Encontro de Culturas

O PRIMEIRO GRANDE ENCONTRO CULTURAL ENTRE A CHINA E A EUROPA (C. 1582--C. 1793)

D. E. Mungello* 孟德衛

I

O primeiro grande en-contro cultural entre a China e a Europa encerra uma experi-ência de duzentos anos que teve o seu início nas últimas décadas do século XVI e termi-nou de forma vacilante nos derradeiros anos do século XVIII. Os principais intermediá-rios deste encontro foram mis-sionários, com evidência para os da Companhia de Jesus. Uma das figuras pioneiras foi o padre jesuíta Mateus Ricci (Li Madou 利瑪竇) que elabo-rou as bases de entendimento entre as culturas chinesa e europeia. Uma das últimas perso-nagens envolvidas nesta ques-tão foi o padre jesuíta G. Cas-tiglione (Lang Shining 郎世寜 ), que serviu o impe-rador de Qianlong como pintor da corte. Se quisermos mencionar apenas os jesuítas, diremos que nessa época cerca de quinhentos dos mais inteligentes e inérgicos trabalharam na China1.

A missão na China exer-cia uma fortíssima atracção so-bre os europeus dos séculos XVII e XVIII, não apenas entre os representantes de Deus, mas também entre os intelectuais. A China inseria-se nos assuntos mais apaixonantes desse tempo e de tal forma que, vários traba-lhos sobre aquele país da auto-ria de missionários, mereceram um estudo tão profundo por parte de um grupo amador de estudiosos europeus, que deram origem ao que eu denomino como "proto-sinólogos". Utili-zando fontes missionárias sob a forma de trabalhos publicados, relatórios anuais, manuscritos não publicados, correspondên-cia e contactos pessoais com missionários regressados, estes proto-sinólogos começaram por incluir a China nos principais assuntos de discussão entre os intelectuais europeus. Apesar de haver distorções e entusiasmos infundados, próprios de amadores, o facto é que a assimilação de uma cultura por outra não se processa através de um vazio intelectual. Os proto-sinólogos criavam, isso sei, as bases de uma Sinologia mais profissional, que teria o seu início no século XIX.

Pe. Mateus Ricci, primeiro pregador do Evangelho no Império do Meio, estudioso da língua chinesa e renovador da ciência geográfica existente na China

Os participantes chineses neste primeiro grande encontro cultural eram essencialmente ho-mens de letras que se podiam classificar em três categorias, conforme as suas reacções às propostas jesuítas: l) hostilidade, 2) curiosidade e 3) concor-dância. Ainda que a maioria destes escritores -- fosse hostil, o grau de hostilidade assentava nas mudanças da política interna e cultural da China daquele tempo. Durante a fase final deste encontro cultural de dois séculos, tais mudanças agravaram aquele sentimento por parte dos literatos para com os jesuítas. Os chineses tinham estado mais recepti-vos à mensagem dos jesuítas no período inicial deste encontro, em parte, devido ao facto do ambi-ente cultural na última dinastia Ming, ser relativa-mente mais complacente e tendente a combinar num todo harmonioso, diferentes ensinamentos re-ligiosos.

A conquista Manchu em 1644 veio alterar esta situação, encorajando a ortodoxia, em prejuízo das tentativas experimentais. Em questões de ordem prática, os imperadores Manchus estavam dispostos a servir-se da comprovada mestria dos missionários estrangeiros. Todavia, em termos de ambiência cul-tural, os governantes Manchus abraçavam a mais or-todoxa das filosofias confucianas de então, a neo-confuciana Zhu Xi (1130-1200), procurando, assim, atenuar o seu estigma estrangeiro. Os Manchus res-tringiram fortemente a liberdade de pensamento e deram o seu apoio a várias inquirições no meio lite-rário. Pôr em prática ideias novas ou invulgares tor-nou-se um acto perigoso para os homens de letras chineses, pois poderiam gerar controvérsias, susci-tando a intervenção dos governantes Manchu, muito sensíveis à critica. Além disso, muitos literatos ti-nham ficado desiludidos com a última experiência Ming, quando esta pretendeu aglutinar diferentes ensinamentos, porque tal tentativa havia degenerado em debates estéreis e heterodoxias perigosas, que contribuíram para a queda da dinastia Ming. No entanto, o processo de assimilação do cristianismo na cultura chinesa prosseguiu até aos primeiros anos do século XVIII. Entretanto, o debate sobre a Questão dos Ritos, procedente da Europa, começou a minar a bem delineada organização dos jesuítas, com vista a um encontro de culturas, além de perderem o apoio que os imperadores chineses davam aos missionários. Assim nos finais do século XVIII, o entusiasmo dos europeus pelas questões chinesas começou a diluir-se, dando lugar a uma severa reacção critica.

