de edificação religiosa", o que, além do mais, não disfarçava o integrismo político-religioso do modelo salazarista. Neste período estiolado da cultura portuguesa, os grandes estudos sobre a nossa história no Oriente são sobretudo de au-tores estrangeiros, apesar de poucos consegui-rem vencer a barreira da língua, como o fize-ram Charles Boxer e os jesuítas Shurhammer e Wicki, capazes de estudar os arquivos portu-gueses.

Já perto dos anos sessenta, a questão do Padroado Português do Oriente, reacendida à volta da nomeação do bispo de Bombaim e do âmbito da jurisdição do Patriarca das Índias (arcebispo de Goa) sobre as dioceses da nova Índia independente, veio chamar a atenção para a história de Portugal no Oriente. Só que a oportunidade perdeu-se pelo ridículo interna-cional da posição de Salazar que pretendia re-tirar da história argumentos que sustentassem o "beneplácito régio" relativamente à nomea-ção dos bispos, não só em território português (era uma cedência do Vaticano na Concorda-ta com Salazar) mas também nas dioceses es-trangeiras tradicionalmente sufragâneas de Goa.

Dá-se a ocupação de Dadrá e Nagar  -Aveli em 1954 e a anexação de Goa, Damão e Diu em 1961. Apagados os ecos das manifesta-ções oficiais de protesto, ficou proibido falar de Goa, mas o governo continuava a nomear pa-ra a Assembleia Nacional deputados do "Es-tado Português da Índia", o qual já não existia.

Em 1964, o Papa Paulo VI deslocava-se à Índia para presidir ao Congesso Eucarístico de Bombaim. O mundo inteiro virou as atenções para este acontecimento, que marcava um vi-rar de página na História da Igreja: era a pri-meira vez que o Papa saía livremente de Ro-ma para visitar um país fora de Itália. Foi a maior notícia do ano, mas em Portugal a cen-sura cortou-a dos jornais, obrigando um país católico a "um silêncio magoado e digno", (foi a ordem transmitida pelo ministro Franco No-gueira) entendendo o governo que o Papa não tinha o direito de visitar um país que inva-dira Goa.

Foi a última vez que em Portugal se falou da Índia, ao nível da opinião pública. Sabe-se agora que antes de 1974 já Marcelo Caetano tentara restabelecer as relações diplomáticas cortadas em 1961, mas só em 1975 é que Lisboa se aproximou de Nova Delhi, como aliás fez com todos os países do mundo. Já tinham pas-sado catorze anos depois da anexação. Portu-gal encontraya-se a braços com os problemas internos da descoberta da liberdade, em per-manente instabilidade governamental e com todos os traumas da descolonização resultan-tes do fim das guerras africanas. Estas circuns-tâncias não permitiram que a abertura da em-baixada em Nova Delhi se traduzisse em tra-balho eficaz relativamente a Goa, tanto mais que ainda se não tinham apagado as sequelas de 1961.

Agora já passaram 27 anos, quase duas gerações. Em Goa já poucos restam do tempo da administração portuguesa. Muitos emigra-ram para Portugal, para a América e outros países ou por lá se deixaram ficar. Muitos ou-tros nasceram entretanto e já não encontra-ram escolas portuguesas para aprender a lín-gua de seus pais. Por outro lado, imigraram para Goa milhares e milhares de indianos dos estados vizinhos que nunca haviam tido qual-quer influência da cultura portuguesa. O resul-tado final traduz-se numa natural descaracte-rização do ambiente da cidade, pelo menos para quem chega a Goa pela primeira vez.

ORGULHO DE PORTUGAL

Mas Goa é diferente de todas as outras ci-dades da Índia. Pangim, Margão e inúmeras vilas de todo o distrito ainda conservam hoje na sua fisionomia os traços típicos das cidades do Ribatejo e da Estremadura, mas com a van-tagem de certos conjuntos urbanos do século XVIII se terem conservado sem as adulterações adventícias que um certo desenvolvimento de-sordenado provocou em Portugal. É assim no Bairro das Fontainhas que ainda vive o sossego do fim do século e onde a tradição se refugiou. Da esplendorosa Goa de outros tempos, já pouco resta de pé. Ficaram as grandiosas igre-jas e conventos, lembrando o esplendor da "Goa Dourada" dos sécs. XVI e XVII, quando a cide devia ter uns trezentos mil habitantes, mais que Londres ou Amsterdão. Era o tempo em que se dizia; "quem já viu Goa não precisa de ver Lisboa".

