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A GASTRONOMIA MACAENSE NUM LIVRO

António Manuel Couto Viana*

Aconteceu-me, o ano passa-do, a satisfação de voltar a Macau, embora por escassos dias; ao Ma-cau onde permaneci de 1986 a 1988, conquistando, então, amiza-des generosas e firmes, e fruindo de um ambiente tão propício às apetências da minha sensibilidade poética que, de lá, trouxe três volu-mes de versos, além de muitas e proveitosas experiências culturais.

Nesta recente visita, a genti-leza daqueles portugueses europeus que havia conhecido anos antes, numa convivência feliz, resolveu celebrar a minha breve estada, acu-mulando inúmeros convites para al-moços e jantares, quase única opor-tunidade que tinham eles, nas suas ocupações profissionais, para reatar comigo o diálogo da amizade.

E, com a melhor das intenções, buscavam, para mim, mesas em que, medindo a minha saudade pela deles, minoravam a lembrança do berço dis-tante com iguarias da gastronomia por-tuguesa mais tradicionais.

E diziam, supondo aguçar--me o apetite:

"— Vamos a este ou àquele restaurante, que serve um excelente caldo verde; umas gordas sardinhas assadas com batata e pimentos; um bacalhau cozido com todos; um sucu-lento arroz de frango de cabidela..."

Mas, farto de tais pratos, até bem melhor confeccionados, estava eu!

O que, naturalmente, deseja-va o meu paladar, isso sim!, era voltar a saborear a verdadeira cozi-nha chinesa que Macau fornece, com qualidade e prodigalidade, quer em restaurantes de luxo, quer nas grandes mesas redondas das esplanadas do Porto Interior, em es-tabelecimentos modestos mas far-tos. E, sobretudo, desejava enfren-tar a gastronomia macaense, uma vez mais, apenas servida em casas particulares de velhas famílias ali nascidas há muitas dezenas de anos, pois, infelizmente, o Território (que eu saiba) não possui um restaurante dedicado à divulgação desta comida singular.

Mas, pelo menos, uma dessas famílias entendeu o meu desejo e, certa noite de prazer para o meu acir-rado epicurismo, pude abancar diante de uma travessa de mínchi com bata-ta frita, e, pela sobremesa, meter a colherinha de prata numa apudinzada bebinca de nabo, rapando com gula o pratinho de louça cantonense em que ela me fora oferecida.

E, porque também se come com os olhos, eis que lautamente os satisfiz, durante a minha nova presença em Macau, assistindo ao lançamento de um magnífico volu-me de receitas culinárias, que logo adquiri, opíparo de conteúdo, cons-tituído por um vasto receituário de gastronomia macaense, apresenta-do com admirável bom-gosto gráfi-co e alardeando o sortilégio das evocações, onde o requinte de uma mesa familiar se historia e esplende.

Organizou-o Graça Pacheco Jorge, que tem o supremo privilégio de ser neta de um vulto cimeiro da cultura portuguesa de Macau: José Vicente Jorge, antigo chefe da Re-partição de Expediente Sínico na foz do Rio das Pérolas e, muito mais, estudioso da filosofia chinesa, coleccionador sábio de porcelana oriental e apreciador, como delica-do gourmet que era, dos primores da cozinha daquelas bandas.

Aliás, Graça Pacheco Jorge afirma que eram estas as três maio-res paixões do seu ilustre avô.

Ele tinha, revela-nos Danilo Barreiros em belas páginas memorialísticas que prefaciam o volume (Danilo Barreiros, a quem devemos largos informes biográfi-cos sobre Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes), ele tinha a amizade e a admiração do autor de Clepsidra, a quem ajudou, até, à tradução de alguns poemas em lín-gua sínica.

Ambos vagueando pelas tor-tuosas ruas de Macau, onde se aga-cha o homem dos tintins, a desdo-brar, com vagares, sobre uma enxo-valhada folha de jornal, o tesoiro das suas velharias, aqui e além des-cobertas no lixo dos sótãos, nos desvãos dos armários, nas gavetas esquecidas, no refugo das lojas.