II

As causas da hostilidade dos chineses para com o primeiro grande encontro entre as culturas chi-nesa e europeia, têm sido explicadas em termos da impermeabilidade da cultura chinesa às influências estrangeiras. Esta impermeabilidade tem sido muitas vezes explicada como uma característica ou precon-ceito cultural e explicada como xenofobia irracional ou aversão a tudo quanto é estrangeiro. Contudo, esta aversão chinesa pelas coisas estrangeiras baseava-se em algo mais do que xenofobia irracional.

Muitos homens de letras atacaram os ensinamentos dos missionários sendo considerados como heterodoxos e invariavelmente designados de yiduan 異端, xie 邪, e zuodao 左道, termos estes que encerram o sentido de "diferente da via dos sábios"2. Contudo, havia outro aspecto da heterodoxia, sob o ponto de vista chinês, que somos tentados a negligenciar. A diminuição do consenso sobre verda-des absolutas com que deparamos nas sociedades oci-dentais dos nosso dias, tem induzido muita gente a interpretar o termo heterodoxia simplesmente como "diferente". Significa isto que, tendo os literatos chi-neses dos séculos XVII e XVIII mais confiança na vera-cidade do seu ensino, interpretavam o termo heterodoxia como "falso" e referiram-se ao seu pró-prio ensino através da expressão zheng jiao 正教, literalmente, "ortodoxia", mas no sentido de verdade. Um ensino heterodoxo não era apenas diferente: era falso.

O sinólogo francês J. Gernet argumentou, num livro largamente divulgado, que a reacção negativa chinesa ao cristianismo não era mera xenofobia, mas antes o resultado da singular qualidade da língua chi-nesa. Esta linguagem deu forma à maneira de pensar dos chineses e favoreceu outras linhas de pensamen-to, incompatíveis com a maneira de pensar dos cris-tãos europeus.3

Enquanto que a estrutura linguística indo-europeia, com o importante verbo "ser", proporcio-na uma distinção perfeita entre os vocábulos "ser", e "ser próprio de", não existe na língua chinesa uma palavra que signifique ser ou essência.

Gernet defende que as inflexões dos idiomas indo-europeus permitem estabelecer diferenças muito acentuadas entre substantivos e adjectivos, e estabele-cem a antítese fundamental entre o que é essencial e o que é secundário (i. e. essência e acidente) no sentido Aristotélico-Escolástico. Este facto originou, na histó-ria do pensamento ocidental, a noção de realidades que são transcendentes e imutáveis e, parte, porque se tomam indpendentes das sensações. Dizia-se que a essência da Cristandade se baseara, exactamente, nes-ta noção de realidade permanente e sublime. Em con-traste, a ausência de inflexões e outros aspectos dis-tintivos da língua, são apontados como questões que terão levado os chineses a encararem as realidades como sendo mais dependentes das sensações e, consequentemente, mais transitórias. Os chineses ti-veram grande dificuldade em assimilar os modelos de pensamento Escolásticos, trazidos da Europa para a China pelos missionários dos séculos XVII e XVIII, de-vido à sua diferente orientação na maneira de pensar. Segundo a opinião de J. Gernet, esta diferente orienta-ção na maneira de pensar, terá sido a causa principal para que a China rejeitasse o Cristianismo.

Outra explicação mais recente, de que não teria sido a xenofobia a razão principal para a rejeição do cristianismo pela China nos séculos XVII e XVIII, é-nos dada num livro da autoria do historiador de Hong Kong J. D. Young4. Ao contrário do que dizem vários estudiosos, que Confúcio e os seus seguidores teriam sido indiferentes à religião, Young entende que a re-jeição chinesa do cristianismo se deve à profunda de-dicação dos homens de letras ao neo-confucionismo se deve à profunda dedicação dos homens de letras ao neo-confucionismo enquanto religião. De facto, o neo-confucionismo funcionava como um ponto de vista rival do cristianismo. De acordo com os argu-mentos daquele historiador, a moral neo-confuciana pressupõe uma base religiosa e cosmológica, faltan-do-lhe a noção de um Deus como divindade omnipo-tente e personificado. Segundo Young, esta ideia de Deus era estranha para os confucionistas que acredita-vam na unidade do céu, da terra e do homem. Os homens de letras rejeitavam o cristianismo, não por-que estivessem emocionalmente ligados ao neo-con-fucionismo, mas porque o cristianismo era filosofica-mente incompatível com o neo-confucionismo.