Mas hoje mal se distingue o local do Ter-reiro do Paço, do Arsenal e da Ribeira das Naus, na margem do Mandovi. Do palácio do sultão, que o foi também de Albuquerque, resta apenas um pórtico abandonado. O Arco dos Vice-Reis está de pé, mas falta-lhe todo o enquadramento das muralhas e palácios: é apenas uma referência do passado à sombra de árvores tropicais.

Há uma serenidade majestática na pai-sagem, acentuada pelos vultos renascentistas do Mosteiro de São Caetano, da Catedral, de São Francisco e da basílica do Bom Jesus. Sobe-se hoje a Rua Direita, em direcção às Mónicas e a Santo Agostinho, mas o bulício do que foi em tempos o maior centro comercial das Índias abafa-o agora o grasnar de milhen-tos corvos e passarada infinda que tomaram conta do arvoredo sobre as ruínas do Palácio da Inquisição.

Diu - uma das três maiores fábricas da arquitectura militar do mundo.

E no entanto, a par dos Jerónimos e da Torre de Belém, não há mais sítio no mundo que fale tão alto do orgulho português. Aqui em Goa é sobretudo o esplendor renascentista das igrejas que se impõe, mas, em frente, a si-lhueta do Forte da Aguada e da Fortaleza dos Reis Magos afirmam a grandeza duma arqui-tectura militar que na Índia produziu os maio-res fortes portugueses de sempre (de que Chaúl, Diu e Damão são os exemplos mais es-pectaculares).

Saindo das cidades para os concelhos ru-rais, facilmente se constata que algumas al-deias de Salcete e do Bardez ainda estão mais próximas das aldeias portuguesas que do am-biente rural indiano,

Damão, exteriormente, encontra-se como sempre foi. A antiga cidade administrativa (Damão Grande) conserva a sua traça urbana quase medieval, sem adulterações, bem cui-dada, limpa e asseada, graças a um adminis-trador que alia o dinamismo de governante moderno com o porte fino de aristocrata mu-çulmano. Toda a gente lhe retribui a estima que ele revela pelas riquezas do património português, incluindo a casinha de Bocage pin-tada de fresco. À responsabilidade do mesmo "colector" encontra-se também a cidade de Diu, embora distante muitas centenas de qui-lómetros, que levam mais de dez horas a per-correr de automóvel.

Diu é um deslumbramento. O seu castelo, um dos maiores do mundo, dificilmente pode ser conservado sem despesas astronómicas. Por todo o lado, nas ameias voltadas para o mar, há inúmeros canhões dos séculos XVI e XVII, bem estimados, contrastando com as pe-ças ferrugentas da última artilharia portu-guesa que os resistentes de 1961 partiram antes da rendição. A resistência militar em Diu dei-xou marcas: inúmeros gloriosos brasões lusía-das foram arrancados pela fúria dos "freedom fighters" e jazem agora no chão de uma velha capela transformada em museu. A igreja do castelo, único edifício que se encontrava de pé, ficou desmantelada pela explosão de uma bomba, lançada de avião, talvez porque os in-vasores pensassem que servisse de depósito de armamento. O antigo palácio da administra-ção portuguesa, recentemente reparado, en-contra-se agora divido em duas alas, tendo de-saparecido a parte central em 1961 no reben-tamento de uma mina portuguesa.

Curiosamente, Diu tem agora mais pes-soas a falar português do que nos antigos tem-pos: cerca de dois mil hindús, retornados de Moçambique depois de 1975, vieram juntar-se a perto de mil cristãos de expressão lusófona. Também aqui o património é respeitado. A única nota discordante (afinal anterior a 1961) é o estado actual da igreja de São Tomé, a mais antiga da cidade, cujo interior serve de campo de "badminton", depois de ter sido utili-zada como caserna das tropas portuguesas.

