Crónica Macaense

O CINEMA EM MACAU -- II
1930-31 A EMOÇÃO DO SONORO

Henrique de Senna Fernandes*

Pouco mais temos a dizer sobre a época do silêncio em Macau. Mas antes de entrarmos no capí-tulo do cinema sonoro, vamos dar uma resenha do que foi a nossa terra nos últimos anos da década dos 20 e nos dois primeiros anos 30.

Em 1927, reinava em Macau um largo optimis-mo. O reflexo do mundo em prosperidade chegava até aqui. O Porto Exterior não se revelara ainda o estron-doso falhanço que foi: os relatórios dos responsáveis auguravam um movimento de barcos de grande cabotagem, em manifestações oníricas de grandeza. A indústria de pesca crescia, impressionante. Na Capita-nia dos Portos estavam registadas mais de mil embar-cações. Falava-se muito na modernização de Macau, em tirá-lo do isolamento duma cidade mediterrânica incrustada na China para transformá-lo em burgo acti-vo de arcabouço americano.

Aquele optimismo concretizou-se com a or-ganização e inauguração da primeira e única Feira Industrial, instalada nos terrenos de Mong-Há, mais ou menos no actual bairro dos funcionários junto à Avenida do Coronel Mesquita**, onde havia um pe-queno lago. Ali mostraram os industriais de Macau as suas potencialidades e, na opinião dos coevos, a Feira honrava a cidade e os organizadores.

Só nos lembramos da parte das diversões. Ha-via carrocel, montanha russa, "merry-go-round", imensas barracas de tiro e outros jogos em que se ganhavam pequenas lembranças e montes de rebuça-dos. No lago, havia barcos a remos para os namora-dos e para os românticos.

No enquadramento da época, a Feira foi um triunfo e bafejou Macau da certeza duma completa renovação. A Feira e o porto de grande cabotagem marcavam o começo duma nova era. Neste surto, ha-via ainda a sensação grata de que Macau iria ser apro-veitado pelo turismo com a construção de dois hotéis modernos, o Hotel Riviera, inaugurado em 13 de Fe-vereiro de 1928, e o President Hotel, o primeiro arra-nha-céus, que seria inaugurado no Verão daquele ano.

A estrutura deste último edifício, erguido num terreno baldio em frente do Cinema "Vitória", causou profunda impressão, numa cidade cujo casario não ultrapassava um ou dois andares. O des-lumbramento transparece numa local de "A Pátria", de 21 de Abril de 1928.

Página anterior: "Frankenstein, o Homem que criou um monstro" (1931) uma das séries que aterrorizaram o público macaense nos começos do sonoro.

"PRESIDENT HOTEL"

"Está para breve a inauguração deste edifício, hoje o mais imponente da Colónia. É o primeiro arra-nha-céus que Macau vai ter, sendo a sua altura, com-primento e largura de 196 pés 96 e 96. Possui este majestoso Hotel 78 quartos para hóspedes, distribuídos pelo 1°, 2° e 3° andares, tendo cada um deles 26 quar-tos que serão luxuosamente mobilados, podendo com- portar ao todo 150 pessoas. O 4º andar servirá de restau-rante, o 5º de casa de chá e "roof garden". O 6º andar destina-se a um cinematógrafo, cuja lotação será de 440 pessoas, e o 7º andar para concertos de música ao ar livre. O custo total da construção do referido prédio orça por $500.000 aproximadamente. As janelas, portais e caixilhos são feitos de madeira de teca, de superior qua-lidade. A electricidade desempenha um papel importante neste edifício, sendo a cozinha provi-da dos aparelhos eléctricos mais moder-nos e económicos que é possível. A ventilação, o aquecimento e a refrigera-ção, etc., etc., é tudo feito por electrici-dade, sendo os respectivos aparelhos to-dos adquiridos na "MELCO". Os eleva-dores que este Hotel vai possuir estão quase prontos a funcionar, devendo a respectiva montagem ser confiada à mesma casa "MELCO". Estes elevadores têm a veloci-dade de ascensão de 200 pés por minuto ou seja 60 metros por minuto. Um dos elevadores será destinado para transportar comestíveis para o 5º andar".

À esquerda: Macau, anos 30 (Foto da colecção particular do Dr. João Loureiro).
Em baixo: O novo edifício dos Correios e Telégrafos (1931).

Este hotel teria mais tarde outro nome, o de Hotel Central, "o mais alto do Império colonial Portu-guês", como afirmariam os anúncios da companhia exploradora. O cinematógrafo "Presidente" seria de pouca dura, com filmes silenciosos e na maior parte chineses, então de qualidade inferior. O recinto do cinematógrafo seria mais tarde o conhecido "cabaret" do Central, cujos dias mais gloriosos foram os do tem-po da Guerra do Pacífico.

Estava na forja a construção doutro edifício considerado imponente: o dos Correios e Telégrafos no Largo do Senado, considerado na altura majesto-so e pleno de modernidade. Ninguém apontou, en-tão, que o seu perfil pesado, sem um estilo arquitec-tónico definido, iria contrastar com a fachada do Leal Senado, nem com outros edifícios do largo, to-dos cheios de arcadas e varandas, duma airosidade que só agora se reconhece.

O oportunismo, bafejado pelo sopro de pros-peridade, manteve-se em realizações que correspondiam a esse optimismo. Entre outras, aponta-se a inauguração do cabo submarino para a Taipa em 11 de Novembro desse ano. Poucos dias depois, em 19, iniciam-se nos CTT os serviços radiotelegráficos, instalados no 2ō andar do novo edifício, com a presença do Governador.

Estava na ocasião também a montar-se a Cen-tral Telefónica Automática, que foi inaugurada em 8 de Dezembro. Os telefones são também outro deslum-bramento e um motivo de orgulho para muita gente. O "Jornal de Macau" publica a lista dos telefones que imediatamente ficaram aptos a funcionar, após a inau-guração. Citemos alguns números a esmo:

623: Ribeiro Júnior, Delfino — Rua do Campo, nō3.

637, Rodrigues, Fernando (escr.) — Travessa do P.e Narciso.

720, Rodrigues, Alina de Sousa Fernandes — Cal-çada do Bom Parto, nō 2.

731, Rodrigues, Damião (res.) — Avenida Conse-lheiro Ferreira de Almeida, nō 93.

738, Silva, Dr. Henrique Nolasco (escr.) — Ave-nida Almeida Ribeiro.

801, Macao Electric Company (Secção de Infor-mações) — Rua Central.

Em cima: Cenas desportivas no campal, Macau, anos 30 (colecção do Dr. João Loureiro).
À esquerda: O "Grande Hotel Central" de Macau (c. de 1931).

815, Hotel Riviera, Rua da Praia Grande.

816, Tai San Li — Travessa do Soriano.

835, Paradis de Dames — Rua da Praia Grande. 943, Menezes, Celeste — Avenida Conselheiro Ferreira de Almeida, 95 - B.

No capítulo de desporto, havia uma actividade intensa. No campal começava, ainda incipiente, a pre-parar-se a grande geração dos hoquistas que tanto hon-rariam Macau. O futebol era marcado pelo "Argonauta", pelo "Tenebroso" e pelo "team" da Soci-edade União Recreativa. Mas foi o ténis que se impôs, com os campeonatos do Ténis Civil e do Ténis Militar e o Grande Torneio de Ténis Xangai-Macau.

Este torneio de ténis, entre Xangai e Macau, realizado em fins de Novembro de 1929, não foi propriamente um despique entre as duas cidades, pois os tenistas visitantes emparceiraram com os nossos em quase todas as partidas. Os tenistas de Xangai eram Mlle. Telma Colaço, Raúl Canavarro (campeão de Xangai), Gordon Lum e Paul Kong, tendo estes dois representado a China no "Davis Cup". Os tenistas de Macau que participaram nos jogos do Ténis Civil foram Mlle. Emília Figueiredo, D. João de Vila Franca (campeão de Portugal), José Maria de Senna Fernandes, António Melo, Raúl Xavier e Alberto Jorge. Os desafios marcaram, não só pelo vigor empenhado, como também pela ele-gância desportiva manifestada. A mais impressio-nante partida que delirou a assistência, foi o despique Portugal-China; dum lado, Raúl Canavarro e D. João de Vila Franca, e doutro, os chineses do "Davis Cup". Ganhou a China, após luta brava.

Os visitantes conheceram o melhor da hospi-talidade macaense. Começou o programa com uma recepção no Clube de Ténis da Areia Preta, onde se realizaram alguns encontros amigáveis. Houve no dia seguinte um passeio a Tong Ká (China), um por-to piscatório, a 50 quilómetros, a nordeste de Macau. Os desafios propriamente ditos, tiveram lugar, du-rante dois dias, no Ténis Civil, terminando o progra-ma com um jantar muito elegante no Hotel Riviera. Os visitantes ainda se demoraram mais alguns dias, a convite doutros clubes de ténis, como o Ténis Mi-litar, o Ténis Naval, etc.. Por último, houve a desfor-ra Portugal-China, com os mesmos parceiros, termi-nando com a vitória da China, que não foi fácil.

O culto do desporto, altíssimo nessa época, revelou-se em outras actividades. É o apogeu das corridas de bicicleta, iniciadas talvez na segunda metade dos anos 20, salvo erro de apontamento, sob o impulso do Núcleo Desportivo "Pátria", constituí-do principalmente pelo pessoal dos Serviços de Ma-rinha.

A grande alma do ciclismo macaense foi Júlio A. Bento, popularmente conhecido por "Pau Preto", o campeão incontestável da época.

A maior realização dos anais do ciclismo ma-caense foi a Corrida de 100 Quilómetros Macau--Tong Ká-Macau. Essa prova duríssima fez-se, em comemoração do Dia da República, 5 de Outubro, partindo os doze ciclistas inscritos do Palácio da Praia Grande. Do "Jornal de Macau" conhecemos os nomes de alguns dos corredores: Júlio Bento, Pietro Colombo (italiano), Carlos Borges Delgado, filho do então reitor do Liceu, Manuel Rodrigues e Manuel Dias Correia, ambos da Guarnição Militar, Samal Khan (polícia mouro) e Francisco Pinto.

Futebol no campal, Macau, anos 30 (colecção do Dr. João Loureiro).

Júlio Bento, o campeão, foi perseguido pelo azar, logo de início. Na curva do Jardim de S. Fran-cisco, teve a primeira queda. Atrasado a consertar a bicicleta e a tratar-se de escoriações, voltou a correr, fazendo uma recuperação espantosa, chegando a Tong Ká, a poucos minutos de distância do primei-ro. No caminho do regresso, teve a segunda queda em

A-Chac, prosseguiu depois com o mesmo afinco e estava já a um minuto e tal do que ia à frente, quando à saída de Ku-Oc teve a terceira queda que lhe espatifou a bicicleta, desistindo da corrida.

A segunda corrida de 100 Quilómetros reali-zar-se-ia, em comemoração do Dia do Armistício, em 11 de Novembro, com catorze ciclistas, e o azar continuou a perseguir Júlio Bento. Indo à frente, em boa forma e confiante, teve um acidente que o obri-gou novamente a desistir, precisamente em Ku-Oc, seu lugar fatídico. Ganhou desta vez Manuel Rodri-gues e a seguir Manuel Dias Correia e calcule-se o regozijo e os aplausos de toda a tropa da Guarnição, aclamando-os à chegada ao Palácio da Praia Grande.

Nunca mais houve oportunidade de se repeti-rem tais corridas que muito contribuiram para as boas relações entre Macau e a "terra-china", dando as autoridades vizinhas toda a colaboração e facili-dades para a concretização dos dois eventos.

No campo aberto do futuro Hipódromo, reali-zaram-se as primeiras corridas de cavalo. Ainda não se tinha erigido o "Macao Jockey Club" nem havia delineada a magnífica pista de corridas. As demarca-ções eram improvisadas, mas prevalecia o espírito desportivo, sobretudo, dos ingleses que traziam ca-valos de corrida de Hong Kong com imensos gastos, só pelo prazer de correr, com o mesmo entusiasmo com que os vemos colaborar e participar actualmen-te nas corridas de automóvel do Grande Prémio.

O hóquei firma-se em fins de 1929, com dis-putas semanais, aos Domingos, Macau a vencer in-variavelmente, dirigido pelo grande desportista Ten. Filipe O'Costa, espírito disciplinador e carismático que comunica aos seus "rapazes" um elevadíssimo conceito do desporto que parece andar muito esque-cido nos dias de hoje.

O ambiente de optimismo e confiança no fu-turo económico de Macau manteve-se, em crescen-do, por todo aquele ano. O relatório do Comissário das Alfândegas Chinesas da Lapa, publicado em Ju nho, é francamente favorável e animador. Ali se re-ferem as várias indústrias macaenses em progresso, se aponta a importância das corridas de cavalo, ain-da que improvisadas, como factor de grande rele-vância para o turismo. E mais, exalta-se a inaugura-ção do primeiro troço de oito quilómetros da estrada Macau-Seac Ki, construída pela Repartição das Obras Públicas, em terra vizinha, com a colaboração das autoridades desse território, em 18 de Março, com a presença do Governador Tamagnini, para além da Porta do Cerco.

