Jesuítas na China

LOUIS FAN SHOUYIE MACAU

Paul Rule*

Fan Shouyi, vulgarmente conhecido por Louis ou Luigi Fan após a sua digressão pela Europa, é uma figura das relações sino-europeias estranhamente menosprezada. Foi ele o autor do que parece ser o único registo que nos resta de um visitante chinês à Europa antes do século XIX1. Teve um papel crucial, se bem que não reconhecido, na questão dos Ritos Chineses que dividiu irremediavelmente os missionários europeus na China, como informador do Imperador Kangxi sobre as divisões da Cristandade e a impotência política do Papa. E, como teremos ocasião de mostrar neste pequeno comentário, as suas impressões de Macau e também a documentação oficial chinesa que relata a sua passagem pelo porto de Macau, lançam uma luz muito interessante sobre as relações da China com Macau no início do Século XVIII.

Fan Shouyi nasceu em Pingyang,2 na província de Shanxi, a 13 de Junho de 1682 e muito novo ainda tornou-se companheiro, — segundo algumas fontes como catequista, segundo outras como serviçal — de um missionário em Shanxi, o jesuíta italiano António Provana. Deve ter acompanhado Provana a Pequim em Agosto de 1705, e parece ter--se matriculado como tianwen sheng, (estudante de matemática no gabinete de Astronomia)3, o que, juntamente com a sua admissão mais tarde na Sociedade de Jesus, indica um certo nível de educação formal. Quando Provana foi nomeado embaixador ao Papa pelo Imperador Kangxi, na sua disputa com o delegado papal, Charles Maillard de Toumon, sobre a Questão dos Ritos, Fan acompanhou-o. Uma vez na Europa, haveria de requerer o ingresso na Sociedade de Jesus, mas não existem vestígios de tal intenção nos documentos contemporâneos referentes à sua partida para a Europa. Antes parece que terá sido enviado como secretário de língua chinesa de Provana4, e apresentado pelo próprio Provana à sua chegada a Génova, através de uma carta, ao Geral dos Jesuítas como sendo uma testemunha chinesa na Questão dos Ritos.5

Partiram de Pequim em Outubro de 1707 e embarcaram para a Europa, em Macau, a 14 de Janeiro de 1708, no Bom Jesus de Mazagão das Brotas6, através da rota pouco habitual via Batávia e Baía até Lisboa, tendo chegado a Roma, via Génova, em Fevereiro de 1709. Viajar de Macau para a Europa via Batávia era pouco habitual mas possível neste período de relativa paz entre Portugal e a Holanda. Por outro lado, havia a proibição estrita de navios de Macau escalarem o Brasil, embora fosse muito comum neste período os navios portugueses da Índia utilizarem esta rota. O registo do porto da Baía refere que o Bom Jesus fez escala para "reparações"7, o que seria provavelmente um subterfúgio.

Fan dá-nos as suas impressões da viagem no Shen Jian Lu"Um relato do que eu vi" da forma que se segue:

"O meu apelido é Fan, e o meu nome Shouyi. Nasci em Pingyang, a oeste da Grande Montanha e fui criado para venerar o verdadeiro Senhor e servi-lo constantemente. Se bem me recordo, foi no fim do Inverno de 1707 que o eminente académico ocidental Provana recebeu ordens de conduzir uma embaixada ao Ocidente, levando--me como companheiro. Viajámos através de montes e rios, atravessámos cidades e regiões e experimentámos tantas dificuldades e perigos no meio das ondas e do vento que sou incapaz de as enumerar. E quem o poderia compreender, de apenas ouvir contar, sem nunca o ter visto?".8

A seguir, descreve a circunstância de ter escrito este relato no seu regresso à China, assunto que iremos abordar mais tarde. Mas convém frisar desde já que o relatório se destinava aos olhos do Imperador e que, como tal, representaria os interesses deste. Daí a ênfase na geografia, nas frotas e nas fortificações, no comércio, na ciência e tecnologia, tudo temas que eram enfatizados pelos seus mestres jesuítas nas suas descrições da Europa. Fan confirmava a sua veracidade e, indirectamente, a autoridade do Cristianismo, actuando ao mesmo tempo como um leal cidadão chinês. E pelo caminho, como na Europa, é o rei português e o Papa, os dois patronos dos missionários jesuítas, que são objecto das descrições mais favoráveis e cujos domínios são descritos da forma mais elogiosa.

