*****, uma comunidade rebelde e desordeira que desde início esteve em conflito constante com as autoridades portuguesas.
Durante os primeiros vinte anos de existência da fortaleza de Solor, o prior dominicano de Malaca escolheu os seus capitães. Porém, em 1585 os frades, considerando que era uma "cousa ambiciosa e indigna da humildade de filhos de S. Domingos" eleger o capitão, pediram ao Vice-Rei em Goa para desempenhar esta tarefa. Por uma carta régia de 15 de Março de 1585, António de Viegas, um casado de Malaca, foi capitão do "baluarte de Sollor".
A partir de então, os governadores de Solor e Timor foram nomeados regularmente, se bem que os topazes rebeldes muitas vezes os tivessem impedido de cumprir os seus deveres.
Mais tarde erigiram-se as fortalezas de Ende, de Larantuka em Flores, e de Lifau em Timor. Apesar disso as ilhas de Sunda ficaram aos olhos das autoridades de Malaca e de Goa como "as derradeiras do mundo", como os Dominicanos tantas vezes, e devidamente, as descreveram nas suas cartas e relatórios, e de facto não foram alistadas como "possessões" do Estado da Índia até 1681.
Qualquer que seja a verdadeira versão dos acontecimentos, em 1570 uma povoação portuguesa florescente existia já em Macau, e os chineses, não desejando correr nenhum risco com os seus novos vizinhos, construíram em 1573 uma muralha sobre o istmo a norte de Macau, o qual dava acesso ao continente. Esta muralha tinha uma porta, conhecida pelos portugueses como "A Porta do Cerco", que inicialmente se abria apenas duas vezes por mês para permitir o fornecimento de produtos alimentícios e outros bens essenciais à cidade. Quando estava fechada, era selada com seis tiras de papel e, no portão, estava inscrito em chinês: "Temam a nossa grandeza e respeitem a nossa virtude".
Os primeiros colonos de Macau governavam-se a si próprios o melhor que podiam, sem instruções de Goa ou de Malaca, tal como os Dominicanos de Solor. A fundação do Senado da Câmara da Macau data apenas do vice-reinado de D. Francisco de Mascarenhas, de 1581 a 1584. Até aí as relações entre os portugueses e as autoridades chinesas ainda não tinham sido regularizadas. Em 1583, Francisco de Sande, antigo governador das Filipinas espanholas, escreveu do México ao Conde de La Coruña que, desde que Macau "é uma cidade regular com proximamente 500 casas e tem um governador português e um bispo, os cidadãos pagam todos os três anos ao Vice-Rei de Cantão, quando assume o seu cargo, aproximadamente 100.000 ducados para evitarem serem expulsos do país, e que ele distribui entre os grandes da casa do Rei da China. Porém, todos dizem constantemente que o Rei não tem nenhuma ideia de que haja tal gente portuguesa na sua terra".
António Bocarro diz-nos que em 1638 já havia aproximadamente 850 famílias portuguesas na cidade, cada uma das quais tinha em média seis escravos capazes de pegar em armas. Os filhos destas famílias eram, na sua opinião, muito mais robustos que quaisquer outras crianças no Oriente. Macau, continua ele, "é uma das mais nobres cidades do Oriente por seu rico e nobilíssimo trato pera todas as partes de todea a sorte de riquezas e cousas preciosas em grande abundância, e de mais número de casados e mais ricos que nenhuma que haja neste Estado".
As bases deste "rico e nobilíssimo trato" eram o comércio entre a China e o Japão, que continuou até à expulsão final dos portugueses do Japão pelo Shogum em 1639; o comércio com Manila que, apesar de tecnicamente ilegal depois da união em 1580 da coroa espanhola com a portuguesa, era permitido a até encorajado pelo governo do Vice-Rei; e o comércio de sândalo entre a China e as Ilhas de Sunda que, depois da perda do comércio japonês e segundo um relatório de 1640 do jesuíta Francisco Cardim, se tornou no comércio do qual dependia "a prosperidade, o sustento e quase a própria existência desta cidade").

Corruptelas e deslizes ortográficos, também dão sabor à escrita (Macau). Fotos de Joaquim de Castro.
