Linguística

A FORMAÇÃO DE GILBERTO FREYRE:
Notas sobre a sua contribuição Para o estudo da Cultura Luso-Afro-Brasileira

Jorge Dias*

O impacto da obra de Gilberto Freyre manifestou-se em muitas áreas da cultura de Língua Portuguesa durante as últimas seis décadas - e tal facto tem sido geralmente reconhecido, mesmo pelos seus adversários. No Japão, porém, a sua obra é pouco conhecida ainda. Tal facto justificará este ensaio elementar.

Nascido no Recife a 15 de Março de 1900, Gilberto Freyre aprendeu inglês com o anglicano Mr. Williams e latim com o pai, notável latinista. Logo na adolescência dedicou-se ao estudo do grego. Neto de um «senhor de engenho», Gilberto cresceu num ambiente patriarcal que o marcou para sempre. Data dos seus verdes anos o seu absorvente interesse em sexologia.

Dedicou-se desde a infância Gilberto Freyre ao estudo dos clássicos e românticos portugueses: Frei Luís de Sousa, Camões e Garrett. Mas em 1915 já lia Nietzsche, Spencer, Stuart Mill e August Comte.1 Em 1916, leu Bunyan, Tolstói e Eça: Os Maias tornaram-se desde então uma das suas obras favoritas. Mas Tolstói impressionava-o acima de todos. Em 1916 escrevia no seu diário: "Que maior escritor que Tolstói? Mais amplo que o grande, o imenso, o nada frio nem boreal russo? Admirável Rússia que dá ao mundo um Tolstói. Admirável Tolstói que escreve um Guerra e Paz que não precisa ser lido em língua russa para ser não apenas mais um livro lido por um indivíduo mas vida, experiência, luz, acrescentados à pobre existência do mais simples dos leitores".

Concluiu: "O cristianismo que compreendo é o de Cristo interpretado para o homem moderno por Tolstói. Nada de eclesiasticismo: religião viva. Cristianismo fraternal, ligando os homens acima de classes e de raças: e fazendo que a gente mais instruída vá ao povo e lhe leve a sua luz".2 Inimigo da retórica altissonante em voga no tempo, Gilberto admirava então Machado de Assis e João Ribeiro, desprezava o estilo de Rui Barbosa, tinha muitas reservas acerca de Euclides da Cunha.3

Apaixonava-se então Gilberto pelo estudo da filosofia: lia em 1917 os principais filósofos gregos, bem como os do mundo moderno. O problema do conhecimento e o problema do seu destino e da sua missão, atormentavam-no: lia Schopenhauer e sobretudo Kant. Mas não sabia alemão, nem havia no Recife de 1917 minguém que lho pudesse ensinar. Viu então que devia abandonar o Brasil. Não podia ir para a Europa devido à Guerra Mundial.

Teria de ir para os Estados Unidos. Em 1917 conheceu Oliveira Lima que, depois de Franz Boas, foi a figura que exerceu influência mais poderosa na sua formação, inclusive nos estudos em que se especializaria: o patriarcado rural e a miscigenação no Brasil. Tal foi a influência do autor de D. João VI.4

Os entusiasmos germânicos de Gilberto não o impediam de admirar fervidamente o génio francês, expresso por Pascal e Montaigne. Parecia-lhe superficial a lucidez de Renan.

Não desconhecia a importância do passado brasileiro; no mesmo ano de 1917 admirava o Padre Feijó: "Foi na verdade uma figura extraordinária e é notável a amplitude de sua visão dos factos e problemas: notável num brasileiro qualquer de sua época e sobretudo num padre, com uma educação unilateral".5 Mas considerava maior José Bonifácio. Do mesmo ano data uma visita a Oliveira Lima e uma conversão ao Cristianismo Evangélico. Lia então o Pilgrim's Progress de Bunyan.6

Em 1918 partiu para o Estados Unidos, a bordo do "Curvelo". Passou alguns dias em Barbados. Humilhava-o então o facto de não saber alemão literário. Mas regozijava-se com o facto de ter duas línguas maternas, o português e o espanhol, ricas em literatura mística. Em Nova York sentiu-se desiludido com o Protestantismo: sentia pouco entusiasmo, jovem criado no patriarcalismo, pela civilização ultra-burguesa dos Estados Unidos.

Em Baylor, até 1920, Freyre seguiu cursos de História, Filosofia e Literatura. Notou que a cultura de língua portuguesa era ignorada. Numa entrada do diário, referente a 1919, escreveu:"Como nós somos desconhecidos! Quando digo 'nós' me refiro ao conjunto Portugal-Brasil como expressão literária. Ninguém lê escritor português ou brasileiro fora desse conjunto. A não ser Camões é lido por alguns eruditos. Mas Fernão Lopes, Fernão Mendes, Gil Vicente, Eça, são ignorados. Desconhecidos".7

A Universidade de Baylor parecia-lhe então muito provinciana. Decidiu partir para a Universidade de Colúmbia e depois para a Europa.

Instado para se tornar escritor de língua inglesa, recusou: "Meu dever é voltar ao Brasil. Se tiver de ser escritor, meu dever é escrever em língua portuguesa".8 Apavorava-o então a comida norte-americana. E em Waco, em 1919, ficou horrorizado perante um bairro imundo de negros:"Uma vergonha para esta civilização filistina que, entretanto, envia missionários aos 'pagãos' da América do Sul e da China, da Índia e do Japão".9 E perto de Dallas sentiu o cheiro de um negro queimado num linchamento. O que não era nada de invulgar em 1919.

No mesmo ano foi Freyre eleito sócio correspondente da Academia Pernambucana de Letras - uma distinção que o comoveu. Procurava então criar o seu próprio caminho: estudar o que o interessava, sem se profissionalizar. Sentia-se então atraído pelo exotismo romântico de Pierre Loti e Lafcádio Hearn.