Esta estrada macadamisada valorizou decisi-vamente a economia de Macau e as suas relações comerciais com o "hinterland". A Companhia de Autocarros Kee Kuan lança carreiras para aquele território, dezenas de automóveis atravessam a Porta do Cerco, levando veraneantes e caçadores, princi-palmente aos Sábados e Domingos, organizam-se pi-queniques e caçadas às rolas, perdizes e narcejas, ou então, pescarias à "asa vermelha", nos meandros do rio e dos ribeiros e riachos afluentes.

Habitações sociais no Bairro Tamagnini Barbosa e Hipódromo (1932).

Ainda nos lembramos desses passeios. Visitá-mos muitas localidades cujos nomes nos eram fami-liares: Chin Sán, Chôi Mei, Ku Oc, Tong Ká, Li Tchai, Seac Ki, Vong Mau Tché, as Águas Quentes e Choi Hang, terra de nascimento de Sun Iat Sen. Na nossa memória ficaram as merendas saboreadas em troços de estrada, à sombra e ao ramalhar de grandes árvores de pagode, os bambuais vergando ao sopro da viração, os búfalos mergulhados nas águas lama-centas das várzeas, com o focinho de fora, os cam-poneses atravessando pequenas pontes de pedra, a sorrir para nós, e o cheiro penetrante e enjoativo da espiga de arroz, quando madura, que nos perseguia durante todo o trajecto. Era uma vida boa!

Nesse ano, há um notável empreendimento do incipiente turismo macaense. A inauguração, em 21 de Setembro, do Balneário-Restaurante "Costa de Jade", na baía de Pac On, na Taipa, hoje desapareci-da com o aterro da praceta que se abre no termo da Ponte Macau-Taipa. Foi uma inauguração com a presença de centenas de pessoas transportadas pela lancha-motor "Jade", de propósito construída para esse fim, nas Oficinas Navais. O embarque em Ma-cau fazia-se pelo cais de pedra que havia na curva de S. Francisco.

O local do Balneário era aprazível, a água do mar muito limpa e ainda não contaminada pelo lodo, e a mata exuberante dos Sete Tanques ficava—lhe mesmo em cima, com o suave ruído das suas águas a correr.

Página anterior em cima: Aspectos do cais do Porto Exterior, Macau, anos 30 (colecção do Dr. João Loureiro).
Página anterior em baixo: Palácio do Governo, 1930.
Nesta página em baixo: Praça do Leal Senado, 1930. (colecção do Dr. João Loureiro).
Avenida Almeida Ribeiro, 1930 (colecção do Dr. João Loureiro).

Naquele Outono esplendoroso de 1929, di-zem os coevos, foi moda ir à "Costa de Jade". Orga-nizaram-se festas, jantares à americana, animados pela orquestra de jazz de João Franco. E quanto casamento dali não surgiu, aos acordes inspirados de "I'11 See You in My Dreams" e à voz de tenor da "Ora Sorriento", em noites de luar, a poalha de pra-ta chispando ao largo, os juncos de velas todas aber- tas, deslizando em silêncio, embebidos nas incansá-veis fainas da pesca!

Como sabiam divertir-se os nossos maiores! O optimismo reinante, a boa disposição e a vida fácil e barata desviavam as atenções de trágicas rea-lidades. Os acontecimentos internacionais não pare-ciam tocar naquele mundo. A guerra civil na China, entre o Governo Central e os senhores da guerra (warlords) era encarada como coisa de somenos. Todos estavam habituados, desde pequenos, àquelas questiúnculas internas, a esse sangrento extravasar de ódios e ambições que depauperavam e enxova-lhavam um grande país.

Por mais espantoso que isso possa parecer, não há nos jornais da época uma notícia acerca da Terça-Feira Negra de Outubro, onde se deu o "crash" da Bolsa de Nova Iorque. Nem há notícia dos suicídios e da crise que este facto gerou, dando origem à Depressão. Hong Kong e Macau estavam muito longe, a prosperidade era uma coisa certa e não havia motivos para alarme.

No meio de tudo isto, o cinema silencioso, produzindo os seus estupendos filmes, entrava na agonia, sem que Macau ainda tomasse consciência da realidade. Falava-se com insistência no cinema sonoro, recentemente descoberto. Em Hong Kong, lançavam-se os alicerces para a construção dos tea-tros "King's" e "Queen's" e havia planos de adapta-ção à nova modalidade.

A qualquer pessoa menos informada, pode parecer-lhe que o cinema sonoro foi uma prodigiosa invenção alcançada nos fins dos 20. Nada menos certo. As primeiras tentativas de sincronização do som com a fotografia em movimento, datam de an-tes de 1894. Nesse ano já longínquo, Thomas Alva Edison experimenta com mais sucesso o seu "Kinetoscopo", que era um sistema em que o som se captava através de tubos aplicados aos ouvidos. Não passa duma curiosidade, como serão mais tarde o seu "Kinetophone", o "Synchoscope" do alemão Carl Laemmle e o "Phonofilm".

Em 1921, D. W. Griffith, o grande realizador de "The Birth of a Nation" e um daqueles que mais contribuiram para a elevação do cinema à categoria de arte, utilizando um método conhecido por "Photokinema", gravou, em "Dream Street", duzen-tos pés de filme sonorizado, evidentemente com muitas deficiências. Apresentou a fita, na "Town Hall" de Nova Iorque, foi felicitado pela inovação, mas também, desta vez, a sua tentativa não passou de curiosidade, não pensando ninguém em explorá--la comercialmente.

Fotograma de "D. Juan", um dos primeiros filmes em parte sonorizados, com fragmentos da ópera de Mozart.

A ideia, porém, ficou. A casa Warner Brothers, formada pelos irmãos Sam, Harry, Jack e Albert Warner, em colaboração com Bell Laboratories, propriedade conjunta de Western Electric e American Telephone & Telegraph Company, procurou a comercialização do filme so-noro. Inventa-se o sistema "Vitaphone" que é aplica-do no filme silencioso "D. Juan" de John Barrymore. É ainda só o fundo musical, tocado pela Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, sob a regên-cia de Henry Hadley. Ouvem-se as vozes de Giovanni Martinelli e Marian Telley, célebres canto-res da Metropolitan Opera House, mais o coro. O filme é uma sensação mas não passa ainda duma experiência, aliás, assistida apenas por algumas cen-tenas de convidados.

A indústria cinematográfica em geral, estratificada nos louros do cinema mudo, persiste na dúvida, quanto ao êxito comercial do sonoro. Há cer-tos actores e realizadores, alcandorados no pináculo da fama, que o desdenham abertamente e em alta voz.

Mas a Warner Brothers teima isolada no seu caminho e, em Outubro de 1927, A1 Jolson não só canta como dialoga umas duzentas e tal palavras em "Jazz Singer" (O Cantor do Jazz), com Eugene Bassarer que representa a sua mãe. É um momento histórico para o cinema.

Em cima: George Arliss em "Disraeli", uma das primeiras fitas do sonoro vistas por Macau, e que obteve um dos primeiros "óscares" da história do cinema.
À direita: Al Jolson, em "The Jazz Singer".
Em baixo: Cartaz publicitário do "Jazz Singer", com Al Jolson.

A exibição agora não é feita para uma assis-tência selecta, escolhida e de número limitado. É feita para o grande público que estremece de espan-to e de excitação e se deslumbra. A voz do actor soa claramente nos ouvidos do espectador, percebe-se tudo como se o mesmo estivesse à sua frente, em carne e osso. A Wamer Brothers faz uma fortuna colossal. A1 Jolson é, dum momento para o outro, um nome que se acha em todas as bocas. A Wamer Brothers repete a proeza, com o mesmo actor, lan-çando, nos princípios de 1928, um filme ainda em parte falado, que recebeu o título de "Singing Fool" (O Cantor Louco). O público chora e comove-se quando Jolson, com o filho moribundo (David Lee) nos braços canta o inesquecível "Sonny Boy".

O choque é profundo noutras casas produto-ras e a Fox, sob a direcção dinâmica de William Fox, submete-se à nova corrente. Arquivam-se os filmes mudos em projecção ou já meios filmados. Inventa-se o sistema "Movietone" que é aplicado em "Four Devils" (Janet Gaynor, Charles Morton, Naney Diexel e Barry Norton), filme ainda só em parte falado. As bilheteiras esgotam-se com o tre-mendo sucesso.

A incansável Warner Brothers apresenta em 15 de Julho de 1928 o primeiro filme inteiramente sonoro, "The Lights of New York" (Curtiss Landis e Helen Costello) e logo a seguir "Disraeli" (George Arliss). A Metro-Goldwin-Mayer entra na competi-ção com "The Trial of Mary Dugan" (Raymond Hackett, Norma Shearer) e "Madame X" (Buth Chatterton, Raymond Hackett). A Universal respon-de com a primeira versão e, a nosso ver, a melhor, pela qualidade dos actores, do famosíssimo "Show Boat" (Joseph Schilkraut, Laura Laplante), ainda só em parte sonorisada, onde a música e as canções de Jerome Kern entram no folclore americano, celebrizando o compositor.

O ano de 1929 assinala-se pela produção em massa dos "talkies" (filmes sonoros). É o ano tam-bém do último filme mudo de importância, "The Kiss" da M-G-M, em que Greta Garbo tem uma interpretação notabilíssima, mas que falha justamen-te porque é mudo. Haverá ainda nos anos 30 dois filmes mudos extraordinários, o primeiro "City Lights" (As Luzes da Cidade), em 1931, e "Modern Times" (Os Tempos Modernos), em 1938. Estes fil-mes, no entanto, são dois casos à parte, fora de série, não só porque foram realizados por Charlie Chaplin, como foram feitos já em pleno sonoro, não podendo ser classificados dentro da época do mudo.

Começa o pânico dos actores e dos realizado-res da escola antiga. Os "talkies" exigem novos mé-todos, uma nova arte de representar, em que a voz é de primacial importância, desbancando a exagerada mímica facial e dos gestos. Em tropel, actores come-çam a aprender a dialogar, submetem-se a tratam-entos especiais para a preservação, desenvolvimento e melhoria da voz. É também a época de muito charla-tão que apregoa remédios e tratamentos milagrosos para a voz, recebendo chorudos honorários de acto-res desorientados. A adaptação dum cinema para o outro tem efeitos surpreendentes, propícios para uns, trágicos para outros.

Actores que passaram mais ou menos desper-cebidos no silêncio, ascendem a posições de estrelas de primeira grandeza, no sonoro, como Gary Cooper, Clark Gable e John Wayne. Outros fazem a experiência do sonoro, mas retiram-se a tempo, com o prestígio intacto (Norma Talmadge e Gloria Swanson), não querendo forçar o sinal dos tempos. Outros aguentam-se com certa aura mas apercebem-se que o sonoro não é para eles e retiram-se, como Clara Bow, Renée Adorée e Laura Laplante. Outros nem sequer tentam o sonoro, desistindo da profissão, e desaparecem no olvido. Poucos são aqueles que se mantêm tão seguros como no silêncio. É o caso da Greta Garbo, a "Divina", que sustenta os seus perga-minhos intactos quando fala pela primeira vez em "Anna Christie" (1931). Outros há que, recebendo uma machadada fatal na popularidade, lutam tragi-camente para ganharem, em vão, a posição perdida. É o caso triste de John Gilbert.

Cena do "City Lights", de Charlie Chaplin, com Jean Harlow, um dos monstros sagrados do cinema dos finais dos anos 20, depois de ter participado em "Hall's Angels".

Desaparecido Valentino, John Gilbert era um dos maiores ídolos do cinema. Em 1928, o grande intérprete de "The Flesh and the Devil" e "The Big Parade" auferia mais dum milhão de dólares por ano, quantia na época considerada verdadeiramente astronómica. Era o "great lover" do silêncio e os seus amores reais ou fictícios com Greta Garbo apa-reciam relatados em todas as revistas cinéfilas. Encarnava a masculinidade quente e ousada. Na agonia do cinema mudo, não havia moça romântica que não guardasse, pelo menos, uma fotografia sua. O seu bigodinho era famoso, o seu perfil abrasador.

Não sabemos como recebeu a nova viragem do cinema. Mas pareceu tão seguro que a M-G-M programou-o para cinco "talkies", certa de que a sua popularidade se aguentaria como uma rocha. No en-tanto, ninguém se lembrou, nem mesmo o actor, que, se tinha todos os predicados físicos para arras-tar as multidões, faltava-lhe a qualidade principal para triunfar no sonoro — a voz. Ele tinha-a estri-dente e fina, uma voz fraca que não se coadunava nada com o traço enérgico do rosto nem com a si-lhueta viril que possuía.

