Tendo Luís de Camões, o egrégio cantor de "Os Lusíadas", vivido nada menos de catorze anos em Goa, primeiro de 1553, ano em que che-gou, a 1556, em que foi desterrado para as Molu-cas, e depois de 1558, ano em que regressou do desterro, a 1569, em que partiu para Moçambique a caminho de Portugal, compreende-se talvez que dos três retratos mais antigos do poeta dois sejam de Goa, a outrora altiva capital do Império Portu-guês do Oriente.
Cronologicamente, os três retratos são: o de 1556, numa prisão de Goa; e de 1570, feito por Fernão Gomes em Lisboa; e o de 1581, também em Goa, um ano depois da sua morte.
Pertencente à colecção camoniana do Cen-tro de Profilaxia, descoberto e revelado pela Dra. Maria Antonieta Soares de Azevedo, num artigo intitulado "Uma nova e preciosa espécie icono-gráfica quinhentista de Camões" (1), este retrato, o primeiro dos que se conhecem do épico, repre-senta-o na cadeia do Tronco, em Goa, dando--nos, como frisa a reveladora, não só a sua verda-deira imagem, mas fornecendo-nos também al-guns elementos que esclarecem a sua vida social e literária, embora subsistam algumas interroga-ções.
Feita sobre pergaminho, medindo 217 x 145 mm., e pela técnica da iluminura e cartografia do séc. XVI, empregando-se o vermelhão, o azul e o preto, numa espécie de aguada, a pintura repre-senta o poeta numa cela da prisão, de frente, em corpo inteiro, sentado num escabelo, a uma mesa, também de madeira como aquele, mas que à autora do artigo se afigura de feição europeia--hispânica.
O épico veste gibão preto,.abotoado à fren-te, de gola e punhos brancos, com dois rasgões na manga esquerda, calções tufados abaixo dos joe-lhos, calçando meias e sapatos grosseiros. Com uma gorra preta na cabeça, apresenta cabelos compridos de cor alourada, barba e bigode de pontas reviradas para cima, nariz aquilino, densas sobrancelhas e o olho direito cerrado.
Enquanto segura com a mão direita um prato de estanho, meio pousado sobre a mesa, com o que Maria Antonieta Soares de Azevedo supõe ser um pão ou um bocado de massa, com uma malga de duas asas ao lado, na palma da ou-tra mão apresenta o que, segundo ela, seria uma pedra. Do lado direito da mesa vêem-se várias fo-lhas de papel, escritas à mão, na primeira das quais se lê "Canto X", e um tinteiro com duas pe-nas. Junto da mesa, à esquerda vê-se um bilha, tal como ela a descreve, esguia, de boca ondeada e com asa em forma de um D, e uns grilhões no chão.
Por trás da mesa, vê-se um estreito catre com uma carta de marear desdobrada sobre ele, com duas naus com a Cruz de Cristo nas velas, pondendo ler-se na parte superior a palavra "Goa". Por cima do catre, vêem-se duas pratelei-ras, suspensas por grossos cordões, que terminam por borlas, com quatro volumes encadernados, com títulos nas lombadas, que se não podem ler, na prateleira de cima, e três na de baixo, de que só se vê uma parte.
No canto superior direito, vê-se represen-tada numa cartela a prisão do Tronco, com três fi-guras que parecem ser guardas e por cima outro cartel recortado com a palavra Prizam, por baixo da qual Maria Antonieta Soares de Azevedo pôde ver confirmada, numa fotografia a raios infra-ver- melhos, a data 1556, vendo-se ainda mais duas ou três palavras, difíceis de decifrar.
À direita, ao centro da parede, vê-se uma ja-nela gradeada, através da qual se avistam dois mastros de navios. Como a ilustre investigadora diz em nota, a vista dos mastros através da janela da prisão, tal como se vê situada na planta de Goa no Itinerário de Linschoten, seria uma prova da minúcia com que a pintura foi feita do natural.
