Ethnos

PRESENÇA PORTUGUESA NO "MANDÓ" DE GOA

Graciete Batalha*

Orgulha-se o povo goês, e mui-to justamente, de ter criado um fol-clore musical dos mais belos de to-da a índia e dotado duma identidade bem própria. Essa identidade ba-seia-se em factores vários, principal-mente, para os goeses, no facto de as suas canções serem cantadas na língua nativa de Goa, o concani.

Dessas canções, a mais famosa é o mandó.

Merecia esta composição um estudo profundo e exaustivo que nos parece não existir ainda em por-tuguês e que está longe das nossas possibilidades e intenções. Neste momento apenas pretendemos dar uma breve notícia do que foi a pal-pável presença portuguesa numa tão original criação.

O mandó é música, é poema, é dança. E como dança popular dos cristãos o definiu, nos princípios deste século, Mons. Sebastião Ró-dolfo Dalgado, natural de Goa, autor do Glossário Luso-Asiático e de ou-tros importantes trabalhos, homem de vastos conhecimentos. Neste caso, porém, parece não ter sido exacto. O mandó seria certamente popular no seu tempo, tendo-se ge-neralizado a todas as classes so-ciais. Mas, segundo outros eruditos, não o foi de início. Teria sido antes criação duma sociedade cristã alta-mente refinada, ainda que em gran-de parte rural, a qual adoptou a partir do século XVI a língua portuguesa para a vida intelectual e social, mas preservou a melodiosa língua nativa para a expressão da vida sentimen-tal.

A origem obscura da palavra mandó tem sido muito discutida. A afirmação, também de Rodolfo Dal-gado, de que a sua raíz é africana, provindo do nome mandoa, duma "espécie de dança na língua de Tete", tem sido contestada por ou-tros investigadores, sem que no en-tanto nenhum deles tenha oferecido uma solução definitiva para o mis-tério.

Nita Lupi, em Música e Alma da Índia Portuguesa (1), rejeita tam-bém aquela afirmação, com base na estrutura musical do mandó, "por-que a música africana nada tem de comparativo com a música indiana, onde apenas a instrumentação pode apresentar pontos de contacto".

Qual essa instrumentação? É variada, mas nela sobressaem o vio-lino indiano, sarangui, e um tambor de barro com uma das extremida-des coberta de pele, o gumott, gu-mata ou batuque. É provável que este termo batuque, referido ao ins-trumento e não à expressão corpo-ral do mandó, tenha reforçado a ideia de que a dança goesa seria de-rivada da africana. Mas tal ideia pa- rece carecer de lógica.

É certo que houve na antiga Ín-dia Portuguesa muitos escravos afri-canos, mas seria bastante estranho que o snobismo da elite social e cul-tural indo-portuguesa adoptasse, nas suas reuniões, um divertimento de humildes escravos negros, ainda que o modificasse e refinasse ao máximo. Aliás, o Prof. Antsher Lobo, compositor goês, publicou há anos um artigo na revista MARG de Bombaim (2) em que afirmou a influência da contradança francesa no modo de dançar o mandó.

Este era dançado primitiva-mente nos salões, nunca ao ar livre como é próprio do povo, com uma fila de cavalheiros outra de damas, colocados os pares frente a frente e ora aproximando-se ora afastando—se em movimentos graciosos, sem jamais se tocarem.

Primitivamente... mas não se sabe também quando nasceu o pri-mitivo mandó. Se existia antes da chegada dos portugueses, o que é possível porque mantém alguns tra-ços do folclore indiano típico do Concão, passou a ser fortemente in-fluenciado pela expansão do cristia-nismo ocidental. Os estudiosos vêem na música do mandó influên-cias dos cantos litúrgicos das igrejas católicas além do dolente tom me-nor do fado português.

Quanto à poética do mandó, há quem a relacione com a dos nossos cantares de amigo medievais e quem veja na sua imagética amo-rosa vestígios de Garcia de Re-sende e outros poetas do Cancio-neiro Geral. Mas não serão esses traços os da linguagem universal do coração humano? O próprio facto de ser por vezes a mulher a desabafar as suas mágoas ou alegrias de amor não obriga necessariamente a liga-ção com as cantigas de amigo ga-laico-portuguesas, que poderiam na verdade ser levadas no século XVI e seguintes pelos marinheiros, solda-dos ou poetas populares portugue-ses. Mas não é certo que cantares femininos aparecem noutras litera-turas estranhas à nossa?

As interrogações são multas, mas há um aspecto em que a in-fluencia portuguesa não oferece qualquer dúvida - o da linguagem, mais precisamente o da linguagem amorosa. E é neste aspecto que ela seria menos de esperar. Nas pró-prias palavras dum escritor goês, Lúcio Rodrigues, o mandó expressa o lado romântico do carácter do seu povo e pode ser definido como a bio-grafia do coração goês. Ora seo mandó é o canto "que evolucionou do paganismo para a civilização cris-tã" (Nita Lupi) e se o cristianismo pode ter dado ao amor uma nova di-mensão, não é muito provável, con-tudo, que o cerne romântico e apai-xonado do coração goês tenha mu-dado muito com essa dimensão.