O relato da própria viagem começa assim:

"Deixámos Ao Men (Macau) e embarcámos num enorme navio de guerra, carregado de mercadorias e mantimentos, que navegava sem esforço pelo vasto oceano, rumando a sudoeste, dia e noite. Navegámos durante dois meses, passando por vários países tais como Palagua9, Manila10, Malaca, Bangka, Sumatra e muitas ilhas. O clima tornava--se cada vez mais quente e a vegetação farta e luxuriante, a população mais densa, os produtos fra grantes: pimenta preta, peles secas, madeira de sappan, madeira de sândalo e frutos que cresciam durante todo o ano. A cor da pele das pessoas é escura e parecem ter uma atitude pacífica, pelo menos a maioria."

Segue-se a descrição de Batávia, com ênfase na cidade como centro de comércio e o contraste entre o seu traçado e o de uma cidade chinesa:

Kangxi — "O Salomão da China" (1663-1722). Impulsionador, entre outras áreas, das ciências matemáticas, cartográficas e astronómicas. Extraído de: DU HALDE — Description de la Chine, vol. l, p. l. AH/LR 49

"No reino de Malaca11, há uma grande cidade chamada Batávia, um lugar onde se reúnem os comerciantes da Holanda e em cujo porto se abrigam mais de duzentos navios transatlânticos, com soldados de infantaria e de cavalaria a guardar as fortificações, noite e dia sem interrupção. No interior das muralhas há ruas e subúrbios, divididos por um rio que os atravessa, com árvores nas margens. Em todas as lojas, grandes e pequenas, há mercadorias ocidentais e chinesas de toda a espécie, e não há nada que aqui não se encontre. As residências dos funcionários, todas com jardim, estão construídas fora da cidade."12

Quer tenha sido arrastado por tempestades, ou por ventos desfavoráveis ou mesmo intencionalmente, o Bom Jesus, depois de ter contornado o Cabo da Boa Esperança, tomou a rota em ziguezague para Lisboa através do Atlântico, passando pela Baía, no Brasil. A Baía, tal como Batávia, é descrita como um grande centro de comércio, mas também, o que é significativo, como um centro de cultura e de ensino. Repare-se também no lugar central atribuído aos Jesuítas:

"Navegámos durante cerca de três ou quatro meses e depois de avistar as montanhas Dalang13, como o nosso navio estava carente de água, atracámos à cidade da Baía, na América. Fora da cidade havia uma baía com águas de ancoradouro calmas onde estavam mais de cem navios grandes, especialmente uns altos, bojudos e com os lados muito espessos, equipados com um enorme canhão. O lugar é muito fértil, o clima agradável, nunca faz frio; produz madeira de balsa14, óleo de amolar facas15, rapé, casca de cássia, (canela?) açúcar branco, grão abundante, gado e carneiros, bem como muito ouro e prata fáceis de se obterem. Portugal ocupa a zona junto ao mar. Na cidade foi construída uma igreja católica, a igreja de Todos-os-Santos e uma escola para instrução religiosa, ambas altas e sólidas. Existe grande variedade de ferramentas que todos partilham no seu trabalho. Há uma universidade e uma escola secundária, ambas muito bonitas, bem construídas e muito frequentadas; os estudantes são inteligentes e perspicazes. Os administradores (do lugar) parecem antigos funcionários superiores, supervisionando a realização das tarefas nos assuntos civis e militares. Há uma casa jesuíta no topo da colina, com mais de cem estudantes de religião. Os académicos têm tudo o que precisam para construir máquinas, que apenas requerem um homem no exterior para as operar e são capazes de içar seja o que for, tal é a sua engenhosidade. Dado que esta região não possui pedra para a construção de grandes edifícios, trouxeram da Europa materiais pré-fabricados em pedra e utilizaram-nos para acabar o edifício. Há um edifício, muito largo, onde estão guardados objectos preciosos e no andar superior existe uma biblioteca, com cinquenta ou sessenta prateleiras para guardar os livros que devem ser na ordem das dezenas de milhares de volumes, e isto graças sobretudo aos bons ofícios da municipalidade da Baía."16

Fan descreve em seguida a sua chegada a Lisboa, em Setembro de 1708:

"Entrámos no porto. Havia muitos fortes construídos para defesa. Todo o tráfego marítimo tem de ancorar junto deles e os funcionários da guarnição têm ordens para inspeccionar e informar quem está autorizado a entrar. Depois de navegar cinco li, avistámos as muralhas da cidade rodeadas por um grande rio que corria do interior para o mar e onde estavam ancorados trezentos ou quatrocentos navios transatlânticos. Desembarcámos nesse mesmo dia e ficámos instalados no Colégio Jesuíta. O padre Provana17 olhou cuidadosamente em redor, com o seu habitual estilo inquiridor e mostrou-me as instalações, realçando as peças metálicas, todas em prata."

