Linguística

FERNANDO PESSOA
MODERNISMO E HERMETISMO

Y. K. CENTENO*

"Délivré des contraires j'arrive au seuil"

Henry Michaux

O modernismo implica uma nova concepção da literatura como linguagem, uma nova relação entre o autor e a obra, e a obra e o seu leitor. Para Valéry, a finalidade da obra será "fazer pensar" o leitor, provocar nele "actos internos": "Le but d'un ouvrage honnête est simple et clair:-faire penser. paire penser, malgré lui, le lecteur. Provoquer des actes internes." (Cahiers I, p. 241). Fernando Pessoa, analisando a transição do romantismo para a época moderna falará de três caminhos:1) "entregar-se ao mundo exterior, deixar-se absorver por ele, tomando dele a vida oca e ruidosa, o esforço sumamente esforço, a Natureza simplesmente Natureza — e este caminho seguiram Whitman, Nietzsche, Verhaeren... 2) Pôr-se ao lado, à parte dessa corrente, num sonho todo individual, todo isolado, reagindo inertemente e passivamente contra a vida moderna [...] Foi o caminho que seguiram Edgar Pöe, Baudelaire, Rossetti, Verlaine... 3) Metendo esse ruidoso mundo, a natureza, tudo, dentro do próprio sonho — e fugindo da Realidade nesse sonho. É o caminho português (tão caracteristicamente portugu-ês) — que vem desde Antero de Quental cada vez mais intenso até à nossa recentíssima poesia" (Pági-nas de Estética e de Teoria Literária, p. 156). Essa "recentíssima poesia" como bem notou Jacinto do Pra-do Coelho no Dicionário de Literatura (p. 654), pre-tende "uma exploração mais ampla dos poderes e li-mites do Homem", numa época de crise em que os valores tradicionais da moral e da razão já não forne-cem respostas adequadas às situações com que o ho-mem depara.

Estamos nos anos que antecedem a primeira Guerra Mundial. Em 1905 surgem os ensaios de Freud sobre a sexualidade, os trabalhos de Einstein sobre a relatividade restrita, e Proust começa A la Recherche du Temps Perdu.

Entre nós, é cerca de 1913 que o movimento modernista vai tomando forma: Sá-Cameiro escreve os poemas de Dispersão e projecta, com Pessoa, uma revista intitulada Europa (contudo aquela que virá a concretizar os ideais do modernismo será a revista Orpheu com dois números publicados em 1915). En-tretanto, na desejada Europa, o mundo literário já tinha tomado consciência da mudança: Virginia Woolf es-crevia, em 1910, "human character changed" (The Captain's Death Bed, p. 96). Desta observação parte Douwe Fokkema para estabelecer a sua noção de mu-dança de código, relativamente ao modernismo, defi- nindo-o a partir das obras de Joyce (Dubliners já aguardava publicação em 1910), Proust (que completa o primeiro volume de A la Recherche du Temps Perdu antes da primeira Guerra Mundial) e Gide. Mas já igualmente na Alemanha Thomas Mann publicara Tonio Kröger (em 1903), antecipando o modernismo ensaístico de A Montanha Mágica (1924), e Robert Musil começava a publicar os seus Ensaios. Voltando ainda a França, Monsieur Teste, de Paul Valéry, data de 1896 e tenta definir uma personagem modernista: "uma espécie de animal intelectual... capaz de tudo"; ou ainda: "um místico e físico da Self-conscience", como lhe chama Valéry (Cahiers I, p. 239 e p. 263).

"O Poeta" — Fernando Pessoa visto por Carlos Marreiros. (Acrílico sobre papel de arroz e madeira, 200x122cm, 1992. Da colecção particular do Dr. Jorge Neto Valente).