Assim eu o surpreendi e guardei num poema, em que, a dada altura, paira a imagem de Pessanha:

Viu ele um português, pertinaz e

sem pressa,/

De olhar estranho, magro, a lon-

ga barba preta,/

Descobrir, entre o inútil, o valor

de uma peça,/

Com ciência de sábio e arte de

poeta?/

Em que podia pairar, igual-mente, a imagem de José Vicente Jorge. Muitas vezes o poeta fre-quentou o soberbo palacete do ami-go, se sentou naquela deslumbrante sala de jantar fixada numa fotogra-fia do livro de Graça Pacheco Jor-ge, vaporosa de cortinados, alegre de flores, com as paredes pesadas de porcelanas, como o recheio de um museu.

E Camilo Pessanha, tão só-brio, alimentado quase apenas pelo vício do ópio, dizia, "regalar-se" com a profusão de pratos que lhe eram servidos, num ritual de genti-leza e abundância.

Pratos que pouco tinham a ver com a gastronomia chinesa, pois, na exótica Macau daquela época, cultivava-se, com a ciência do paladar, unicamente a cozinha macaense.

São, pois, as receitas dessa ciência que Graça Pacheco Jorge recolheu nas páginas riquíssimas do álbum agora editado, com o suges-tivo título de A Cozinha de Macau da Casa do meu Avô.

Ajudou-a, decerto, a esta ta-refa louvável, o espólio de récipes legado por sua avó, D. Matilde Pacheco Jorge.

São 132 receitas de alto va-lor gastronómico, desde os caldos e sopas, até aos doces e sobremesas, passando pelo peixe, a carne, as aves, mencionando os molhos ade-quados, os menus escolhidos para as festas de Natal e os "chás gor-dos", sempre acompanhadas de utilíssimas e pormenorizadas infor-mações sobre as origens de muitos ingredientes desconhecidos na cozi-nha europeia.

Numa recensão breve e leve que tive a oportunidade de publicar na imprensa, sobre este álbum de cinco estrelas, interrogava eu:

Que mesa deu origem à mesa macaense?

Indubitavelmente, a mesa portuguesa metropolitana, modifi-cada e melhorada, em termos de condimentos, com especiarias lo-cais.

Serviram-me, em muitas ca-sas particulares de tradicionais fa-mílias da cidade do Nome de Deus, o célebre "tacho", que é quase-qua-se o conhecido e apreciado "cozido à portuguesa".

Este "chau-chau de pele", como também é vulgarmente cha-mado no Território, não podia dei-xar de figurar entre as receitas apre-sentadas por Graça Pacheco Jorge.

Ao entrecosto, à carne de vaca, ao frango, ao presunto, ao chouriço (em Macau, o chouriço chinês), à couve lombarda, ao nabo, à cenoura dos cozidos metropolita-nos, juntam-se novos ingredientes de fácil aquisição nos mercados ori-entais: as "orelhas de rato", os co-gumelos chineses e, sobretudo, os couratos desidratados (a "pele" que dá um dos nomes ao prato), impos-síveis de encontrar em Portugal, mesmo em lojas da especialidade, ao passo que abundam nos bairros chineses de Londres e de Paris.

Curiosamente, tal petisco é muito estimado já aqui ao lado, na vizinha Galiza, que o tem à disposi-ção, em qualquer mercado da terra.

O "tacho" é acompanhado por arroz branco cozido, mas com molho balichão, o camarão peque-no e escuro, de grato sabor, ainda que de odor insuportável, quando seco, antes de ir ao lume.

E, claro está, serve-se no ta-cho em que foi confeccionado, deri-vando daí o seu nome mais popular.