Fan dá-nos, em seguida, um relato entusiástico das maravilhas da cidade:

"Vimos a paisagem, tão magnífica de todos os lados, de uma cidade imensamente rica, onde não faltava nada que fosse preciso. Tem fontes em abundância; os edifícios têm três ou quatro andares e não apenas um e os palácios da nobreza e do rei são extremamente bonitos, tal como são as igrejas católicas, as igrejas dedicadas a Maria e aos Santos, totalmente construídas em pedra e muito bem erigidas, com estátuas votivas cobertas de ouro e prata. Existem numerosos colégios religiosos, geralmente com cerca de cem estudantes cada um. As escolas estão divididas nas seguintes classes: quatro classes para a escola primária, duas para a escola secundária e três para a mais avançada. Além disso, há várias instituições de caridade com muitos alunos internos e muitos jardins admiráveis."18

Para Fan Shouyi, o ponto alto da sua estadia em Lisboa foi a audiência com o jovem rei português, D. João V. Eis uma descrição do palácio real e do seu encontro com o rei:

"No terceiro dia, o rei convocou-nos para uma audiência. O seu palácio é muito mais bonito do que qualquer outro que já tenha visto. No exterior há um destacamento de guardas e no interior uma multidão de criados. O rei fazia-se acompanhar dos seus três irmãos mais novos. Tem quase vinte anos, é de trato afável e modesto. Noutro dia voltámos a ver o rei e ele deu ordens para que nos autorizassem a andar pelo palácio. Vimos os cortinados vermelhos a cobrir as paredes, alguns de brocado, outros bordados ou pintados com desenhos. No verão utilizam persianas de porcelana para cortar a luz; há janelas de vidro, almofadas de feltro bordadas, banquinhos embutidos a ouro e mesas de cristal que ofuscam a vista das pessoas. No interior do palácio também existe uma igreja onde o rei vai com frequência rezar e ouvir missa, assim como os altos dignitários. No dia seguinte, o Rei e a Rainha foram à igreja dar graças ao Senhor; a sua carruagem estava tão bem decorada que desafia qualquer descrição. Toda a corte veio apresentar-lhe cumprimentos e, quando o rei se levantou, todos os dignitários ao seu lado se curvaram perante ele três vezes e aproximando-se beijaram a mão do Rei, perguntando-lhe como estava ou retirando-se, e foi assim até ao fim."19

Repare-se mais uma vez na mistura de assuntos com a intenção de chamar a atenção de Kangxi: decoração e etiqueta do palácio, jardins e edifícios públicos, temperados com referências à Cristandade e às suas funções educativas e civilizadoras. De igual modo, a narração da sua viagem daí em diante, após quatro meses em Portugal, continua com descrições dos países e cidades mediterrânicas que visitaram, os palácios e as pessoas, as igrejas e as fortificações, até à sua chegada a Roma. Roma é tratada ainda com mais superlativos do que Lisboa.

"Chegámos ao reino do Papa. A sua capital chama-se Roma e tem sido uma grande capital desde tempos remotos. A circunferência das suas muralhas tem cem li e é onde o Papa reside. Os portões da cidade não se fecham à noite. Cerca de dois dias depois de termos chegado, tivémos uma audiência com o Papa e tivémos uma excelente recepção. Ele permitiu-nos inspeccionar todos os edifícios, dentro e fora do palácio, muitos milhares deles, enormes e extravagantes e por isso é difícil descrevê-los adequadamente."20

Por razões que apenas podem ser conjecturadas21, Fan não descreve a audiência papal, mas continua com um relato clássico das maravilhas de Roma, dos seus jardins, das suas fontes, pontes e edifícios.

