Artes

"AS 36 PERSPECTIVAS DO MONTE FUJI" DE HOKUSAI
NOTÁVEL COLECÇÃO DE ARTE DO GOVERNO DE MACAU

Tetsuya Noda*

Durante a minha estada em Macau (de finais de Março a Abril de 1993), na qualidade de Artis-ta Convidado da Academia de Artes Visuais, tive a inesperada oportunidade de apreciar a mais aclamada série de gravuras originais Ukiyoe de Hokusai, conhecidas por As 36 Perspectivas do Monte Fuji. Estas obras-pri-mas são constituídas por 36 blocos originais, gravados a azul, e de linhas de concepção iguais, e por outras dez gravadas a preto, e conhecidas como a parte de trás da monta-nha. As peças teriam sido produzidas no Japão, entre 1831 e 1833. Este conjun-to original foi recentemente adquirido pelo Fundo de Pensões.

Infelizmente, como só dispus de muito pouco tempo para as apreciar antes da abertura da minha exposição na Galeria de Exposições da Livraria Portuguesa de Macau, não me foi possí-vel verificar, examinar e saborear as gra-vuras detalhadamente, como era minha vontade. No entanto, a minha primeira im-pressão foi a de que todas se encontravam em muito bom estado de conservação, apresentando cores vivas e frescas tal como se tivessem sido recentemente gravadas. O papel parecia novo e os cantos e mar-gens não apresentavam quaisquer sinais de dobras ou fissuras, à excepção do centro, que de-notava vestígios de dobra. Isto, porque era prática comum das oficinas de gra-vura dobrar as gravuras pelo meio para facilitar o transporte. Na maioria das gravuras, a gradação azul (es-pecialmente a do céu) e outras li-nhas principais gravadas nos pri-meiros blocos, mantêm-se particu-larmente vívidas e claras. Facil-mente poderiam ser tomadas como reproduções, tanto mais que, no Ja-pão, já por altura do lançamento des-ta série, a mesma se tomou logo mui-to popular. Várias reproduções foram feitas nos séculos seguintes.

Auto-retrato de Hokusai, quando velho. Esboço a pincel, Museu do Louvre.

Observando as gravuras uma a uma, deparo com uma das mais fa-mosas, a Gaifu Kaise, ou Monte Fuji em dia claro e de brisas, vulgarmen-te conhecida como Fuji Vermelho. Detive-me um pouco para a observar mais atentamente, pois a cor verme-lha da montanha parecia algo ténue, como se tivesse sido limpa por processo químico, para melhor a preser- var. No entanto, após verificar o azul e outras partes da peça, notei que as cores eram frescas e fortes. A textu-ra do papel mantinha-se suave e, no sopé da montanha, ao fundo da composição, podem ver-se duas pequenas fissuras, que se devem a defeitos no bloco original. Essas cicatrizes convenceram-me de estar indu-bitavelmente perante um original. A ténue coloração das partes a vermelho poderá explicar-se pelo facto deste tipo de cor ter sido utilizado numa das edições anteriores desta magnífica obra de arte. Assim, imedi atamente pensei que estas séries de gravuras deveriam ter sido levadas do Japão por estrangeiros, que as terão comprado a coleccionadores japoneses já em tempos recuados.

Uma das perspectivas da série "Mont Sainte-Victoire", de Paul Cézanne (1904-06).

Entre meados do século XVII e o século XIX, as gravuras Ukiyoe tinham como objectivo agradar à maioria do público de Edo, hoje Tóquio. O dia-a-dia e diversões do povo em geral constituíam temas predi-lectos dos artistas. Dado que as gravuras eram, então, adquiridas a preços acessíveis, generalizou-se entre a população a moda de comprá-las e expô-las em casa, substituindo assim pinturas mais caras. É óbvio que as gravuras Ukiyoe não eram, nessa altura, consideradas uma forma de arte tão importante como as pinturas do mesmo período, que pertenciam a uma élite de esco-las, apoiadas e protegidas pelo governo. No entanto, mais tarde, as gravuras começaram a ser coleccionadas por muitos estrangeiros que, já naquela altura, lhes reconheciam o encanto e extraordinária beleza.

Esta é uma das razões pelas quais diversas boas gravuras Ukiyoe saíram do Japão e se mantiveram tão bem conservadas na posse de tantos conhecedores de arte não-japoneses...

É de notar que a Universidade Naci-onal de Belas-Artes e Música de Tóquio — única entidade apoiada pelo governo, e onde, presentemente, lecciono — só tem em seu poder algumas gravuras Ukiyoe. O próprio Museu Nacional de Tóquio deve a sua colecção destas peças à generosa doa-ção do senhor Kojiro Matsukata, o famoso coleccionador de arte ocidental, que viveu longo tempo na Europa e se apercebeu da importância e valor artístico destas gravu-ras comprando, mais tarde, a um francês, uma vasta colecção que levou para o país.