OS GOESES DIVIDIDOS E PORQUÊ

As feridas da "libertação" ainda não sara-ram completamente. Apesar de bem integra-dos na sociedade indiana, é um facto que os antigos portugueses ficaram traumatizados. Eles tinham os seus privilégios e um real senti-mento de superioridade relativamente aos in-dianos, que lhes vinha do tempo das conquis-tas e da crença religiosa. Eram eles que domi-navam a sociedade, apesar de a população crista só representar trinta por cento dos goe-ses.

Nos primeiros anos, segundo confessam, terá havido alguma discriminação por parte dos vencedores, mesmo que muitos goeses ti-vessem sempre conservado os seus empregos públicos. Hoje tudo mudou; já não se chamam portugueses, assumiram plenamente a cida-dania indiana sem se deixaram diluir: são "in-dianos goeses", ocidentalizados, com todo o brio da história e o estatuto social de uma certa burguesia arruinada. Conservam a sua identi-dade cultural, que as autoridades indianas tão bem souberam entender, a ponto de terem res-peitado a unidade administrativa Goa-Da-mão-Diu sob o mesmo governador (e com o mesmo bispo), apesar da enorme distância que separa os três territórios. O respeito por esta entidade cultural e histórica levou Nova Delhi a resistir a pressões dos estados vizinhos que tentavam a anexação pura e simples: du-rante vinte e seis anos a unidade Goa-Damao--Diu dependia directamente do governo cen-tral e desde o ano passado constitui o 25° Es-tado da União Indiana.

Apesar das queixas que hoje se ouvem em certos ambientes de Goa (sobretudo contra a corrupção) e de algumas piadas contra os indianos, o ambiente geral é de aceitação se- rena, misturado com alguma saudade do anti-gamente.

O principal problema deste pequeno mundo é o divisionismo e a má-língua. Existem hoje cinco ou seis associações de cultura portu-guesa, quase todas sem grande projecção. Pergunta-se se não seria melhor tentar uma ac-ção unificada. Impossível - dizem - porque os outros são "isto e aquilo". Uma simples análise da história goesa faz-nos penetrar no subsolo desta divisão.

A história de Goa levou à criação de três sedimentos da presença portuguesa: os "des-cendentes", originariamente de classes baixas, que se promoveram através de casamentos mistos (desde o tempo de Albuquerque) e da assimilação da religião católica e de uma certa cultura popular portuguesa; os cristãos de origem brâmane, indianos de puro sangue, que os jesuítas privilegiaram e promoveram nos estudos e que representavam a maior força civil do "Estado da Índia", pelo seu esta  tuto social, económico e cultural; finalmente os hindús simpatizantes com a presença portu-guesa, colaborantes com a administração e por ela protegidos, os quais nunca deixaram a sua religião mas adoptaram certos modelos ocidentalizados e mesmo a língua. Para além destes, restava a maioria hindú.

Não explodiram grandes conflitos nos pri-meiros séculos, enquanto a Igreja manteve o controle espiritual e mesmo temporal da socie-dade goesa. Mas, com a extinção da Compa-nhia de Jesus pelo Marquês de Pombal, em meados do século XVIII e, mais tarde, a perda de influência da Igreja na Revolução Liberal de 1920, seguida da extinção-de todas as Or-dens Religiosas, em 1834, a sociedade goesa fi-cou mais livre de estruturas ideológicas de controle. Libertaram-se então os mecanismos naturais das contradições imanentes - e as for-ças sociais da comunidade puderam afrontar --se.

Ruínas da grandeza aristocrática de Baçaim. Mais rica que Goa no Séc. XVIII, chamavam-lhe "Dom Baçaim".
Sé Catedral de Goa.
Igreja de Na Sa Piedade(Ilha da Piedade).

Já no período anterior tinham entrado em Goa as ideias de alguns "estrangeirados" do iluminismo oitocentista que nas quesílias clericais encontravam pasto para todas as crí-ticas. Surgiram depois as novidades da Revolu-ção Francesa e a ocupação de Goa pelas tro-pas britânicas que, tal como haviam feito em Malaca, se antecipavam estrategicamente ao possível alastramento das guerras napoleóni-cas ao palco colonial. Esta ocupação que só tardiamente foi levantada, provava que a au-toridade portuguesa se encontrava debilitada e já não controlava a situação. Vem logo a se-guir, em 1825, a independência do Brasil (e to-da a história de Goa sempre esteve ligada, em paralelo ou por antítese, à evolução da gran-de colónia americana) e então chegou a de-fender-se em Goa, e também em Lisboa, que Portugal deveria preparar a emancipação da Índia Portuguesa. Nunca se chegou a este ex-tremo, mas as ideias liberalizantes tinham aportado ao Mandovi, com todas as conse-quências que a segunda metade do século bem documenta. E aqui voltamos outra vez aos brâmanes e aos "descendentes".