O resto deste pequeno trabalho (apenas dez páginas na edição impressa) destina-se às restantes viagens por Itália. Lê-se como uma crónica de viajante, mas sabemos por documentos jesuítas que estas deslocações italianas estão associadas à sua formação de jesuíta: o noviciado em San Andrea al Quirinale, em Roma, a partir de fins de 1709, estudando Latim em Milão, Teologia em Turim, e a sua ordenação como padre em 1717. A narrativa inclui descrições das maiores cidades italianas, incluindo Nápoles, Milão, Modena, Parma e Turim, sem esquecer a Casa Santa de Loreto e o "milagre" da liquidificação do sangue de S. Januário. Quem me dera que tivesse sobrevivido algum registo da reacção do Imperador ou ao menos dos seus funcionários...

Provana, entretanto, tentava em vão tratar dos seus assuntos em Roma e algures, em representação dos jesuítas chineses e do Imperador. Pouco depois da ordenação de Fan Shouyi, reembarcaram de Livorno para Lisboa e daí, em Maio de 1719, para a China, no Francisco Xavier. Provana morreu no mar, ao largo do Cabo da Boa Esperança, e Fan parece ter assumido o papel não apenas de provedor das suas possessões e objectos como também de executor do que restava da sua embaixada. Pelo menos, foi sob essa aparência que se apresentou aos funcionários chineses, para consternação dos jesuítas europeus na China, que mal o conheciam, e desconfiavam deste novo colega chinês que surgia numa altura muito delicada, quando estava eminente uma nova embaixada papal.22 E ficaram ainda mais apreensivos quando Fan foi subtraído ao seu controlo logo depois de desembarcar em Macau, em Julho de 1720, e enviado à pressa para o norte,onde em 11 de Outubro de 1720 teve uma audiência com o Imperador. É com essa audiência que termina o Shen Jian Lu, mas, para nossa frustração, não nos são dados pormenores e nada chegou até nós. Mas a obra em si, no entanto, teria sido feita para os olhos do Imperador e na sequência dessa entrevista. Tudo o que Fan diz no prefácio acerca das circunstâncias em que escreveu o trabalho é que foi produzido no "primeiro mês do Verão de 1721 e humildemente apresentado aos príncipes, aos duques e aos altos funcionários".23

Por que razão teria um chinês desconhecido tanto interesse para o Imperador e os seus funcionários? De início não foi devido ao seu conhecimento da Europa, único e em primeira mão, embora eu suspeite que tal pudesse ter estado na origem de o Imperador lhe pedir um relatório escrito. A principal razão foi que o regresso de Fan à China representou a primeira notícia directa do que tinha acontecido aos muitos embaixadores jesuítas de Kangxi para a Questão dos Ritos. António Barros e Antoine de Beauvollier, que tinham partido de Cantão em Janeiro de 1707; José Ramón Arxo e François Noel, que tinham viajado com Provana e Fan, nenhum dos dois regressou. De facto, Barros e Beauvollier tinham naufragado antes de chegar ao seu destino, em Janeiro de 1708, ao largo da costa portuguesa; Arxo faleceu em Espanha em 1711; a Noel, que, com Gaspar Castner, tinha feito uma viagem anterior de ida e volta à Europa (1702-6), como procurador da Vice-Província Jesuíta da China e da Província do Japão, tinha-lhe sido recusada autorização para voltar. E Provana, tal como sabemos, também morrera no mar.24 Só restava Fan para contar a história.

A ansiedade do Imperador acerca dos seus embaixadores perdidos está iniludivelmente atestada num curioso documento que sobreviveu em diversos exemplares, o chamado "Manifesto Vermelho", publicado pelo Imperador Kangxi em 31 de Outubro de 1716 e impresso em manchu, chinês e latim25, autenticando as missões de Barros, Beauvollier, Provana e Arxo26. O Imperador ordenou que fossem distribuídas cópias a todos os ocidentais que chegassem a Guangdong, para o poderem levar consigo para a Europa. Porquê esta preocupação do Imperador? É que não só os seus embaixadores não tinham regressado como, diz ele no "Manifesto Vermelho", "tinham chegado mensagens confusas"27. Nestas podiam muito bem estar incluídas as notícias, mais tarde confirmadas por Fan Shouyi no seu relatório inicial aos oficiais da corte em Cantão28, que Provana teria sido impedido de voltar para a China porque as suas credenciais eram suspeitas. Kangxi afirma:

"E certo que, só depois dos homens que enviámos terem regressado e tudo se ter esclarecido, é que se pode dar crédito a alguma coisa. Se os homens que enviámos não voltarem, ficarão a faltar provas autênticas, e por mais cartas que possa haver, não se lhes poderá dar crédito algum."29

Há uma série de éditos emitidos por Kangxi para os seus funcionários em Guangdong e Guangxi, que são mesmo anteriores ao "Manifesto Vermelho", ordenando que se façam inquéritos sobre o destino dos seus enviados especiais a todos os navios que cheguem da Europa. O primeiro data de 5 de Novembro de 1710 e ordena a vários oficiais, até ao nível de Fan Shichong, superintendente de Cantão, que comunique quaisquer notícias que tenha deles.30

Uma colecção inestimável de manuscritos, hoje no Instituto Ricci para a História Cultural do Ocidente e da China, na Universidade de S. Francisco31, dá-nos uma ideia da cadeia de comando que deve ter sido seguida neste caso. Um conjunto de documentos32 trata de acontecimentos anteriores desse mesmo ano, 1710, quando um grupo de missionários, sob as ordens do Lazarista Teodoric Pedrini, chegou a Macau sem autorização, proveniente de Manila. As autoridades de Macau tentaram expulsá-los, mas o delegado papal, Charles Maillard de Tournon, então sob prisão domiciliária em Macau, interveio. O Vice-rei dos Dois Guangs, Zhao Hongcan, dá instruções ao seu tesoureiro para investigar e o informar. Este, por sua vez, transmite a ordem ao comandante militar do condado de Xiangshan que por sua vez a transmite ao Comandante da Guarnição de Macau, Chen Zongde, para que a execute. O magistrado Pang de Xiangshan acaba por comunicar pela mesma via hierárquica, e o Imperador ordena que os novos missionários com aptidões especiais, Pedrini como músico, Guillaume Bonjour como matemático e Matteo Rippa como artista, sejam enviados para Pequim.

De igual modo, na década que se seguiu à chegada não anunciada de Fan, os funcionários de Cantão, sem dúvida a partir do aviso de Macau, informavam regularmente Pequim sobre os navios re-cém-chegados e sobre as notícias e as pessoas que traziam. No ano anterior ao regresso de Fan, por exemplo, a 25 de Julho de 1718, Yang Lin, o Gover-nador-Geral dos Dois Guangs, informava sobre vários navios europeus que tinham chegado nos dois meses anteriores e, entre outras notícias, dizia que Provana estava ainda em Itália, que tinha recebido o "Manifesto Vermelho" e que esperava regressar em breve. O Imperador acrescentou-lhe o seu habitual e lacónico "anotado" a tinta vermelha.33

No mês seguinte, Yang Lin comunicava que após a chegada de outro navio ocidental, o jesuíta Giovano Laureati o tinha informado de que o Papa tinha recebido o "Manifesto Vermelho", tinha chamado o "embaixador" Provana à sua corte em Roma e que estava para breve o regresso deste. Acrescentava que havia muitos ocidentais em Macau e que comunicaria quaisquer novas chegadas que fossem de interesse. Desta feita, a anotação de Kangxi é mais extensa: "Anotado. Se algum dos ocidentais que chegarem fôr um académico experimentado ou um técnico qualificado, devem tratar de os enviar para a corte."34

A 18 de Julho de 1719, O Governador-Geral Yang Lin e o Governador Yang Shoren de Guangdong informaram que Laureati tinha recebido uma carta pelo último navio a anunciar que Provana partira de Roma para Portugal no fim do ano anterior, preparando-se para regressar à China.35 Yang Lin voltou a informar a 15 de Setembro de 1719 que não havia notícias de Provana, quer de Guangdong quer de Guangxi.36

É então que a 17 de Julho de 1720, os dois Yang informam37 Pequim de que a 5 de Julho o comandante militar de Xiangshan, Chen Liangbi, tinha anunciado a chegada, ao largo de Macau, de um navio português; que tinha perguntado por notícias de Provana e que o capitão lhe dissera que ele morrera no mar mas que havia a bordo um certo discípulo, um chinês chamado Fan Shouyi, que tinha acompanhado Provana à Europa e que agora regressava professando a sua religião. No dia 17, o navio acostou ao porto de Macau e Fan foi interrogado:

"Disse que era originário de Pingyangfu, em Shanxi, que tinha estado ao serviço de Provana desde a sua juventude e que por isso o acompanhara em 1707. Viajaram juntos para a Europa em 1708 e quando lá chegaram tiveram uma entrevista com o Papa na sua cidade capital, viajaram durante vários anos por diversos países e após alguns anos, em 1718, tendo sido expedido através de vários navios ocidentais, o "Manifesto Vermelho" chegou-lhes através de um vaso de guerra inglês e foi visto pelo Papa que ordenou a Provana que regressasse. Receberam ordens, em Maio de 1719, de embarcar num navio ocidental e foram-lhes dados como presentes sete caixas de mercadorias diversas e uma espingarda para pássaros. Provana, no entanto, adoeceu e morreu a 15 de Março de 1720, perto da Montanha Dahen, no Oceano Índico. Após a sua morte, eu, o supramencionado Fan Shouyi, prossegui e sou actualmente residente na Igreja Católica de Cantão."38

À luz desta história, não é de admirar que os funcionários locais enviassem Fan imediatamente para Cantão a 21 de Julho, conforme comunicaram a 25 de Julho39, e teria sido aqui que ele prestou um depoimento relativo à Questão dos Ritos e à entrevista que ele e Provana haviam tido com o Papa40. A 5 de Agosto partiu para Pequim e para a sua audiência imperial em Jehol.

A carreira posterior de Fan Shouyi é a de um padre chinês esforçado em tempos difíceis. Desempenhou missões perigosas, tais como as visitas em meados de 1720 e 1736 à família cristã manchu exilada, Sunu, bem como trabalho pastoral em Hebei e Liaodong. Faleceu em Pequim, em 1753 e no seu túmulo, no antigo cemitério jesuíta de Chala, pode ler-se, em latim e em chinês:

"Padre Louis Fan, coadjutor formado da Sociedade de Jesus, chinês da província de Shanxi. Entrou para a Sociedade em Roma, em 1709. No seu regresso à China, passou trinta e três anos na missão e quarenta e três anos na Sociedade. Trabalhador infatigável e religioso vigilante. Morreu em Pequim, a 28 de Fevereiro, aos 71 anos de idade."41

Só falta dizer que foi o "autor do mais antigo relato sobre a Europa feito por um chinês que chegou até nós".

(Traduzido do Inglês)

NOTAS

1 O seu relato manuscrito da viagem, o Shen jian lu, foidescoberto por um biblio'grafo chines, Wang Zhongmin, na Biblioteca Vitorio Emanuel em Roma e foi publica-do por Fang Hao na sua coleccao Zhong xijiaotung shi (Taipe 1977 [1-edicao Taipe, 1953]), IV, pp. 186-195. Uma versao mais curta, possivelmente preparada para os funcionarios de Cantao que o interrogaram, existe na Biblioteca Nacional de Paris e foi publicada por Anto nio Sisto Rosso em Apostolic Legations to China of the Eighteen Century (South Pasadena 1948) Doc.20, pp.332-4

2 A sua pedra tumular regista Jiangzhou (a modema Xinjiang) como lugar de nascimento. V. J-M Planchet, Le Cimitiere et les oeuvres catholiqus de Chala (Pe-quim, 1928) p. 186. Mas o Prefacio ao Shen Jian Lu diz expressamente que ele nasceu em Pingyang (a moderna Linfen) cerca de 50 quilómetros a norte de Xinjiang. A explicacao e que provavelmente a sua famÍlia era de Xinjiang mas residia em Pingyang e daí o Jiangzhou ren na pedra tumular.

3 Uma carta do Visitante jesuita Giovani Laureati para os jesuítas de Pequim, Cantao, 18 de Julho de 1720 [Jesuit Archives, Roma: Jap. Sin. 178, f.362r] descreve-o como tendo sido um tien ouen sen, o que 6 erradamente interpre- tado como aprendiz no escritdrio, mas tal tftulo era usado, pelo menos mais tarde no seculo, para assegurar um estatuto indigena e como tal proteccao legal para os padres chineses. No caso de Fan, pode nao ter passado de uma formalidade.