Em 1919 Gilberto Freyre estudava, entre muitas outras matérias, o anglo-saxão e o alemão. O desenho e a pintura absorviam-no também. E estava sempre atento à presença do mundo hispânico: "Em San António, como em El Paso, a presença do México se faz sentir contra o imperialismo anglo-saxónico que absorveu o Texas, a Flórida, a Califórnia, sem entretanto vencer todas as resistências indo-hispânicas ao seu triunfo".10 Conhecia bem contudo os novos movimentos intelectuais: "New Poetry", "New Criticism" e "New History".

Em 1920 Gilberto encontrou William Butler Yeats: "Ficará este meu encontro com o irlandês genial como um dos grandes momentos na minha vida".11 Encontrou ainda outros poetas: Vachel Lindsay e Amy Lowell.

Em 1920 Freyre ingressou na Universidade de Colúmbia. Expressou o seu orgulho: "Sou scholar da Universidade de Colúmbia: da maior das universidades. Nenhuma outra da Europa ou da América tem hoje os museus de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais - minha especialidade - que Colúmbia reune na sua congregação'.12 Continuou nos cursos de Mestrado, seguindo as aulas de grandes mestres de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais: Franz Boas, Seligman, Giddings, John Bassett Moore, John Munro, Dewey e Hayes.

Viu que precisava de estudar Antropologia social e cultural. No mesmo ano, lia Sorel e Maurras, mestres da Direita europeia. Santayana reconciliava-o com o Catolicismo.

Impressionava-o a leitura de escritores menores, como Gissing e George Moore, ou de grandes como Henry James. Continuava relendo Montaigne, Pascal e Rabelais. Em inglês, relia Shakespeare, Swift e Defoe. Blake impressionava-o pelo modo fantástico de representar o mundo. Na Filosofia, preferia Santo Agostinho, Pascal e Nietzsche. William James e Bergson prevaleciam sobre Comte e Mill. Considerava que a superioridade de Colúmbia se baseava no seu cosmopolitismo. Mas mantinha contacto com o Instituto das Espanhas, porque pensava que, como brasileiro, pertencia ao mundo hispânico.

Em 1921 Freyre encontrava a sua verdadeira via: a valorização do regional nas artes. Lia então Fustel de Coulanges. Viu Foch homenageado na Universidade. E teve palavras proféticas: "Mas até quando poderá a França continuar a depender, na sua competição com a Alemanha, dos seus génios militares, enquanto várias de suas outras expressões de força, de organização e de vitalidade nacionais declinam melancolicamente?"13

No mesmo ano de 1921 Gilberto Freyre declarava que Bach lhe era essencial. Ia à catedral de S. João só para ouvi-lo.14 E embora a sua leitura favorita fossem os místicos e teóricos da Direita. Freyre compreendia a importância da obra de Karl Marx: "Ouvindo ontem Seligman, autor de um excelente livro sobre a 'Interpretação económica da História', falar de Marx, pensei: esses judeus, quando têm cérebro, são de facto grandes intelectuais. Grandes e influentes. Ninguém que fosse, no século XIX, um intelectual mais inflexível que Marx. É certo que ele, para desenvolver o que sistema de ideias, precisou de apoiar-se nas abstracções germânicas ou arianas de Hegel. Mas o que opôs a Hegel é criação das mais fortes. Antítese. Além do que em Marx o intelectual soube acrescentar às ideias um poder revolucionário que distancia o seu intelectualismo das simples abstracções académicas - tão dos alemães. Será o poder de influir politicamente, revelado por Marx e por intelectuais judeus dos tempos modernos, uma herança judaica vinda dos profetas bíblicos, também eles, como intelectuais que eram à sua maneira, revolucionários influentes?"15

Concluiu Freyre o ano de 1921 lendo Pio Baroja, cuja simplicidade o deslumbrou. E em 1922 dedicava-se ao estudo do freudismo e da intepretação económica da História dos Estados Unidos, elaborada por Beard. Mas concentrava-se sobretudo na obra de George Sorel, Weber e Simmel.

No mesmo ano de 1922 encontrava-se já Gilberto Freyre em Paris. Frequentava os meios da extrema-direita, onde pontificavam Maurras e Léon Daudet. Seguia cursos na Sorbonne. Considerava Maurras lúcido, mas intolerante. E concordava com ele acerca do fracasso da democracia liberal. Visitou os museus de antropologia e etnologia da Alemanha, orientado pelo seu mestre Boas. Os museus de Munique pareceram-lhe mais vivos do que quaisquer outros museus da Europa. De resto as artes de República de Weimar, particularmente o Expressionismo, interessaram-mo. Visitou Nuremberga, onde sentiu a presença de Dürer e viu em Berlim, no teatro, Os Contos de Hoffmann. Concluiu: "O Expressionismo nas artes plásticas é talvez o que há de mais expressivo de uma nova Europa: e o centro de onde irradia é a Alemanha. É Berlim. É principalmente Munique".16

Dedicava-se então Freyre a field-work de estudante de Boas (Antropologia) e de Giddings e Thomas (Sociologia). Meditava na elaboração de uma "História da vida de menino" no Brasil, dos tempos coloniais à actualidade. Lia Tarde e Durkheim e preparava documentação fotográfica. Entre as suas outras leituras contavam-se tradicionalistas católicos como Alceu Amoroso Lima e Jackson de Figueiredo.

Também o interessavam figuras como Fernando de Azevedo e o "extraordinário" João Ribeiro, "para a realização de uma obra renovadora da cultura brasileira". Meditava: "É uma cultura que precisa justamente do que eles lhe estão começando a trazer: novas perspectivas. Necessitamos de novo sentido de relações do Brasil com a Europa. Com a Europa e com os Estados Unidos. Também de uma nova consciência de nossas origens africanas e de nossas raizes ameríndias".17

Naquele ano de 1924 Freyre preparou um plano para uma publicação comemorativa do l° Centenário do Diário de Pernambuco. Era "um plano regionalista, hispanista e americanista". A parte essencial era dedicada ao Nordeste Brasileiro: "sua geologia, sua significação nacional, suas possibilidades económicas, seus pontos de contacto e de diferença com outras regiões do país".18 Particular relevo era atribuído a Pernambuco, nomeadamente à história da família como unidade social e económica (aristocracia rural dos engenhos).