O partido dos descendentes, maioritaria-mente centrado em Pangim, controlava o his-tórico "Exército da Índia", esforçando-se por identificar-se com a bandeira e com os títulos nobiliárquicos recentemente concedidos pela revolução liberal; o partido brâmane, com sede em Margão, agitava no "Ultramar" (pri-meiro jornal não oficial do território) ideias modernas de maior autonomia administrativa com participação política da população local, o que só beneficiaria a sua classe, bem repre-sentada nas profissões liberais, no funcionalis-mo, mas escolas e mesmo na Igreja e nas Or-dens Religiosas (sobretudo os jesuítas). Foi um período conturbado que chegou a fazer san-gue É verdade que após a dissolução do "Exército da Índia", em 1871, os "descendentes" emigraram em massa para Portugal, Moçam-bique e Bombaim, reduzindo-se progressiva-mente o seu número em Goa, que de seis mil do final do século passou para menos de dois mil em 1961. Também é verdade que os últimos cem anos permitiram a unificação dos dois se-dimentos da população cristã, assistindo-se mesmo a uma certa osmose entre os restos da antiga nobreza indo-portuguesa dos "descen-dentes" e a classe dirigente nativa. Mas as mar-cas do passado mantiveram-se até hoje (se não institucionalmente, pelo menos a nível cul-tural e social), sem prejuízo dessa realidade que era a sociedade goesa.

A estas cicatrizes da História, vieram acrescentar-se as sequelas da crise de 1961. Um sector da sociedade goesa aderiu aos "freedom fighters", para quem Goa não seria mais que "uma verruga colonialista na face ra-diosa da Índia" (como dizia Nehru) preten-dendo a sua diluição no Estado maharata (e de Damão e Diu no Estado do Gujerat); um ou-tro sector virava-se desesperadamente para Lisboa e não queria sequer pensar na separa-ção da Mãe-Pátria; o grupo mais moderado sonhava com a hipótese de independência autónoma, sob o patrocínio da ONU, que real-mente nunca se manifestou sobre o assunto. Cada uma destas três linhas políticas atraves-sou transversalmente as duas grandes compo-nentes da sociedade goesa, daí resultando após 1961 a divisão dos goeses em meia dúzia de atitudes políticas que ainda são visíveis nos antagonismos actuais.

Passados vinte e sete anos, estas diferen-ças não foram assimiladas pela sociedade goesa, porque não surgiram condições de uni-dade. Uma dessas condições poderia ser a ne-cessidade de sobreviver ao ataque de um ini-migo externo (mas o invasor não se comportou como inimigo e não havia razão para resistir). Outro factor de união poderia ter sido o estí-mulo da cultura histórica através de Portugal, (mas o governo de Lisboa tardou em restabe-lecer relações diplomáticas e assim impediu a continuidade dos laços antigos). Também não foi possível contar com o dinamismo interno da comunidade, até porque muitos dos seus ele-mentos mais válidos se afastaram.

SALAZAR NO TRIBUNAL DE GOA

Com a retirada de Portugal, a administra-ção pública foi reestruturada e muitos dos pila-res da presença portuguesa desapareceram abruptamente ou por inanição.

O mais grave foi o desmantelamento do sistema de ensino português, que em 1961 dis-punha de 255 escolas primárias, quatro liceus, três escoals técnicas, além da Escola de Medi-cina, da Escola de Farmácia e da Escola Nor-mal (cerca de oitocentos professores primá-rios, e uma centena de professores no ensino médio e para-superior). Hoje não existe uma só escola portuguesa. No ensino primário passou a ser obrigatória a língua regional; no secundário e para-universitário o português foi substituído pelo inglês. Os cinco jornais diários e os três semanários desapareceram a pouco e pouco; a Rádio deixou de emitir em português, só restando um programa semanal de meia hora.