A receita que Graça Pacheco Jorge nos faculta difere, por exem-plo, da que nos descreve António Bello, presidente da Sociedade Por-tuguesa de Gastronomia, que fun-dou em 1933, e onde acamaradou com individualidades como Albino Forjaz de Sampaio, Fidelino de Figueiredo, Azevedo Neves, Fezas Vital, etc..

Descreve-a no seu livro Cu-linária Portuguesa, considerando o "tacho macaísta", como o intitula, sem o refinado dos ingredientes ori-entais, dando-nos somente, como novidade, o modo de o servir:

"Num prato covo, deita-se o arroz, sempre em grande porção, formando uma pirâmide, e por cima deita-se o tacho e o respectivo cal-do. Depois, com um garfo, reduz-se a pirâmide a nada."

Na casa de José Vicente Jorge, o "tacho", decerto, era bem mais apaladado, e rapidamente se-riam reduzidos "a nada", não só a tal pirâmide de que nos fala Antó-nio Bello, mas todo o recheio do recipiente que o trouxera, fume-gante e aromático, para a mesa. Com a contribuição, aliás, do garfo e da colher, únicos talheres tolera-dos pelo douto anfitrião.

Também o mínchi ocupa po-sição de honra nas páginas substan-ciais d'A Cozinha de Macau da Casa do meu Avô.

Prato indispensável em to-dos os lares macaenses, de gosto agradabilíssimo e muito peculiar.

O nome é, segundo Graça Pacheco Jorge, e muito provavel-mente, derivado do termo inglês que significa "carne picada".

De facto, o prato é feito à base de carnes de vaca e de porco, ambas picadas juntas. Acompanha--o o arroz branco cozido sem sal e batatas fritas, cortadas em cubos, ou mesmo couve salgada.

O que dá ao mínchi o esqui-sito paladar é o meio copo de sutate com açúcar.

Sutate é molho de soja, mui-to aromático.

Durante o lançamento, em Macau, do livro de Graça Pacheco Jorge, ouvi a muitas personalidades presentes, das melhores famílias macaenses (e estou a lembrar a opi-nião abalizada de Henrique de Senna Fernandes, o autor de Amor e Dedinhos de Pé, onde a gastronomia do Território tem lugar carinhoso) que, sem sutate, não ha-via mínchi que merecesse este nome.

Ignora-se a origem de tal iguaria, mas sabe-se que foi aper-feiçoada em Hong Kong, por volta de 1840, quando os ingleses, recém instalados na ilha, procuraram o au-xílio da população de Macau, sua vizinha, para se fazer entender pe-los chineses e conhecer-lhes melhor os hábitos e o comércio.

Todas estas informações se lêem, com vantagem, n'A Cozinha de Macau da Casa de meu Avô, que é um excepcional repositório de re-ceitas, onde passa uma legião de bons bocados, criados pelas Senho-ras Donas e as nhonhas do vetusto Macau com quinhentos anos de existência.

E tanto da minha saudade gastronómica os recorda bem: o Di-abo, o Porco balichão tamarindo, a Capela...!

Trata-se de um memorial que felizmente perdurará, graças à iniciativa cultural da autora, a que presto aqui singela mas justa home-nagem.

Ao folheá-lo, evoquei o de-leite de vários "chás gordos" que, no espaço de três anos, desde as cinco da tarde até ao fim do dia, aquela apaixonante Macau afavel-mente me serviu, abarrotando de salgadinhos e guloseimas a ampli-dão das toalhas!

Ele eram os chilicotes cucus, apa-bico, chintói aberto, pães de leite, bebinca de inhame, saronsu-rave...

Deus do Céu! Pode a minha gula prosseguir a descrição do des-file constante destes pitéus, sem que a boca se me encha de água e a memória de lágrimas?

* Poeta, ensaísta, encenador de teatro, historiador da literatura. Um dos maio-res poetas portugueses contemporâne-os, com dezenas de títulos publicados.

desde a p. 225
até a p.