A estreia do seu primeiro "talky", "His Glorious Night" teve foros de sensação. Gilbert ia falar. Os "fans" formaram bichas frenéticas, diante das bilheteiras, para terem, em primeira mão, o su-premo deleite de ouvirem o ídolo adorado. O que aconteceu na sala escura foi um fracasso devastador. A sua voz débil de tenor era uma "white voice", isto significando uma voz sem energia, meio efeminada. Produziu uma tremenda desilusão e os "fans" não lhe perdoaram. Escutaram-se risos de troça, em vez de suspiros e palpitações do coração.

Gilbert não acreditou que estava liquidado como actor do sonoro. No segundo filme e como sinal sintomático, aparece já em segundo lugar, abai-xo do nome de Wallace Beery, até então um actor sem grande relevo. Novo fracasso se segue, o que faz franzir a testa dos produtores da Metro. Ofere-cem-lhe então a rescisão do contrato, pagando-lhe generosamente o milhão prometido. Gilbert, arro-gante, recusa e insiste no cumprimento integral do contrato que era de quatro anos. A Metro curva-se, mas decide cruelmente a sua sorte, dando-lhe filmes baratos, de produção em massa, mas onde o risco era mínimo. O ídolo caído não se conforma, brama, in-sulta, implora, humilha-se. Consulta médicos e charlatães. Em vão. A sua voz não se modifica.

À esquerda: "Love Parade", um dos top do sonoro em Macau.
Em baixo: Maurice Chevalier e Jeanette MacDonald, no grande êxito das bilheteiras que foi o "Love Parade". "A Parada do Amor".

Desdenham-no agora, fecham-lhe a porta na cara, os mesmos que antes se jorravam a seus pés, a solicitar o favor e a honra de encabeçar um filme. Para esquecer, Gilbert encharca-se em alcool, é uma figura patética e isolada nos longos corredores das casas produtoras. Na feroz competição em que estas andam empenhadas, ninguém pode correr o risco de lhe dar um papel importante. Só Garbo lhe mantém uma fiel amizade. Quando a esta lhe oferecem o prestigioso papel de Rainha Cristina da Suécia no filme "Queen Christie", ela impõe que do elenco faça parte o actor. A sua voz trai-o de novo e o filme torna-se num total insucesso financeiro. Agora nem Garbo, com toda a sua glória e devoção, lhe pode valer. Gilbert é um homem destroçado, doente, con-tinuando sempre a lutar, mesmo desmoralizado. Em 1934, aceita um papel muito secundário no filme "The Captain Hates the Sea". Já não precisa de encarnar um homem romântico e amoroso, faz ape-nas o papel dum jornalista alcoólico (não necessita-va de representar, porque era já mesmo alcoólico) e dá uma interpretação brilhantíssima. Não sabemos que consequências poderia ter tido na sua carreira. Faleceu pouco depois e do facto triste nasceu a lenda de que morrera de desgosto.

Josephina Dums e Al Jolson em "The Singing Fool".

Voltando atrás, dizíamos, o ano de 1929 foi decisivo para o cinema. Ninguém suportava o mudo. Multidões afluíam aos cinematógrafos só pelo pra-zer de ouvir. Nem sequer discutiam a qualidade dos filmes. Nesse ano, só nos Estados Unidos havia cin-co mil casas de espectáculo dotadas com o novo sistema.

Não vamos registar todos os primeiros "talkies", mas referimo-nos a alguns, cujo impacto no espectador ficou inesquecível, não porque fossem filmes antológicos da arte do cinema, mas porque eram falados:

"Sunny Side Up" (Janet Gaynor e Charles Farrell), "Rio Rita" (John Boles e Baby Daniels) "Desert Song" (John Boles, Carlotta King), "Love Parade" (Maurice Chevalier e Jeannette MacDonald), "The Cockeyed World" (Edmund Lowe, Vitor Maclegan e Lupe Velez), "The Vagabond Lover" (Rudy Valee e Sue Ann Blane).

O sonoro permitiu a implantação e expansão, pela primeira vez, do fundo musical (sound track) e, consequentemente, do filme musical, sobretudo o de revista. Este tipo de filme obteve, nos primeiros tempos, uma popularidade ímpar.

O público delirava com a visão de feéricos cenários, onde se movimentavam actores e massas de coristas e bailarinos, cantando, dançando e sapateando com precisão matemática, aos acordes trepidantes do jazz.

Em 1929, apossou-se dos espectadores aquilo que seria conhecido por "music-crazy". Filme que se exibisse, no dia seguinte as canções nele ouvidas transformavam-se em "hits", trauteadas na boca de toda a gente. Quem poderá esquecer a impressão causada por Janet Gaynor cantando "If I have a talking pictures of you" em "Sunny Side-Up"? Ou Dixie Lee, melodiando "Big City Blues", em "Fox Follies of 1929"? Ou Rudy Valee, preludiando apai-xonadamente "If you're the only girl", em "The Vagabond Lover"? E a sensação produzida pela can-ção "Singing in the Rain", do compositor Nacio Herb Brown, rapsodiada, pela primeira vez, em "The Hollywood Review of 1929", nas vozes con-juntas das Brox Sisters, Buster Keaton, Marin Davies, Joan Crawford e George K. Arthur?

Apontemos os melhores filmes musicais da época e que nunca se apagaram da memória dos contemporâneos: "Broadway Melody of 1929", que alcançaria o "Gold Diggers of 1929", "Fox Follies of 1929", "The Hollywood Review of 1929" e "Show of Shows". No ano seguinte, em 1930, surge o inolvidável "King of the Jazz" de Paul Whiteman, com centenas de actores e belos quadros musicais, e ainda "Happy Days", no qual Dixie Lee teve um número que a consagrou, denominado "Crazy Feet".

Como respondeu Macau à nova viragem do cinema?

Nos princípios de 1930, devido à maciça pro-paganda nas revistas cinematográficas, que eram li-das e relidas por imensos cinéfilos, pairava uma cu-riosidade enorme em volta do sonoro. Os jornais de Hong Kong não cessavam de elogiar a nova técnica em rotundos artigos. Não é, pois, de admirar que o filho da terra acompanhasse com absorvente interes-se a construção de cinemas na cidade vizinha que iam explorar o novo prodígio.

Escasseia-nos informação certa a respeito do primeiro filme sonoro inaugurado em Hong Kong. Consultadas várias fontes, todas praticamente são unânimes em afirmar que o primeiro filme foi "The Singing Fool" de Al Jolson, estreado no então cine-ma novíssimo que era o "Queen's".

Para essa estreia deslocou-se muito boa gente de Macau, embarcando no "Sui Tai" ou no "Sui An", os dois "ferries" de carreira, suportando uma longa travessia de mais de quatro horas.

O êxito de "The Singing Fool" foi, como aliás em todo o resto do mundo, total. Houve quem o visse, em sessões seguidas, com a mesma emoção e lágrimas renovadas. No "Queen's" chorou-se sem peias, aberta-mente, ao ecoar da voz anasalada de Jolson, toda re-passada de amargura, cantando "Sonny Boy", para o filho moribundo (Davie Lee). Agora, a tragédia não era comunicada ao espectador através de gestos e de mímica facial. Era transmitida pelo diálogo, pelas fra-ses entrecortadas, pelo tom dolorido de Jolson que amarfanhava o coração. Para o espectador, habituado ao silêncio, o choque teria de ser inevitavelmente bru-tal, como se ele próprio fosse transportado da cadeira do cinema para o écran, integrando-se no próprio dra-ma ali desenrolado.

As gerações que nasceram já dentro da nova técnica cinematográfica, não podem medir o impac-to desse momento único vivido na sala escura do "Queen's", nem avaliar o que foi o primeiro embate do sonoro na sensibilidade dos contemporâneos.

O êxito do sonoro foi total. Em Macau, tor-nou-se a conversa do dia nos clubes, nas reuniões familiares, nas ruas. "Já foste a Hong Kong ver talkies?" era a pergunta que se escutava com fre-quência. Nos fins de semana, dezenas de pessoas deslocavam-se para a colónia britânica, com o único fito cinematográfico. No rasto do "Queen's", inau-guraram-se outras casas de cinema falado: o "Majestic", o "Central" e, mais tarde, o "King's". O fascínio era tão absorvente que se exagerava.

Conhecemos dois casais que, partindo de ma-nhã, às oito e meia, no moroso "Cheang Chao", aportaram a Hong Kong cerca das 12.30. Almoça-ram no velho Jimmy's Kitchen, tão diferente do luxo de hoje, e às duas e meia estavam no "Queen's". Depois deslocaram-se a Kowloon, para a sessão das cinco e meia no "Majestic". Acabado o filme, sairam à pressa em direcção ao Star Ferry, atravessa-ram o porto e chegaram ainda a tempo para o filme que se desbobinava no "Central", perdendo apenas os documentários. Às nove e tal, terminado o filme, dirigiram-se ao "King's" para a última sessão, sem pensaram no jantar. Quatro filmes diferentes num só dia! E se as senhoras não pensaram em fazer com-pras é porque de facto, na época, o sonoro devia imprimir uma sensação esmagadora!

O caso apontado não era esporádico, pratica-vam-no imensas pessoas de Hong Kong e Macau, na-quele bom e despreocupado 1930. O sonoro estava na ordem do dia. Para a sua propaganda, havia o apoio incondicional da imprensa que não regateava ditirambos. O "Jornal de Macau" dedicou duas colu-nas elogiosas para a estreia, respectivamente, de "Sunny Side-Up" e "Rio Rita", em Hong Kong, entusiasman-do os seus leitores a uma viagem à cidade vizinha.

O primeiro "talky" que vimos, foi também no "Queen's". Éramos muito garoto, andávamos na 2ª classe de instrução primária. O nosso pai aproveitou dois dias de férias para ir a Hong Kong com a famí-lia, mas o seu fito principal era admirar aquela "ma-ravilha" de que toda a gente falava.

O filme chamava-se "Marianne" e era com Marion Davis. Uma fita cómica, embora de guerra. O argumento girava em volta dos amores dum sol-dado americano com uma moça de campo francesa. O filme não seria grande coisa — não se encontra em nenhuma antologia —, era um dos muitos de produção em massa, destinado a um público ávido que não era muito exigente, então. Mas, por ser o baptismo do sonoro, nunca mais o esquecemos. Até hoje nos lembramos da canção "Oh, Marianne", sen-timentalmente trinada pelo soldado americano. Ain- da soam nos ouvidos as palavras do nosso pai, ditas já na rua, a caminho do hotel: "Fantástico! Podia-se ouvir e perceber tudo!". E esta sensação de deslum-bramento prolongou-se pela noite fora.

Quando regressámos a Macau, o filme mudo perdera todo o interesse. Ingratamente, desdenhámo-lo, rindo da música, dos actores e impacientando-nos com as legendas, que interrompiam as sequênci-as. O "Vitória", o "President" e o "Long Tin Mon Tói", que reabrira em má hora, entraram em crise, perdendo dinheiro.

O segundo filme sonoro que apreciámos tam-bém em Hong Kong e no "Queen's", foi "All Quiet on the Western Front" (A Oeste nada de novo), cuja estreia mereceu honras de "gala night". Foi, sem dú-vida, o melhor filme de guerra de todos os tempos, o clássico dos clássicos, seguindo a linha anti-belicista de "The Big Parade" e "What Price Glory". Tinha, além do mais, sobre estes dois, a vantagem terrificante do som.

A Grande Guerra achava-se, então, à distância de 12 anos e muitos dos espectadores tinham combati-do nas trincheiras e sobrevivido milagrosamente à insana hecatombe. Pode-se calcular o que seria para esta gente a reconstituição mais ou menos real e fiel das batalhas. Juntamente com uma magnífica fotogra-fia, havia o som do deflagrar dos obuses, do rouquejar sinistro das metralhadoras, dos gritos selvagens dos soldados, trucidando-se em cargas de baioneta. O es-pectador não via apenas, mas ouvia, especado no seu lugar. E a acrescentar a todo esse horror exposto, havia o estertor dos moribundos, os gemidos dos feridos na "terra de ninguém" e nos hospitais de sangue. O som trazia para junto do espectador toda a realidade e vivência da guerra. Houve quem saísse, a meio do filme, não suportando crises de nervos. Atrás de nós — e a recordação é tão viva ainda que nos lembramos da madeixa dos cabelos caída para a frente — estava um inglês que, a certa altura, se pusera a vomitar, naturalmente recordando um momento trágico vivido numa trincheira, algures na Flandres ou no Somme. Quanto a nós, o filme deixou-nos por muito tempo uma marca de pesadelo.