Ainda hoje os goeses se queixam do abandono de Portugal, e apontam como raíz dos seus males a falta de realismo de Oliveira Salazar. Não compreendem como foi possível a política do "orgulhosamente sós", que impe-diu o governo português de negociar com Nehru uma saída airosa, que desprezou a força da União Indiana, que na hora da inva-são deu ordens de terra-queimada minando   pontes e palácios e que, depois do desastre, nunca aceitou negociar um tratado de paz que abrisse caminho à reconciliação e ao res-tabelecimento do contacto com Portugal. Em contra-partida, nunca mais esqueceram a co-ragem moral do governador Vassalo e Silva, que sacrificou a sua carreira para salvar Goa, evitando uma resistência suicida e irreponsá-vel. A gratidão dos goeses ficou patente em 1980 quando convidaram o último governa-dor a visitar a sua terra, antes de morrer, home-nageando-o com uma manifestação tão gran-diosa que nunca tal se tinha visto em Goa - a ponto de as autoridades indianas terem ficado algo irritadas com tão significante revivalismo.

Basílica do Bom Jesus. O esplendor dos modelos clássicos da Renas-cença italiana, na Europa ao serviço da Contra-Reforma, disputava na Índia a imponência dos templos hindús.

Hoje, pela primeira vez na sua história, a orgulhosa Goa olha com inveja para a minús-cula Pondicherry, que se mantém como foco de cultura francesa na Índia. Pelo tratado de 28 de Maio de 1956 a França cedeu o território à União Indiana, mantendo as estruturas admi-nistrativas e todas as instituições francesas de ensino e de cultura, designadamente o Liceu Francês com programas e professores desi-gnados e pagos por Paris. O Liceu é património e propriedade do Estado francês. Escolas pri-márias e secundárias ensinam a língua france-sa, que a "Alliance Française" promove em várias cidades da Índia, até em Goa. Além dis-so, o governo Indiano facultou ao governo francês, ou a instituições por ele reconhecidas, a faculdade de manter ou fundar institutos su-periores para o estudo, investigação e divulga-ção da língua, cultura e civilização francesas. O Instituto Francês centraliza estas actividades.

REDESCOBRIR A ÍNDIA PELA CULTURA

Mas a França saiu da Índia pacificamen-te, ao passo que Portugal foi expulso à força. O acordo de cooperação cultural entre Portugal e a Unido Indiana data de 1980, mas até agora pouco se tem feito. Devem-se ao actual gover-nador de Goa, Dr. Gopal Singh, as primeiras tentativas de intercâmbio com Portugal. Este intelectual "sikh", recentemente doutorado "ho-noris causa" pela Universidade de Coimbra, sabe que o património português deixado em Goa, agora classificado como património in-diano, constitui a principal riqueza do Estado. O seu empenhamento junto de algumas insti-tuições de Lisboa começou a dar frutos.

A Fundação Gulbenkian apoia os traba-lhos do "Xavier Center of Historical Research", em Goa, dirigido pelos jesuítas Teotónio de Sousa e Correia Afonso (este é irmão do líder parlamentar do actual partido do governo português) e libertou verba para recuperar uma ala do majestoso seminário de Rachol, a fim de aí instalar-se um museu de arte sacra para recolher centenas de peças dispersas por caves e igrejas antigas, quase ao abandono. Mas infelizmente esta ideia não avançou até agora porque o seminário é propriedade ecle-siástica e o Direito Canónico mais facilmente tolera a destruição natural que a cedência de direitos a outras entidades.

Também pela mão da Gulbenkian, ini-ciou-se em 1987 o projecto de intercambio do-cumental entre Goa e o Arquivo da Torre do   Tombo, de Lisboa, um trabalho que certamen-te vai prosseguir apesar da recente substitui-ção do director do Arquivo Nacional, Dr. José Pereira da Costa, que foi o seu pioneiro. A fun-dação apoia ainda uma das associações goe-sas de cultura portuguesa e encontra-se empe-nhada na realização de um congresso interna-cional em Cochim sobre a história dos portu-gueses na Costa do Malabar.

