Linguística

MACHADO DE ASSIS E A SUA LIRA CHINESA

Edgar Colby Knowlton Jr.*

Em 1870, talvez o mais distinto escritor brasileiro, Machado de Assis, incluiu no seu volume de poesias, Falenas (Borboletas nocturnas), um conjunto de oito poemas agrupados sob o título: Lira chinesa. 1

Segundo a Bibliografia de Machado de Assis, de J. Galante de Sousa,2 os poemas foram descritos pelo próprio Machado de Assis numa nota em que ele diz que os poetas imitados na colecção eram todos contemporâneos, e que ele os tinha descoberto num livro publicado em 1868 (sic) por Judith Walter, uma distinta viajante da qual se dizia ter um profundo conhecimento da língua chinesa. Não é certo se ele pretendia dizer que os poetas eram modernos e se considerava que a escritora francesa tinha adquirido os seus conhecimentos de Chinês durante as viagens. De qualquer forma, Tin-Tun-Sing (ou Tin-Tun-Ling) era contemporâneo de Judith Walter (Gautier) e a autora de O leque, Tan-Jo-Lu ou Senhora Pan, viveu antes do começo da era de Cristo.

Num estudo recente intitulado Machado de Assis and foreign languages (Machado de Assis e as línguas estrangeiras), Alberto I. Bagby Júnior conclui que o escritor brasileiro "era praticamente bilingue em Português e Francês, possuía competência comunicativa em Inglês e Espanhol e sabia ler, escrever e traduzir em cada uma destas línguas. Relativamente à sua competência linguística em Italiano, nas línguas clássicas e Alemão, pos-suímos dados menos concretos, no entanto, tudo indica que sabia ler e escrever Italiano, excepto falar; que a sua mestria em Latim ultrapassava a compreensão do Grego; que tinha alguns conhecimentos de Alemão".3

Não é feita qualquer alusão ao facto de Machado de Assis estar familiarizado com o Chinês.

Relativamente à importância da língua e literatura francesas para Machado de Assis, e ao papel desempenhado pelos escritores franceses na utilização de aspectos populares do Extremo Oriente, no século XIX, existe uma pesquisa completa sobre os autores franceses desse século. Existe também um bom guia na obra The imaginative interpretation of the Far East in modern French literature, 1800-1925, de William Leonard Schwartz.4 Schwartz caracteriza a fonte de Machado de Assis para a Lira chinesa, Le livre de jade (O livro de jade) de Judith Gautier, da seguinte forma:

"Os estudos de Chinês de Judith Gautier com Ting-Tun-Ling começaram em 1863 por sugestão de seu pai e foram prosseguidos com tal empenho que, passados quatro anos, ela vem a publicar a obra Le livre de jade, um livro de traduções em prosa poética de poesia moderna e antiga. A publicação deste livro despertou um pouco o interesse francês pela China, apesar de as cópias existentes do livro serem raras...

A originalidade da obra Le livre de jade de Judith Gautier reside no tratamento literário que a autora deu à versão da poesia chinesa, até à data sempre apresentada de uma forma erudita. Parece claro, observando as dis-crepâncias entre as traduções dela e as do estudioso d'Hervey-Saint-Denys, que ela se preocupou menos com a correcção linguística do que com a reprodução da paixão dos poetas chineses, apesar de o trabalho de Judith Gautier se ter baseado numa análise independente dos originais chineses. Daí afirmarmos que a obra Le livre de jade pertence à literatura francesa e não à sinologia."

A última afirmação de Schwartz sugere que Le livre de jade é essencialmente um trabalho de literatura francesa; os elementos chineses são meramente motivadores e relativamente à Lira chinesa isto parece ainda muito mais evidente pelo facto de não haver qualquer prova de que Machado de Assis se inspirou noutras obras de sinologia para as suas versões.

A edição de 1867 da obra Le livre de jade contém aproximadamente setenta versões francesas de textos extraídos de selecções chinesas, divididas em sete capítulos: "Amantes", "A lua", "Outono", "Viajantes", "Vinho", "Guerra", "Poetas", textos estes que são atribuídos a cerca de vinte nomes diferentes.

Dos nomes representados na Lira chinesa, Han-Tiê de Machado de Assis corresponde a Ouan-Tié de Gautier, o seu Tchê-Tsi ao Tché-Tsi dela, o seu Thu-Fu ao Thou-Fou dela, o seu Tan-Jo-Lu ao Tan-Jo-Su dela, o seu Tchan-Tiú-Lin ao Tchan-Tiou-Lin dela, o seu Tin-Tun-Sing ao Tin-Tun-Ling dela, o seu Su-Tchon ao Su-Tchon dela. Algumas destas modificações nos nomes têm que ver com a alteração da ortografia francesa para a tradição portuguesa: Tchê para Tché, Thu e Fu para Thou e Fou por exemplo. As alterações de Su para Lu e de Ling para Sing sugerem que o S e o L maiúsculos de Machado de Assis eram suficientemente semelhantes e, no caso de palavras desconhecidas, podem ter sido confundidas pelo impressor. Contudo, a identificação de poemas e poetas não é simples.