Volvendo ao nosso tema, era evidente que a rejeição do filme mudo por parte do público, alarmou os empresários de Macau. O "President" e o "Long Tin Mon Tói" fecharam as portas, ficando sozinho o "Vitória", a debater-se no seguinte dilema: adaptar-se ao novo sistema ou seguir o caminho dos outros.

Ao mesmo tempo que isto se dava, forma-se um grupo empreendedor de que fazia parte o nosso amigo Alfredo Maria da Luz, com o fim de construir um edifício unicamente destinado ao filme sonoro, isto talvez na segunda parte do ano de 1930. É o futuro "Teatro Capitol".

Em 24 de Fevereiro de 1931, é publicado um pequeno artigo no "Jornal de Macau" assinado por T. B. (Artur Tancredo Borges) que revela, a propósi-to do "Capitol", o regozijo pelo próximo apareci-mento do sonoro em Macau e sob o título Empreen-dimento arrojado:

"Nesta terra, em que as iniciativas já de si tão raras, nem sempre encontram apoio das entidades de quem depende muitas vezes a sua realização, é para louvar o empreendimento que classificamos de arro-jado dum grupo de capitalistas, entre eles, o nosso amigo Sr. Alfredo Maria da Luz, de construir aqui um teatro para exibição de filmes sonoros.

"O edifício, cuja construção está em vias de terminar, contém, além da plateia que é assaz vasta, um andar superior, bastante amplo, com frisas e ca-marotes, dando assento a cerca de 800 pessoas.

"O sistema reprodutor de som parece ser da casa Western Electric Company que foi a primeira a produzir esses aparelhos, os quais estão hoje monta-dos em mais de 7 500 teatros do mundo, sendo 5 000 teatros na América, 1 000 na Grã-Bretanha, 300 no Canadá, 300 na Austrália, 200 na Europa e 100 na Nova Zelândia.

"Na China mesmo, há 11 cinemas sonoros em Shanghai, 2 em Cantão, 1 em Amoy, 1 em Tientsin e 1 em Peiping.

"Os 3 teatros existentes em Hong Kong, to-dos possuem aparelhos Western, tendo o novo teatro King's contratado também com essa casa, a monta-gem do seu sistema sonoro.

"É, pois, motivo de regozijo para o público de Macau saber que vamos ter em breve um teatro, onde se poderão ver e ouvir os melhores artistas que as Companhias cinematográficas têm conseguido contra-tar com os studios, permitindo ao mundo inteiro apre-ciar os dotes admiráveis da sua voz, ao mesmo tempo que vê desenrolar ante os seus olhos as cenas mais luxuosas que a imaginação pode conceber.

"O cinema é uma bela escola, mas convém escolher os filmes, porque em Hollywood há uma nova noção de moral, que será conveniente que não ultrapasse as suas raias...

"Os nossos parabéns, pois, à empresa que conseguiu trazer para este cantinho esta nota de pro-gresso, proporcionando aos seus habitantes esses momentos de prazer que uma boa fita sempre pode dar.

"Augurando o melhor êxito ao Teatro CAPITOL, fazemos votos para que a sua inaugura-ção se realize o mais rapidamente possível."

No entanto, a empresa do "Vitória" não fica de braços cruzados, numa passividade de Morfeu. Compreende a gerência que, se quiser sobreviver, terá que se adaptar ao novo gosto do público. Inici-am-se à pressa obras no velho cinema, adquire-se a necessária aparelhagem sonora. Estabelece-se uma autêntica corrida contra o tempo entre as duas casas de espectáculo, o "Capitol", cheirando a tinta nova, e o "Vitória", a ataviar-se com arremedos de modernidade que não iludiam ninguém. Por exem-plo, a máquina sonora deste último era de segunda mão e nunca foi perfeita, mas, de qualquer maneira, muito melhor que a do actual "Império".

O "Capitol" estava quase concluído quando o "Vitória" anuncia as primeiras experiências. Come-çaram a ser à porta fechada, mas nem por isso a população se mostrava indiferente. A curiosidade era insaciável e parava-se nas arcadas da Avenida Almeida Ribeiro para se escutar o som que vinha de dentro do cinema. Havia quem colasse o ouvido nas portas, comentando:

— "Já há sonoro em Macau!"

Cinematógrafo "Vitoria", anos 30.

O "Jornal de Macau", de 17 de Março de 1931, escreve com relutância o seguinte noticiário, revelando a sua flagrante simpatia pelo "Capitol":

"Dentro de poucos dias, começarão a exibir--se no teatro Vitória as fitas sonoras, para o que se está procedendo activamente naquele teatro às ne-cessárias modificações.

"A adaptação feita para a instalação do apa-relho, ocupando uma boa área do vestíbulo, dá a este um desagradável aspecto.

"Não sabemos se a casa, com as modifica-ções, virá a ter, para o efeito, boas condições acústi-cas, mas o que é certo é que, quanto ao aspecto interior, a asseio e conforto, se não for devidamente beneficiado, ainda fica muito longe de ser um bom teatro, sem que todavia seja coisa para desprezar.

"E quem dele não gostar, terá brevemente outro, o Capitol, que está a concluir-se e que, ex-pressamente construído para a fita sonora, com um belo aspecto e o conforto do seu congénere de Hong Kong, pouco deixará a de-sejar (ao Vitória).

"Dizem-nos que a inauguração do Capitol será num dos primeiros dias de Abril".

Na corrida, é ainda o "Vitória", a primeira casa de espectáculo, edificada para o cinema mudo, que ganha. Numa local de 28 de Março de 1931, noticia o "Jornal de Macau":

"Efectuaram-se on-tem e anteontem as experi-ências do novo aparelho fa-lante no Teatro Vitória.

"Hoje será inaugura-do o novo fono-cinema, exibindo uma fita intitu-lada Follies of 1929".

As experiências, a que a local se refere, foram públicas e por convite. Re-cordamos vagamente ter-mos assistido a uma dessas experiências. O verdadeiro nome do filme era "Fox Movietone Follies of 1929". Não havia praticamente história. Era consti-tuído por quadros musicais, sequências de bailado e sapateado, e orquestras de jazz, o furor da época. Um dos números mais notáveis foi "The Breakaway", cantado e sapateado por David Rollins e Sue Carol.

Em 31 de Março, o mesmo jornal escreve se-camente:

"FONO-CINEMA VITÓRIA"

"Como tinhamos noticiado, realizou-se no sá-bado findo (28), com muita concorrência, a inaugu-ração do cinema falante, no teatro Vitória, exibindo a fita intitulada Follies of 1929.

"A impressão foi boa, pois, afora umas defici-ências que só devem ser atribuídas a defeitos de im-pressão do pitéu, o conjunto agradou, notando-se mesmo muitas vozes bem reguladas."

Anúncio do "Teatro Capitol" (1932).

No entanto, não se esquivando à clara simpatia pelo "Capitol", na mesma data e numa coluna ao lado, diz o citado jornal:

"Prossegue com muita rapidez a construção do novo teatro Capitol, úni-co que rivaliza com os me-lhores existentes em Hong Kong.

"Os trabalhos de de-coração do interior do edifí-cio já estão concluídos, ten-do sido retirados os andai-mes.

"As cadeiras são to-das construídas especial-mente, almofadadas e espa-çosas e com segurança, ten-do sido o material de obra-prima encomendado de Shanghai.

"As instalações eléc-tricas estão sendo monta-das, bem como o aparelho falante, devendo funcionar na primeira quinzena do próximo mês de Abril.

"As máquinas são do fabrico da conhecida e afamada casa Western Electric Co. do E. U. da Amé-rica, e estão sendo montadas sob a direcção do dis-tinto engenheiro daquela companhia, Sr. Coldman.

"Para a construção deste teatro, o Sr. Alfredo da Luz e os seus sócios gastaram para cima de $80000,00, dotando assim Macau com um cinema digno de maiores elogios, e que pelo seu conforto e excelentes fitas — algumas em português, segundo nos dizem — que ali vão ser exibidas, bem merecerá do público.

"A primeira fita que vai ser exibida naquele cinema será Love Parade, que alcançou reputação mundial".

A título de curiosidade diremos que o segun-do filme sonoro exibido pelo "Vitória" foi "Black Watch", com Myrna Loy e Victor MacLaglen, filme sem grande história, mas avidamente recebido pelo público, unicamente por ser sonoro.

Às 14,30 do dia 13 de Abril de 1931, inaugu-rou-se o "Capitol", com a presença do Governador, Comandante Joaquim Anselmo da Matta e Oliveira, que se fez acompanhar do seu ajudante de campo, capitão Afonso May e do director dos Serviços de Administração Civil, Dr. João Pereira de Magalhães. Os outros convidados de honra espalharam-se pela galeria, enquanto o público em geral enchia a plateia.

À entrada do Governador na plateia, a fim de subir ao palco, o público ergueu-se por deferência, enquanto a Banda Municipal, sob a regência de Cons-tâncio José da Silva, tocou o Hino da Maria da Fonte, o hino dos governadores, pelo menos em Macau.

Relata o "Jornal de Macau", do dia 21 de Abril:

"S. Exa., acompanhado pelos dignos Directo-res da empresa, subiu ao palco e abriu o pano de bôca, e, em seguida, dirigiu-se à casa de máquinas e à sala da Direcção, onde por esta lhe foi oferecida uma taça de champanhe".

Vieram, depois, inevitavelmente, os discur-sos. Falou primeiramente Alfredo Maria da Luz, de quem extraímos as seguintes palavras:

"Já há muito, Sr. Governador, que em Macau se fazia sentir a falta dum cinema moderno. Não havia, e isto seja dito sem ofensa para ninguém, um edifício digno deste nome.

"Não data de há pouco a ideia de dotar Macau com este melhoramento. Há nada menos que três anos que a ideia foi lançada e se não foi posta em prática há muito mais tempo foi porque dificuldades de ordem vária a isso se opuseram. Hoje vemos finalmente reali-zado o nosso desejo e não é sem um legítimo orgulho que constatamos o facto. Não queremos pretender que este teatro não tenha as suas deficiências, mas numa terra onde tantas tentativas falham, ele representa um grande esforço da Direcção.

"Nesta ordem de ideias, ela espera que o pú-blico, compreendendo o alcance desta obra, a acom-panhe com a sua cooperação, e ousa também esperar de V. Exa., Sr. Governador, a sua valiosa protecção."

Falou, em seguida, um dos sócios chineses, Vong U Chio e, depois, o Governador que, rematan-do, "agradeceu a gentileza do convite, fazendo votos pela prosperidade do melhoramento com que Macau ficava dotado, melhoramento que a sua boa vontade muito prazer teria em auxiliar, como todos os outros dignos desse auxilio, tanto mais por ver que nele estavam empenhados tantos capitais portugueses".

Depois da taça de champanhe e de se ouvir um pequeno concerto da Banda Municipal, estreou-se o filme, ficando toda a assistência extasiada com o som. A aparelhagem sonora do "Capitol" era impecável. Quem não se lembrará em Macau do "Love Parade" (A Parada de Amor) de Ernst Lubitsh? Já trazia uma fama retumbante de Hong Kong e do mundo inteiro e houve quem o visse sessões segui-das. Dum instante para o outro, Maurice Chevalier e Jeannette MacDonald tornam-se actores popula-ríssimos e de renome internacional. Todo o filme dispunha bem, as senhoras encantadas com o "aplomb" e o sorriso brejeiro e irónico de Chevalier, os cavalheiros maravilhados com a beleza e a voz de MacDonald. As canções do filme passaram, logo no dia seguinte, a ser trauteadas por toda a gente.
Em cima à direita: Uma das impressionantes cenas dramáticas de "All Quiet in Westem Front", inspirado no livro de Erich Maria Remarque.
À esquerda em baixo: Joseph Schilddkraut e Laura la Plante numa cena de "Show Boat" de Carl Laemmle, um dos primeiros sonoros que impressionaram Macau.

Desse ano inaugural do cinema sonoro em Macau, relembramos, sem preocupação de ordem cronológica, alguns filmes inesquecíveis do "Vitó-ria", um ou outro dos quais já citamos:

Página seguinte: "The Dawn Patrol" (1930) um dos filmes sobre a I Guerra que emocionou Macau.

"Four devils" (Charles Morton, Janet Gaynor, Nancy Drexel e Barry Norton); "Sunny Side-Up" (Charles Farrel e Janet Gaynor); "The Big House" (Wallace Neery, Robert Montgomery e Chester Morris); "The Singing Fool" (Al Jolson e Davie Lee); "The Trial of Mary Dugan" (Raymond Hackett e Norma Shearer); "Madame X" (Ruth Chatterton e Raymond Hackett); "Rio Rita" (John Boles e Bebe Daniels); "The Vagabond King" (Dennis King e Jeannette MacDonald); "In Gay Ma-drid" (Ramon Novarro e Dorothy Jordan).