A nível oficial, o Instituto de Cultura e Lín-gua Portuguesas (ICALP) lançou o primeiro programa. de bolsas para investigação em Portugal e apoia os estudos portugueses na universidade de Pangim, onde acaba de ser lançado o primeiro curso de Língua Portu-guesa depois de 1961. Não só aqui, mas tam-bém em Bombaim, um sem-número de teses de História Indo-portuguesa (todas em inglês) aguardam publicação, esperando-se o contri-buto do Instituto Cultural de Macau.

Parece que se vai no bom caminho, em-bora tarde. Este esforço vai certamente reavi-var uma certa élite culta de Goa, que já foi tão importante mas agora vai desaparecendo, à medida que surgem novas gerações sem con-tacto com a escola portuguesa. São estes vene-ráveis cabelos brancos, autodidatas na linha da boa tradição goesa, que até agora manti-veram acesa, a língua e a saudade, porfiando em gastar as suas economias em pequenas pu-blicações que não resistem às leis do mercado, intervindo em improvisados colóquios de mo-destas associações, salvando memórias e livros de estimação e cantando as músicas da sua ju-ventude. São os mais cultos mas não são os úni-cos. Todo o Bairro das Fontaínhas em Pagim fala português tão bem como a Chamusca e só lhe faltam os touros e as adegas para comple-tar o ambiente.

Mas a Língua Portuguesa apenas se con-servará nas famílias enquanto não morrer esta geração. Os filhos já estudam em inglês, da pri-mária à universidade, perdendo o domínio da língua materna. Apesar de tudo, será nestes pequenos núcleos e talvez nas aldeias critãs e em certas camadas pobres de escolaridade elementar, que o Português poderá manter-se algum tempo como língua familiar. Mas nin-guém espere que o progresso moderno e as necessárias leis do mercado de trabalho con-sintam a repetição do "milagre de Korlay", em Chaúl, onde uma pequena aldeia luso-india- na, isolada há três séculos, teima em falar um dialecto português.

Igreja e Colégio dos Jesuítas em Diu.

AO ALCANCE DE PORTUGAL

Depois de tanto tempo perdido e de tanto remar contra o destino, é agora impossível imi-tar Pondicherry. Salve-se e estimule-se o que for possível enquanto é tempo: os pequenos núcleos de eruditos são mais fáceis de ajudar, porque sempre estiveram motivados; a tradi-ção das paróquias rurais e algumas famílias seguirão as leis próprias da sua auto-defesa cultural, mas terão de ser apoiadas para pode-rem assimilar o progresso moderno sem per-derem a sua matriz; os monumentos e o am-biente histórico que são a principal riqueza de Goa, Damão e Diu, só poderão conservar-se através da cooperação entre a Índia e Portu-gal, em articulação com alguns mecenas inter-nacionais e com os próprios utilizadores (que são a administração pública e a Igreja Católi-ca).

É evidente que nem Portugal nem a Índia dispõem de recursos financeiros para preser-var um património histórico tão vasto e tão rico. Há no entanto alguns meios modestos que se-ria imperdoável desperdiçar. Portugal dispõe de bons técnicos no campo da museologia e da conservação de monumentos, cuja expe-riência deveria ser investida na Índia, onde existem tantas boas-vontades que precisam ser orientadas. Para dar alguns exemplos: quanto custaria enviar alguns peritos portu-gueses a Damão, ou ao Bairro das Fontaínhas em Goa, para ajudar a definir políticas de en-quadramento urbanístico ou simples arranjos de interesse turístico, em que as forças da terra estão empenhadas?

Goa neste momento é uma das grandes atracções turísticas da Índia. Talvez a corrente interna, proveniente de Bombaim, seja sobre-tudo atraída pelas praias paradisíacas do lito-ral goês, mas o turismo internacional procura mais a Goa mítica, que se revela nos seus moti-vos históricos, desde a basílica do Bom Jesus, onde repousa Francisco Xavier, ao Forte da Aguada, onde se instalou uma das melhores unidades hoteleiras de todo o subcontinente.