Young crê que o famoso missionário jesuíta Mateus Ricci se apercebeu desta incompatibilidade intelectual e, por tal motivo, atacou com veemência a metafísica neo-confuciana na sua obra Tianzhu Shiyi 天主實義 (O verdadeiro significado de Deus) (1603). Resumindo, o cristianismo e o neo-confucionismo continham pontos de vista universalmente opostos, sendo o conceito de Deus o que mais controvérsia gerava. Nesta perspectiva, o fracasso do cristianismo na China não teria ficado a dever-se nem à sua origem estrangeira, nem à Questão dos Ritos. Mais propriamente, fora a incompatibilidade ética e metafísica, e a "moral absoluta da tradição confuciana, apoiada no princípio fundamental da metafísica neo-confuciana", que teriam sido a causa do malogro do primeiro encontro entre a China e a Europa5. Só um compromisso bilateral desastroso poderia ter evitado tal fracasso. Ao contrário das críti-cas cristãs sobre os métodos jesuítas na China, Young interpreta o fracasso desse encontro como constituindo uma prova evidente de que Ricci e ou-tros jesuítas não haviam transigido com a sua fé.

"Mappa Christianitatis Duarum Orbium In Provincia Nankinensi Ubi Supra 100 Ecclesiae Numerantur et Supra 60 Millie Christianorum". Manuscrito detalhado da perfeitura de Songjiang na Província de Jiangsu, mostrando a implantação de 100 igrejas (tianzhutang, "átrio do Senhor do Céu") para o serviço de 60 mil cristãos. Para inculcar a força da evangelização na região.

III

O debate sobre a Questão dos Ritos foi gera-do pelas formas contraditórias de como orientar uma missão em terra estrangeira. Considerados sob pon-tos de vista extremados, a complacência jesuíta, a sua flexibilidade e tolerância para com as culturas indígenas, foram consideradas imperfeitas pela maior parte das ordens mendicantes (Franciscanos, Domi-nicanos e Agostinhos) bom como pelas ordens secu-lares, como a Société des Missions Éttrangères de Paris. Foram consideradas imperfeitas por comprometerem a autenticidade do Cristianismo. Onde termina a essência desta religião e se inicia a sua manifestação cultural, é um assunto que ainda hoje é debatido, como por exemplo, o permanente conflito entre o Vaticano e o Governo chinês sobre quem detém os poderes para a nomeação dos bispos.

Enquanto a maioria (mas não todos) dos jesuí-tas tendia tolerar certos ritos ancestrais chineses, os Mendicantes desaprovavam-nos; enquanto os Jesuí-tas toleravam os ritos a Confúcio, como essencial-mente seculares, os Mendicantes desaprovavam-nos alegando que constituíam uma forma de idolatria; en-quanto a maioria dos jesuítas se dispunha a aceitar a secular e nativa terminologia de Deus (Shangdi 上帝 e Tian 天 ), os Mendicantes desaprovavam estes ter-mos sob o pretexto de que estavam irreparavelmente imbuídos de crenças supersticiosas, e propunham que se usassem novos termos chineses, como Tianzhu 天主, porque reflectiam com mais precisão a singularidade do Deus Cristão. Mesmo que se considere que os Mendicantes não tivessem razão quanto ao debate sobre a Questão dos Ritos, a verdade é que eram pessoas inteligentes e sinceras, e que o debate era complexo. Muitas destas complexidades foram recentemente apresentadas, sob uma perspectiva dominicana, através de um estudo da autoria de um dos mais famosos e infamantes críticos dos jesuítas, o frade Dominicano D. Navarrete6. Na luta crucial travada entre estas ordens, com pontos de vista opostos, na procura de apoio Papal, os Mendicantes saíram vencedores. Por despachos do Vaticano data-dos de 1715 e de novo de 1742, as tentativas de conciliação por parte dos jesuítas não foram consideradas.

A Questão dos Ritos extravasou para a esfera política nas relações entre Pequim e Roma, tendo-se então iniciado um luta cerrada que ainda hoje se mantém. Roma considerava que as declarações ofi-ciais do imperador Kangxi acerca da Questão dos Ritos, eram uma interferência de uma entidade civil em assuntos estritamente religiosos, enquanto que o Imperador interpretava as decisões de Roma como uma interferência em assuntos internos do país. (A insistência de Pequim de que certos assuntos são do seu foro interno ainda hoje é discutido. Se no seu contexto, a situação é bastante diferente da que se verificava nos séculos XVII e XVIII, os padrões de comportamento entre a China e o mundo exterior mantêm-se idênticos aos do passado.) A Questão dos Ritos contribuiu para a decepção do imperador Kangxi acerca do Cristianismo, embora continuasse a dar o seu apoio, na corte, a individualidades jesuí-tas. Por fim, a acção de forças anti-jesuítas, aliada à Questão dos Ritos na Europa, conduziu à dissolução da Companhia de Jesus, pelo Vaticano, em 1773. Quando a ordem foi restabelecida em 1814, os mis-sionários jesuítas já haviam perdido a oportunidade de recuperar a sua força na China.