O "Capitol" não ficava atrás do seu rival. Nesse ano ímpar e singular de 1931, exibiram-se os seguintes filmes que se consagraram entre nós, tam-bém sem preocupação de ordem cronológica:

"The King of Jazz" (Paul Whiteman); "In Old Arizona" (Warner Baxter e Dorothy Burgess); "The Desert Song" (John Boles e Carlotta King); "Monte Carlo" (Jack Buchanan e Jeannette Mac-Donald); "Morroco" (Marlene Dietrich e Gary Cooper); "Show Boat" (Joseph Schilkraut e Laura Laplante); "Mr. Lemon of Oran-ge" (El Brendel e Fifi Dorsey).

O público, na infânda do sonoro, como é natural e compre-ensível, não discutia a qualidade dos filmes. O que queria, era extasiar-se com o prodígio do som que não se fartava de apreciar.

Além dos filmes aponta-dos, queremos indicar ainda os de guerra que exerceram um efeito electrizante no espectador.

O primeiro deles, certamente dos melhores de toda a história do sonoro, foi o "All Quiet in the Western Front" (Nada de Novo na Frente Ociden-tal), já referido. A aparelhagem sonora do "Capitol", então de primeira qualidade, como nunca mais hou-ve em Macau, traduziu todo o horror da guerra e o filme teve para muita gente um efeito traumatizante. A película atraíu um imenso caudal de espectadores e as lotações esgotaram-se.

O programa do "Capitol", publicado no "Jornal de Macau", de 4 de Maio de 1931, dizia o seguinte:

"É com grande prazer que anunciamos ao pú-blico de Macau a exibição deste soberbo filme, ins-pirado no famoso livro de Erich (Marie) Remarque que é o melhor documento escrito sobre a guerra e a novela mais popular dos últimos tempos.

"Este livro já foi lido por mais de dez milhões de pessoas e o filme inspirado nele apreciado com elo-giosas referências, por centenas de milhões. Não há documento mais eloquente, acerca do que foi essa car-nificina humana em que milhões de vidas se sacrifica-ram. É a guerra em toda a sua crueza e barbaridade. É a história, não duma nação, mas de toda a raça humana.

"Este filme empolgante tem cenas maravilho-sas, cenas dum realismo impressionante, cenas que jamais se esquecem.

Charles Rogers e Clara Bow em "Wing" (1927).

"Criados entre as brutalidades da luta e obri-gados a destruir o que há de mais atraente nesta vida — a juventude —, estes (7) inditosos jovens sucumbem no campo de honra uns após outros. Paul é o único sobrevi-vente e vê-se sozinho. É o úl-timo duma geração morta para o mundo e para a vida. Por fim chega também a sua vez e no dia em que cai no campo do dever, o boletim do dia, como que escarnecendo e apoucando o sacrifício de mais uma vida, reza apenas: NADA DE NOVO NA FRENTE OCIDENTAL".

Tamanho libelo contra a guerra não produziu nenhum efeito nas potências dominadas pela sede de hegemonia. Em Maio de 1931, quando no Extremo-Oriente o filme lançava a sua mensagem anti-bélica, as nuvens acastalevam-se na Manchúria, com o Ja-pão a preparar o seu assalto à China.

Nesta altura surgiu, com grande impacto, um novo tipo de filme bélico. O da guerra aérea. O cine-ma silencioso já o tentara, mas sem muita convic-ção, até que apresentou uma pequena obra-prima, "Wing", que recebeu o primeiro Óscar da Academia (1929). Mas o filme foi projectado com a descoberta do sonoro e a sua forçada adaptação ao som não deu resultado, pois havia partes em que os actores fala-vam e não se ouvia o diálogo. Este filme, anunciado no "Capitol", desde a sua inauguração, nunca veio a Macau. Ali se via um Gary Cooper, muito jovem, ainda sem grande nome.

A aviação suscitava na época uma intensa curi-osidade, pois viajar no ar, para aqueles dias, era uma coisa fora do normal, um acto temerário com sabor duma insólita aventura. Na Taipa, havia o hangar da aviação naval com um hidroplano que de vez em quando erguia vôo, pasmando-se as pessoas para o ar. Ainda nos lembramos, quando no meio da petizada percorríamos as arcadas do Largo do Senado, a cami-nho da escola primária que ficava no alto da Rua do Gamboa, de nos termos encontrado, frente a frente, com o Comandante José Cabral. Um dos nossos com-panheiros ciciou com reverência "Ele é aviador!". To-dos nós fitámos o oficial com respeito e admiração, facto de que o homenageado nunca se apercebeu.

Os ecos do vôo Gago Coutinho e Sacadura Cabral e, depois, de Sarmento de Beires e seus companheiros ainda esta-vam muito vivos na mente da gente de Macau, como feitos de verdadeiros titãs. Ao lado destes nomes nacionais, havia ainda a travessia do Atlântico Norte, em vôo solitário, de Charles Lind-bergh, em 1926, que espantou a imaginação do mundo.

A transformação da avia-ção exclusivamente militar, para fins civis, isto é para transporte de carga e de passagei-ros, foi encarada com estranheza e como uma coisa fora de série. Há quem ainda se recorde dos panegíricos à ciência alemã, quando o famoso dirigí-vel Graf Zeppelin começou a fazer viagens com passa-geiros, da Alemanha aos Estados Unidos. E o apareci-mento do célebre DOX, também alemão, um hidroavião bojudo de passageiros que levava uma lota-ção nunca ouvida e imaginada de trinta pessoas! Quando o Príncipe de Gales, mais tarde Eduardo VIII e Duque de Windsor, fez uma pequena viagem nesse hidroavião, o acontecimento teve foros de sensação, como se pode ver num velho número do "Daily Mirror" da época.

Por isso, tudo que dissesse respeito à aviação possuía um sabor muito especial. Daí que Macau aguardasse com muita expectativa a exibição de "Wings", que nunca veio. Teve, no entanto, compen-sação com a estreia de dois imortais filmes da guerra aérea, a saber, "Hell's Angels (Os Anjos do Inferno) e "Dawn Patrol" (A Patrulha da Madrugada).

"Hell's Angels", por ser o primeiro da série, foi um êxito.

Cena do filme "The Dawn Patrol", "A Patrulha da Madrugada", cujos "dog-fights" empolgaram Macau.

Encheu as medidas do grande público, seduzido pelos combates aéreos, os "dog-fights", pelos roncos dos aviões descolando-se para a pugna letal e pelo enredo sugestivo. Havia ainda a presença electrizante e sensual de Jean Harlow que aparece pela primeira vez na tela, com o loiro platinado dos seus cabelos, os seus vestidos ousados que faziam adivinhar um corpo coleante e escultural, os seus lábios vermelhos e car-nudos e os seus olhos de sereia perigosa. Jean Harlow fazia um papel antipático de mulher má e traiçoeira, levando quase à desgraça o heróico galã Ben Lyon. A plateia feminina protestava contra essa criatura empe-dernida, mas o espectador masculino não reagia da mesma forma, sentindo o sangue a ferver nas veias, de cada vez que ela aparecia no quadrado mágico do écran. Com todos os ingredientes românticos, com ce-nas de guerra, revelando uma técnica notabilíssima para a época, "Hell's Angels" tinha que marcar em Macau, como aliás marcou em todo o mundo, sendo a pedra de toque na carreira brilhante, mas infelizmente me-teórica, de Harlow, permaturamente falecida em 1936.

"Dawn Patrol", como filme de guerra, foi su-perior a "Hell"s Angels". Possuía uma técnica me-lhor, os "dog-fights" eram mais demorados e mais realistas e não havia a presença de Harlow para dis-trair. O filme foi uma apologia do aviador de guer-ra, prestando homenagem ao próprio inimigo, que não se apresenta sádico, rilhando os dentes de ódio, mas um homem que tem de cumprir o seu dever. É a exaltação do heroísmo, do espírito de sacrifício, da coragem e abnegação a toda a prova, por baixo de condições e exigências sobrehumanas, do cava-lheirismo romântico dos contendores que lutavam, uns com os outros, segundo regras de jogo mortal que recordavam os torneios da Idade Média.

O filme não estava longe da verdade. De fac-to se, em terra e mar, as forças beligerantes se mata-vam e trucidavam, utilizando os mais ferozes meios de destruição, como, por exemplo, o lançamento de gases asfixiantes, na guerra aérea as coisas passa-vam-se de maneira diferente. Os inimigos respeita-vam-se como se houvesse um tácito e peculiar "gentlemen's agreement". Tanto assim é que, quan-do o ás alemão, Barão von Richtophen, com oitenta vitórias, foi abatido sobre as linhas australianas, ele foi enterrado, com todas as honras militares, pelos ingleses e australianos. O mesmo aconteceu com um dos mais famosos ases ingleses (40 vitórias), cujo nome infelizmente nos escapa, que recebeu as mesmas honras póstumas pelos alemães. E não só isto, como também um avião alemão sobrevoou a base inglesa, atirando uma grinalda e devolvendo da mesma forma as botas do falecido aviador, como supremo preito de homenagem ao inimigo. Quão diferente foi a mentalidade dos contendores na guerra de 1939 - 45! O realizador de "Dawn Patrol" aproveitou-se deste mesmo facto, para fecho comovente do filme.

O actor principal, Richard Barthelmess, um veterano do silêncio, teve neste filme a sua coroa de glória. Pouco depois, abandonaria para sempre o ci-nema. Antes da Segunda Guerra Mundial, houve uma segunda versão, esta com Errol Flynn. Apesar de recursos superiores e técnica mais refinada, na reconstituição dos "raids" e dos "dog-fights", o fil-me não teve o impacto da primeira, visto que o pú-blico há muito se habituara à aviação e se familiari-zara com fitas deste tipo.

No entanto, estes e outros filmes que se segui-ram, incutiram em muitos rapazes de Macau o sonho da aviação. Uns seguiram esta carreira, outros vieram a seu tempo a desistir. Entre os rapazes, podemos citar os irmãos Rosa (Gentil e Edmundo), Humberto Borges, Amílcar Ângelo, Artur A. Jorge, Frederico Nolasco da Silva e Armando Rodrigues da Silva.

Abrimos agora um interregno para nos refe-rirmos especialmente ao ano de 1931, tão dramático em acontecimentos e tão importante para a história política do Extremo-Oriente.

O ano começou cheio de promessas dum fu-turo auspicioso para Macau, no seguimento dum es-tado de euforia que reinava desde 1927. A inaugura-ção do cabo submarino, a instalação dos telefones automáticos, a construção do edifício dos Correios e Telégrafos e outras realizações foram encaradas como sinais de modernização. O sonoro aparece também como outro marco de progresso que enchia de orgulho os macaenses de então. Dois hotéis re-centemente inaugurados — o Hotel Riviera e o Ho-tel Presidente — não desprestigiavam a terra, sobre-tudo o primeiro, onde era elegante tomar o chá das cinco. Vivendas graciosas erguiam-se em lugares até então considerados ermos e fora-de portas, como a Avenida da República e a Estrada de S. Francisco.

A colónia vizinha de Hong Kong também en-trara numa prosperidade surpreendente, especulan-do-se ferozmente na Bolsa, em jogo desenfreado. A Ice House Street, onde ainda se acha o primeiro Stock Exchange, era a Wall Street destas paragens. O nome tornou-se familiar para a gente de Macau que também jogava nas acções, forte e feio. Os anos de 1971 e 1972, de grande alta das acções em Hong Kong, mais não foram que a repetição dos anos de 1930 e 31, somente em escala e volume de capitais muito maiores.

É espantoso que ninguém, ou muito poucos, meditassem que o mundo estava em crise económica desde 1929. A pobreza que invadira a América, a Europa e várias partes do mundo, não parecia ter o menor efeito nesta área geográfica. A palavra "De-pressão", que deixou uma amarga lembrança, sobre-tudo nos Estados Unidos, nem sequer era aqui pro-nunciada ou conhecida. Acreditava-se, numa incons-ciência pasmosa, que os anos de prosperidade conti-nuariam inabaláveis. Tanto assim é que capitais vul- tosos tinham sido empregados para a construção do Hipódromo nos terrenos de Má-Kao-Seac e do Canídromo nos aterros de Mong-Há, para as bandas da Ilha Verde, com ambas as concessionárias à com-pita para ver quem acabaria primeiro.

No entanto, para além das fronteiras dos dois citados territórios, as nuvens acastelavam-se a des-mentir a confiança no futuro. As eternas guerras ci-vis dentro da China, as lutas dos "condottieri", atin-giam uma fase muito aguda, com a decisão, logo nos primeiros meses de 1931, do General Chang Chái Tóng, de Cantão, em declarar o Sul independente do resto da China, quebrando a unidade nacional, numa hora supinamente difícil para Nan-quim, então capital do Governo Cen-tral. Uma potência não escondia desíg-nios cada vez mais minazes sobre a in-tegridade do país — o Japão. A amea-ça duma guerra entre as duas nações era iminente, pois as ambições do País do Sol Nascente concentravam-se na Manchúria, que aquele queria absorver para o seu domínio exclusivo.