Em relação à edição de 1908, Arthur Waley fez os seguintes comentários, reproduzidos por Schwartz5 no seu estudo:

"Foi difícil comparar estas versões com o original porque os nomes próprios foram distorcidos ou trocados em geral. Por exemplo, parte de um poema de Po Chu-i sobre Yang T'ai-Chen é aqui dado como um poema completo e a autoria é atribuída a Yan-Ta-Tchen. O poeta Han Yu figura como Heu-Yu; T'ao Han como Sao Nan, etc. Tais erros são evidentemente devidos à decifração errónea da escrita. No entanto, o livro é muito mais legível do que o de Hervey-Saint-Denys e demonstra um conhecimento mais alargado da poesia chinesa por parte de quem quer que tenha sido o seleccionador dos poemas. Todo o crédito desta selecção deverá ser atribuído a Ting-Tun-Ling, o literatus (estudioso) de quem Théophile Gautier era amigo. Contudo, o mérito da beleza destas versões frequentemente erróneas deve-se à própria Mademoiselle Gautier."

Tendo em conta que não é fácil encontrar a rara primeira edição da obra de Gautier ou da Lira chinesa de Machado de Assis, gostaríamos de citar ambas as versões para uma comparação mais conveniente. Para as versões portuguesas baseamo-nos na Obra completa de Machado de Assis,6 a qual por sua vez é baseada em Poesias completas: Falenas.

Presume-se que um dos poemas é da autoria do literatus Ting-Tun-Ling (preferível ao Tin-Tun-Sing de Machado de Assis), referido por Schwartz, e que vivia em França nessa altura. Seguem-se as duas versões:

Gautier7

Les petitesfleurs se moquent des graves sapins

Sur le haut de la montagne, les sapins demeurent sérieux et hérissés; au bas de la montagne, les fleurs éclatantes s'étalent sur l'herbe.

En comparant leurs fraîches robes aux vêtements sombres des sapins, les petites fleurs se mettentà rire.

Et les papillons légers se mêlent à leur gaieté. Mais, un matin d'automne, j'ai regardé la montagne: les sapins, tout habillés de blanc, étaient là, graves et rêveurs.

J'ai eu beau chercher au bas de la montagne, je n'ai pas vu les petites fleurs moqueuses.

Machado de Assis8

As flores e os pinheiros

Vi os pinheiros no alto da montanha Ouriçados e velhos;

E ao sopé da montanha, abrindo as flores

Os cálices vermelhos.

Contemplando os pinheiros da montanha,

As flores tresloucadas

Zombam deles enchendo o espaço em torno

De alegres gargalhadas.

Quando o outono voltou, vi na montanha

Os meus pinheiros vivos,

Brancos de neve, e meneando ao vento

Os galhos pensativos.

Volvi o olhar ao sítio onde escutara

Os risos mofadores;

Procurei-as em vão; tinham morrido

As zombeteiras flores.

Seguem-se as versões inglesas:

Gautier

The little flowers make fun of the serious pine trees

On the top of the mountain, the pine trees dwell serious and rough; at the bottom of the mountain, the dazzling flowers stretch out ofthe grass.

As they compare their new dresses with the dark clothing of the pines, the little flowers begin to laugh.

And the wanton butterflies join in their gayety.

But, one autumn morning, I looked at the mountain: the pines, completely clad in white, were there, serious and pensive.

In vain I sought at the bottom ofthe mountain, I did not see the little flowers who made fun of the pines.

Machado de Assis

The flowers and the pine trees

I saw the bristling and aged pine trees on the top of the mountain; and at the bottom of the mountain, the flowers opening up their red ca-lyxes.

Contemplating the pine trees on the mountain, the distraught flowers laugh at them filling the space around them with gay bursts of laughter.

When autumn returned, I saw on the mountain my pine trees alive, while with snow, and moving their pensive branches before the wind.

I turned my gaze to the place where I had heard the mocking laughter; I sought them in vain; the flowers that had laughed at the pine trees had died.

Uma comparação das duas versões mostra que Machado de Assis introduz, aqui e ali, palavras com o objectivo de rimarem (por exemplo "velhos" e "vermelhos" na primeira estância), e que o autor tende a ser fiel ao sentido geral, expressando claramente os seus pensamentos, fixando-se menos na sugestão do que Mademoi-selle Gautier. Não há dúvida que as duas versões revelam da parte dos autores mérito artístico e mestria no uso da língua.

Outro, cuja identificação parece incerta, é um poema sobre o leque de uma senhora. O autor do poema original é uma mulher conhecida pelo nome de Pan Chien-yii 班婕妤. Chien-yii é o nome conferido a esta concubina imperial, que viveu durante a dinastia Han. As duas versões são as seguintes:

Gautier9

L'éventail (selon Tan-Jo-Su)

La nouvelle épouse est assise dans la Chambre Parfumée, où l'époux est entré la veille pour la premiére fois.

Elle tient à la main son éventail où sont écrits ces caractères: "Quand l'air est étouffant et le vent immobile, on m'aime et l'on me demande la fraîcheur; mais quand le vent se lève et quand l'air devient froid, on me dédaigne et l'on m'oublie".

En lisant ces caractéres, la jeune femme songe à son époux, et déjà des pensées tristes l'enveloppent. "Le coeur de mon époux est maintenant jeune et brûlant; mon époux vient près de moi pour rafraî-chir son coeur;

Mais lorsque son coeur sera froid et tranquille, il me dédaignera peut-être et m'oubliera."

Machado de Assis10

O leque (Tan-Jo-Lu)

Na perfumada alcova a esposa estava,

Noiva ainda na véspera.

Fazia calor intenso; a pobre moça ardia,

Com fino leque as faces refrescava.

Ora, no leque em boa letra feito

Havia este conceito:

Quando, imóvel o vento e o ar pesado,

Arder o intenso estio,

Serei por mão amiga ambicionado;

Mas, volte o tempo frio,

Ver-me-eis a um canto logo abandonado".