Para Fokkema (Literary History, Modernism and Post-Modernism)1 a principal convenção do Modernismo quanto à composição do texto literário é a selecção de construções hipotéticas, exprimindo incerteza e precariedade, o que afecta as relações entre o texto e outros factores da situação de comu-nicação, tanto como a organização do próprio texto (pp. 15 - 17). O texto deixa de ser definitivo: "un poème n'est jamais achevé"diz Valéry (Oeuvres, II, p. 553). Aumenta, também por esta razão, o gosto pelo aforismo: já Freud tinha lembrado, em 1905 ("Der Witz und seine Beziehung zum Unbewussten") que a brevidade era a alma do "espírito" salientando a importância dos mecanismos de "condensação" próprios do sonho e da linguagem poética.

Aumenta também, nesta época, observa Fokkema, o gosto pelo diário, ou "quase-diário": veja-se o caso de Joyce (A Portrait of the Artist as a Young Man) e o de Musil, com os já citados Aphorismen, Essays und Reden. Saliente-se ainda a importância da "corrente de consciência" (William James) e note-se como, no seu irmão Henry James, se analisa subtilmente a perda e a confusão de valo-res, outrora tidos como imutáveis, e que agora se fundem ou se desarticulam por completo na nova realidade que se impõe, social ou individual. O ho-mem tem de reaprender a lidar consigo mesmo e com o mundo em mudança à sua volta. Caminha-se para um novo tipo de herói e de escritor.

Há um eco "nietzscheano" em toda a produ-ção modernista que não deve ser ignorado. Encontramo-lo em Musil, em Mann, em Valéry, em Pessoa, e o seu cepticismo, em relação ao conheci-mento e à linguagem, será posteriormente desenvol-vido, entre outros, por Wittgenstein. Este culminará com a teorização do silêncio, para o qual tinham caminhado autores como Joyce, e que Beckett virá a dramatizar como ninguém.

Entre o argumento (a teorização, ou a multiplicidade de teorizações) e o silêncio decorre uma das fases mais interessantes da produção literá-ria do nosso tempo e a essa luz tem de ser visto o caso de Pessoa. Que acrescentará aos modelos vi-gentes um outro muito específico: o da iniciação hermética.

No poema-comentário à Epígrafe, de Eugénio de Castro ("procuremos somente a Beleza, que a vida / É um punhado infantil de areia ressequi-da..."), intitulado "Em Busca da Beleza" (1909) já F. Pessoa antecipa a "ânsia de cousa indefinida", o mal-estar tão próprio da época moderna (e não ape-nas da escola dos modernistas), a impossibilidade de achar ou definir a suprema felicidade que é, ou de-veria ser, o Belo. Em 1909 já Pessoa nos fala do "horror do real", e do "vazio": "... dois como que vales / duma montanha que ninguém subiu." Num poema posterior, "Do Vale à Montanha" (1932) apontará o caminho da iniciação como possibilidade última de justificação da existência.

Enquanto outros poetas, esgotado o entusias-mo teorizador dos "ismos" se calam, ou, não se ca-lando, fazem a apologia do silêncio, Pessoa encon-tra, entre o argumento e o silêncio, a ponte da inicia-ção. Real? Mírífica e ilusória? Pouco importa. Transparece nele tanto o fascínio da iniciação, no poema do mesmo nome, como o da verdade fingida, e porque fingida mais real, em Autopsicografia, como ainda o da espantosa descoberta de que "Basta existir para se ser completo" (no texto de Caeiro, "A espantosa realidade das coisas"...).

Entre muitas imagens, a da rosa foi escolhida por Pessoa para símbolo do mundo e da vida (do destino) no seguimento da antiga tradição dos Rosa--Cruz, pela qual o nosso poeta se interessou. Utiliza a rosa como "Sinal externo da Beleza" e [...] do silêncio que está no centro da Beleza, por ser a flor que contém em si os elementos do martírio ou sofri-mento, que são os espinhos — elementos que não há em nenhuma outra flôr das que possam simbolizar a Beleza". (Esp. 53B - 5.)