Quem folhear os jornais da épo-ca, fica perturbado com a calma e a indi-ferença reinantes em Macau, perante tais acontecimentos. Os periódicos entreti-nham-se mais em quesflias de campanário do que com a situação internacional. Nem uma nota de alarme ou de inquietação.

No meio do optimismo geral que reinava em Macau, nos primeiros meses de 1931, deu-se um estranho acontecimento que muitos interpretaram como sinal de que a prosperidade iria encontrar o seu termo.

Este acontecimento foi o inesperado furacão de 19 de Abril que desabou sobre a cidade e cercani-as, precisamente no dia seguinte à inauguração do "Capitol" e quando no "Vitória" se estreava o "Sunny Side Up".

Os tufões são calamidades da natureza a que estamos habituados, mal desponta o Verão. Mas nunca eles surgem inopinadamente. Temos tempo de nos preparar, porque, sem mesmo consultarmos os boletins meteorológicos ou barómetro, a nossa expe-riência leva-nos a prever a sua aproximação, pelo intenso calor nas vésperas da sua vinda, pela obser-vação do céu e do tempo, pelo aspecto do mar e pela recolha dos juncos ao Porto Interior. Em 1931, se não tínhamos os satélites nem os boletins emitidos de quarto em quarto de hora na rádio e na televisão, sabíamos pelos observatórios de Macau, de Hong Kong e da Ilha das Pratas, todo o movimento dos temporais que entravam no Mar da China.

Também estamos habituados a ver levantar--se, de repente, um pé-de-vento que agita o mar em ondas alterosas, trazendo grossas rajadas do leste que tornam as viagens entre este Território e Hong Kong e arredores numa provação mais que incomodativa. São os tais "seack-vús" que causam avarias aos juncos e outras embarcações de pesca, mas que raramente resultam em tragédias.

Estragos do terrível tufão de 1931, na Praia Grande.

Jamais, porém, houve memória dum furação que caísse sobre a cidade desprevenida e mar à sua volta, com a fúria destruidora daquele.

Não nos lembramos se o dia nasceu molhado. O que se sabe é que nuvens muito negras se acumu-laram na parte da tarde, começando a cair sobre a nossa terra uma chuva torrencial por volta das 19,00 horas. Esta chuva foi engrossando, acompanhada duma trovoada absolutamente anormal. As faíscas rasgavam o céu e os relâmpagos mostravam o negrume das nuvens e o véu espesso de água que nos fustigava. Para aumentar a desgraça, surgiu o vento com rajadas fortíssimas dum autêntico tufão e a superfície do mar entumesceu em vagas alterosas.

Durante algumas horas, a cidade morreu, num transe aflitivo. Árvores foram arrancadas, embarca-ções afundadas com algumas mortes e muitos feri-dos, a canhoneira "Pátria" e a lancha-canhoneira "Macau" sofreram avarias, algumas casas desaba-ram e, se a memória e as informações não nos fa-lham, aqui e ali declararam-se incêndios.

Nós fomos apanhados pela tragédia quando nos encontrávamos, com os pais e irmãos, no "Vitó-ria". O filme, esperado com grande espectativa, fi-cou interrompido logo no início. A trovoada era tão grande que o público encheu-se de pânico, começan-do a abandonar a sala de espectáculos. Apenas nos lembramos de ver a Janet Gaynor a cantar os primei-ros acordes do "Sunny Side Up" e logo abriram-se as luzes. No átrio, apinhado de espectadores aterrori-zados, víamos o fluir da torrente que vinha da Rua dos Mercadores para a Avenida Almeida Ribeiro. Não sabemos como o nosso pai conseguiu um táxi — um dos poucos que existiam em Macau e só per-tencentes a garagens.

Ficámos molhados que nem pintos, ao entrar para o carro e durante o trajecto para casa. O moto-rista conduzia muito bem, felizmente, e defrontou a chuva que cegava, e o vento que parecia fazer saltar o automóvel, com calma e segurança. Quando che-gámos a casa, estávamos quase em estado de cho-que, sem exagero.

No dia seguinte, o aspecto das ruas era desolador. Mas o que nos impressionou mais foi o panorama da baía de Praia Grande então ainda intac-ta, sem os aterros que a destruíram para sempre. Havia juncos afundados e, a boiar, porcos e cães muito inchados e repugnantes, sabe-se donde.

A superstição chinesa, que vê nas calamida-des súbitas da natureza em fúria o anúncio de graves acontecimentos políticos ou económicos, ficou apre-ensiva e predisse uma mudança no mar de rosas de prosperidade. E não tardaria que factos viessem con-firmar as suas apreensões.

A cidade refez-se e tudo voltou à normalida-de. O furacão, largamente comentado, ficou esqueci-do. As conversas voltaram para assuntos mais palpi-tantes como a contínua subida das acções na bolsa de Hong Kong, o hipódromo e o canídromo, cujas obras caminhavam para o seu termo.

O "Presidente Hotel" toma outro nome mais pomposo — "Grand Central Hotel", depois conheci-do apenas por "Hotel Central". A sua novidade prin-cipal era a instalação da sala de jogos com mesas de fantan e ku-sek, a imprimir uma nota de autêntico casino. E este facto também foi encarado como uma grande realização para a modernização de Macau. O "Jornal de Macau", de 16 de Junho, refere-se à sua inauguração, em tom eufórico.

Num dia de Julho, quando certamente Macau sofria de tórrida canícula, enchendo as barracas de banho do Porto Exterior e da Praia dos Tai-Páns, largando os sarangons ou papagaios de papel, em férvidos despiques de corta-corta, ao cair da tarde, deu-se um facto em terra longínqua que iria alterar a nossa vida de dias fáceis e ligeiros. Este facto, que passou inteiramente despercebido aos jornais da ter-ra, foi o assassinato do capitão japonês Nakamura, num ponto até então desconhecido da Manchúria. Assassinato misterioso, ainda pouco esclarecido, pois nunca se soube bem se os assassinos foram chi-neses, os manchurianos ou os próprios agentes japo-neses, enviados para provocar incidente.

Ao protesto violento do Japão, a China res-pondeu clamando a sua inocência. O militarismo ja-ponês, cuja força se impunha na política do seu país, preparou uma campanha bem orquestrada na im-prensa e nos círculos internacionais, para justificar a farsa que há muito projectava realizar — o ataque à China e o domínio da Manchúria. A hora parecia propícia, pois o País do Meio estava mais que divi-dido, com os "senhores de guerra" a desautorizarem constantemente o governo central, em desafio aberto contra o seu controle, como o do governador de Cantão, General Chang Chai Tóng, que declarou a independência do Sul. A fraqueza militar da China era evidente, toda ela consumida em guerras civis, desastrosas para vidas humanas e fazenda.

Cremos que ninguém em Macau, naquele Ju-lho de 31, se apercebeu disso. Nem em Hong Kong, estamos certos. O estado de euforia mantinha-se. Nos últimos dias desse mês, a conversa no Clube de Macau entre cartas do bridge e as tacadas de bilhar, era sobre o encerramento súbito do "Capitol", por desinteligências entre os sócios da empresa. Lamen-tava-se o caso, pois a população ficaria privada do seu entretenimento favorito, concentrando-se apenas no único cinema, o "Vitória". Mais uma vez, esta velha casa de espectáculos ficava com o monopólio, agora, do cinema sonoro.

Entra-se no mês de Agosto, excepcionalmen-te quente, e outra tragédia surge, precisamente, cerca das seis horas da manhã do dia 13: A explosão do Paiol da Guia.

13 de Agosto de 1931 nasceu límpido, mas abafado. A noite fora sufocante e as poucas ventoínhas, que então existiam, tinham trabalhado sem cessar. Os fulgores da aurora anunciavam que o calor persistiria implacável pelo dia fora.

Eram 5.35 horas. De repente, um estampido brutal abalou a cidade, qualquer coisa como um ronco horrendo vindo das entranhas da terra. Parte do Paiol da Flora, situado atrás do jardim do mesmo nome, onde se erguia o elegante Palacete de Verão do Gover-nador, naquela altura transformado em escola infantil, explodira, espalhando uma chuva de ferro e fogo sobre toda uma área com o raio de 500 metros. Fora do perímetro da desgraça, todas as portas e janelas se escancararam como por obra de demiurgo, com fragor de vidros partidos. Isto aconteceu em nossa casa, então à Estrada de S. Francisco.

A explosão arrancara árvores, ruíra casas, muralhas e projectara pedregulhos enormes que atra-vessaram paredes e telhados, espalhando morte e destruição por todos os lados. Num instante, invólu-cros de balas de todos os calibres pejaram as ruas e as casas. Estertores de moribundos e gritos de feri-dos ouviam-se, o que tornava o cenário mais lancinante e desolador. Os incólumes, poupados por um milagre da sorte, caminhavam sonâmbulos ou sentavam-se nos escombros em estado de choque. Escutavam-se ataques de histerismo ou choros convulsivos, sobre o cheiro acre de enxôfre.

Acudiram imediatamente ao local do sinistro os bombeiros e as forças militares. Uns e outros en-tregaram-se heróica e abnegadamente à extinção do fogo, que lavrava no Paiol, acabando por controlá-lo e apagá-lo, poupando à Terra de Lilau uma nova explosão de consequências imprevisíveis, pois havia ainda pelo menos uma divisória intacta, carregada de munições.

No meio dos escombros e das ruínas fume-gantes, onde pairava sempre acre e sufocante o chei-ro do enxôfre, agora misturado com o do sangue, iniciou-se o triste labor de recolher os mortos e sal-var os feridos e os soterrados. As estatísticas deram-nos 21 mortos, 24 feridos com gravidade e cerca de 50 outros que não precisaram de ser hospitalizados. Mas muitos mais feridos houve que não acorreram aos três hospitais da cidade, preferindo ser tratados em particular. Se as baixas foram relativamente pe-quenas em comparação com o impacto e os efeitos da explosão, foi porque nessa altura a área da Flora tinha uma escassa densidade demográfica, toda ela orlada de vivendas, jardins e terrenos baldios. O que não sucederia, se tamanha desgraça houvesse de acontecer hoje!

A crença devota da gente macaense atribuiu isto a um milagre de Nossa Senhora, que surge sem-pre quando uma grande crise ou uma terrível prova-ção se abate sobre esta Cidade do Nome de Deus. Na verdade, a ramaria torcida de uma árvore quei-mada junto à ruína duma parede desenhou a imagem d'Ela e temos uma fotografia a comprová-lo.

Ruínas do palacete de Flora depois da explosão, vendo-se a "milagrosa" imagem de Nossa Senhora, através da forquilha de uma árvore, desenhada na parede destruída.

Dos mortos, 5 eram portugueses, um soldado africano e 15 chineses. Temos a lista dos portugue-ses: O primeiro-sargento, António de Souza Vidal, que faleceu uns minutos depois de dar entrada no Hospital de S. Rafael; Henrique Ciríaco da Silva, fiscal das Obras Públicas, e seu enteado estudante, João Córdova; a menor de 11 anos, Natércia Coelho Duarte; e uma criança de tenra idade, Maria Augusta da Silva, filha do chefe da Polícia, Carlos A. da Silva, e que morreu esmagada debaixo dum armário. A praça africana de nome Reina, era solda-do N. º 4 756 da 51ª Companhia Indígena de Mo-çambique. Dos quinze chineses, sabemos que foi ceifada praticamente uma família inteira, de apelido Ung, e ainda Kam Wong Cheong, ex-director de finanças do distrito de Chong Sán, sua mulher e irmão.

A explosão, atribuída à deflagração da pólvo-ra, originada pela alta temperatura reinante no Paiol e insuficiência de refrigeração, devastou principal-mente a área da Flora e de Lông T'in Ch'uen. Os prejuízos materiais foram avultadíssimos. Além do edifício da Escola Infantil (Palacete da Flora), seis casas particulares foram totalmente pulverizadas. Outras 56 ficaram parcialmente destruídas, algumas delas mesmo inabitáveis. Isto sem contar com outras edificações atingidas, fora do perímetro do sinistro, que tiveram rachas nas paredes, telhados esburacados, mobiliário e objectos de arte e de uso pessoal destruídos, vidros esfrangalhados, com a deslocação do ar.

O funeral dos mortos portugueses realizou-se logo no dia seguinte, saindo do Hospital Civil do Governo (Conde de S. Januário), acorrendo em enorme afluência a população desta cidade, na mai-or manifestação colectiva de pesar que até então se vira. De Hong Kong veio uma deputação de escuteiros. A Liga Portuguesa e a Associação Portu-guesa de Socorros Mútuos, ambas daquela cidade, fizeram-se representar pelo Sr. António Ferreira Ba-talha, então sub-chefe da Repartição do Expediente Sínico.