As razões para o colapso do primeiro grande encontro cultural entre a China e a Europa não po-dem limitar-se a uma causa única. Enganam-se to-dos aqueles que pretendem crer que assuntos tão complexos de natureza histórica, se possam circuns-crever a meras acções conspiratórias de alguns indi-víduos. De qualquer modo, a teoria da conspiração já foi apresentada para explicar a Questão dos Ritos.

Em 1956 M. Hay publicou um livro no qual explica que a origem do fracasso dos jesuítas na China se devia a uma conspiração encabeçada por um escocês desconhecido, de nome William Leslie, que desempenhara as funções de arquivista da Sa-grada Congregação da Propaganda Fide, em Roma, de 1659 a 17077. Hay afirma que o padre Leslie forneceu documentos secretos, dos arquivos da Pro-paganda, a Jansenistas da Sociedade das Missões Estrangeiras, com o propósito de prejudicar a acção dos Jesuítas na China. Pode ser que haja algo de verdade nesta asserção e que o arquivista tenha tomado parte da dita conspiração. Contudo, ainda que a conspiração seja um dado específico, tal como o é um assassinato político, isso não explica só por si as causas para uma disputa tão longa e complexa. O fracasso da presença dos jesuítas na China é dema-siado complicado para que se possa fundamentar numa conspiração levada a cabo por um arquivista da Propaganda.

IV

Quando os Manchus conquistaram a China em 1644, o ambiente cultural chinês tomou-se muito aberto e receptivo a ideias provenientes do exterior. Existiam, no entanto, dois grupos de Cristãos que continuavam a pensar, a escrever e a agir com o fim de obterem uma reconciliação entre as culturas confucionista chinesa e cristã europeia. Um destes grupos, os Figuristas, era conhecido mas nunca foi ver-dadeiramente estudado. O outro, desconhecido, era for-mado por homens de letras da China Oriental, e que só agora começou a ser investigado em pormenor.

Os Figuristas eram, na sua maioria, jesuítas franceses que defendiam o princípio de que, se os Clássicos chineses fossem interpretados em termos figurativos e não literários, poder-se-ia compreendê--los como uma antecipação aos mistérios da revela-ção cristã. Estas conclusões eram radicais, não só porque desmentiam a cronologia bíblica sobre a re-velação cristã, mas também porque negavam a teoria tradicional chinesa de que os seus clássicos eram estudos da história, que deviam ser encarados como verdadeiros relatos do passado, e não como anteci-pações alegóricas do futuro.

O principal figurista era o padre Joachim Bouvet, S. J. (Bo Ji 白晉 ) (1656-1730), que manti-vera estreitos contactos pessoais com o imperador Kangxi, ao longo de várias décadas, como residente da corte, em Pequim. O imperador encorajou Bouvet a prosseguir as suas pesquisas sobre as teorias Figuristas e foi, inclusive, desobrigado das suas fun-ções na corte para esse efeito8.

Outro figurista importante foi o padre Joseph de Prémare. S. J. (Ma Ruose 馬若瑟 ) (1666-1736), que começou por trabalhar na província de Jiangxi, ao sul da China, antes de ir para Pequim9. Tal como Bouvet, Prémare estudou assiduamente, durante vá-rios anos, os velhos textos chineses. Todavia, en-quanto que a teoria de Bouvet, acerca da reconcilia-ção, se baseava, exclusivamente, nos antigos textos chineses, Prémare fundamentou essa reconciliação do Cristianismo num campo documental mais alar-gado, ou seja, desde os velhos clássicos até aos do neo-confucionismo.

Tanto Bouvet como Prémare se afadigaram na elaboração dos seus projectos, preparando vários manuscritos, durante trinta anos. Só muitos anos mais tarde tais trabalhos puderam ser publicados, devido à proibição então imposta por Roma, que visava o não prosseguimento do debate acerca da Questão dos Ritos. Por fim, algumas das obras de Prémare foram editadas no século XIX, mas as de Bouvet mantiveram-se em forma de manuscritos até aos nossos dias10. Dada a reduzida divulgação dos trabalhos destes Figuristas e, uma vez que a discus-são dos seus conteúdos havia sido proibida por Roma, aqueles não puderam promover mais tentati-vas de reconciliação entre o Confucionismo e o Cristianismo. É simplesmente um caso do que pode-ria ter sucedido.