A conclusão de que o círculo (a rosa) com a cruz é o símbolo da terra, é a mesma que permite, noutro grupo de textos (Esp. 53B - 35), a meditação sobre o sacrifício imperativo do visível, do material, do terreno, face ao espiritual e divino a que só pode elevar-se o indivíduo dotado de um alto grau de ima-ginação (que se prende com o sentimento, com a alma) mais do que com o intelecto ou a vontade, qualidades que Pessoa considera apenas parciais neste processo.

Pelo sentimento se atingirá a plenitude que se esconde na Rosa "sinal externo da Beleza" e o Si-lêncio "que está no centro da Beleza" (Esp. 53B -53). Rosa e silêncio: a dimensão do Belo que se ambiciona atingir. E a voz do poeta que atravessa, em todos os momentos, o neófito que se busca a si mesmo. Como Fausto, outro dos rostos de Pessoa:

Em Mim

"Paro à beira de mim e me debruço...

Abismo... E nesse abismo o universo

Com seu Tempo e seu Espaço é um astro

e nesse/

Abismo há outros universos, outras

Formas de Ser com outros Tempos, Espaços

E outras vidas diversas desta vida...

Pode ser que nunca possuamos

Um paraíso eterno, e a vida divina

Seja (o relâmpago do pensamento!)

A realidade! A ilusão talvez

Dure pr'a sempre... Quem criou o Átomo

Ainda por criar

Pode criar uma ilusão eterna...

Altitude! Altitude! Não respiro

Passei além da realidade, ergui-me

Acima da Verdade... deus... O Ser

O abstracto ser em sua abstracta ideia

Esse próprio, o mesmo sonho divino

Apagou-se e eu fiquei em noite eterna

Eu e o Mistério face a face..."

Silêncio e mistério. Em Pessoa o simbolismo Rosa-Cruz radica em pulsões fundamentais, arquetípicas, no sentido em que Jung as definiria. Dizem respeito ao colectivo, ao essencial, ao uni-versal no homem. A Rosa e a Cruz exprimem a união dos contrários, a anulação das tensões que finalmente se harmonizam, bem como a fixação da energia cósmica, do movimento de expansão e retracção, do "pulsar" do divino — que se reencon-tra no adepto capaz de o questionar e entender2.

Vem a propósito citar um teósofo que Pessoa conheceu, provavelmente em segunda mão, através das obras de A. E. Waite constantes da sua bibliote-ca. Refiro-me a Jacob Böhme, que em Singnatura Rerum3 resumiu em nove pontos aquilo que todo o homem precisa de saber. Neste resumo encontramos algumas das preocupações mais fundas do nosso poeta. O homem precisa de saber:

1º O que é.

2º De onde lhe vêm o bem e o mal.

3º Como conduzir-se nesse bem e nesse mal.

4º Como conhecer a cura corporal e espiritual.

5º Como proceder para realizar tal salvação.

6º O que é o ser criador.

7º Quais são os mistérios das grandes maravi-lhas divinas.

8º Então despertará nele o desejo do amor e da graça de Deus.

9º Desejo que tornará manifesta nele a imagem de Deus pela vontade do Espírito.

Ao mesmo tempo que afirma, nos versos, que não sabe o que é o mistério das coisas, e que não quer saber, enfronha-se na leitura de obras que vão desde a teosofia de Annie Besant, à magia de Aleister Crowley, ao rosicrusismo e à alquimia de A. E. Waite, à maçonaria de Oswald Wirth, à astro-logia (que praticou assiduamente) e ao kabalismo. Não o confessa, mas é mesmo sobre a "constituição íntima do universo" que se debruça, como Fausto, ou Cornelius Agrippa (que Goethe também utilizou como modelo).