Lê a esposa este aviso, e o pensamento

Volve ao jovem marido.

Arde-lhe o coração neste momento

(Diz ela) e vem buscar enternecido

Brandas auras de amor.

Quando mais tarde

Tornar-se em cinza fria

O fogo que hoje lhe arde,

Talvez me esqueça e me desdenhe um dia."

Na tradução inglesa temos:

Gautier

The fan (according to Tan-Jo-Su)

The new wife is seated in the Perfumed Bed-room, where the husband entered for the first time that eve.

She has in her hand her fan on which are written these characters: "When the air is stifling the wind motionless, I am loved and my coolness is asked for; but when the wind moves and the air becomes cold, I am disdained and forgotten".

As she reads these characters, the young woman thinks of her husband, and now sad thoughts envelop her.

"The heart of my husband is now young and ar-dent; my husband comes near me to refresh his heart;

But when his heart is cold and tranquil, perhaps he will disdain and forget me."

Machado de Assis

The fan (Tan-Jo-Lu)

The wife was in the perfumed bedroom, still a bride the eve before. It was intensely hot; the poor young woman was burning, with a delicate fan she kept cooling her cheeks. Now, on the fan in clear letters this conceit there was formed: "When, the wind motionless and the air heavy, intense summer burns, I shall be desired by a friendly hand; but, let the cold weather return, you will see me at once abandoned to a comer".

Joapuim Maria Machado de Assis Retrato por Joaquim Franco Técnica mista; Macau,1995

The wife reads this warning, and her thought turns to her young husband. "At this moment his heart is burning (she says) and he comes ten-derly to seek love's gentle zephyrs. When later the fire that is burning in him today turns to cold ashes, perhaps he will forget and disdain me one day."

Através da comparação das duas versões (francesa e portuguesa) tem-se a mesma impressão: fidelidade na interpretação, figurando na versão portuguesa uma escolha de palavras que é devida ao desejo do poeta de encontrar rimas adequadas.

O primeiro poema da Lira chinesa é breve e impressionante; não me foi possível identificar o poeta chinês a quem o poema é atribuído: Ouan-Tié em Francês, e Han-Tiê em Português. A avaliar por algumas transcrições francesas feitas por Mademoiselle Gautier noutras situações, Wang parece uma escolha mais provável do que Han, contudo isto não passa de mera suposição.

As versões portuguesa e francesa são as seguintes:

Gautier11

Um poete rit dans son bateau (selon Ouan-Tié)

Le petit lac pur et tranquille ressemble à une tasse remplie d'eau.

Sur ses rives, les bambous ont des formes de cabanes, et les arbres, au-dessus, font des toitures vertes.

Et les grands rochers pointus, posés au milieu des fleurs, ressemblent à des pagodes.

Je laisse mon bateau glisser doucement sur l'eau, et je souris de voir la nature imiter ainsi les hommes.

Machado de Assis

O poeta a rir (Han-Tiê)

Taça d'água parece o lago ameno;

Têm os bambus a forma de cabanas,

Que as árvores em flor, mais altas, cobrem

Com verdejantes tectos

As pontiagudas rochas entre flores

Dos pagodes o grave aspecto ostentam...

Faz-me rir ver-te assim, ó natureza,

Cópia servil dos homens.

Seguem-se as versões inglesas:

Gautier

A poet laughs in his boat (according to Ouan-Tié)

The pure and calm tiny lake resembles a glass filled with water.

On its banks, the bamboos are shaped like cab-ins, and the trees, above, make green roofs.

And the large pointed rocks, set in the midst of the flowers, resemble pagodas.

I let my boat glide gently over the water, and I smile to see nature imitate men this way.

Machado de Assis

The poet laughing (Han-Tiê)

A glass of water does the agreable lake appear: the bamboos are shaped like cabins, which the flowering trees, higher, cover with roofs that show green.

The sharp-pointed rocks amid flowers display the serious aspect of pagodas... It makes me laugh to see you like this, o nature, a slavish copy of men.

Machado de Assis preservou quase tudo o que era essencial no poema, excepto o facto de o poeta estar a rir no seu barco.

Dois dos poemas atribuem-se a Thou-Fou 杜甫 (ou Thu-Fu), conhecido em Inglês como Tu Fu. William Hung, no seu A supplementary volume of notes for Tu Fu: China's greatestpoet (Volume suplementar de notas sobre Tu Fu: o maior poeta chinês),12 faz um excelente estudo da obra (autêntica e atribuída) deste poeta, estudo esse que analisa as traduções deste escritor que aparecem no Le livre de jade. Citamos Hung:

De todas as traduções de Tu Fu, as de Judith Walter (pseudómino de Judith Gautier), incluídas no Le livre de jade13 parecem ter sido as mais antigas. O livro tem várias edições revistas... e foi traduzido para Alemão... Italiano... Português14, Inglês... e possivelmente para outras línguas. No livro existem catorze poemas atribuídos a Tu Fu. Dois deles são traduções bastante adulteradas dos poemas originais.15 Do resto poder-se-á dizer que representam apenas a imaginação criativa de uma jovem francesa de vinte e dois anos. Não posso identificar estes doze poemas com nenhum dos textos chineses originais ou mesmo com os pseudo-poemas na colecção de Tu Fu... A prática de seleccionar os poemas de Tu Fu, retirando-os directa ou indirectamente do original de Hervey ou das pseudo-traduções de Gautier - acrescentando, por vezes, novas criações - parece ter-se espalhado bastante rapidamente."