Mas há muita coisa que falha, na tenta-tiva de valorizar os motivos históricos "para tu-rista ver", desde a decoração de certos empreendimentos à culinária portuguesa e ao ar-ranjo dos edifícios antigos. Há aqui vasto campo para a cooperação de artistas portu-gueses, sem falar dos organismos de turismo que deveriam colaborar com as agências in-ternacionais no encaminhamento de visitantes portugueses e estrangeiros para Goa. (E, já agora também para Damão e Diu, que não se-rão menos importantes, mas se encontram fora de todos os circuitos).

Passando do turismo para o campo aca-démico: por que não sugerir a tantos universi-tários portugueses, em busca de temas origi-nais para licenciaturas e mestrados, o filão da Índia? Como foi possível que ainda nenhuma Universidade Portuguesa se tivesse interessado pelo fenómeno de Chaúl? Não foi um investi-gador português que lá fomos encontrar, entu-siasmado com o estudo linguístico e etnográ-fico duma aldeia proto-portuguesa perdida no meio da Índia - foi um professor americano da Universidade de Indiana, que se aventurou a viver durante seis meses a vida simples dos camponeses de Korlay.

A RESPONSABILIDADE DA DIÁSPORA GOESA

Finalmente, uma referência à responsa-bilidade da Diáspora goesa. Não só em Bom-baim, mas sobretudo em Portugal, no Canadá e nos Estados Unidos, existem milhares de goe-ses cultos e ricos, que se orgulham das suas raí-zes históricas e que certamente terão ultrapas- sado o divisionismo das castas e dos contra-tempos do passado. Quem melhor do que eles poderia introduzir em Goa uma nova semente de unidade que fizesse esbater antagonismos de má vizinhança? Em Portugal, por exemplo, há goeses ilustres nos lugares de topo da Uni-versidade, da Assembleia da República, por vezes do Governo, e nas mais altas profissões li-berais. Percentualmente são talvez mais nume-rosos nesses lugares cimeiros que os algarvios ou ribatejanos.

Entre os goeses que se distinguiram em Portugal e lá se estabeleceram, Peregrino da Costa enumerou em 1958 esta lista impressio-nante: 23 professores universitários (entre os quais toda a linha dos Gonçalves Pereira, na Faculdade de Direito de Lisboa), 22 oficiais do Exército e nove da Armada, 29 médicos (o mais famoso foi Gama Pinto, que deixou o seu nome ligado ao Instituto Oftalmológico de Lis-boa), 17 magistrados e advogados, 36 padres 27 diplomatas, 19 políticos e altos funcionários 20 jornalistas e 53 escritores (entre os quais Ro-dolfo Delgado, Mariano Saldanha, Cunha Gonçalves, Bernardino Gracias e Júlio Gonçal-ves). Após 1958 cresceu o número de goeses in-fluentes em Portugal, mas não se conhecem es-tatísticas. Refiram-se alguns nomes mais co-nhecidos: os primeiros-ministros Marcelo Ca-etano e Nobre da Costa, o ministro dos Negó-cios Estrangeiros André Gonçalves Pereira e os líderes parlamentares Correia Afonso e Na-rana Coissoró.

E seria ainda necessário assinalar cente-nas de nomes, entre os duzentos mil goeses dispersos no resto da Índia, na Europa, na Ásia e na América, para concluir (como o fez recen-temente o historiador Filipe Tomas no seu es-tudo "Goa, une société indo-portugaise") que "a cultura goesa é mais que uma sobrevivên-cia enquistada num canto perdido da Índia, é um princípio activo, um elemento dinâmico que, irradiando a sua influência, assume na História Universal uma função mais importante do que seria normal esperar das pequenas di-mensões do território... Parece que Goa tem uma personalidade étnica e cultural suficien-temente enraizada e uma élite culta suficiente-mente numerosa para que possa preservar a sua identidade cultural em condições que hoje são menos favoráveis".

Esta constatação tem sido rezes muitas re-petida para vincar a capacidade de realiza-ção dos portugueses em contacto com outras civilizações. Seja agora referida como um apelo à responsabilidade cultural dos goeses influentes em várias partes do mundo. Afinal, se não forem eles os primeiros a amar Goa, quem se espera que possa ser?

Fontaínhas, um bairro português em Panjim.

Porta de Damão-Grande e fachada da Sé, erguida no centro da cidadela.

*Jornalista. Realizador de Televisão.

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