Percorria então a zona mais antiga de engenhos de Pernambuco e de Alagoas, tendo ainda atravessado a Paraíba com José Lins do Rego. Em 1925 escrevia: "O que venho absorvendo de livros em várias línguas estes últimos anos talvez chegue a ser assombroso".19 Lia então Strachey: "Não há dúvida: renovou a arte da biografia".20

O período de estadia nas universidades americanas fora, em conclusão, fundamental para Gilberto Freyre. Em Baylor bacharelara-se em Artes Liberais especializando-se em Ciências Políticas e Sociais. Em seguida fizera estudos de pós-graduação (Mestre e Doutor) de Ciências Políticas, Jurídicas e Sociais na Universidade de Colúmbia.

Sobre a figura que mais o influenciara escreveu num prefácio à Casa-Grande & Senzala: "O Prof. Franz Boas é a figura de mestre de que me ficou até hoje maior impressão. Creio que nenhum estudante russo, dos românticos, do século XIX, preocupou-se mais intensamente pelos destinos da Rússia do que eu pelos do Brasil na fase em que conheci Boas. Era como se tudo dependesse de mim e dos de minha geração. Era da nossa maneira de resolver questões seculares". Continuou: "Foi -o estudo de Antropologia sob a orientação do Prof. Boas que primeiro me revelou o negro, o mulato, no seu justo valor - separados dos traços de raça os efeitos do ambiente ou da experiência cultural. Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura".21

Desde o seu regresso da Europa, Gilberto Freyre dedicara-se à pesquisa histórica e sociológica. Propagara, através de artigos na imprensa e conferências, os seus conhecimentos adquiridos no estrangeiro. Divulgara autores de língua inglesa desconhecidos no Brasil (Amy Lowell, Yeats, Mencken, Lindsay, Joyce, os Brownings), além de Whitma, Done, Blake, escritores franceses (como Proust e Valéry-Larbaud), espanhóis e italianos, além de pintores e teatrólogos, como os expressionistas alemães e os plásticos mexicanos.

Rodeado um grupo de jovens intelectuais (Olívio Montenegro, Cícero Dias, Lins do Rego e outros), influenciou-os no sentido de nova descoberta do Brasil, em particular do Nordeste, procurando o mais representativo e típico de suas tradições. Inspirou assim o "movimento regionalista e tradicionalista do Recife" que ali se realizou 1923 a 1928. Em 1926 organizou o Congresso Regionalista - o primeiro a realizar-se na América, onde lançou o seu Manifesto Regionalista. Daquele movimento sairia um grupo de escritores (entre os quais José Américo de Almeida. Jorge de Lima e José Lins do Rego). Abriu assim caminho para o advento do Romance Nordestino.

Em Salvador, preparando-se para a sua obra futura, Freyre pesquisou as coleções do Museu Afro-Brasileiro de Nina Rodrigues. Em 1930, no seu exílio de Lisboa, prosseguiu as pesquisas em idênticas áreas. Em 1931, foi convidado para professor-visitante da Universidade de Stanford. Ao atravessar o Deep South deparou com uma região marcada por um regime patriarcal idêntico ao que existira no Brasil. Nas bibliotecas, arquivos e museus dos Estados Unidos encontrou elementos para a sua obra, baseados em obras raras que consultou.22 O período de formação básica do escritor terminara: no início da década de 30 ia empreender a composição da sua obra fundamental.

Na década de 20 Gilberto Freyre publicara Social Life in Brazil in the middle of the 19th Century (Baltimore, 1922), além de alguns artigos e opúsculos.

Gilberto Freyre comentou deste modo a sua obra-prima, publicada em 1933:

"Ao escrever Casa-Grande & Senzala, procurou o seu autor - que, concordando com o Professor Fernando Braudel, se considera escritor filiado principalmente à tradição espanhola de Ramón Lúlio: remoto espanhol que para compreender o islamismo desdobrou-se em mouro - desdobrar-se em personalidades complementares da sua e que o auxiliassem na percepção de uma realidade múltipla e complexa. Levou esse desdobramento de personalidade ao extremo arriscado, perigoso mesmo, de desdobrando sua personalidade de origem etno-cultural e de formação sócio- cultural além de principalmente europeias,principalmente senhoris, procurar sentir-se também, em seus antecedentes e no seu próprio ethos, não só senhoril como servil; não só europeu como não-europeu: ou especificamente indígena, mouro, judeu, negro, africano e, mais do que isto: mulher, menino, escravo, oprimido, explorado, abusado, no seu ethos e no seu status, por patriarcas e por senhores. Daí ser Casa-Grande & Senzala um livro múltiplo em suas perspectivas; contraditório, até, no seu perspectivismo; passível da acusação de negrófilo."23

A perspectiva de Freyre não é, de facto, tão múltipla como pretende: há na obra um anti-semitismo subterrâneo, absorvido através do seu contacto com Léon Daudet e com os outros homens da "Action Française" e do "Integralismo Lusitano." Mas a obra apresenta a "interpenetração de disciplinas sociais" que tanto seduziu os sociólogos europeus do tempo. Considerou-se um precursor de David Riesman: "Ensaio sociológico ao mesmo tempo que antropológico-social e ecológico-social: histórico-cultural; cientifico sem deixar de ser humanístico".24

Assim afirmou no Prefácio-Síntese para a edição portuguesa de Casa Grande & Senzala. Fora inspirado, continuou Freyre, pelo exemplo dos Goncourt, pelo de Proust e de Henry James: queria esboçar uma história social que fosse também história psicológica.25

