Artes

AS ALIANÇAS DO DESEJO

Eugénio de Andrade*

Devo a Carlos Marrei-ros a minha estadia no Oriente. Ele sabia naturalmente do meu amor pela cultura chinesa, e a prova é que, logo no nosso pri-meiro encontro, numa ocasião em que passou pelo Porto, me ofereceu um pequeno Li Bai em cerâmica, trabalhado com extrema delicadeza, mas nessa pose convencional que não há que estranhar, pois é assim que se retratam os poetas em toda a parte do mundo: um ar de ilu-minado, recebendo a graça da poesia como S. Francisco rece-bia os estigmas; é uma concep-ção romântica, que de Platão chega aos nossos dias: Rilke e Mandelstamm ainda escutaram as vozes que lhes dita-vam os versos, e que tem servido de cobertura a tanta mediocridade pelo mundo fora.

"Guerreiro". Acrílico sobre madeira, 122x200cm, 1992.

Não foi fácil ao Carlos convencer-me a fazer a viagem, mas numa manhã de Outubro, com um tempo quase de Verão, desembarquei com um ami-go em Hong Kong, onde o Énio, o mais encantador brasileiro que já conheci, nos esperava e dava as boas-vindas em nome do Ins-tituto Cultural de Macau e do seu Presidente. Ao Carlos, ia sentir-lhe a presença discreta quase diariamente, apesar de o ver pouco, tantos os seus afazeres. Um almoço na ilha da Taipa, a presença nos prin-cipais actos culturais, um jan-tar em sua casa, na última noite do Oriente. Foi nessa noite que me mostrou dese-nhos e quadros seus e apre-sentou o pintor Mio Pang Fei, de que já tinha notícia, por ter caligrafado um poema de Li Bai (aquele, magnífico, sobre a despedida de dois amigos, que se vão afastando enquan-to os seus cavalos relincham de mágoa), encomen-dado pelo Leal Senado para me ser oferecido num jantar interminável, tipicamente chinês, e que, curio-samente, era o poema que me despertara para o es-plendor da poesia oriental. Os desenhos de Carlos Marreiros eram muitos, e de inspiração desvairada-mente surrealista, a lembrarem algumas das tenta-ções de Hieronymus Bosch e a fantasia alucinante de Mário Botas. Quanto à pintura, essa era menos abundante, e ia noutra via, aliás mais a meu gosto, a lembrar uma aprendizagem do ofício com um dos mestres do nosso tempo, Antoni Tàpies; sobretudo o Tàpies da paixão pela matéria estreme, essa que aí tens à mão, que tocas com todos os sentidos, retiran-do do seu contacto os dedos humedecidos da própria substância do tempo; um Tàpies antes de pactuar com facilidades e estratégias de mercado.

Do Carlos só voltei a ver quadros quando a Galeria Nasoni expôs, juntamente com outros de Mio Pang Fei, a pintura com que Macau se fez re-presentar na Europália. Eram pinturas onde se sentia essa vontade estilística sem a qual não é possível ao homem construir a casa "onde nascem os deuses e as estrelas", como mais ou menos disse Apollinaire, num dos caligrammes de que mais gosto. Nenhum dos quadros que tinha na minha frente era feito no vazio. Sentia-se neles o ardor vital do artista procu-rando dar um rosto, ou uma alma, ou simplesmente um nome às pequenas e humildes coisas com que tropeçava no seu dia-a-dia ou entravam com toda a naturalidade pela cancela aberta do seu quintal. Qualquer coisa, naquelas superfícies feridas pela emoção, nos fazia sinais, exigia a nossa atenção, até mesmo o nosso afecto. Não passaria talvez de um coração adolescente — mas implorava. Era uma voz débil, como se tivesse saído de um poema de Camilo Pes-sanha e refugiado detrás da-queles verdes húmidos ou dos vermelhos vibrantes; uma voz que não nos podia servir de guia porque os caminhos da arte são imprevisíveis. "O ob-jecto supremo do viajante é ignorar onde vai", diz a sabe-doria chinesa, que não é pe-quena. Mas não cabe só ao vi-ajante desconhecer o cami-nho; nenhum poeta sabe onde o conduz o ritmo das suas sí-labas, nenhum pintor poderá prever onde o levam as suas cores. É que, na verdade, no hay camino, / se hace camino al andar.

Daquelas telas, com nomes enigmáticos, San Sui, Brincos da Imperatriz, Triân-gulo Nocturno, da pele daque-las telas, dizia eu, áspera como os lugares de infância, irrompiam brevíssimas e ató-nitas lacerações de luz, a ne-grura triunfal dos caracteres chinos, os pequenos graffiti infantis, ou coisas semelhantes, excrementos de aves, folhas apodrecendo, tudo cúmplice do vento de Outono e de terra molhada, cujo aroma, sem saber-mos bem donde vinha, invadira a sala — ou seria esse "perfume espiritual particular", que Kandinsky sentia em certas formas acabadas? Quem sabe?

S. Lázaro, 11 de Fevereiro de 1993

"Sonho dos Pavilhões Vermelhos, I" (Hong Lâu Mông) Acrílico sobre madeira, 120xl20cm, 1993.

"Xian". Técnica mista, 200xl22cm, 1991.

*Poeta e escritor de reputação internacional com trinta e seis obras suas traduzidas em quase vinte línguas. Considerado um dos maiores poetas contemporâneos portugueses.

desde a p. 158
até a p.