O Professor Hung dedicou muito do seu tempo e esforço a este problema e confiamos nele totalmente de forma a estarmos certos quando afirmamos que o poema "Imperador", atribuído a Tu Fu, é falso ou espúrio, enquanto o poema "Reflexões, no Rio Tchou", é um poema chinês original daquele escritor.

Em primeiro lugar apresentaremos o poema espúrio em Francês e Português:

Gautier16

L'empereur (selon Thou-Fou)

Sur un trône d'or neuf, le Fils du Ciel, éblou-issant de pierreries, est assis au milieu des Mandarins; il semble un soleil environné d'étoiles.

Les Mandarins parlent gravement de graves choses; mais la pensée de l'Empereur s'est enfuie par la fenêtre ouverte.

Dans son pavillon de porcelaine, comme une fleur éclatante entourée de feuillage, l'Impé-ratrice est assise au milieu de ses femmes.

Elle songe que son bien-aimé demeure trop long-temps au conseil, et, avec ennui, elle agite son éventail.

Une bouffée de parfums caresse le visage de 1'Empereur.

"Ma bien-aimée d'un coup de son éventail m'envoie le parfum de sa bouche"; et l'Empereur, tout rayonnant de pierreries, marche vers le pavillon de porcelaine, laissant se regarder en silence les Mandarins étonnés.

Machado de Assis17

O imperador (Thu-Fu)

Olha. O Filho do Céu, em trono de ouro;

E adornado com ricas pedrarias,

Os mandarins escuta: - um sol parece

De estrelas rodeado.

Os mandarins discutem gravemente

Cousas muito mais graves. E ele?

Foge-lhe O pensamento inquieto e distraído

Pela janela aberta.

Além, no pavilhão de porcelana,

Entre donas gentis está sentada

A imperatriz, qual flor radiante e pura

Entre viçosas folhas.

Pensa no amado esposo, arde por vê-lo,

Prolonga-se-lhe a ausência, agita o leque...

Do imperador ao rosto um sopro chega

De recendente brisa.

"Vem dela este perfume", diz, e abrindo

Caminho ao pavilhão da amada esposa,

Deixa na sala, olhando-se em silêncio,

Os mandarins pasmados

Seguem-se as versões inglesas:

Gautier

The Emperor (according to Thou-Fou)

On a throne of new gold, the Son of Heaven, resplendent with gems, is seated amidst the mandarins; he seems like a sun surrounded by stars.

The mandarins speak gravely of serious matters; but the thought of the Emperor has run off through the open window.

In her pavilion of porcelain, like a dazzling flower surrounded by foliage, the Empress is seated amidst her women.

She thinks that her beloved is tarrying too long in the council, and, with vexation, she waves her fan.

Awhiffof perfume caresses the Emperor's coun-tenance.

"My beloved with a wave of her fan sends me the perfume of her mouth"; and the Emperor, all agleam with gems, marches toward the porcelain pavilion, leaving the astonished mandarins to look at one another in silence.

Machado de Assis

The Emperor (Thu-Fu)

Look. The Son of Heaven, on a throne of gold, and adorned with rich gems, listens to the mandarins: - he looks like a sun surrounded with stars. The mandarins discuss gravely matters much more serious. And he? His restless and distracted thought flees through the open window. Beyond, in the porcelain pavilion, among genteel ladies is seated the empress, like a radi-ant and pure flower among lush leaves. She thinks of her beloved husband, she burns to see him, his absence is becoming overly long for her, she waves her fan... a puff of a breeze redolent with aroma reaches the countenance of the em-peror. "This perfume comes from her", he says, and making his way to the pavilion of his beloved wife, he leaves in the hall, looking at one another in silence, the dismayed mandarins

A comparação em Inglês das duas versões mostra como são ambas semelhantes, e contudo uma cor--responde à versão francesa e a outra à versão portuguesa. Outras versões, mais autenticamente atribuídas a Tu Fu, são:

Gautier18

Sur lefleuve Tchou (selon Thou-Fou)

Mon bateau glisse rapidement sur le fleuve, et je regarde dans l'eau.

Au-dessus est le grand ciel, où se promènent les nuages.

Le ciel est aussi dans le fleuve; quand un nuage passe sur la lune, je le vois passer dans l'eau; Et je crois que mon bateau glisse sur le ciel. Alors je songe que ma bien-aimée se reflète ainsi dans mon coeur.

Machado de Assis19

Reflexos (Thu-Fu)

Vou rio abaixo vogando

No meu batel e ao luar;

Nas claras águas fitando,

fitando o olhar.

Das águas vejo no fundo,

Como por um branco véu

Intenso, calmo, profundo,

O azul do céu.

Nuvem que no céu flutua,

Flutua n'água também;

Se a lua cobre, à outra lua

Cobri-la vem.

Da amante que me extasia,

Assim, na ardente paixão,

As raras graças copia

Meu coração.

As versões em Inglês são as seguintes:

Gautier

On the Chou river (according to Thou-Fou)

My boat glides rapidly over the river, and I look into the water.

Above is the great sky, where the clouds stroll.

The sky also is in the river; when a cloud passes over the moon, I see it pass in the water;

And I believe that my boat glides over the sky.

Then I think that my beloved reflects herself thus in my heart.

Machado de Assis

Reflections (Thu-Fu)

I go gliding down the river in my boat and by the light of the moon; fixing my glance, fixing my glance on the clear waters.

I see into the depth of the waters, as through a white veil intense, calm, profound, the blue of the sky.

A cloud that floats in the sky, floats also in the water; if it covers the moon, it comes to cover the other moon.

Thus, in burning passion, my heart copies the rare graces of the lover who makes me ecstatic.