O valor deste primeiro retrato de Camões, representando-o preso no Tronco de Goa, estaria no facto de apresentar também, na parte inferior, deliberadamente escurecida, aos pés do poeta, duas figuras; a do lado esquerdo representando o rosto de um vice-rei ou governador, de barba, com a característica gorra, e a do lado direito, a cabeça, voltada para a primeira, de um frade que pelo hábito parece um dominicano. Para não me alongar em pormenores, direi apenas que essas duas figuras representariam, uma o governador Francisco Barreto, que mandou prender Camões, e a outra um desses "alvitreiros ou novelheiros", o frade de S. Domingos, que teria contribuido para a prisão.
Como a técnica usada é a da cartografia e iluminura, pensa Maria Antonieta Soares de Aze-vedo que o autor podia ter sido qualquer dos dois cartógrafos contemporâneos do poeta na Índia, Fernão Vaz Dourado ou Lázaro Luís, inclinando--se a crer que fosse o primeiro, que, além de car-tógrafo e iluminador, foi também navegador e guerreiro, tendo possivelmente travado relações de amizade com Camões em Goa. Não no-lo diz ela, mas Fernão Vaz Dourado era filho de pai português e mãe indiana.
O segundo retrato de Camões, objecto deste estudo, é o de Fernão Gomes, feito em Lisboa em 1570. Crê José Hermano Saraiva que a este re-trato se referiria o poeta nas suas redondilhas "Retrato, vós não sois meu", que a seguir se re-produzem:
Mote:
Retrato, vós não sois meu;
retrataram-vos mui mal;
que, a serdes meu natural,
fôreis mofino como eu.
Glosa:
Inda que em vós a arte vença
o que o natural tem dado,
não fostes bem retratado,
que há em vós mais diferença
que do vivo ao pintado
Se o lugar se considera
do alto estado que vos deu
a sorte, que eu mais quisera,
retrato, vês não sois meu.
Vós na vossa glória posto,
eu na minha sepultura;
vós com bens, eu com desgosto:
pareceu-vos ao meu rosto,
e não já a minha ventura.
E, pois nela e vós erraram
o que a mim é principal,
muito em ambos se enganaram,
Se por mim vos retrataram,
retrataram-vos mui mal.
Mas se esse rosto fingido
quiseram representar,
e houveram por bem partido
dar-vos a alma do sentido
para a glória do lugar,
vireis, posto nessa alteza
que em vós não há coisa igual;
e que nem a maior por baixeza,
que a serdes meu natural.
Por isso não confesseis
serdes meu, que é desatino
com que o lugar perdereis;
se conservar-me quereis,
blasonai que sois divino;
que, nessa ocasião
conhecessem que éreis meu,
por meu vos deram de mão,
fôreis mofino como eu.
Do mote e da glosa, extrai José Hermano Saraiva as seguintes conclusões:
a) foi feito um retrato de Camões ainda em vida do poeta;
b) ele entendia que esse retrato o favorecia: a arte sobrepunha-se ao natural;
c) o retrato destinava-se a figurar em lugar social-mente muito elevado, onde o próprio retra-tado não seria admitido;
d) estava parecido, mas errava naquilo que Ca- mões reputava principal. É possivelmente uma alusão à cicatriz da cegueira que o pintor, como era costume, teria corrigido com a re-presentação do olho cerrado;
e) o retrato era aquilo a que hoje se chama um re-trato convencional, próprio para a glória do lugar;
f) Camões pensava que, se se descobrisse que o retrato era seu, perderia o lugar. Pede-lhe por isso que blasone de divino, isto é, que se faça passar por efígie de pessoa ilustre. De outro modo, dar-lhe-ão de mão.
Em face disto, pensa Saraiva que "alguém que vivia em alto estado mandou, pois, retratar Camões; alguém que o não podia conhecer pes-soalmente, mas tinha curiosidade em ver como era o homem de quem tanto se falava, ou alguém que queria possuir a sua imagem depois de longa ausência".