No início da sua obra-prima Freyre traçou as características gerais da colonização portuguesa do Brasil: formara-se uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida. Considerou o povo português um povo indefinido entre a Europa e a África, cujo traço típico era a bicontinentalidade. Por isso os portugueses triunfaram onde outros europeus falharam: de formação portuguesa foi a primeira sociedade moderna constituída nos trópicos com características nacionais e qualidades de permanência. Os portugueses estabeleceram a "colónia de plantação", usando uma técnica económica e uma política social inteiramente novas. Para Freyre a família patriarcal instalada na «casa-grande» foi o grande factor colonizador do Brasil. Os jesuítas contribuíram como educadores para moldar a sociedade colonial: o Catolicismo foi o cimento da unidade brasileira. A monocultura, a escravatura e o latifúndio constituíam as bases do sistema económico instalado no Brasil. Pela poligamia formou-se uma sociedade híbrida; mas à vantagem da miscigenação correspondeu a desvantagem tremenda da sifilização. E por outro lado o sistema da escravatura facilitou o sadismo e o masoquismo nas relações entre senhores e escravos. Para Freyre, em conclusão, a formação brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos. Predominando sobre todos eles o mais profundo antagonismo: o que havia entre senhor e escravo.

Freyre estudou a seguir o papel do indígena na formação da família brasileira. Sustenta que a sociedade brasileira, híbrida desde o início, é a que se constituiu mais harmoniosamente quanto às relações de raça: "Organizou-se uma sociedade cristã na superestrutura, com a mulher indígena, recém-baptizada, por esposa e mãe de família; e servindo-se em sua economia e vida doméstica de muitas das tradições, experiências e utensílios da gente autóctone".26 Caracterizou a cultura Índia do Brasil como inferior à da maior parte das áreas de cultura africana.

Freyre expõe a seguir a sua teoria acerca da influência jesuítica no Brasil: "O imperialismo económico da Europa burguesa antecipou-se no religioso dos padres da S. J.; no ardor europeizante dos grandes missionários católicos dos séculos XVI e XVII, depois substituídos pelos presbiterianos e metodistas - estes ainda mais duros e mais intransigentes do que os jesuítas".27 O que levaria Freyre a envolver-se em polémicas com jesuítas.

Segundo Freyre foi sobretudo o elemento feminino da cultura índia que se revelou útil para os colonizadores: a agricultura e a culinária. A sociedade brasileira formara-se em suma biologicamente pela miscigenação, economicamente pela técnica escravocrata de produção e sociologicamente pela interpenetração de culturas.

Freyre estuda depois o colonizador português: considera-o sobretudo um contemporizador. Nasorigens remotas dos portugueses encontra uma formação cosmopolita e heterogénea. Nisto segue as pisadas de António Sérgio e Lúcio de Azevedo. Aponta a grande influência árabe que passou ao Brasil, na arte do azulejo, na arquitectura e na culinária. Quanto aos judeus é evidente a antipatia de Freyre, já mencionada antes: "Em essência o problema do judeu em Portugal foi sempre um problema económico, criado pela presença irritante de uma poderosa máquina de sucção operando sobre a maioria do povo, em proveito não só da minoria israelita como dos grandes interesses plutocráticos".28

Para Freyre, como para António Sardinha, o judeu era uma ave de rapina. Mas nota que o sangue da melhor nobreza de Portugal se mesclou com o da plutocracia hebreia. Admitiu que os judeus se notabilizavam pela sua cultura intelectual e científica. Mas para Freyre a sua actividade era parasitária, não criadora.

O mais importante dos capítulos da obra refere-se ao papel do escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. Afirma Freyre a superioridade técnica e de cultura dos africanos e garante a sua predisposição biológica e psíquica para a vida nos trópicos. Acentuou que não só bantos vieram para o Brasil. Vieram também muitos sudaneses, alguns dos quais islamizados, de cultura superior. Impugna as teorias racistas de Nina Rodrigues, para quem os negros eram uma raça inferior e as teses de Oliveira Viana, "o maior místico do arianismo", afirmando: "Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantadas foram um elemento activo, criador, e quase se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil; degradados apenas pela sua condição de escravos".29

Com imensa erudição procurou Gilberto Freyre comprovar esta teoria: estudou-a no folclore, na medicina, na religião e na sexualidade. Esta é possivelmente a parte mais válida do livro, escrito numa década, como a de 30, saturada pelas teorias racistas do nazismo e do fascismo.

Defendeu ainda Freyre a tese de que a tendência mais genuinamente portuguesa e brasileira se orientou no sentido de favorecer o mais possível a ascensão social do negro.

Particularmente picaresca é a descrição da vida do «senhor de engenho» da lavoura açucareira:"Ociosa, mas alagada de preocupações sexuais, a vida do senhor de engenho tornou-se uma vida de rede. Rede parada, com o senhor descansando, dormindo, cochilando. Rede andando, com o senhor em viagem ou a passeio debaixo de tapetes ou cortinas. Rede rangendo, com o senhor copulando dentro dela".30 Nota porém que em momentos de perigo aqueles aristocratas efeminados se notabilizaram pela bravura.

Mas para Gilberto Freyre foi o negro que animou a vida doméstica do brasileiro com a sua alegria. Portugueses e caboclos eram melancólicos. Teria sido o negro que inundou das reminiscências alegres de seus cultos totémicos e fálicos as festas populares do Brasil.

Na sua obra seguinte, Sobrados e Mocambos (S. Paulo, 1936) Gilberto Freyre reelaborou e continuou a teoria precedente. Sustentou que dentro de uma sociedade patriarcal e até feudal como foi a do Brasil, os elementos básicos da população eram famílias e classes separadas por raças. Para ele de importância capital era o status religioso e não o de raça; o status político e não de cor. Salientou a grande importância de configurações regionais de cultura, como a caipira, a sertaneja ou a gaúcha.