4 Laureati, ibid.

5 Jesuit Archives, carta de 2 de Fevereiro de 1709, em Fondo Gesuitico 730.9.

6 Este navio esta listado por J. O. do Amaral Lapa em A Bahia e a carreira da India (Sao Paulo, 1968), p. 366, como tendo chegado ao porto vindo de Macau em Junhode 1708, o unico do genero ate 1781.

7 Lapa, ibid.

8 Fang Hao, op., cit. p. 187.

9 Ba-la-ke-ya. Palagua e o nome antigo para a moderna Palawan.

10 Mo-er-nai-ya. A identificacao e problematica dado que a designacao chinesa vulgar para a regiao era Lu-song [Luzon]; mas pode muito bem ser a forma que Fan recordou do nome, pronunciado por Provana ou por um marinheiro portugues.

11 A area que circunda Jacarta, rebaptizada Batavia pelos holandeses, veio a ser conhecida por Nova Malaca, devido a sua importancia estrategica. v. C. R. Boxer, The Dutch Seaborn Empire, 1600-1800, Harmondsworth 1973,211.

12 Traduzido de Fang Hao, op. cit. pp.187-8.

13 Nao identificado. Possivelmente o Cabo da Boa Esperança, mas mais provavelmente a ilha de Trinidade ou qual-quer outra ilha do Atlantico Central.

14 Literalmente fragrancia de madeira "Ba-er-sa".

15 Ou oleo Dao-shang?

16 Fang Hao, op. cit., p. 188.

17 Referido, tal como na introducao, como "o ilustre acade mico".

18 Fang Hao, op. cit. pp.188-9

19 Ibid., p.189

20 Ibid., p.190

21 Ver "Louis Fan Shouyi: um elo que falta na Questao d Ritos Chineses", onde eu defendo que Fan, na altura e que terá escrito este relato, ja teria sido avisado pelos seus superiores jesuitas para evitar mais polémica sobre a Questao dos Ritos.

22 Esta era a embaixada de Carlo Ambrogio Mezzabarba que seguiu meses depois de Provana e de Fan e foi recebida pelo Imperador em Dezembro de 1720.

23 Fang Hao, op. cit., p. 187.

24 Para um relato mais completo sobre o destino destes embaixadores consultar o meu trabalho"Towards a Histo of the Chinese Rites Controversy", nas actas do Simpos Internacional de S. Francisco 1992 sobre a Questao dos Ritos Chineses, a ser publicada nas Series Monumen Serica Monograph.

25 E facultada uma tradução inglesa em A. S. Rosso, Apostol Legations, Doc. 13, pp.307-9. A minuta chinesa, com correccoes do proprio Imperador, está reproduzida e Chen Yuan, Kangxiyu Loma shijie guanxi wenshuyingyin ben, Pequim, 1932, Doc.9.

26 Repare-se que Noel nao e mencionado, o que pode sign-ficar que ele nao era "enviado por Kang Hi" (J. Dehergne Repertoire des Jesuites de Chine de 1552 a 1800, Rom 1973, p. 186) mas que a sua segunda missao era de novo como representante da missao jesuíta.

27 Rosso, Apostolic Legations, p. 309.

28 Ibid., pp. 133-4.

29 Ibid., p.

30 Doc. 736 in Kangxi zhao Hanwen zhupi zuozhe huibian, Pequim, 1984-5, III, pp.68-72.

31 Constituiam parte da colecccao de Philip Robinson, ven-dido pela Sothebys em 1988, e a maioria parece ter pertencido a Ilarione Sala, um dos funcionarios de Maillard de Tournon.

32 Lot20, nos9-14.

33 Kangxi Zhao... zuozhe, Doc. 2640, VIII, p.198.

34 Ibid., Doc. 2669, VIII, p.268 (datado de 23 de Agosto de 1718).

35 Ibid., Doc. 2779, VIII, p.506.

36 Ibid., Doc. 2816, VIII, pp. 588-589.

37 Ibid., Doc. 2873, VIII, pp. 701-702.

38 Ibid., p. 702.

39 Ibid., Doc. 2877, VIII, p.711.

40 Rosso, Apostolic Legations, Doc. 20.

41 Planchet, Cimitière, p.186.

*Professor de História e Estudos Religiosos, na Universidade La Trobe, em Melbourne. É autor de Kung-Tzu or Confu-cius: the Jesuit interpretation of Confucionism e de numerosos artigos sobre os missionários jesuítas na China.

desde a p. 243
até a p.