O segundo grupo a prosseguir os trabalhos para a reconciliação entre o Confucionismo e o Cris-tianismo no século XVII e começos do século XVIII era formado por homens de letras chineses, na sua maio-ria provenientes das províncias da China Oriental de Fujian, Zhejiang, Jiangsu e Shandong. Particular-mente activos nesta reconciliação, contavam-se Zhu Zongyang 朱宗元 (nascido em 1609) natural de Ning-bo, Han Lin 韓霖 (c. 1600 - c. 1644) de Jiangzhou na província de Shanxi, Wu Li 吳歴 (1632-1718) de Changshu na província de Jiangsu, Zhang Xingyao 张星曜 (1633-1715) de Hangzhou, e ainda Shang Huging(Shji) (識己)de Ji'nan11.

Alguns destes escritores colabortaram com os missionários na redacção dos documentos visando a reconciliação entre o Confucionismo e o Cristianismo, como por exemplo, Shang Huging, que foi assistente do frade franciscano A. Caballero a Santa Maria (Li Andang 利安當 ). Outros escritores prestaram uma colaboração mais independente dos europeus, como o caso de Zhang -Xingyao, que cooperou com outros homens de letras cristãos na elaboração dos documentos para a reconciliação, e que tinha muitos discípulos na então poderosa comunidade Cristã do século XIX, em Hangzhou. Os "Three Pilars of the Christian Church in China" 開教三大柱石 . (Xu Guangqi, Li Zhizao e Yang Tingyun), e as suas tentativas para a reconciliação entre o Confucionismo e o Cris-tianismo, foram objecto de um estudo muito pro-fundo. No entanto, o es-tudo feito sobre esta úl-tima geração de litera-tos, simpatizantes do Cristianismo, tem sido de tal forma descu-rado que se crê, indevi-damente, não ter havido sucessores que se pos-sam comparar aos "Três Pilares".

V

Foram os escas-sos conhecimentos dos intelectuais, que contri-buíram para o insucesso do primeiro grande en-contro cultural entre a Europa e a China. A atracção da Europa pela China baseou-se mais em entusiasmos subjec-tivos do que em interes-ses intelectuais objecti-vos. No decurso do en-contro de duzentos anos, as impressões so-bre a China rapidamente se alteravam, uma vez que se alicerçavam, pre-ferencialmente, nas ne-cessidades culturais europeias do momento, e não no que se passava, realmente, na China.

O académico in-glês R. Dawson carica-turou este fenómeno através da imagem do camaleão que muda de cor, que serviu de título ao seu livro The Chinese Chameleon12.

Nesta análise das concepções europeias sobre a civilização Chi-nesa, desde os tempos dos mongóis ate ao sé-culo xx, Dawson apre-senta-nos as imagens europeias mais signifi-cativas sobre a China. Essas imagens que se referem aos séculos XVII-XVIII, revelam-nos um quadro de enorme riqueza, tal como o ha-viam concebido os via-jantes europeus desde os tempos de Marco Polo. Outra visão mos-tra-nos as admiráveis qualidades da cultura Chinesa, da sua socieda-de e da sua administra-ção, como um modelo digno de ser copiado pe-los europeus -- aliás, uma imagem já realçada nos manuscritos jesuí-tas. Parte desta imagem refere aquilo a que Dawson classifica de mito da homogeneidade do estado Confuciano, com a China a ser go-vernada por literatos comparáveis a reis-filó-sofos racionais. Os eu-ropeus dos séculos XVII-xvIII também viam a China como uma civili-zação eterna e imutável, contrastando com a cada vez mais acelerada mudança de vida europeia.

Questão dos Ritos -- Fórmula de juramento de fidelidade a Roma dos missionários no Oriente. Apesar da sua discordância com os decretos papais, cerca de trezentos missionários assinaram, perante o bispo de Pequim ou Macau, ("in manibus meis") os documentos de respeito às Bulas Papais "Ex Ille Die" de Março de 1715 e "Ex Quo Singulari" de Julho de 1742.