É do conhecimento geral que as gra-vuras Ukiyoe começaram a ser reconhecidas pelos impressionistas europeus que, correcta-mente, as apreciavam pelo seu soberbo valor artístico e as admiravam pela composição di-nâmica, pela reprodução das figuras huma-nas ou por constituírem um verdadeiro ins-tantâneo do dia-a-dia, como que capturado pela lente de uma máquina fotográfica.

Os impressionistas ficaram igualmente fascina-dos pela impressão plana da cor, que excelentemente reproduzia a sensação de volume e profundidade. Ar-tistas franceses como Monet e Manet e, mais tarde, Degas, Lautrec, Van Gogh e Gauguin todos se inspira-ram, de um modo ou doutro, nessas peças de arte. Penso, também, que podemos encontrar alguma desta influência nas obras de Cézanne, embora se saiba que o artista criticava as gravuras japonesas pelas suas li-nhas simples e efeitos conseguidos através de colora-ção plana. Esta afirmação será, talvez, justificada pela forma cubista pela qual Cézanne se expressava para produzir efeitos tri-dimensionais sobre telas planas bi--dimensionais. No entanto, se examinarmos a sua fa-mosa série de pinturas do Monte Saint-Victoire, pode- remos reconhecer algumas semelhanças com as 36 Perspectivas do Monte Fuji de Hokusai. Primeiro, por-que de uma série se trata; mas, mais do que isso, por-que o Monte Saint-Victoire é representado por forma a parecer mais alto do que na realidade é. Esta técnica foi, muito provavelmente, bebida nas composições de Hokusai sobre o Monte Fuji.

Além disso, o modo como os tons de azul são utilizados para reproduzir as linhas e formas princi-pais, recorda-nos o azul que Hosukai usava na maioria das suas gravuras, incluindo os traços-mestres gravados pelos primeiros blocos. Na altura, esse azul era chamado Bero-Ai, que significa azul de Berlim ou cor azul de Berlim, importada pela primeira vez no início do século XVIII pela Companhia das Índi-as Holandesas, de Berlim— a capital do Império Prussiano (pelo que essa cor ficou a ser também conhecida na Europa como Azul da Prússia).

Este tom de azul luminoso e forte popularizou-se após algum tempo, sendo frequente-mente utilizado pelos mestres Ukiyoe. De facto, Hokusai foi um dos primeiros artistas, no Ja-pão, a utilizar esse azul.

Outro pormenor interessante é o de Hokusai ter utiliza-do três nomes diferentes nesta série, dependendo do período em que cada gravura foi feita. Quando publi-cou a primeira série de As 36 Perspectivas do Monte Fuji, já tinha mudado o seu nome para Iitsu. No entan-to, como o nome de Hokusai se tomou tão conhecido naquela época, o artista continuou a usá-lo em parte das gravuras desta série como Hokusai, agora Iitsu, ou Iitsu, antes conhecido por Hokusai ou, por vezes, Hokusai Iitsu. Isto pode parecer estranho ou extrava-gante mas, do que se sabe do artista pelas histórias e anedotas que sobre ele se contam, parece que terá sido excêntrico e bastante imprevisível.

Durante a sua longa vida, Hokusai alterou o seu nome ou pseudónimos pelo menos 30 vezes. Igual-mente difícil de acreditar — mas não menos conhecido — é o facto de ter mudado de casa, no mínimo, 90 vezes, o que justificava dizendo preferir mudar de casa, a dignar-se limpá-la...

Essa necessidade constante do artista de mudar não só de sítio, como de nome, reflecte a sua sede de explorar novos métodos e técnicas, ou formas de ex-pressão.

"La Tube", "A Banheira", pastel de Degas (1886).

Assim, é bastante provável que, ao mudar de nome por altura da criação desta série, tenha sido sua intenção dizer-nos que se tomara outro homem não só em nome, mas também em estilo.

Parece-me que esta série congrega o resultado de todas as metas que Hokusai atingira até esse perío-do, e que a mesma constitui um dos maiores sucessos de toda a sua longa vida artística.

Muito simplesmente, admiro os trabalhos que para todo o sempre permanecem obras de arte e, ao mesmo tempo, confesso inveja pelo facto de a Autori-dade Monetária e Cambial de Macau ter conseguido adquirir estas magníficas impressões da obra-de-arte mais afamada de Hokusai.

(Traduzido do original em Inglês por Luísa Guedes).

*Gravador. Professor de Gravura da Universidade Nacional de Belas-Artes e Música de Tóquio

desde a p. 127
até a p.