A par da escrita heteronímica desenvolve-se em segredo uma escrita ortónima, fragmentária, e hoje conservada no espólio. Por ela podemos ver como ao longo da vida se foi operando a busca obssessiva, contínua, se bem que não sucedida. O universo fecha-se-lhe, como se fechou a Fausto, e a Deus não se chegará nunca. Mas o que lhe parece recusado na aventura filosófico-religiosa individual é o que lhe parece dado na aventura histórica colec-tiva. E assim vemos Pessoa entusiasmar-se com a releitura do destino da pátria, retomando a tri-parti-ção joaquimita, a herança templarista, o sonho do Quinto Império. Surge do nevoeiro o corpo de Men-sagem: "Brasão", "Mar Português", "O Encoberto" — ou fixação (conquista do território) dissolução (expansão marítima) sublimação (anulado o corpo renasce a fénix do espírito). A divisão e a interpre-tação que nos sugere é de estrutura hermética, alquímica. E profética, pois na Mensagem o que se coloca é o mito do destino pátrio relido e actualiza-do em novas coordenadas: não as do mundo, como outrora, mas as da alma.

O futuro de Portugal, afirma Pessoa numa entrevista concedida à Revista Portuguesa de 13 de Outubro de 1923, encontra-se inscrito nas Trovas do Bandarra e nas de Nostradamus. E reside em "ser tudo". Qual o português autêntico, diz ele, que se contenta "com a estreiteza de ser uma só pessoa, uma só nação, uma só fé?"

E o segredo da nação — que se multiplicou, é o do próprio poeta, que se multiplicou igualmente. Pretende aqui aludir-se a uma concepção diferente de criação literária — a que ultrapassa, fundindo-os, todos os géneros. A que se transforma num exercí-cio espiritual superior, como o da transmutação do corpo e da alma na alquimia. Caeiro irrompe como a resposta ao mesmo tempo tranquila e profunda às inquietações e angústias de A. Search, o heterónimo adolescente. O conteúdo mítico de "Mensagem" alerta para o passo em frente que o poeta quer dar no sentido do grau de Mestre tal como o define no Essay on Initiation: capacidade de fusão de toda a poesia, lírica, épica e dramática em algo de superior que as trascenda, que ultrapasse a divisão dos géne-ros.

Mas já a multiplicação em Caeiro, Reis, Campos, Bernardo Soares e Fernando Pessoa ele mesmo fora um tal exercício: ultrapassar os limites e a condição do um, para chegar aos muitos, do eu para chegar aos outros — a todos — depois de uma primeira e dolorosa abdicação. Tudo e todos — através da despersonalização praticada como místi-ca ou como filosofia (apagamento e união). Estamos em condições de penetrar agora na poesia ortónima e naquele conjunto de textos que sem estas bases adquiridas dificilmente se compreenderiam. Retiro--me ao conjunto que se pode organizar desde "Além-Deus" (de 1913), passando por "Passos da Cruz" (1916), "Episódios/A Múmia" (1917), "Abdi-cação" (1920), "Natal" (1928), "Gomes Leal" (1928), "O Último Sortilégio" (1930), até "Na Som-bra do Monte Abiegno" e "Do Vale à Montanha" (de 1932), "Neste mundo em que esquece-mos" (1934), "Eros e Psique" (1934), "Iniciação" (1935) ou "No Túmulo de Christian Rosencreutz".

Estes dois aludem a mitos fundadores. Um referente à Ordem do Templo, de que Pessoa se disse iniciado por Mestre, de boca a orelha, e outro referente ao movimento Rosa-Cruz, lançado por Johann Valentin Andreae, na Alemanha do século XVII.

Em ambos se desvenda o segredo ou um dos segredos da iniciação: o que diz respeito ao adepto, à sua aprendizagem da vida, à sua descoberta dos valores da alma (seu outro-eu com o qual tem de lidar, conhecendo-o e libertando-o, como o príncipe faz com a princesa que é ele próprio). Fernando Pessoa procurou no modelo individual o colectivo, e vice-versa, num jogo de espelhos que é bem seu. A teorização de Pessoa aponta para um programa difícil de cumprir. No "Fausto" dar-se-á conta de um desespero e de uma impotência abismal (com ele estamos bem longe do optimismo redentor de um Lessing ou de um Goethe). Aqui a pulsão é de abismo, é de regresso ao caos primordial:

"Tenha eu a dimensão e a forma informe

Da sombra e no meu próprio ser sem forma

Eu me disperse e suma! ...