Através da obra, Freyre insistiu na importância da situação regional: "Ser senhor de engenho foi, de modo geral, situação dignificante ou nobilitante na sociedade patriarcal ou tutela brasileira. Mas essa situação sofreu sempre restrições consideráveis impostas pela condição regional do senhor ou do senhorio. Não era o mesmo ser senhor de engenho de rapadura no Piauí ou de engenho de mandioca em Santa Catarina, do que de açúcar em Pernambuco ou no Recôncavo da Baía - regiões dos melhores engenhos de açúcar e das melhores terras de cana".31

Freyre lamentou a seguir a opressão das culturas não europeis pela dominante, dos valores rurais pelos urbanos, das expansões religiosas e lúdicas da população servil. No século XIX perseguiram-se os batuques, os candomblés, os maracatus de escravos. Isto torna Freyre bastante elegíaco.

Atribui Gilberto Freyre grande importância à influência do Oriente no Brasil patriarcal.

Nota que o manejo de novas máquinas e técnicas valorizava negros e mulatos, porque a máquina diminuía a importância do senhor e do escravo. Valorizava o mestiço, o mulato, o meio sangue e o branco pobre. Ascenderam então o bacharel e o mulato. As principais revoluções do século XIX foram feitas por bacharéis frustrados. Concluiu: "O Brasil parece que nunca será, como a Argentina, país quase europeu; nem como o México, ou o Paraguai, quase ameríndio. A substância da cultura africana permanecerá em nós através de toda a nossa formação e consolidação em nação".32 Continuou: "No Brasil uma coisa é certa: as regiões ou áreas de mestiçamento mais intenso se apresentam as mais fecundas em grandes homens".33 Citou como exemplos a Baía (a Virgínia brasileira), o Maranhão (onde nasceu o maior dos mestiços, Gonçalves Dias) e Minas Gerais, outra região de mestiçamento intenso.

Segundo Gilberto Freyre, o poder, durante o sistema patriarcal, esteve encarnado em homens brancos ou quase brancos e de cultura quase exclusivamente portuguesa e católica.

Em 1937 Gilberto Freyre publicou Nordeste. Afirmou: "A monocultura, a escravidão, o latifúndio - mas principalmente a monocultura -aqui é que abriram na vida, na paisagem e no caracter da gente as feridas mais fundas".34 Estudou as relações entre a terra e o homem e o efeito devastador da monocultura sobre a ecologia da região. Anos depois Freyre apresentou uma síntese: "Com o Açúcar fabricado em engenhos, com a cana plantada em bom massapé, com o canavial plantado em largas extensões tropicalmente húmidas, em Pernambuco e na Baía mais do que nas pioneiras terras de São Vicente, começou a haver no Brasil uma economia sistemática, uma sociedade estável, uma população miscigenada, uma cultura predominantemente europeia enriquecida de valores ameríndios e negros africanos, por um lado, e judeus e orientais, por outro. Valores assimilados pelo colonizador oficialmente católico, oficialmente monogâmico, oficialmente branco, sem que a essas realidades oficiais correspondessem de todo, realidades biossociais".35

No início da década de 40 estava completada a formação básica de Gilberto Freyre e tinha sido escrita a parte essencial da sua obra. Ele próprio escreveu a propósito de Casa-Grande & Senzala: "Não escrevi esse livro porque desejasse escrevê-lo ou o planejasse e sim porque precisava de descarregar nele toda uma sobre-carga de autoanálise desenvolvida em análise dos meus antecedentes brasileiros, tropicais, ibéricos, europeus. Desde adolescente eu vinha acumulando esse luxo de carga analítica e, a meu modo, me psicanalisando e psicanalisando o meu 'eu' mais amplo. O livro é eminentemente autobiográfico, além de autoanalítico. Foi o interesse pela minha própria pessoa que me levou a interessar-me pela sua ecologia, sua história, sua antropologia".36 Concluiu que as circunstâncias favoreceram uma explosão estética, psicológica e intelectual, de ordem sociológica e filosófica: uma contribuição para "uma filosofia existencial de interpretação do homem como ser situado".

José Honório Rodrigues comentou a propósito da obra de Gilberto Freyre: "O plano da Casa-Grande & Senzala encontrou seu desenvolvimento num período posterior em Sobrados e Mocambos, que Gilberto Freyre completou com Ordem e Progresso. (...) De modo que a decadência do patriarcado rural, que se iniciara a partir da chegada do Príncipe Regente, com a fundação das cidades e os primeiros inícios de uma burguesia urbana, com a fundação em 1827 das Faculdades de Direito, portanto, de um bacharelismo citadino e livresco, tem a sua fase por assim dizer final de vida por volta de 1850-1875. Inicia-se aí uma era industrial, com o desenvolvimento enorme da civilização material do Brasil". Concluiu: "Poder-se-ia, assim, dizer que o que há entre 1850 e 1888 é apenas uma aparência de grandeza e de domínio rural, ou seja, uma época de transição do patriarcado rural para a burguesia urbana. 1888 seria, então o extremo dessa fase, porque daí em diante nem a liturgia, nem o ritual, que dão a aparência de grandeza às instituições, existem mais, iniciando-se, já, a substituição do trabalho escravo pelo livre".37

A partir da década de 40, concluída a sua fase criadora, Gilberto Freyre continuou a revelar grande interesse pelo mundo que o rodeava, embora dentro de uma perspectiva bem conservadora: era citado com frequência pelos ideólogos do Estado Novo português.38

Ilustração de Carlos Marreiros

Escreveu sobre artes (particularmente Arquitectura e Pintura), sobre ciências sociais, sobre Direito e Ciência Política, sobre Ecologia, sobre Educação, sobre História e sobre Sociologia. Entrou nos domínios das ciências biomédicas, da Filosofia e da Religião, da Ficção, da Memorialística e da Poesia.