Aludindo em seguida ao pintor, Saraiva diz que Fernão Gomes foi contemporâneo de Ca-mões e do pouco que se sabe da sua vida é que pin-tou vários quadros para o convento da Anuncia-da, na época em que as grandes obras ali feitas fo-ram custeadas por D. Joana de Noronha, filha de Violante de Andrade, um nome que caiu no es-quecimento, como diz num capítulo anterior, ama de Camões, estando o retrato na posse do seu irmão, Álvaro Peres de Andrade e sua família, até ser destruido no terramoto (de 1755?). Per-dido o original, ficou, contudo, a cópia feita a pe-dido do Duque de Lafões, à venda num alfarra-bista no Brasil(2).
Finalmente, o terceiro dos retratos antigos de Camões até à data conhecidos, é o segundo feito em Goa, e o que se tornou conhecido por "retrato de Goa", depois de Afonso Lopes Vieira o haver consagrado num lindo poema, que na de-vida altura se reproduzirá neste artigo. Trata--se de uma miniatura, pertencente à colecção dos marqueses de Rio Maior, bastante reproduzida, mas ainda não estudada, pelo menos com a mesma minúcia com que Maria Antonieta Soares de Azevedo estudou o primeiro.
Camões na prisão de Goa (1556).
Miniatura de Goa (1518).
Esta miniatura representa Camões de ca-beça coroada de loiros, barba bipartida e bigode que se vai adelgaçando nas pontas, vestindo uma aljuba de gola rocada, de pano estampado com seis sardões, sobre fundo azul, sobre o qual se destaca um arco em branco com o letreiro em que se lê "OV RETRATO DE LVIZ DE CAMOES OFRESIDO O V REY D. LUIZ DE AT-HAYDE POR FERNAO TELLES DE MEN-ZES", com uma cercadura de sabor exótico em que se vêm duas hienas, folhagens e flores bran-cas e amarelas, bem como pássaros, vendo-se também na parte inferior o escudo real entre duas palmas, com uma pequena cartela em que se lê "Goa 1581 Pinto" (pintou?) e algumas iniciais im-perceptíveis (o nome do autor?) e do lado direito um livro entre-aberto com os seguintes dizeres na página do lado direito "As Lusíadas 1581". Na parte superior vêm-se quatro cartelas, duas de cada lado, que dizem, a de cima do lado direito "Deu notas para o retrato José Penqinho" e a do lado esquerdo "Deu notas Lusyo de Assensão marujo" e as de baixo "Deu notas Francisco Mas-carenhas" e "Deu notas Henrique Mascarenhas", vendo-se ainda uma quinta cartela na parte infe-rior do lado esquerdo com estas palavras "Afirma ter parsenças todos".
Vê-se pelas várias legendas deste retrato que foi feito em Goa, depois da morte de Camões em Lisboa em 1580, provavelmente assim que foi recebida a notícia na Índia, por um pintor que não conheceu o poeta e procurou reconstituir os seus traços fisionómicos pelas reminiscências de qua-tro amigos ou companheiros da boémia: o mari-nheiro Lúcio da Assenção, José Penquinho, Hen-rique Mascarenhas e Francisco Mascarenhas, as-severando todos eles estar muito parecido com o retratado.
Quem seria o pintor?
Ao contrário do retrato de Camões na ca-deia, em que se podia pelo menos conjecturar, pela técnica empregue, que seria um cartógrafo ou iluminador e muito presumivelmente Vaz Dourado por ser contemporâneo do poeta, tudo quando nos é dado pressupor neste caso, pelo orientalismo da composição, é tratar-se de um ar-tista asiático, mais provavelmente chinês ou japo-nês que indiano, ao tempo residente em Goa.
Eis o poema que este retrato inspirou a Afonso Lopes Vieira, que, sob o título de "O retrato de Goa", o incluiu na sua obra" " Onde a terra se acaba e o mar começa":
Quando a Goa chegou a triste nova de que ele morrera
há quase um ano já estava na cova,
quatro amigos com quem lá convivera
puseram-se a chorar
de o recordar!