Outra imagem preponderante da China, na óptica europeia, era a singularidade da Civilização chinesa tão diferente da europeia. Foi esta noção que Kipling imortalizou na sua frase "Oriente é Oriente e Ocidente é Ocidente". No século XVIII muitos europeus concebiam a China, numa dimensão essenci-almente estética, como parte da explosão emo-cional pelo estilo Ro-cocó de inspiração chi-nesa. Se bem que o esti-lo Rococó tivesse as suas origens na China, era distintamente euro-peu e sem paralelo na-quele continente. Enfim, o facto de se ter mencio-nado o livro de Dawson, teve o propósito de apre-sentar, sumariamente, as concepções e distorções sobre a China por parte dos Europeus.

VI

Existe uma defici-ência na obra de Daw-son da qual eu próprio comunguei inicialmente. Trata-se da ideia de que, o primeiro grande encon-tro cultural entre a China e a Europa, estava imbuí-do, essencialmente, de distorções subjectivas.

É certo que essas distorções existiam e esta-vam patentes no encontro, mas havia outro aspecto mais profundo, que se foi tornando cada vez mais significativo à medida que fui procedendo às pesqui-sas que culminaram com a publicação do meu livro Curious Land13.

O que tomava a missão na China uma experi-ência ímpar, era o facto dos Jesuítas depararem com uma civilização tão sofisticada e avançada que desafi-ava as concepções Euro-peias sobre variadís-simos assuntos. Por exemplo, quando os Je-suítas começaram a compreender a tradicio-nal cronologia Chinesa e a deram a conhecer à Europa no século XVII, tornou-se evidente que a ances-tralidade da China era um repto à cronolo-gia muito mais limitada em uso na Europa, e que dela se servia para expli-car, na Bíblia, os even-tos do Velho Testamen-to. Este desafio originou profunda meditação na Europa e a adopção, em alguns meios, da versão septuaginta Grega da Bíblia, com a sua crono-logia mais flexível, em detrimento da versão menos adaptável da Vulgata Latina. Poder--se-ia argumentar que esta mudança, partilhava as distorções subjectivas sobre a China, uma pre-ocupação com os conhe-cimentos Europeus, mas tal mudança significava também a importância das informações vindas do exterior que tenderi-am a alterar, significati-vamente, essa mentalidade. A influência que os co-nhecimentos da história da China exerceu na altera-ção dos parâmetros da história europeia do século XVII não pode, evidentemente, circunscrever-se à imagem do "Camaleão chinês".

Documento relativo à visita do Cardeal Maillard de Tournon à China. Extracto de uma petição ao Governo de Cantão, por Wang Liangbin (Lourenço), acerca dos militares em Macau; KX 46:6:18.

Gostaria de fazer uma referência, ainda que su-mária, a um livro muito divulgado que faz uma alusão idêntica à do "camaleão chinês", mas no que respeita ao estudo do Médio Oriente, elaborado numa pers-pectiva Ocidental. A obra Orientalismo, de E. Said (Nova Iorque, 1978), analisa o estudo levado a cabo pelo Ocidente sobre o Médio Oriente, como uma for-ma de hegemonia cultural Europeia. Não creio que a teoria de Said se aplicasse a estudos europeus anterio-res a 1800, mas talvez depois desta data. A Sinofilia pré-1800 poderia, nem sempre, ter-se baseado na existência factual da China mas, se a abstrairmos das implicações missionárias, parece significar, não a do-minação europeia, mas antes a procura de algo de melhor do que então existia na Europa. Esta tentativa europeia de descobrir algo de melhor na China, é tes-temunhada pela vasta literatura de viagens dos sécu-los XVII e XVIII e pelo desenvolvimento da, relativa-mente nova, área da geografia. Também nesta esfera intelectual a imagem do "Camaleão Chinês" não bas-ta para explicar o que então se estava a passar. A expansão dos conhecimentos europeus nas áreas da geografia e cartografia da China, levada para a Euro-pa no século XVII por jesuítas, como Mateus Ricci, M. Ruggieri (Lo Mingjian 羅明堅 ), M. Martini (Wei Kuangguo 衛匡國 ), M. Boym (Bu Mige 卜彌格 ), A. Semedo (Zeng Dezhao 曾德照 ) e P. Couplet (Bo Yin-gli 柏應理 ), tinham um conteúdo objectivo que não pode ser reduzido a meros factores subjectivos. Ou-tras áreas que ultrapassam a imagem do "Camaleão Chinês" encontram-se expressas no enorme interesse demonstrado pelas novas academias de estudo da Eu-ropa, dos séculos XVII e XVIII, tais como a Academie des Sciences de Paris, a Royal Society de Londres e a Akademie des Wissenschaften de Berlim. Tal interes-se pelas coisas da China baseava-se em profundas razões de ordem intelectual daquele tempo.