Pioneiro da inter-regionalidade e da interdisciplinaridade, defensor da tese do Luso-tropicalismo, esboçada em 1951 no Instituto de Goa, autor de páginas esplendorosamente evocadoras do velho Recife e de figuras como Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, Gilberto Freyre defendeu sempre os valores agrários e reagiu contra o pan-industrialismo proposto pelo Presidente Juscelino Kubitschek.

Acima de tudo defendeu a teoria da existência de uma civilização luso-tropical e o conceito do caracter transnacional da língua portuguesa ao serviço daquele complexo.39

Finalmente deve assinalar-se quão original e singular foi a contribuição de Gilberto Freyre para a reabilitação do Negro. Conduziu à sistematização de esforços até então isolados, dispersos e até contraditórios como o de Sílvio Romero.

Durante o século XIX glorificara-se o ameríndio na música, na literatura, nas artes plásticas. Tornou-se o fulcro do que deveria ser considerado autenticamente brasileiro. Da figura do índio selvagem fizera-se a representação simbólica do Brasil. A música brasileira, ouvida entre apoteoses no Scala de Milão, era a de «O Guarany» de Carlos Gomes. E a língua literária do Brasil definira-se em obras de inspiração rasgadamente indianista: nos poemas de Gonçalves Dias e na prosa de José de Alencar. Era portanto necessário reabilitar o negro, sem menosprezar o índio. Concluiu Freyre: "Dessa reabilitação do negro vem resultando, na pintura, os negros de Portinari e de Cícero Dias, as mulatas de Di Cavalcanti, as rainhas de Maracatu de Lula Cardoso Ayres: na música, toda uma fluência de motivos afro-brasileiros; no teatro, o "Cristo Negro", de Ariano Suassuna; no cinema, o "Orfeu Negro"; na literatura, "Jubiabá" e "Moleque Ricardo".40 Mas não esqueceu o verbo negro do poeta de "Essa Nêga Fulô": "Jorge de Lima, um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos, enriquece o brasileiro das áreas menos coloridas pela influência africana, com a expressão poética de sua experiência de nordestino de bangué nascido e criado perto dos últimos "pombais negros" de que falou Nabuco".41

Através de toda a obra de Gilberto Freyre vibra a consciência de um homem que compreendeu, com lucidez a agudeza, quão formidável foi a expansão portuguesa. No fim de 1939, acompanhado por José Lins do Rego. Vianna Moog e Dante de Laytano, percorreu todo o Rio Grande do Sul. Viu a fronteira, estâncias, charqueadas, as Missões, "restos da obra monumental dos jesuítas, a velha parte mais açoriana ou lusitana do Estado, gaúchos a cavalo pelas campinas", a Serra, as áreas coloniais. Participou de um churrasco em Uruguaiana.

Concluiu: "O que vimos no Rio Grande do Sul nos convenceu, a José Lins do Rego e a mim, da força extraordinária do português como colonizador e como missionário. No Brasil inteiro, e não apenas na Baía e no Rio, em Pernambuco ou no Pará, ele deitou, antes de qualquer outro europeu ou cristão, raízes de cultura tão cheias do poder de expansão do trópico e de penetração da terra americana que é essa cultura a mais caracteristicamente brasileira não apenas no Norte ou no Centro como no extremo Sul do país.

Essas impressões e observações resumi-as já noutros trabalhos, "principalmente em" O Mundo que o Português criou".42

Publicado in Revista de Cultura,

N° 2, I Série, Julho/Setembro de 1987.

NOTAS

1 Gilberto Freyre, Tempo Morto e Outros Tempos, Trechos de um diário de adolescência e primeira mocidade. (1915-1930). (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio, 1975) p. 5.

2 Freyre, Ibid., p. 11.

3 Freyre, Ibid., p. 12.

4 Freyre, Ibid., p. 13. Freyre, "As memórias de Oliveira Lima", Prefácio a Oliveira Lima, Memórias (Rio, 1937), p. V-X..

5 Freyre, Ibid., p. 17.

6 Freyre, Ibid., p. 20.

7 Freyre, Ibid., p. 29.

8 Freyre, Ibid., p. 31.

9 Freyre, Ibid., p. 32.

10 Freyre, Ibid., p. 38.

11 Freyre, Ibid., p. 40.

12 Freyre, Ibid., p. 43.

13 Freyre, Ibid., p. 51.

14 Freyre, Ibid., p. 53.

15 Freyre, Ibid., p. 65. Freyre não parece ter alterado depois o seu conceito de Marx. Em 1957 afirmou: "O lugar de Marx nos parece ao lado de Hegel, de Saint-Simon, de Comte, de Ward, de Spencer: ao lado dos fundadores mesmos da Sociologia moderna. (...) Faltou de todo a Marx o critério antropológico-cultural ou antropológicosocial de aproximar-se dos problemas sociais do homem." Gilberto Freyre. Sociologia. (2å ed., Rio. 1957).

Mencionado em Seleta para Jovens de Gilberto Freyre, organizada pelo autor, com a colabor ação de Maria Elisa Dias Collier. (Rio de Janeiro. 2. å ed. José Olympio, 1975) p. 64.

16 Freyre, Ibid., p. 90.

17 Freyre, op. cit., p. 148. Admirava já a pintura de Cícero Dias que expressava "o lirismo e a sensualidade" do mundo pernambucano. Prefácios Desgarrados (Brasília, Livraria Cátedra, Rio de Janeiro, 1978). I. p. 9.

18 Freyre, Ibid., p. 150.

19 Freyre, Ibid., p. 168.

20 Freyre, Ibid., p. 169.

21 Renard Pérez, "Gilberto Freyre". Escritores Brasileiros Contemporâneos (Rio, 1971), 2a série, pp. 134-136.

Pérez, Ibid., pp. 137-138.