Mas o português lá está, intro-metendo-se, com suas palavras de amor, no canto concani.

E é aí, parece-nos, que o carác-ter de criação culta e não popular do mandó mais se afirma, pois o povo humilde de Goa nunca dominou bem o português, mesmo dialectal, nem o assimilou como língua mater-na, ao contrário do que aconteceu em Damão, onde aliás existe o mandó cantado no crioulo portu-guês da terra.

Os poetas do mandó de Goa se-riam pessoas de educação literária portuguesa que, ao comporem as suas canções em concani, introdu-ziam palavras do vocabulário senti-mental português, algumas de ní-tida inspiração religiosa como anjo, arcanjo, querubim, sacramento, martírio, outras simplesmente ex-primindo uma emoção amorosa que sentiriam mais lírica na palavra por-tuguesa.

Assim, vemos nos mandós ter mos como beijo, abraço, afecto, afli-to, adeus, despedir, feliz, felicidade, sentimento, amizade, estimação, flor, etc., geralmente na pronúncia apocopada de certas regiões de Goa, portanto abraç, afect, felicidad, e, curiosamente, um exemplo raro, que saibamos, da forma fula (flor) usada em Damão e Macau.

Portuguesa é também a palavra estrebilh (estribilho) no sentido de 'refrão' e ainda chusmo, português chusma, que num contexto musical significa 'coro'. O mandó é tradicio-nalmente cantado por duas vozes femininas, um soprano e um con-tralto, que entoam simultaneamen-te as estrofes, e pelo coro de familia-res e amigos, reunidos para celebrar um casamento, um baptizado, uma festa social, que cantam o estribilho.

Numa pequena colecção de mandós que nos foi oferecida em Goa, aliás publicados na já citada re-vista MARG, não há um só que não contenha algumas palavras em por-tuguês.

Escritos no alfabeto latino e não em caracteres devanagáricos como hoje se escreve o concani, estes mandós estão acompanhados de notação musical e de tradução em inglês. Nesta nos baseamos, pois que desconhecemos completa-mente o concani, para dar uma ideia do que significam os breves extrac-tos que apresentamos. Os sublinha-dos das palavras portuguesas são' nossos.

………………………………

E te mogache mum rati

Abraç beijo didol' tuca

(nessa noite de amor

abracei-te e beijei-te)

………………………………

Estrebilh: Ai ai mogatch abraç

(ai, ai, o abraço do amor)

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Bexttich moga afflicttum

zainaca

Mulher com traje tradicional da dança do "Mandó"(Goa,1988).

ADEUS

1. Adeus co'tcho vellu paulo

Ai mujem callizo fapsota

Dispidiro co'chea vella'

O sonsar bongum re dissota

2. Forcan adeus cot'-tam tuca

Fuga' zaun ducam golloinaca

Zaite martiryh' aum boguitam

Anquarponn tucach re bettoitam

3. Sogleam' amigam' sannddunum

Ohta tum furtuno sodunco

Tuji felecidade tchoinum

Rott'-ttam aum ducam re golloinum

Estrebilh: Osso os re roddum' naca

Deo feliz cot'-tol' tuca

1. The time has come to say adeus

Ai, my heart is palpitating with pain

At the moment o f separation

I feel I don't want the world

2. Unnaturally I bid you adeus

Don't choke yourself, and shed those tears

I feel a great anguish within me

I dedicate my virginity to you

3. Leaving all friends

You are going to seek a fortune

It is looking at your happiness

That I weep, shedding these tears

Chorus: Go. do go, do not weep

God will make you happy

(não te aflijas sem razão, meu amor)

……………………………

Estrebilh: Sannddun tum

guelearyh' maca

Anjea mujea

Muzo jivo ditolyh' tuca

(se deixando-me te vais,

meu anjo,

desisto da minha vida por ti)

………………………

Amchem cantara-um cot'-tam'

(canto o nosso canto de amor)

………………………

Tuj' lagyh' cazar re zaucheaco

(anelando por casar contigo)

………………………

E muitos mais exemplos pode-ríamos extrair desses mandós, subscritos por compositores-poetas de nome português, artistas de há quase cinquenta anos e que se-guiam certamente uma tradição muito mais antiga.

Hoje, segundo pessoa goesa que conhece e canta o mandó, já o português vai desaparecendo das composições mais recentes, o que é natural visto que a educação em português cessou e a própria língua tende a desaparecer de Goa.

Mas scipta manent, e enquanto escritos desses permanecerem, se-rão sempre o espelho vivo do entre-laçamento, tão forte outrora, do sen-timentalismo lusitano com o senti-mentalismo goês.

Pares em posição de daná do "Mandó".

Tocador da "gumott", instrumento rítmico essencial no"Mandó".

(1)Nita Lupi, Música e Alma da índia Portu-guesa. Agência Geral do Ultramar. Lis-boa, 1956, p.25.

(2)MÃRG (Pathway), A Magazine of Arts, vol. VIII, Number 1. Bombay, 1954.

*Lic. Filologia Clássica; investigadora, especialista, de Linguística com vários trabalhos publicados.

desde a p. 63
até a p.