VII

O grau de mudança nas relações culturais sino-europeias pós-1800 e demonstrado pela experiência da Escola Superior Anglo-Chinesa em Malaca, na pe-nínsula da Malásia. Esta escola superior foi fundada pelo missionário inglês R. Morrison (1782-1834) que havia chegado a Macau em 1807. Morrison, tido por muitos como o primeiro missionário protestante a chegar à China, era um produto do movimento Evangelista dos séculos XVIII e XIX, na Inglaterra, cujo fervor missionário levou à fundação de várias socie-dades, como a Sociedade Missionária de Londres, em 1795. Esta deu todo o apoio a Morrison para que preparasse uma nova versão da Bíblia na língua chi-nesa. Curiosamente, Morrison nunca viajou, verda-deiramente, pela China (salvo uma ocasião em que acompanhou Lorde Amherst a Pequim, em 1817), tendo permanecido em Cantão durante vinte e cinco anos. Neste aspecto, é notório o contraste com os je-suítas de há duzentos anos atrás. Os jesuítas, que tam-bém haviam chegado a Macau, indo depois para Can-tão, a breve trecho tinham penetrado no interior do continente chinês e, por volta de 1601, já se haviam fixado na capital, Pequim. Tem-se feito várias alusões ao fracasso dos missionários protestantes, na implan-tação do Cristianismo na China, por causa das suas ideias rígidas eurocêntricas e imperialistas. Embora isto possa ser verdade em relação à maioria dos missi-onários protestantes, Morrison não deve ser incluído neste lote. Bem pelo contrário, este missionário adop-tara, muitas vezes, acções idênticas às já anteriormen-te utilizadas pelos jesuítas14.

Morrison acreditava que só o estudo da cultura e da língua chinesas poderiam promover o desenvol-vimento das relações culturais entre Chineses e Euro-peus. Era fundamental que os Europeus estudassem a língua e cultura chinesas e o mesmo se verificasse com os Chineses em relação aos Europeus. Na pers-pectiva de Morrison, esta atitude conduziria, eventual-mente, à conversão dos Chineses ao Cristianismo. E no entanto, havia algo de muito diferente entre o em-penho missionário de Morrison e as tentativas levadas a cabo pelos Jesuítas duzentos anos antes, não sendo bem claro se essas diferenças estariam relacionadas com os processos de aproximação de Morrison, ou o ambiente cultural que se vivia nos primórdios do sé-culo XVIII, ou ainda a diferente situação política.

Morrison fundou a Escola Superior Anglo--Chinesa em 1818, exactamente com o propósito de promover, reciprocamente, o estudo das culturas chinesa e europeia. Achou preferível estabelecer esta instituição cultural, secular e liberal, em Malaca, no seio da comunidade ultramarina chinesa, do que na China, onde não existiam ainda as condições mais adequadas para tal fim. Quando em 1880 a Socieda-de Missionária de Londres decidiu enviar J. Legge para a Ásia Oriental, Morrison recomendou que aquela escola superior fosse transferida para a Chi-na. Ainda que a Escola Superior de Malaca tivesse sido encerrada em 1843, o facto é que jamais foi restabelecida na sua forma original.

O encerramento da Escola Superior Anglo--Chinesa coloca toda uma série de interrogações. Teria tal facto ficado a dever-se a uma falha huma-na, no sentido de que Morrison e os seus colegas protestantes haviam sido menos competentes que os seus antecessores jesuítas? Ou seria este fracasso fruto de uma muitíssimo menor presença do que a estabelecida pelos Jesuítas? Teriam os anos e as mu-danças socioeconómicas, na Europa, contribuído para a incapacidade destes missionários Protestantes estabelecerem uma relação com a China, sem com-plexos de superioridade? Teria a Controvérsia dos Rituais envenenado o ambiente hostil ao Cristianis-mo, no início do século XIX, de tal forma que a Chi-na estaria menos receptiva em aceitá-lo como suce-dera quando da chegada dos Jesuítas, duzentos anos antes? Quaisquer que sejam as respostas a estas questões, o facto é que, por volta de 1800, o primei-ro grande encontro cultural entre a China e a Euro-pa, havia chegado ao seu fim.

(Traduzido do Inglês)

NOTAS

1 Nicolas Standaert S. J., "The Jesuit Presence in China: A Statistical Approach". Sino-Western Cultural Relations Journal, XIII, 1991, 4-17.

2 Paul Cohen, China and Christianity: The Missionary Movement and the Growth of Chinese Antiforeignism, 1860-1870, Cambridge, Massachusetts, 1963, p. 4-5.