23 Gilberto Freyre, Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo (Brasília, 1968). Seleta, p. 90.

24 Gilberto Freyre, "Prefácio-Sintese para a edição portuguesa de Lisboa", in Casa-Grande & Senzala (Lisboa, s. d.), p. 7.

25 Ibid., p. 13, Casa-Grande foi planeado em Lisboa, entre visitas à Biblioteca Nacional e ao Museu Etnográfico. Prefácios Desgarrados (Brasília, 1978). I, p. 400. No exílio, em 1931.

26 Ibid., p. 99.

27 Ibid., p. 115.

28 Ibid., p. 224.

29 Freyre, Ibid., p. 299 Em 1934 Freyre foi um dos organizadores do Congresso Afro-Brasileiro, em que participou o pintor Lula Ayres, com desenhos de xangô.

30 Freyre, Ibid., p. 409.

31 Gilberto Freyre, Sobrados e Mucambos - Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano. (Rio de Janeiro, 1968) II, p. 369. Defendia a tese de que a família cristocêntrica teria sido a unidade civilizadora.

32 Ibid., II, p. 650. Historiadores marxistas, como Prado Junior e Astrojildo Pereira, além de Nelson Werneck Sodré, contestaram a teoria cristocêntrica.

33 Ibid., II, p. 660. Raymundo Faoro, historiador-sociólogo, autor de Os Donos do Poder, negou qualidades feudais ao poder das famílias patriarcais na formação do Brasil.

34 Gilberto Freyre, "Prefácio à 1a edição" de Nordeste - Aspectos da influência da cana sobre a vida e a paisagem do Nordeste do Brasil (Rio de Janeiro. José Olympio Editora, 4a ed., 1965), p. XII.

35 Gilberto Freyre, "Identificação do Açúcar com o Brasil", Prefácios Desgarrados (Rio de Janeiro, Livraria Editora Cátedra, 1978). I, p. 351. Prefácio a O Açúcar e o Homem de Mário Lacerda de Melo. Até 1940. Gilberto Freyre publicou algumas obras secundárias:

Açúcar (Algumas receitas de Doces e Bolos dos Engenhos do Nordeste), (Rio, 1939), 2a edição ampliada: Açúcar (Em torno da Etnografia, da História e da Sociologia do Doce no Nordeste Canavieiro do Brasil), (Rio, 1969). Olinda - 2° Guia Prático. Histórico e Sentimental da Cidade Brasileira, (Rio, 1939).

Diário Íntimo do Engenheiro Vauthier (Rio, 1940), (Prefácio e Notas). O Mundo que o Português criou (Aspectos das Relações Sociais e de Cultura do Brasil com Portugal e as Colónias Portuguesas. Pref. De António Sérgio. (Rio, 1940).

Embora se considerasse sem qualidades pedagógicas, Freyre inspirou toda a carreira literária de José lins do Rego.

36 Freyre, Seleta, p. 152.

37 José Honório Rodrigues, "Periodização", Teoria da História do Brasil (Companhia Editora Nacional, 3a Edição, São Paulo, 1969), pp. 142-143.

38 Franco Nogueira, Salazar (Coimbra, 1980), IV, p. 23. Afirma Nogueira: "No Brasil, é criada a Sociedade dos Amigos da Democracia Portuguesa, e homens eminentes exprimem a sua solidariedade ao M. U. D.. Entre eles, os mais consagrados escritores brasileiros: Manuel Bandeira, Gilberto Freyre, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Joracy Camargo, Carlos Drummond de Andrade". Isto passava-se em 1945. A amizade pela Democracia, por parte de Freyre, parece ter-se reduzido depois. Em 1960 louvou o "senso ético" de Salazar, encontrando-lhe "virtudes desejáveis num renovador político." Prefácios, I, pp. 252-253.

39 São de grande importância os seguintes prefácios:

"O negro na Bahia." Prefácios Desgarrados. I,

"Antropologia", pp. 145-153.

"Problemas de miscigenação vistos por um humanista", Ibid., pp. 218-221.

"Identificação do açúcar com o Brasil," Ibid., pp. 350-353.

"Inter-regionalidade e interdisciplinaridade," pp. 520-523.

"Nina Rodrigues recordado por um discípulo," Ibid., II, pp. 538-544.

"Pequeno guia da cidade do Recife," Ibid., pp. 610-633.

"O romance brasileiro," Ibid., pp. 715-734.

"Euclides da Cunha, revelador da realidade brasileira," Ibid., pp. 757-776.

"José de Alencar, renovador das letras e crítico social," Ibid., pp. 801-821.

"Os poemas negros de Jorge de Lima." Ibid., pp. 837-843.

"Euclides da Cunha diarista," Ibid., pp. 875-890. Foram publicados dois livros importantes sobre Gilberto Freyre:

Diogo de Melo Meneses, Gilberto Freyre (Rio, 1944).

Várias, Gilberto Freyre: sua Ciência, sua Filosofia, sua Arte, 64 ensaios sobre G. F. e sua influência na moderna cultura do Brasil. Obra comemorativa do jubileu de prata de Casa-Grande & Senzala (Rio, José Olympio, 1962). Útil, embora bastante hagiográfico.

40 Freyre, Prefácios Desgarrados, II, pp. 89-90. Prefácio à obra de Noémia Mourão. Arte Plumária e máscaras de dança dos índios brasileiros (São Paulo, 1971).

41 Freyre, Ibid., II, p. 842. Prefácio à obra de Jorge de Lima. Poemas Negros (Rio, 1947). Gilberto Freyre opunha-se a "rígidos segregacionismos": entendia que não haverá lugar "nem para o pan-africanismo, baseado na chamada "negritude", nem para o pan-arianismo fundado no muito ariano. Será um mundo de crescente interpenetração, quer no plano étnico, quer no plano cultural". Prefácios, I, pp. 256-257. Título do prefácio: "O socialismo democrático de John Strachey".