A princípio, os mercadores de Macau compravam o sândalo, juntamente com pequenas quantidades de ouro, tartaruga, cera e escravos, em Solor, mais tarde em Larantuka, e finalmente em Timor mesmo, em troca de oiro fino, marfim, ferro, tecidos de algodão e de seda, carregados de Macau. Os seus navios faziam escala por Malaca, Batávia******, se as autoridades holandesas lhes permitiam, Japava e outros portos na costa norte de Java, de onde levavam arroz, que os portugueses usavam para pagarem às suas tropas em Timor, e depois por Madura e Bali antes de navegarem até as Ilhas de Sunda. Em 1580 o lucro líquido de cada carga transportada de Macau a Timor já subia a mil cruzados. O valor deste comércio aumentou após a tomada de Malaca pelos holandeses, em 1640, e a interdição do tráfego com Manila, imposta pelo governo espanhol das Filipinas como represália contra Macau, por ter auxiliado a revolução portuguesa de 1640 e ter reconhecido D. João IV como Rei de Portugal.
Em 1654 a inscrição "Não há outra mais leal" foi posta por cima da porta dos Paços do Concelho, por ordem do governador João de Sousa Pereira, e em 1810 o título de Leal Senado foi dado ao Concelho de Macau pelo Regente D. Pedro, nessa altura exilado no Rio de Janeiro. Acredito que, mesmo com as mudanças da História, o sentido de ser de alguma maneira culturalmente português, ("a saudade desta nossa condição de ser português") sobreviverá, quaisquer que sejam as circunstâncias políticas, em todos os pontos onde a História convocou o convívio de portugueses com outros povos asiáticos.
Publicado in Revista de Cultura, N° 4, I Série, Janeiro/Março de 1988.
NOTAS
Luís de Camões, Os Lusíadas. Canto I, l.
Armando Cortesão, trans. ed, The Suma Oriental of Tomé Pires. 2 vv. (London, Hakluyt Society, 1944). II, p.509.
Vide A. H. Hill, "Munshi 'Abdullah's Account of the Malacca Fort", Journal of the Malayan Branch of the Royal Asiatic Society, vol. XXIII, pt. l, Fevereiro 1950.
Cortesão, op. cit., II, p. 439.
"God, Gold and Glory".
João de Barros, Décadas da Ásia 1-4, 9 vv. (Lisboa, 1777-78), IV, ch. 21.
Os Lusíadas. Canto X, 133.
"António de Brito a El-Rei". Ternate, 11 de Fevereiro de 1523, in Artur Basílio de Sá. Documentação para a História das Missões do Padroado Portuguies do Oriente. Insulíndia, 5 vv. (Lisboa, 1954-63), I, p. 148.
Dagh-Register genhonden int casteel Batavia... 1624-29. 8 de Fevereiro de 1625.
Alexandre de Rhodes, S. J., Divers Voyages et Missions... en la Chine. & autres Royaumes de L'Orient (Paris, 1653) pt. III, pp. 34-38.
"Padre Baltasar Dias ao Padre Provincial da Índia", Malaca, 3 de Dezembro de 1559, in Sá. op. cit., II, pp. 344-345.
Humberto Leitão. Os Portugueses em Solor e Timor de 1515 a 1702. (Lisboa, 1948), pp. 82-84.
"Fundação das primeiras cristandades nas ilhas de Solor e Timor", in Sá, op. cit., IV, 495.
António Pinto da França, Portuguese Influence in Indonesia. (Lisboa, 1985), p. 42.
Citado em C. R. Boxer ed., South China in the Sixteenth Century (London, Hakluyt Society, 1953) pp. XXXVI-XXXVII.
António Bocarro, Livro das Plantas de todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, 1635, in Arquivo Português Oriental (Bastora, 1938), tomo IV. História Administrativa, vol. II, 1600-1699, pt. 11, p. 33.
Francisco Cardim, S. J., Relação da Gloriosa morte de quatro embaixadores portugueses da cidade de Macao... (Lisboa, 1643), fls. 19-20.
* Investigador da presença portuguesa no Oriente. Conferência apresentada no Auditório 2 da Fundação Gulbenkain, Lisboa, 12 de Junho de 1986(+|).
** MAÇA - polpa da noz-moscada.
*** SÂNDALA - árvore do sándalo.
****CASADO - com casa própria; residente.
*****TOPAZ - nome dado, no Oriente, aos cristãos mestiços.
******BATÁVIA é hoje Jacarta.