Apesar de o pensamento deste poema ser bastante claro, os versos portugueses parecem sensivelmente menos livres do que os franceses. A repetição da palavra "fitando", a introdução de palavras como "intenso", "calmo", profundo transmitem a ideia de vigor a qual não está em harmonia com a versão lânguida e suave de Mademoiselle Gautier. Poderá considerar-se que esta alteração de tom não é um defeito da versão portuguesa, contudo tenho a sensação de que Machado de Assis nas suas outras versões captou não só as ideias como também o humor geral do original francês.

Outro destes poemas corresponde a um atribuído a Wang Chi 王績, intitulado Thejewel (A jóia) nas versões inglesas, publicado no Chinese love poems20 e no Chinese love poems from most ancient to modern times,21 de D. J. Klemer. Apresentaremos seguidamente as versões portuguesa e francesa que, tal como é referido, se atribuem a Tché-Tsi, ou Tchê-Tsi, nomes cuja última sílaba se adequa bastante bem ao nome de Wang Chi.

Gautier22

A la plus bellefemme du bateau desfleurs (selon Tché-Tsi)

Je t'ai chanté des chansons en m'accompagnant de ma flûte d'ébène, des chansons oùje te racontais ma tristesse; mais tu ne m'as pas écouté.

J'ai composé des vers où je célébrais ta beauté; mais en balançant la tête tu as jeté dans l'eau les feuilles glorieuses où j'avais tracé des caractères.

Alorsje t'ai donné un gros saphir, un saphirpareil au ciel nocturne, et, en échange du saphir obscur, tu m'as montré les petites perles de ta bouche.

Machado de Assis23

A uma mulher (Tchê-Tsi)

Cantigas modulei ao som da flauta,

Da minha flauta d'ébano.

Nelas minh'alma segredava à tua

Fundas, sentidas mágoas.

Cerraste-me os ouvidos. Namorados,

Versos compus de júbilo,

Por celebrar teu nome, as graças tuas,

Levar teu nome aos séculos.

Olhaste, e, meneando a airosa fronte,

Com tuas mãos puríssimas,

Folhas em que escrevi meus pobres versos

Lançaste às ondas trêmulas.

Busquei então por encantar tu'alma

Uma safira esplêndida,

Fui depô-la a teus pés... tu descerraste

Da tua boca as pérolas.

As versões inglesas são as seguintes:

Gautier

To the most beautiful woman oftheflower boat

(according to Tché-Tsi)

I have sung to you songs accompanying myself on my ebony flute, songs in which I told you of my sadness; but you did not listen to me.

I have composed verses in which I celebrated your beauty; but in swinging your head, you threw into the water the glorious leaves on which

I had traced some characters.

Then I gave you a huge sapphire, a sapphire like the night sky, and, in exchange for the dark sapphire, you showed me the tiny pearls of your mouth.

Machado de Assis

To a woman (Tchê-Tsi)

I sang songs accompanied by the flute, by my ebony flute; in them my soul whispered to yours deep, heart-felt sorrows.

You closed your ears to me. I composed loving joyous verses to celebrate your name, your graces, to carry your name to the centuries.

You looked, and, shaking your comely head, with your hands most pure, threw into the trembling waves leaves on which I had written my poor verses. I then sought in order to enchant your soul a splen-did sapphire, I went to place it at your feet... you opened up the pearls of your mouth.

Ao compararmos as duas versões, verificamos de novo que Machado de Assis escolhe um título mais curto e menos específico; o leitor não fica com a ideia de que a mulher referida é uma beldade de um barco de flores. É possível, no entanto, que um sentimento de modéstia tenha feito com que Machado de Assis não indicasse que a referida mulher era uma beldade de um barco de flores porque, e se de facto ele percebeu a expressão, esta cor--responde à palavra composta hua ch 'uan 花船, cuja tradução literal é "barco de flores", mas que significa de facto "bordel flutuante". De qualquer forma a ausência de resposta e de compreensão por parte da mulher é clara.

Se a eliminação do detalhe do "barco de flores" torna ou não o poema culturalmente menos relevante, é certo que a substituição da palavra "caracteres" pela palavra vaga "versos" toma o poema português, de imediato, menos sugestivo da cultura chinesa.

O sétimo poema a ser considerado parece ser atribuído bastante claramente por Mademoiselle Gautier a Chang Chiu-Ling 張九齡, que viveu entre 673-740. O tema deste poema é a folha do salgueiro. Estas são as versões francesa e portuguesa:

Gautier24

Lafeuilie de saule (selon Tchan-Tiou-Lin)

La jeune femme qui rêve accoudée à sa fenêtre, je ne l'aime pas à cause de la maison somptueuse qu'elle possède au bord du Fleuve Jaune;

Mais je l'aime parce qu'elle a laissé tomber à l'eau une petite feuille de saule.

Je n'aime pas la brise de l'est parce qu'elle m'apporte le parfum des pêchers en fleurs qui blanchissent la Montagne Orientale;

Maisje l'aime parce qu'elle a poussé du côté de mon bateau la petite feuile de saule. Et la petite feuille de saule je ne l'aime pas parce qu'elle me rappelle le tendre printemps qui vient de refleurir;

Maisje 1'aime parce que la jeune femme a écrit un nom dessus avec la pointe de son aiguille à broder, et que ce nom, c'est le mien.

Machado de Assis25

A folha do salgueiro (Tchan-Tiú-Lin)

Amo aquela formosa e terna moça

Que, à janela encostada, arfa e suspira;

Não porque tem do largo rio à margem

Casa faustosa e bela.