Ou, negrume absoluto teu, que eu seja

Apenas quem tu és e nada mais..."

("Fausto," p. 177, Monólogo à Noite)

Depois de todas as provocações e argumen-tos, depois de todos os desdobramentos agressiva-mente cultivados, depois da agitação dos "ismos" do seu tempo, assumidos, renegados, eis a redução à treva e ao silêncio, o mergulho no nada.

Como observa Italo Calvino nas suas "Lições Americanas"4, a propósito de Musil e de Proust, "a dilatação do mundo acaba por torná-lo incompre-ensíver" (p. 177). Do mesmo modo, e isso verifica--se com a obra e com o caso do Pessoa modernista, a dilatação do eu acaba por torná-lo não num mun-do, mas num buraco negro: um vórtice de absorção mortal de toda a energia. A experiência do nosso tempo, com a aventura modernista e seus sucedâne-os, pretendeu "représenter la multiplicité des relations, qu'elles soient en acte ou potentielles" (Calvino p. 179).

A ambição de exprimir o universo inteiro teve origem na Alemanha com Novalis, Goethe, e antes deles Böhme. Já Novalis tinha sonhado com o "Livro absoluto", e Flaubert, com um "livro sobre o nada". Em Pessoa, no "Livro do Desassossego", idêntico desejo toma forma: obra múltipla, obra aberta e, como nos exemplos acima referidos, obra inacabada. No seu desejo de tudo conter não poderá tomar forma, tomar forma seria uma limitação. "J'ai cherché... le Phénomène Total" escreveu Paul Valéry. O mesmo fez Pessoa. Mas acabou por cons-tatar a impossibilidade de tal obra: "E eu, verdadei-ramente eu, sou o centro que não há nisto senão por uma geometria do abismo, sou o nada em torno do qual este movimento gira, só para que gire, sem que esse centro exista senão porque todo o círculo o tem. Eu, verdadeiramente eu, sou o poço sem mu-ros, mas com a viscosidade dos muros, o centro de tudo com o nada à roda" (pp. 30-31).

"Para criar, destrui-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senão exteriormente." (p. 35)

Stephen Dowden, na obra intitulada Sympathyfor the Abyss5 estuda a "estética da perda" ("esthetic ofloss", p. 2) e a necessidade de ultrapas-sar os limites de uma representação que já não ser-ve, pois já não é adequada às experiências do artista do século XX. A "reconstrução da expressão", como lhe chama Dowden passa, nos artistas moder-nos, pela experiência do abismo. Neste sentido Pes-soa deve ser colocado entre os maiores: Kafka, Musil, Broch, ou ainda Celan, Char e Michaux.

O tempo é de silêncio, daí a valorização da via hermética. O mundo tornou-se "ilegível", tudo é "duplo", ou seja, perdeu-se a unidade, e com ela a harmonia de que o homem e o mundo deveriam ser o centro, perdeu-se a palavra mediadora, redentora, e o poeta recolhe agora ao silencioso abismo de si próprio:

"Do estudo da metaphisica, [...] passei a ocupações de espírito mais violentas para o equilí-brio dos meus nervos. Gastei apavoradas noites de-bruçado sobre volumes mysticos e de cabalistas, que nunca tinha paciência para ler de todo de outra maneira que não intermitentemente tremulo [...] Os ritos e as razões dos Rosa-Cruz, a symbolica [...] da Cabala e dos Templarios [...] — soffri durante tempos a approximação de tudo isso. E encheram a febre dos meus dias especulações venenosas, da ra-zão demoniaca da methaphysica — a magia [...] a alchimia — extrahindo um falso estímulo vital de sensação dolorosa e presciente [?] de estar como que sempre à beira de saber um mysterio supremo. Perdi-me pelos systemas secundarios, excitados da methaphysica, systemas cheios de analogias perturbantes, de alçapões para a lucidez, pondo paysagens mysteriosas onde reflexos de sobrenatu-ral acordam mysterios nos contornos."