3 Jacques Gernet, Chine et Christianisme, action et reaction, Paris, 1982, p. 322-333.

4 John Dragon Young, Confucianism and Christianism, the First Encounter, Hong Kong, 1983, pp. 27-39,108 e 126-128.

5 Idem, ibidem, p. 128.

6 J. S. Cummins, A Question of Rites: Friar Dominingo Navarrete and the Jesuits in China, Aldershot, Inglaterra, 1993.

7 Malcom Hay, Failure in the Far East: Why and How the Breach between the Westenr World and China First Began, Londres, 1956.

8 As informações mais completas sobre as teorias do Padre Figurista Bouvet, vêm descritas na obra de Claudia von Collani, P. Joachim Bouvet, Sein Leben und Sein Werk, Nettetal, 1985.

9 O relato mais completo sobre as teorias do padre Figurista Prémare, vem descrito por Knud Lundbaek na sua obra Joseph de Prémare (1666-1736) S. J.: Chinese Philosophy and Figurism, Aarhus, 1991.

10 A obra sumária de Prémare Lettre sur le Monotheisme des Chinois foi escrita em 1728, mas só foi editada e publicada, em Paris, no ano de 1861, por G. Pautier. E. Mungello refere-se a este trabalho em The Reconciliation of Neo-Confucianism with Christianity in the Writings of Joseph de Prémare, S. J.; Philosophy, East and West 26, (1976): 389-410. A principal obra de Prémare sobre a reconcilia-ção foi escrita em latim e revista pelo autor na sua arte final em 1725 com o título Selecta Quaedam Vestigia Praecipuorum Christiane Religionis Dogmatum ex Antiquis Signarum Libris Eruta. Esta obra foi traduzida para francês por A. Bonnetti e P. Perney, e publicada em Paris, em 1878, com o título Vestige Des Principaux Dogmas Chrétiens Tirés Des Anciens Livres Chinois. A relação deste trabalho com as teorias do Figurista Prémare são debatidas por K. Lundbaek, em Joseph de Prémare (1666-1730), S. J.: Chinese Philology and Figurism, Aarhus, 1991, pp. 130-136. Quanto a Bouvet, o trabalho mais completo sobre as suas obras está publi-cado na edição de C. Von Collani, P. Joachim Bouvet S. J. -- Sein Leben und Sein Werk, Nettetal, 1985. Mais refe-rências elogiosas sobre trabalhos de Bouvet, não publicados, podem ser encontradas noutros artigos, tais como, "Tianxue benyi -- Joachim Bouvets Forschungen zum Monotheismus" da autoria de C. vom Collani, e Unearthing the Manuscipts of Bouvet's Gujin after nearly Three Centuries, da autoria de D. E. Mungello, na sua obra O Estudo das Missões na China (1550-18) Publicação X (1988): 9-33 e 34-61.

11 A principal fonte de informação sobre as biografias destes homens de letras cristãos provém de Fang Hao 方毫 em Zhongguo Tianzhujiao shi renwi chuan 中國天主教史人 3 vols. (Hong Kong, 1970-1973). Veja-se também Fang Hao Liushi zi ding gao 方豪六十自定稿, 2 vols., Tai-pé, 1969, p. 227-235. Do mesmo modo Zhu Zhongyuan é referenciado num artigo de Chien Shou-Yi 陳受頤 intitulado "Mingmo Qingchu Yesuhuishi de Rujiaoguanji qi fanying" 明末清初耶稣會士的傳教觀及其反應 Guoxue Ji Kan 国學季刊, v (2)(1935):31-34. Foram recentemente publicadas obras de dois destes escritores Cristãos -- Wu Lie Zhang Xiangyao. Vejam-se de Jonathan Chaves, Singing ofthe Source: Nature and God in the Poetry of the Chinese Painter Wu Li, Honululu, 1993, e de D. E. Mungello, The Forgotten Christians of Hanzhou, Honululu, 1994.

12 R. Dawson, The Chinese Chameleon: An Analysis of European Conceptions of Chinese Civilization, Londres, 1967.

13 D. E. Mungello, Curious Land: Jesuit Accommodation and the Origins of Sinology, Estutegarda, 1985.

14 B. Harrison, Waintingfor China: the Anglo-ChineseCollege at Malacca, 1818-1843 and Early Nineteenth Century Missions, Hong Kong, 1979.

*Doutorado em História, pela Universidade da Califórnia. Pro\-fessor associado de História e director de Estudos Asiáticos, na Universidade de Baylor, em Waco. Editor de "Sino-West-em cultural relations journal" (que substituie "China Mission studies 1550-1800 bulletin").

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até a p.