Amo-a, porque deixou das mãos mimosas

Verde folha cair nas mansas águas.

Amo a brisa de leste que sussurra,

Não porque traz nas asas delicadas

O perfume dos verdes pessegueiros

Da oriental montanha.

Amo-a porque impeliu co'as tênues asas

Ao meu batel a abandonada folha.

Se amo a mimosa folha aqui trazida,

Não é porque me lembre à alma e aos olhos

A renascente, a amável primavera,

Pompa e vigor dos vales.

Amo a folha por ver-lhe um nome escrito,

Escrito, sim, por ela, e esse...

é meu nome.

Entre as diferenças mais evidentes dos dois poemas, está a falta de definição das referências geográficas; o Fleuve Jaune na versão francesa é especificamente o Rio Amarelo, e a Montagne Orientale também sugere um lugar preciso, enquanto no poema português aparece simplesmente "o largo rio" e "a oriental montanha". Para tornar clara a diferença, incluímos na nossa versão inglesa do original francês os equivalentes chineses desses lugares, pelo facto de serem nomes geográficos confirmados. A natureza da escrita chinesa torna por vezes difícil a distinção entre nomes comuns e topónimos.

Gautier

The willow tree leaf (according to Tchan-Tiou-Lin)

The young woman who is dreaming leaning at her window, I do not love because of the elegant house that she possesses on the bank of the

HuangHo 黃河 (Yellow River);

But I love her because she has dropped into the water a tiny willow tree leaf.

I do not love the breeze from the east because it bears to me the perfume of the flowering peach trees which make the Tung Shan 東山 (Eastern Mountain) white;

But I love her because she has pushed the little willow tree leaf beside my boat.

And the tiny willow tree leaf, I do not love because it recalls to me the gentle spring which has just flowered again;

But I love it because the young woman has writ-ten a name on it with the point of her embroider-ing needle, and because that name is mine.

Machado de Assis

The leaf of the willow tree (Tchan-Tiú-Lin)

I love that beautiful and gentle maiden who, lean-ing at her window, gasps and sighs; not because she has at the edge of the broad river an elegant and beautiful house.

I love her, because she dropped into the gentle waters a green leaf from her dainty hands.

I love the breeze of the east that rustles, not because it brings on its slender wings the perfume of the green peach-trees on the eastern moun-tain. I love it because it pushed with its tenuous wings to my boat the abandoned leaf.

If I love the delicate leaf brought here, it is not because of its bringing to my heart and eyes the renascent, delightful spring, pride and vigor of the valleys.

I love the leaf because of seeing a name written on it, written, yes, by her, and it... is my name.

A utilização de uma agulha de bordar para escrever o nome do poeta é um detalhe do poema chinês, tal como foi registado por Mademoiselle Gautier. O mesmo detalhe não aparece na versão portuguesa; a inclusão por Machado de Assis da expressão "Pompa e vigor dos vales" parece um pouco excessiva.

Apesar de tudo esta versão portuguesa pode ser considerada boa. Também é possível que um leitor brasileiro em 1870 não estivesse tão apto a demonstrar interesse pela cultura chinesa, pelo menos o suficiente para tornar eficaz este detalhe realista apresentado por Mademoiselle Gautier, isto é, a sugestão de nomes de lugares específicos ou a agulha usada para bordar. Também se pode usar o argumento de que o último detalhe mencionado parece particularmente apropriado para uma mulher escrever, contudo, o mesmo não poderá ser dito para um homem.

Não foi possível identificar oito dos poemas, incluídos na Lira chinesa, e relacioná-los com o respectivo autor chinês. Dos poemas da obra Le livre de jade, um é atribuído a Su-Tchon e outro a Li-Su-Tchon. Se Su-Tchon e Li-Su-Tchon são o mesmo poeta, isso é uma questão que não sabemos. Neste caso, o título de Machado de Assis é maior e mais específico do que o de Mademoiselle Gautier.

Gautier26

Le coeur triste au soleil (selon Su-Tchon)

Le vent d'automme arrache les feuilles des arbres et les disperse sur la terre.

Je les regarde s'envoler sans regret, car seul je les ai vues venir, et seul je les vois partir.

La tristesse projette son ombre sur mon coeur, comme les hautes montagnes font la nuit dans la vallée.

Les souffles d'hiver changent l'eau en pierre brillante; mais au premier regard de l'été elle redeviendra cascade joyeuse.

Quand l'été sera de retour, j'irai m'asseoir sur la plus haute roche, pour voir si le soleil fera fondre mon coeur.

Machado de Assis27

Coração triste falando ao sol (Su-Tchon)

No arvoredo sussurra o vendaval do outono,

Deita as folhas à terra, onde não há florir,

E eu contemplo sem pena esse triste abandono,

Só eu as vi nascer, vejo-as só eu cair.

Como a escura montanha, esguia e pavorosa,

Faz, quando o sol descamba, o vale enoitecer,

Esta montanha da alma, a tristeza amorosa,

Também de ignota sombra enche todo o meu ser.

Transforma o frio inverno a água em pedra dura,

Mas torna a pedra em água um raio deverão;

Vem, ó sol, vem, assume o trono teu na altura,

Vê se podes fundir meu triste coração.

As versões em Inglês são as seguintes:

Gautier

The sad heart to the sun (according to Su-Tchon)

The autumn wind removes the leaves from the trees and disperses them on the land.

I look at them being carried away without re-gret, for alone I have seen them come, and alone I see them leave.

Sadness projects its shadow over my heart, as the high mountains cause night in the valley.