A mesma imponência e manifestação colecti-va de pesar verificaram-se no enterro dos chineses, que saíu do Hospital Kiang Wu em direcção à terra china. Desde a Estrada Coelho do Amaral até à Por-ta do Cerco, o povo acumulou-se nas vias, lamentan-do a desdita.

O terrível acontecimento marcou uma impres-são indelével em todos aqueles que o presenciaram. E a superstição oriental, já atormentada com o fura-cão de 19 de Abril, viu na explosão do Paiol outro sinal, mais doloroso ainda, de que tempos maus es-tavam para vir.

Mas a vida continua e Macau enlutada, passa-do o choque, recuperou-se para a existência normal. E todos se prepararam para acolher o mês de Setem-bro que prometia grandes realizações, as inaugura-ções respectivas de corridas de cavalos e corridas de cães. Ninguém se preocupava com os acontecimen-tos da China, onde a guerra civil lavrara por todos os lados do imenso país, nem mesmo adivinhava, nas entrelinhas das escassas notícias internacionais, a concentração das forças japonesas na Coreia e ao longo da linha do combóio trans-manchuriano que estava sob o seu controlo.

Em 27 de Agosto extingue-se o "Jornal de Macau" que se notabilizara, nos seus últimos dias, com as grandes reportagens sobre a explosão.

Em 1 de Setembro, publica-se o primeiro nú-mero de "A Voz de Macau" (o primeiro nome que teve o auto-suspenso "Notícias de Macau" dos nos-sos dias), sob a direcção de Henrique Nolasco da Silva, tendo como redactor principal o capitão Rosa Duque, que fora a alma do jornal anterior.

Em 6 de Dezembro, estando Macau apinhada de estrangeiros como nunca se vira, inauguram-se as corridas de cavalos no Hipódromo do Macao Jockey Club, à Areia Preta. Macau assumia uma nota cos-mopolita e elegante, na bancada dos sócios, com as senhoras nas suas melhores toilettes e os cavalheiros nos seus casacos de fino corte. A modernização da cidade era mais que evidente. Não tínhamos já as corridas de cavalos, como Hong Kong, Xangai, Singapura e a Europa?

Em 12 de Setembro, reabre o "Teatro Capitol" com o filme de Harold Lloyd "Feet First", acabando uma situação deprimente para os cinéfilos. Agora, sim, que Macau também se podia orgulhar de ter duas casas de cinema sonoro!

Ao filme hilariante de Harold Lloyd seguiu--se, uns dias depois, o "Skippy", uma fita de adoles-centes, tendo à frente do elenco Jackie Coogan e Mitzi Green. Com a mudança do programa, apare-ceu-nos "Resurrection" (Ressurreição), inspirado no livro de Tolstoi, com John Bols e Lupe Velez nos principais papéis.

Chorou-se copiosamente neste filme. O "Capitol" reiniciava auspiciosamente a sua activida-de. As cadeiras eram consideradas confortáveis para o tempo, os programas cuidadosos, a sonorização excelente, o público disciplinado. A empresa agora ia mais longe. Ao lado do cinema, o "Capitol" pre-tendia também dar exibições teatrais e concertos e já havia solicitações para o efeito.

Mantinha-se em Macau a vida despreocupa-da. As corridas de cavalos recentemente inaugura-das, o cinema e outras distrações duma cidade calma mas de intensa vida social desviavam dos graves acontecimentos internacionais as atenções da popu-lação.

A exploração do caso Nakamura atingia uma estridência histérica na imprensa japonesa, enchendo de confusão os chineses que não viam motivo para tanto barulho, pois o assunto podia compor-se har-moniosamente.

Os jornais de Hong Kong do dia 18 de Setem-bro falavam apenas da dilacerante guerra civil da China e passavam ao de leve sobre a atitude do Ja-pão. Nessa noite, Artur Tristão Borges, que escrevia interessantes artigos em "A Voz de Macau" sobre a situação na China, mandou uma crónica para o jor-nal, de que extraímos o seguinte:

"Enquanto a sede de supremacia faz atirar ir-mãos contra irmãos (referia-se à guerra civil), os estranhos estão-se armando e mobilizando para to-mar qualquer partido do incidente Nakamura. Este simples boato, posto a circular em Xangai, causou um pânico enorme nas transacções de ouro.

"O Ministro dos Estrangeiros, Dr. C. T. Wang, entretanto, declarou a uns jornalistas japone-ses que o foram entrevistar que o incidente Nakamura será resolvido pela maneira mais justa, logo que se completem as averiguações. Considera inexplicável a indignação geral levantada no Japão".

Precisamente nessa noite, de 18 para 19 de Setembro, estalava o célebre incidente de Mukden. Num troço do caminho de ferro do Sul, junto a uma ponte, a algumas milhas dessa importantíssima e es-tratégica cidade manchuriana, travavam-se combates renhidos entre japoneses e tropas da região fiéis ao governo central da China. Os primeiros, como sem-pre, acusaram os chineses de agressores, mas hoje sabe-se que o incidente foi provocado para conse-guir-se uma justificação para o ataque efectuado pelo País do Sol Nascente. Os japoneses, já há muito preparados, agrediram em força, desbaratando as tropas adversárias, mal municiadas e equipadas.

Julgavam os agressores que o incidente de Mukden seria apenas o prelúdio dum simples pas-seio militar. Mas a China, recuando embora com perdas enormes, resistiu. A agressão brutal teve, en-tão, um condão inesperado para os cálculos dos in-vasores. Os chineses, apesar de divididos em selváticas lutas fratricidas, não desconheciam o que era patriotismo. Em todas as grandes cidades da Chi-na, estudantes e homens do povo fizeram demons-trações, pedindo a união de todos perante o inimigo comum. Este apelo surtiu efeito, pelo menos na apa-rência. O Sul desistiu da sua pretensão à indepen-dência e uniu-se ao governo central. A sua tropa de élite, o XIX Exército, preparou-se para lutar, partin-do para o Norte, em direcção a Xangai.

Enquanto se desenrolavam estes aconteci-mentos, Macau vivia na sua beatífica despreocupa-ção. Houve sobressaltos, quando na Bolsa de Xangai e Hong Kong se repetiu a corrida ao ouro e as ac-ções decaíram de valor. Mas rapidamente a brecha foi colmatada, as bolsas estabilizaram-se, porque ainda se acreditava que Mukden não passava dum mero incidente de solução fácil. E a alegria e a con-fiança voltaram a reinar, passado o susto.

As atenções da população portuguesa de Ma-cau estavam concentradas, nesses dias decisivos que iriam mudar a face do Extremo Oriente, na chegada do actor Silva Sanches que, segundo "A Voz de Ma-cau", vinha trazer-nos "um pouco da alma de Portu-gal que bem merece todo o apoio e carinho que tem encontrado em todo o mundo."

Aportou no dia 22 de Setembro e foi logo recebido com entusiasmo e com simpatia pela tradi-cional hospitalidade macaense. Os panegíricos à sua volta foram imensos. Transcrevemos um extracto de "A Voz de Macau" no dia 24, repassado de lirismo:

"(Silva Sanches) é exímio como cantor de canções portuguesas, dançarino de Charleston, Fox, "fado estilizado", etc., etc.

"Aquele foi como as rosas!", uma doce can-ção napolitana com que Silva Sanches nos encanta e deslumbra...

"Admirável canção essa em que as palavras cantadas são positivamente rosas, rosas de amor, ro-sas de toucar a fronte gentil de donzela de baladas e sonhos".

Temos apenas uma vaga ideia desse actor. O nosso juízo é apenas formado pelo que ouvimos de pessoas que conviveram com ele, durante a sua curta permanência entre nós. Silva Sanches, a par dos seus incontestáveis dotes artísticos e de grande à-vontade no palco, era um enfatuado que caminhava pelas ruas da cidade, com o nariz levantado, parecendo sempre embebido nos himalaias da sua arte. Falava de cátedra, como se trouxesse nos ombros empertigados toda a responsabilidade do teatro por-tuguês. Citava Almada Negreiros, Rey Collaço, Leal da Câmara e Júlio Dantas, como se se tratasse de amigos íntimos.

Criou logo inimigos. Havia quem não pudes-se tolerar a petulância com que percorria os salões do Clube de Macau e do Grémio Militar, como se pisasse terra conquistada. E mais: como se esta boa terra de Macau fosse uma aldeia de labregos que teria de aprender com ele as coisas de teatro, esque-cido de que estávamos habituados às récitas e con-certos do Teatro D. Pedro V, onde se ia de casaca ou de "smoking".

No entanto, a sua estreia no "Capitol", na noite de 3 de Outubro, foi um êxito. A casa encheu-se, parti-cipando o público nas suas canções, rindo com as suas graças de "compère". Tinha um guarda-roupa muito rico e trouxera consigo trinta cenários de fino gosto, segundo os coevos. A gente de Macau aclamou-o na estreia e, dias depois, o mesmo êxito se repetiu no "Teatro D. Pedro V". A enorme comunidade portu-guesa de Hong Kong abriu-lhe as portas e em Novem-bro, na cidade vizinha, deu algumas récitas coroadas de sucesso. Depois de uma temporada, saiu. Deixou lembranças da sua arte, mas não amigos.

A tenebrosa atmosfera de "Dracula" (1931) de Tod Browning, com Bela Lugosi, o substituto de Lon Chaney nas séries negras do cinema.

Entretanto, o "Capitol", como casa de cine-ma, mantinha a excelência dos seus filmes. Em Ou-tubro, aparece o "Vagabond King" com Jeanette MacDonald e Dennis King e, dias depois, o famosís-simo "Dracula."

O público de Macau estremeceu com a odis-seia do vampiro fidalgo. Bela Lugosi tomou-se um nome falado em todas as casas e o "Capitol" encheu-se de gente para viver uma hora e meia de pavor. O cinema macabro encontrava um continuador de Lon Chaney.

O "Vitória", abalado pelos triunfos do "Capitol", também seleccionou bons filmes. Surgi-ram naquela velha casa de espectáculos os filmes de José Mojica que logo ficaram na moda. Era uma nova cara entre os "actores latinos"; e os jovens co-meçaram a trautear as suas canções, dançando ao som delas.

A guerra sino-nipónica, ainda muito longín-qua, não parecia afectar Macau nem Hong Kong. Mas o sentimento anti-japonês era evidente e os jor-nais noticiavam incidentes na vizinha cidade britâni-ca, entre chineses e os membros da comunidade ini-miga.

Macau estava então entretido noutro aconteci-mento: o campeonato de ténis, organizado pela Di-recção do Campo Desportivo Escolar, sob a presi-dência do tenente Filipe O'Costa, torneio apenas limitado aos estudantes. Foi este um acontecimento desportivo que galvanizou o

Em "singles", alinharam José Vidigal, Fer-nando Silva, Damião Rodrigues, José Borges, Álva-ro Silva, Manuel da Silva, Luís Lobato, José Boyol, António Nolasco, José de Almeida, Fernando Albuquerque, Pedro Ângelo, Leonel Rodrigues, Énio Ramalho, Frederico Nolasco e João Carreiro.

Nos "doubles", os pares eram os seguintes: José Borges-Manuel da Silva, Damião Rodrigues-Álvaro Silva, Luís Lobato-Francisco Garcia, José Vidigal-António Nolasco, Fernando Silva-Elgar Basto, José Boyol-José Almeida, Pedro Ângelo-Fer-nando Albuquerque, Énio Ramalho-Frederico Nolasco, Leonel Rodrigues-José de Almeida.

Nos últimos meses do ano, o "Vitória", em franca competição com o "Capitol", exibe uma série de filmes musicais. A maioria não figura em nenhu-ma antologia do cinema, pertencendo à produção em massa de Hollywood. Naquela altura, porém, o pú-blico cinéfilo não era muito exigente, aceitando tudo o que se lhe oferecia do deslumbramento do sonoro que ainda se não apagara. Os espectadores, quanto ao género musical, espantavam-se com os cenários faustosos, as "chorus girls" dançando e cantando, todas muito certas nas circunvoluções dos bailados.

É nesse tempo que aparecem composições de Irving Berlin, pela primeira vez ouvidas em cinema, no filme "Puttin' on the Ritz" de Harry Richman e Joan Bennett. As canções "With you", "Singing a Vagabond Song", "There's danger in your eyes", "Cherie", tornam-se familiares.

A seguir, a velha casa de cinema da Rua dos Mercadores oferece "Not Damaged" de Lois Moran e Walter Byron, e "On with the show". Do primeiro filme distinguem-se as canções popularíssimas "Whisper you love me", "Nothing's Gonna Hold Us" e "Business is Business with me". Do segundo, ficam na memória quadros de sapateado e "Charleston" frenético.