E disse Lúcio de Assenção, marujo:
- Nunca mais hei-de ter amigo assim!
Era fidalgo e sábio
e gostava de mim,
de mim, velho marujo humilde, aquele
que não houve nem há outro como ele!
Andámos juntos nas águas do mar...
Morreu de tanto penar...
E disse José Penquinho:
- Mais humilde era eu
que nada tinha de meu,
e do tão pouco que ele tinha
quantas vezes
nas minhas fezes
me mantinha!
E não era só o dar,
era a graça do amigo a consolar
a gente.
Francisco Mascarenhas disse então:
- Morreu a luz do nosso coração!
Aqui na Goa de mentira e usura
a alma dele era a mais pura.
O grande companheiro do desterro!
Que, se praticou erro,
jamais vendeu a alma, a pena, a proa
do s euorgulho real...
Talvez com ele morra Portugal!
Henrique Mascarenhas atalhou:
- Não, Portugal não morre:
no Livro que ele fez seu nome corre
pelos tempos além que não se acabam
e que os homens memoram.
Os Impérios desabam,
as Estâncias demoram.
Assim destas saudades misturadas,
com lágrimas regadas,
o retrato nasceu mais comovente
que jamais viu a gente,
o exótico retrato, feito ao longe,
e pelas notas dadas
por aqueles saudosos camaradas;
o retrato talvez de fraca arte mas com
alma sem igual
o retrato que mostra em toda a parte
o grande coração de Portugal(3).
Eu não gostaria de rematar este artigo sem fazer referência a mais um retrato, também feito em Goa, como o primeiro e o terceiro, posto que em data comparativamente recente. Descobri-o na Biblioteca Nacional de Lisboa por acaso, há uns anos. Ninguém lá me foi capaz de prestar qualquer esclarecimento sobre a sua origem. Mas vi logo pela legenda em caracteres devanagáricos Mahakavi Camõis, isto é, Grande Poeta ou Su-per-Poeta Camões, que não podia ter ido lá parar senão de Goa. Como? Trata-se de Interrogações que porventura ficarão permanentemente sem resposta, pois tudo quanto logrei apurar, no meu regresso a Goa, foi o nome do autor, Crisnanata Vassudeva Naique, desenhador e gravador da Imprensa Nacional do Estado da Índia, hoje Go-vernment Printing Press do Estado de Goa, para o filho do qual, meu informador, foi uma grata surpresa o misterioso paradeiro do retrato em Portugal.
Numa exposição iconográfica, que organizei por ocasião da celebração do quarto centenário da morte do grande poeta em Goa, em 1980, fo-ram por mim expostos nada menos de uma qua-rentena de retratos e gravuras, a cores ou a preto e branco, dos mais antigos, como esses acima referidos, aos mais modernos, incluindo os de Co-lumbano, Malhoa, Almada Negreiros e Severo Portela, mas nenhum dentre tantos expostos achei que pudesse ter servido de modelo ao traba-lho tão original de Crisnanata Naique, também exposto pela primeira vez então(4).
Notas e referências
(1)- "Uma nova e precisosa espécie iconográfica quinhentista de Camões" por Maria Antonieta Soares de Azevedo, in "Panorama", Lisboa, n°s. 43-44, IV série, Set. 1972.
(2)- "Vida Ignorada de Camões" por José Hermano Saraiva, Publicações Europa-América, pp. 340-2. Lisboa, 1978.
(3)- "Onde a Terra se acaba e o Mar começa" por Afonso Lo-pes Vieira, Lisboa, 1940.
(4)- Exposição Iconográfica de Camões, organizada por Carmo Azevedo, por ocasião da celebração do quator cen-tenário da morte de Camões no Instituto Meneses Bra-gança em 1980, catálogo. Segundo o filho de Crisnanata Naique, tratar-se-ia origináriamente de uma gravura em madeira de árvore de fruta de Adão.
*Médico, jornalista e investigador de Goa.
desde a p. 11
até a p.