The gusts of winter change water into a shining rock; but at the first glance of summer it will become again a joyous rivulet.

When the summer is back, I shall go take my seat on the highest rock, to see if the sun will cause my heart to melt.

Machado de Assis

Sad heart speaking to the sun (Su-Tchon)

In the forest grove rustles the autumn gale, it leaves the leaves on the ground, where there is nothing in flower, and I contemplate without sad-ness that sorry abandonment, I saw them being bom alone, and I see them fall alone.

As the dark mountain, tall and frightful, when the sun sinks down, brings night to the valley, this mountain of the soul, the sadness of love also fills my whole being with an unknown shadow.

Cold winter transforms water into a hard rock, but a summer's beam turns the rock into water; come, o sun, come, assume thy throne on high, see if thou art able to melt my sad heart.

No poema português a personificação evidente no fim da última estância pode parecer mais característica da poesia do ocidente do que do oriente, e em comparação com Mademoiselle Gautier, esta mostra uma expressão mais caracteristicamente oriental. Fico com a impressão que o facto de se apostrofar o sol, aqui, trai o ponto de vista ocidental de Machado de Assis; ao mesmo tempo, transmite uma qualidade dramática e um poder indiscutíveis. Ambas as versões omitem a alusão à primavera, o que pode parecer curioso, e o facto de este detalhe estar ausente em ambos mostra que o conteúdo significante é o mesmo.

Resumindo, as versões de Machado de Assis mostram uma sensibilidade à linguagem poética, apesar de ele ocidentalizar os aspectos chineses dos poemas de vez em quando. É curioso que a versão francesa, por vezes, deixa mais espaço à imaginação do leitor do que a versão portuguesa; isto pode estar relacionado com o elevado grau de ocidentalização do poeta brasileiro.

O nome de Machado de Assis ocupa um lugar de destaque na lista dos tradutores da prosa de Judith Gautier, e os leitores podem ficar-lhe gratos por ela ser a fonte das experiências de Machado de Assis na tradução de poesia chinesa para Português.

É pena que os estudiosos ainda não tenham encontrado as fontes reais de todas as selecções que se encontram no Le livre de jade; talvez os leitores do "Boletim do Instituto Luís de Camões" tenham conhecimentos suficientes para corrigir e ampliar pontos de vista e afirmações feitas por mim nesta comunicação, que, se tiver algum mérito, eu gostaria de dedicar à memória de Luís Gonzaga Gomes, o último editor do boletim, cuja inspiração é eterna.

(Edição revista de texto publicado originalmente com o título Machado de Assis and his 'Lira chinesa' em: "Boletim do Instituto Luís de Camões", Macau, 10 (3-4) Outono-Inverno 1976, pp. 165-83.)

Publicado in Revista de Cultura, N° 22, H Série, Janeiro/Março de 1995.

GLOSSÁRIO

Ban Jie Yu (Pan Chien-yü) = 班婕妤

Dong Shan (Tung Shan) = 東山

Du Fu (Thou-Fou; Thu-Fu; Tu Fu) = 杜甫

Hua Chuan (hua ch'uan) = 花船

Huang He (Huang Ho) = 黃河

Wang Ji (Han-Tiê; Ouan-Tié; Wang Chi) = 王績

Zhang Jiu Ling (Chang Chiu-Ling; Tchan-Tiou-Lin;

Tchan-Tiú-Lin)=張九齡

* As flores pequenas troçam dos pinheiros sérios

No alto da montanha, os pinheiros permanecem sérios e eriçados; no sopé da montanha, flores encantadoras estiram-se sobre a erva.

E ao compararem os seus vestidos frescos com as vestes escuras dos pinheiros, as pequenas flores começam a rir.

E as frívolas borboletas associam-se ao seu divertimento.

Mas, numa manhã de Outono, olhei para a montanha: os pinheiros, completamente vestidos de branco, estavam lá, sérios e pensativos.

Em vão procurei no sopé da montanha, não vi as pequenas flores que troçaram dos pinheiros.

*O leque (segundo Tan-Jo-su)

A nova esposa está sentada no Quarto Perfumado, onde o marido tinha entrado na véspera pela primeira vez.

Ela tinha na mão o seu leque, onde estavam escritos estes caracteres:

"Quando, o ar é sufocante e o vento está imóvel, sou amada e pedem-me frescura; mas quando o vento se levanta e quando o ar se torna frio, desdenham-me e esquecem-me."

"O coração do meu esposo é agora jovem e ardente; o meu esposo vem ter comigo para refrescar o seu coração;

Mas quando o seu coração estiver frio e tranquilo, ele desdenhar-me-á e esquecer-me-á."

* Um poeta ri no seu barco (segundo Ouan-Tié)

O pequeno lago puro tranquilo assemelha-se a uma taça cheia de água.

Nas suas margens, os bambus parecem cabanas, e as árvores, em cima, fazem telhados verdes.

E os grandes rochedos pontiagudos, colocados no meio das flores, assemelham-se a pagodes.

Deixo o meu barco deslizar docemente sobre a água, e sorrio ao ver a natureza imitar os homens desta forma.

* O Imperador (segundo Thou-Fou)

Num novo trono de ouro, o Filho do Céu, resplandecente de pedrarias, está sentado no seio de mandarins; parece um sol rodeado de estrelas.

Os mandarins discutem seriamente sobre coisas muito graves; mas o pensamento do Imperador foge-lhe pela janela aberta.

No seu pavilhão de porcelana, como uma flor radiante rodeada de folhagem, está sentada a Imperatriz entre as suas mulheres.