Em fins de Novembro, desbobina-se a magní-fica fantasia musical "Happy Days", com um elenco prestigioso de actores da época: Charles Farrell, Janet Gaynor, Victor Mclaglen, Edmund Lowe, Marjorie White, El Brendel, Warner Baxter, Dixie Lee, David Rollins, Will Rogers e Frank Albertson. Novas canções marcam para os corações enamora-dos: "More", "Minstrel Memories", "Crazy Feet", "A toast to the Girl I love", "I'm on a Diet of Love" e "Happy Days", a eterna canção dos primeiros acordes do Ano Novo.

A série musical continua com "Golden Calf" de Sue Carol, com "100 dancing girls and 50 Brodway stars" e "It's a Great Life", este das Duncan Sisters (Rosetta e Vivian). Lembrar-se-ão certamente muitos dos nossos leitores das canções das duas irmãs: "I'm Following You", "I'm Sailing on a Sunbeam" e "Hoosier Hop".

Todos estes filmes foram feitos numa Améri-ca já submetida à Depressão. O público acorria às salas escuras dos cinemas para esquecer os dias ter-ríveis que avassalaram a grande nação norte-ameri-cana desde o "crack" da Bolsa de Nova Iorque em 1929. Estes filmes transformavam-se em êxitos de bilheteira, porque na América o povo queria distrair--se e evadir-se da miséria e das tristezas do quotidia-no. Em Macau, ainda sem crise nenhuma, o povo enchia o cinema pelo puro gosto de ouvir e ver can-tar e dançar os seus actores favoritos.

Com tanto filme musical, sobe em Macau a venda de discos, grafonolas e gramofones. A loja especializada nisto é a Casa Brunswick, sita na Avenida Almeida Ribeiro Nō 9, que tem os seus dias de ouro.

Em Dezembro, exibe-se no "Vitória" uma pe-lícula que, embora recheada de canções, não pode enquadrar-se na série citada. É uma fita sentimental muito romântica e piegas que, no entanto, faz delei-tar, principalmente, o elemento feminino. Trata-se de "In Gay Madrid" de Ramon Novarro e Dorothy Jordan. Novarro, vindo do silêncio, mantinha intacta a sua posição de "latin lover" que nada parecia po-der abalar. O "A Voz de Macau" não esconde as suas simpatias pelo actor ao comentar:

"Novarro canta admiravelmente, acompanha-do por um coro de 50 vozes, as seguintes canções: "Santiago", "Let me love you, love", "Dook Night", canções escritas por Xavier Cugat (então, pratica-mente desconhecido). As restantes canções são "Smile Comrades", "Into my heart" e "Wine, Women and Song".

Escassos anos depois Ramon Novarro apagar-se-á, mas Xavier Cugat e as suas músicas latino-americanas serão furor até ao fim dos anos 50.

O "Vitória", porém, não se concentra apenas nos filmes musicais. Fitas doutros géneros deliciam a gente de Macau desse tempo, como "White Shadows in the South Seas", passada numa ilha paradisíaca da Polinésia, com Monte Blue e Raquel Torres, "The Bishop Murder Case", um dos grandes da época do género policial, com Basil Rathbone e Leyla Hayams, e "The Big House", a que já nos referimos.

"The Big House" é uma obra à parte, talvez a mais completa e emocionante, sobre revolta dentro de prisões. Wallace Beery, Chester Morris e Robert Montgomery são os actores principais, mas é Beery, no papel de presidiário empedernido e sádico que domina todo o filme. A sua interpretação elevá-lo-á a estrela de primeira grandeza no elenco prestigioso da Metro-Goldwin-Mayer.

O "Capitol" não permanece atrás na competi-ção com a casa rival. A empresa escolhe, com cuida-do, filmes para atrair o espectador. Conhecendo o gos-to deste apresenta também a sua série musical de que destacamos "Monte Carlo" de Jeannette MacDonald e Jack Buchanan e "Paramount on Parade", com Charles (Buddy) Rogers e Lilian Roth a cantar "Any Time the Time to Fall in Love" e Jack Oackie e Zelma O'Neil em "I'm in Training for You".

Depois é "The Greek Street", com a formosa actriz grega Sari Maritza. A fita está recheada de belas canções, como "I've a little love song", "The Undress Parade", "Share your lips with me", "Cherie", e músicas como "In old tie Juana", "Senti-mental Fool", "Funiculi, Funicula" e "Monte Carlo".

Maurice Chevalier, depois do sucesso de "Love Parade", surge, de novo, em dois filmes de muito êxito "The Innocent of Paris" e "The Smiling Lieutenant", este com uma Claudette Colbert, ainda desconhecida.

É o "Capitol" que apresenta, pela primeira vez, uma bela atriz de rosto estranho e exótico, voz cálida e sensível, um corpo esbelto, de pernas esculturais. É Marlene que se estreia em "Dishonoured", num papel de espia, inspirado em Mata-Hari. É uma sensação. A cena final em que toca ao piano uma célebre partitura musical, antes de ser fuzilada, é inesquecível. Uma semana depois, aparece noutro filme, "Morrocco", com um Gary Cooper muito novo e Adoph Menjou. E o nome de Marlene consagra-se.

À esquerda: Cartaz publicitário do "The Smiling Lieutenant" (1931) de E. Lubitsh, com o recente êxito do cinema, Maurice Chevalier.

O "Capitol" tem veleidades de ser mais do que uma casa de cinema. Em Novembro, ao repetir--se "Love Parade", apresenta antes da exibição do filme, em carne e osso, um grupo americano de vari-edades chamado "Nellie Farren's Whopee Girls". Este grupo ficou cerca de uma semana, pondo a ra-paziada doida de entusiasmo. No meio do sapateado e das danças, choviam os mais audaciosos papelinhos a solicitar "rendez-vous", que as moças recolhiam com sorrisos experientes. E ficava-se à espera delas na Travessa dos Anjos.

Mais séria foi a estreia do Trio Schneider em 22 de Novembro. Pela primeira vez o "Capitol" apresen-tava um concerto de músicos de fama mundial. O trio era composto pelo Barão A. Vietenghoff (piano), Remja Waschitz (violino) e Wolfrang Schneider (violoncelo). As peças tocadas foram de Mozart, Rameau, Chopin, Skriabini, Purcell e A. Arensky. Foi uma memorável noite de música clássica, embora a grande massa do público não correspondesse ao esfor-ço da empresa e à categoria dos concertistas.

Fora do espectáculo cinematográfico, Macau tinha outras distracções. As corridas de cavalos prosseguiam regularmente, sempre com grande apoio dos entusiastas, com os "ferries" de Hong Kong, "Sui Tai", "Sui An", "Cheung Chow" e "Tai Hing", carregados de passageiros que vinham da ci-dade vizinha de propósito para tal fim.

As obras do campo e "stand" das corridas de cães terminavam. "A Voz de Macau" noticiava, em 10 de Novembro, que 170 cães, ocupando os 200 canis, aguardavam o dia da inauguração. E acrescentava:

"A pista com mais rails para a lebre correr está quase concluída, devendo dentro de poucos dias iniciar-se os treinos de galgos que precisam de três semanas para se aprontarem para as corridas.

"A galeria (stand) para 1 500 pessoas está sendo activamente construída, trabalhando os operá-rios noite e dia".

Naquele maravilhoso Outono de 1931, nada parecia abalar a confiança no futuro de Macau. A vida era baratíssima. Por exemplo, a firma Beatriz Berta de Sousa, sita na Rua Horta da Companhia, nō 10, vendia um litro de azeite de oliveira a $1.30, e a "Macao Store", loja fornecedora de géneros alimen-tícios, na Avenida Almeida Ribeiro, anunciava em "A Voz de Macau" que "o preço do gelo para este ano é de 1 avo por libra".

A livraria "Oriente Comercial Limitada" dava a conhecer aos seus fregueses as novidades literári-as: "Lourdes", de Brito Camacho, "Hollywood, ca-pital de imagens", de António Ferro, e "O Homem que matou o Diabo", de Aquilino.

O Porto Exterior ainda não era completa de-silusão. Navios nacionais, o "Chinde" e o "Gil Eanes", fundeavam, trazendo tropa e deportados po-líticos. Na ponte-cais de madeira, onde se acha o Clube Náutico, acostava o "Sagres" da Macau-Ti-mor Line e da Macau-Mozambique Line. Os funcio-nários, que vinham da metrópole ou partiam, finda a comissão ou de licença graciosa, viajavam no "Porthos" da Messageries Maritimes e no "Derfflinger" da Mala Alemã Loyd, desembarcando ou embarcando em Hong Kong.

Quem quisesse um suculento e retinto prato português ia à "Aurora Portuguesa" ou ao "Fat Siu Lau". Para um bom copo de leite e variados refres-cos, havia a "Leitaria Macaense" junto ao "Capitol". Para um saboroso "kai si fán" (ar-roz de galinha) estava o restaurante "United Sates", no rés-do-chão do Hotel Central, em frente ao "Vitória". E se se queria dançar, subia-se ao 6ō andar do mesmo hotel, onde estava o clube Hou Heng.

No capítulo do desporto, e em ténis, o Campeonato dos Estudantes terminara com a vitória em "doubles" para o par José Boyol-José Almeida e em "singles" para Manuel da Silva. O futebol dominavam-no os onze da Sociedade União Recreativa. Por seu tur-no, o tenente Filipe O'Costa começava paci-entemente a treinar e a ensinar uma grande geração de hoquistas. Em Dezembro, a Royal Yatch Club, de Hong Kong, organiza-ra uma espectacular regata de 15 iates que fundearam em Macau, dando ao porto um panorama inédito.

A Bolsa de Hong Kong mantinha-se activa, com as acções sempre a subir. Grandes cabedais de Macau estavam empenhados nelas e to-dos queriam aproveitar-se da hora para aumentar as suas fortunas.

Na Manchúria, a guerra prosseguia ferozmen-te. Os japoneses, embora sempre vitoriosos, encon-travam grande resistência, sobretudo das tropas de Tsang Hsuh Liang, também conhecido pelo Jovem Marechal, filho do célebre"condottieri" Tsang Tso Lin. Em Dezem-bro, aquele enormíssimo território encon-trava-se praticamente nas mãos do agressor. Nada o continha, nem a acção da Liga das Nações, que se via impotente para impôr as suas resoluções.

Até então, a China propriamente dita não fora atingida. Aliás, nos planos iniciais do militarismo nipónico não se incluía a submissão total da China, mas apenas a conquista da Manchúria. Com o desenrolar dos acontecimentos os ânimos exacerbaram-se. Se os chineses militar-mente não podiam derrotar os japoneses, havia o recurso de os atingir na econo mia. Por toda a China se proclama o boi-cote contra todos os produtos nipónicos e as demonstrações contra os mesmos são um facto. Em Hong Kong dão-se tumul-tos, ataques às casas comerciais e residenciais japonesas. Há feridos e mor-tos, alguns destes horrivelmente massa-crados. Em Macau, o único nipão aqui residente, o dentista Wade, é guardado pela polícia.

O Japão considera estas atitudes como intolerável provocação. A sua ma-rinha de guerra é avistada na costa chine-sa do Mar Amarelo e do Mar da China Setentrional. "Destroyers" e canhoneiras fazem in-cursões no Rio Yantze, sem no entanto romperem as hostilidades. Mas em Tientsin, da concessão japone-sa faz-se fogo de artilharia contra a cidade chinesa para dominar uma revolta.

Perante a impotência da Liga das Nações que perde o tempo em palavras, e não se decide a drásti-cas acções, a China não tem ilusões. Apesar de esfa-celada, prepara-se para o pior. O 19ō Exército, sob o comando do general Tsai Tin Kai, completa-se com a junção da 62ḁ e 64ḁ Divisões e fixa-se na região perto de Xangai.

Os ingleses, preocupados com o seu comércio, reactivam-se na diplomacia para impedir o alargamen-to do conflito. A América, numa demonstração de for-ça, faz no Pacífico grandes manobras navais. Precisa-mente dez anos depois, será Pearl Harbour.

Estas notícias são sombrias nos últimos dias de Dezembro de 1931. Mas a inauguração das corridas de cães na tarde de 26, muito concorridas e brilhantes, fazem ofuscar momentaneamente as apreensões.

Todavia, o ano termina com uma nota muito triste. Logo pela manhã de 31, corre a notícia infaus-ta de que na véspera, pelas onze da noite, na sua residência à Estrada do Engenheiro Trigo, falecera um grande amigo de Macau e das suas gentes, espí-rito culto e refinado, cuja obra é leitura obrigatória para quem queira conhecer a nossa terra. Este ho-mem era Manuel da Silva Mendes.

(**Agora revistas, estas crónicas foram escritas pelo autor em 1976/77.)

* Licenciado em Direito (Univ. Coimbra). Investigador, cro-nista e romancista. Autor de "Amor e Dedinhos de Pé" (3ª ed. em 4 anos) recentemente adaptado ao cinema.

desde a p. 183
até a p.