(pp.62 - 63)

E ainda:

"Quasi sem o sabermos morde-nos uma symphatia ancestral pela magia negra, pelas for-mas prohibidas da sciencia transcendente, pelos Se-nhores do Poder que se venderam à Condenação e à Reincarnação degradada. Os nossos olhos de debeis e de incertos perdem-se, com um cio femini-no, na theoria dos graus invertidos, nos ritos inver-sos, na curva sinistra da hierarchia descendente. Satan, sem que o queiramos, possue para nós uma suggestão como de macho para femea. A serpente da Intelligencia Material enroscou-se-nos no cora-ção, como no Caduceu symbolico do Deus que co-munica — Mercurio, senhor da Comprehensão."

(pp.222 - 223)

Neste contexto o que Fernando Pessoa faz é a sua "Declaração de Differença" — título que deu ao fragmento. Interessa-se pela filosofia hermética no que ela tem de espiritual e superior, afasta-se no que possa ter de pretensão a intervir no concreto, no real, à boa moda dos bruxos ou dos magos ainda que muito sofisticados. O seu guia é Mercúrio (Hermes), o Mestre do Entendimento dos seres e da sua nature-za, o Mestre do Entendimento de Deus, como se ensina no "Pimandro". A outros não reconhece.

Assim se distancia Pessoa — não da busca, mas dos charlatães da alma que por todo o lado abundam. E assim nos reenvia para o seu verdadeiro espaço: o da língua, o da criação literária. A alqui-mia de Pessoa é, como a de Rimbaud, a alquimia do Verbo. O seu "eu" e, do mesmo modo, "outro", e mais ainda, "todos os outros". O seu caminho é o da busca e da multiplicação, o do rebentamento (como o da quilha do "Bateau lvre"), o da dissolução no mar, no abismo do inconsciente. Inconsciente que é preciso ordenar pela palavra.

O projecto de abranger tudo (o Todo da cons-ciência de que falava Paul Valéry) foi por excelên-cia o projecto de Pessoa. Multiplicou-se na obra, publicada e por publicar. Mas acabou recolhido em silêncio, como o Pai Rosa-Cruz, aquele que no poe-ma "conhece e cala".

NOTAS

1 Douwe Fokkema, Literary History, Modernism and Post-Modernism, Utrecht Publications, in General and Comparative Literature, vol. 19, Amsterdarn/Philadelphia, 1984. E ainda, Modernist Conjectures, A Mainstream in European Literature, 1910 - 1940, London, 1987 (para as obras de Joyce e Musil, entre outros). Em 1918 Musil define o poeta como aquele que tem a "mais forte consci-ência da irremediável solidão do Eu no mundo e entre os homens" (Skizze der Erkenntnis des Dichters, in Tagebucher, Aphorism, Essays und Reden, p. 781). Da solidão à incomunicabilidade vai um passo, (sobre o carácter ensaístico do seu romance O Homem sem Quan-tidades ver: Marie-Louise Roth, "Essay und Essayismus bei Robert Musil" in Problème du Moderne, Tubingen, Niemeyer, 1983).

2 Ver Y. K. Centeno, O pensamento esotérico de Fernando Pessoa (inclui textos Rosa-Cruz de interesse para esta matéria), ed. e etc., Lisboa, 1990.

3 Cito da tradução francesa: Jacob Bohme, De la Signature des Choses, ed. Sebastiani, Milan, 1975.

4 Cito da tradução francesa: Italo Calvino, Leçons Américaines, ed. Gallimard, Paris, 1988.

5 StephenE. Dowden, Sympathyfor theAbyss, ed. Niemeyer, Tubingen, 1986.

* Licenciada em Filologia Germânica e Doutorada em Litera-tura Germânica (1978). Professora na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Autora com vasta obra nos campos da poesia, da ficção e do teatro.

Tem-se distinguido com teses e ensaios de interpretação esotérica e simbólica de temas da literatura portuguesa e germânica. Membro de diversas instituições internacionais, foi condecorada pelo Prirneiro Ministro Francês (Ordem das Palmas Académicas, 1987).

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