Gilberto Freyre acentuou sempre o caracter cristocêntrico da expansão hispânica (particularmente da portuguesa) opondo-o ao caracter etnocêntrico da expansão nórdica. Apoia-se na obra do historiador-sociólogo indiano K. M. Panikkar Asia and Western Dominance (Londres, 1953). "A propósito de Morão, Rosa e Pimenta", Prefácios, II, p. 572.

42 Freyre, "Almanaque de Rio Pardo", Prefácios, II, pp. 588-589. Chegou a estas conclusões depois de conversar com filhos de alemães em São Leopoldo, com filhos de italianos em Caixas e com descendentes de índios de São Miguel.

Pelas características da sua formação e da sua subsequente actividade intelectual poder-se-ia incluir Gilberto Freyre dentro de uma linhagem de generalistas do mundo ibérico: a que vai de Vives a Unamuno, de Menéndez y Pelayo a Ramón y Cajal, de Acosta a Gregório Marañon. Generalistas eram também os antropólogos-sociólogos a que alude frequentemente: figuras como Frazer. Ruth Benedict, Simmel. Mumford and C. P. Snow. "Em torno da importância pan-ibérica da obra de Julián Marías." -Prefácios, II, p. 680-681.

Como afirmou o antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, Freyre parece ultrapassar pela vastidão e escopo os historiadores sociólogos da Europa, como Mare Bloch e Lucien Fèbvre. E Roland Barthes admitiu também o caracter pioneiro da obra de Freyre.

Gilberto Freyre será sempre particularmente recordado pela influência que exerceu sobre Lins do Rego. Sustentou que sob o patriarcalismo dos velhos engenhos houve, em geral, melhor assistência ao trabalhador que na grande maioria das usinas de hoje". Isto apesar da "dureza e até crueldade na exploração do escravo pelo branco da casa-grande." A vida era "mais doce e humana" nos antigos engenhos. A usina teria separado o grande proprietário do operariado e da paisagem e dos rios:"Desapareceu quase todo o lirismo nas relações do homem com a paisagem, com a mata, com o animal, com a rio, com a planta, com a terra, com os outros homens", "Memórias de um senhor de engenho", Prefácios, II, pp. 870-871. Esta visão saudosística e elegíaca é a mesma do autor de Fogo Morto. Noutro ensaio escreveu ainda Freyre: "Já existe sobre os engenhos do Nordeste obra monumental: a do escritor paraibano de formação recifense José Lins do Rego. Mas a esse monumento de literatura regional falta a presença do sobrenatural em suas formas ou expressões mais caracteristicamente regionais. Falta-lhe a constância ou a recorrência de lobisomens, almas penadas e caiporas de engenho. É uma catedral quase sem quimeras, alevantada pelo grande escritor paraibano, talvez afastado do quimérico ou do fantástico pela sua preocupação de realismo absoluto". "O lobisomem da porteira velha". Prefácios, II, pp. 825-826. Lins do Rego, por sua vez, no prefácio de Região e Tradição, admitiu que ele próprio e a sua obra eram um produto do magistério e da influência de Gilberto Freyre.

Existe uma tradução japonesa de uma obra de Gilberto Freyre, Novo Mundo nos Trópicos: Mikio Matsumoto. Netai no shin-sekai Burajiru Bunka-Ron no Hakken (Tóquio, 1979). O poeta João Cabral de Melo Neto consagrou assim a contribuição de Gilberto Freyre:

Casa-Grande & Senzala,

Quarenta anos

Ninguém escreveu em português

No brasileiro de sua língua:

esse à vontade que é o da rede,

dos alpendres, da alma mestiça,

medindo sua prosa de sesta,

ou prosa de quem se espreguiça.

Poesia Crítica - Antologia.

(Rio de Janeiro, José Olympio, 1982), p. 60.

Este é o preito de um patrício do Recife. Outros põem em dúvida a sua interpretação da democracia racial e a importância da conciliação como virtude histórica da classe dominante. Florestan Fernandes "revelou o racismo ("Brancos e Pretos em São Paulo") que seria sistematizado na grande tese "A Integração do Negro na Sociedade de Classes". Maria Yedda Linhares. "A Ditadura em Questão, de Florestan Fernandes. "Veja, 17 de Fevereiro de 1982.

Ninguém contudo evocou como Gilberto Freyre a paisagem do Nordeste, a despeito das suas controversas interpretações sociológicas: "Da paisagem que Minha Formação evoca não há exagero em dizer-se que é a mais brasileira das paisagens: a do canavial; a do trópico húmido, onde, com o canavial, desenvolveu-se a primeira civilização que deu expressão mundial ao Brasil; e que foi a civilização do açúcar, a do engenho; a do rio ao serviço dos engenhos. É a paisagem das pinturas do holandês abrasileirado Franz Post e dos óleos um tanto aflamengados de Telles júnior, das marinhas de Rosalvo Ribeiro e das vistas panorâmicas de Nassally". "Joaquim Nabuco e sua formação". Prefácios Desgarrados, II, p. 1004.

Em 1981 foi publicada a edição portuguesa da Seleta para Jovens. Freyre foi então objecto de homenagens. O Embaixador Castro Alves e Dinah Silveira de Queiroz ofereceram-lhe um jantar, com a presença do Ministro português da Cultura e Ciência. Lucas Pires. "Aliás, os 80 anos de Gilberto Freyre, em 1980, foram comemorados em todo o Brasil, como era justo, a nível oficial e cultural". - Luís Forjaz Trigueiros, "Textos Escolhidos de Gilberto Freyre", Jornal de Letras (Direcção de Elísio Condé) n° 366. Dezembro de 1981, 2° caderno, p. 5.

* Professor de Português na Universidade de Kioto, escritor e ensaista.

desde a p. 127
até a p.