Pensa no seu bem-amado que se demora no conselho, e, com aborrecimento, abana o seu leque.

Um sopro de perfume acaricia o rosto do Imperador.

"A minha bem-amada envia-me o perfume da sua boca através de um simples abanar do seu leque"; e o Imperador completamente resplandecente de pedrarias, caminha em direcção ao pavilhão de porcelana, deixando os mandarins pasmados olhando uns para os outros.

* No rio Tchou (segundo Thou-Fou)

O meu barco desliza rapidamente no rio, e eu olho para a água. Em cima está o grande céu, onde as nuvens se passeiam. O céu também está no rio; quando uma nuvem passa sobre a lua, vejo-a passar também na água;

E acho que o meu barco desliza no céu.

Penso então que a minha bem amada se reflecte também no meu coração.

* À mais linda mulher do barco das flores (segundo Tché-Tsi)

Cantei-te canções acompanhado da minha flauta de ébano, canções em que eu te contava a minha tristeza; mas tu não me ouvias.

Compus versos em que celebrava a tua beleza; mas, ao abanares a cabeça, lançaste à água as gloriosas folhas onde eu tinha traçado os caracteres.

Dei-te então uma grande safira, uma safira semelhante ao céu da noite, mostraste-me as pequenas pérolas da tua boca.

* A folha do salgueiro (segundo Tchan-Tiou-Lin)

A jovem mulher que sonha inclinada à sua janela, não a amo por causa da casa sumptuosa que ela possui à beira do Huang Ho 黃河 (Rio Amarelo);

Mas amo-a porque ela deixou cair à água uma pequena folha de salgueiro.

Não amo a brisa de leste porque ela me traz o perfume dos pessegueiros em flor que branqueiam Tung Shan 東山 (a Montanha Oriental);

Mas amo-a porque ela empurrou para junto do meu barco a pequena folha de salgueiro.

E a pequena folha de salgueiro, não a amo porque ela me recorda a suave primavera que acaba de florir de novo;

Mas amo-a porque a jovem mulher escreveu nela o seu nome com a ponta da sua agulha de bordar, e porque esse nome é o meu.

* O coração triste ao Sol (segundo Su-Tchon)

O vento de Outono faz cair as folhas das árvores e dispersa-as na terra.

Vejo-as serem levadas sem lamentar, porque, só, eu vi-as chegar e, só, vejo-as partir.

A tristeza projecta a sua sombra no meu coração, tal como as altas montanhas provocam a noite no vale.

Os temporais de inverno transformam a água em pedra brilhante, mas ao primeiro olhar do verão ela tornar-se-á cascata alegre.

Quando o verão voltar, irei sentar-me na mais alta rocha, para ver se o sol fará o meu coração fundir.

NOTAS

1 ASSIS, Machado de, Phalenas, Rio de Janeiro, Garnier, 1870.

2 SOUSA, J. Galante de, Bibliografia de Machado de Assis, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1955, p. 445.

3 BAGBY JÚNIOR, Alberto I., Machado de Assis and foreign languages, "Luso-Brazilian Review", 12 (2) Winter 1975, pp.230-1.

4 SCHWARTZ, William Leonard, The imaginative inter-pretation of the Far East in modern French literature, 1800-1925, Paris, Librairie Ancienne Honoré Champion, 1927, pp. 46-9.

5 Idem, p. 47.

6 ASSIS, Machado de, Obra completa, Rio de Janeiro, Aguilar, 1973, vol. 3, pp. 53-6.

7 GAUTIER, Judith, Le livre de jade, Paris, Lemerre, 1867, pp. 81-2.

8 ASSIS, op. cit., 1973, pp. 55-6.

9 GAUTIER, op. cit., pp. 31-2.

10 ASSIS, op. cit., 1973, pp. 54-5.

11 GAUTIER, op. cit., pp. 147-8.

12 HUNG, William, A supplementary volume of notes for Tu Fu: China's greatest poet, Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1952, pp. 10-1.

13 GAUTIER, op. cit.

14 GAUTIER, Judith, O livro de jade, trad. por António de Castro Feijó, Lisboa, 1890.

15 GAUTIER, op. cit., 1867, poema XVIII, pp. 53-4 e poema CXLIII, pp. 119-24.

16 Idem, pp. 15-6.

17 ASSIS, op. cit., 1973, p. 54.

18 GAUTIER, op. cit., 1867, pp. 25-6.

19 ASSIS, op. cit., 1973, p. 56.

20 KLEMER, D. J., Chinese love poems, Garden City, New York, Hanover House, 1959, p. 43.

21 KLEMER, D. J., Chinese love poems from most ancient to modern times, Mt. Vernon, New York, The Peter Pauper Press, 1942, 1954, p. 29.

22 GAUTIER, op. cit., 1867, pp. 33-4.

23 ASSIS, op. cit., 1973, p. 53.

24 GAUTIER, op. cit., 1867, pp. 5-6.

25 ASSIS, op. cit., 1973, p. 55.

26 GAUTIER, op. cit., 1867, pp. 73-74.

27 ASSIS, op. cit., 1973, p. 56.

* Professor jubilado de Línguas Europeias, Universidade do Havai. Director executivo do Conselho Havaiano da Herança Portuguesa, Honolulu. Autor e tradutor - prémio de tradução, Lisboa, 1973, publicou, entre outros, A Ásia portuguesa revelada nos 'Lusíadas'e na ' Malaca conquistada', e prepara A presença portuguesa no Havai antes de 1878.

desde a p. 105
até a p.